UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE ARQUITETURA, ARTES E COMUNICAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO Tamiris Tinti Volcean NARRATIVAS AUTOBIOGRÁFICAS: UMA ANÁLISE COMPARATIVA ENTRE A OBRA LITERÁRIA HOSPÍCIO É DEUS: DIÁRIO I (1965) E O DOCUMENTÁRIO AUDIOVISUAL SANTIAGO (2007) Bauru 2019 2 Tamiris Tinti Volcean NARRATIVAS AUTOBIOGRÁFICAS: UMA ANÁLISE COMPARATIVA ENTRE A OBRA LITERÁRIA HOSPÍCIO É DEUS: DIÁRIO I (1965) E O DOCUMENTÁRIO AUDIOVISUAL SANTIAGO (2007) Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Comunicação da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação (FAAC) da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, campus de Bauru, para a obtenção do título de Mestre em Comunicação sob a orientação do Prof. Dr. Arlindo Rebechi Junior. Bauru 2019 3 Volcean, Tamiris Tinti. Narrativas autobiográficas: uma análise comparativa entre a obra literária Hospício é Deus: diário I (1965) e o documentário audiovisual Santiago (2007) / Tamiris Tinti Volcean, 2010 186 f. Orientador: Arlindo Rebechi Junior Dissertação (Mestrado)–Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação, Bauru, 2019 1. Autobiografia. 2. Espaço Biográfico. 3. Gêneros do Discurso. 4. Dialogismo I. Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação. II. Título. 4 5 Tamiris Tinti Volcean NARRATIVAS AUTOBIOGRÁFICAS: UMA ANÁLISE COMPARATIVA ENTRE A OBRA LITERÁRIA HOSPÍCIO É DEUS: DIÁRIO I (1965) E O DOCUMENTÁRIO AUDIOVISUAL SANTIAGO (2007) Área de concentração: Comunicação Midiática Linha de Pesquisa: Produção de Sentido na Comunicação Midiática Banca examinadora: Presidente/ Orientador: Porf. Dr. Arlindo Rebechi Junior Instituição: Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação Titular: ____________________________________________________ Instituição: _________________________________________________ Titular: ____________________________________________________ Instituição: _________________________________________________ Resultado: __________________________________________________ Bauru, ___/___/____ 6 “O que lembro, tenho” Guimarães Rosa, in Grande Sertões: Veredas 7 AGRADECIMENTOS Ao professor Dr. Arlindo Rebechi Junior pela orientação cuidadosa dos meus passos iniciais na vida acadêmica, da graduação ao Mestrado, incentivando-me sempre a seguir em busca do sonho de ser professora e pesquisadora por meio de caminhos éticos e críticos. Deixo registrada aqui a minha admiração. A evolução de meu trabalho é espelho de sua dedicação enquanto orientador, colega de profissão e leitor atento. Ao professor Dr. Marcelo Magalhães Bulhões por acompanhar meus projetos e suas concretizações há tantos anos, participando atentamente de minhas bancas e, assim, contribuindo de forma direta ao desenvolvimento de minhas habilidades enquanto pesquisadora e ao amadurecimento de minhas ideias enquanto ser humano. Ao professor Dr. Jefferson Agostini Mello por ter aceitado contribuir para os desdobramentos desta pesquisa com sua participação na banca examinadora, oferecendo-me apontamentos valiosos para que a formulação final deste trabalho apresentasse confluências com a área da Literatura e das Teorias Literárias, que são minhas verdadeiras paixões. Aos meus mestres por todo o aprendizado. À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelo fomento ao presente estudo, financiamento imprescindível para a execução deste trabalho. Aos meus amigos unespianos pelos quatro anos de companheirismo durante a graduação e a todos aqueles com os quais esbarrei enquanto fui mestranda da instituição. Aos meus pais por possibilitarem a realização dessa importante etapa da minha vida, pelo amor, apoio, dedicação e pela confiança que têm em mim. À minha tia Neide por estar ao meu lado em qualquer situação, apoiando, acreditando e lutando para que eu consiga realizar todos os sonhos que tenho em mim. Ao meu irmão Guilherme pela torcida discreta e sempre presente. À Universidade Estadual Paulista pelo acolhimento e pelos frutos. 8 EU Florbela Espanca, in "Livro de Mágoas" Eu sou a que no mundo anda perdida, Eu sou a que na vida não tem norte, Sou a irmã do Sonho, e desta sorte Sou a crucificada… a dolorida… Sombra de névoa tênue e esvaecida, E que o destino amargo, triste e forte, Impele brutalmente para a morte! Alma de luto sempre incompreendida!… Sou aquela que passa e ninguém vê… Sou a que chamam triste sem o ser… Sou a que chora sem saber porquê… Sou talvez a visão que Alguém sonhou, Alguém que veio ao mundo pra me ver, E que nunca na vida me encontrou! Não sei quem sou, que alma tenho. Quando falo com sinceridade não sei com que sinceridade falo. Sou variamente outro do que um eu que não sei se existe (se é esses outros). Sinto crenças que não tenho. Enlevam-me ânsias que repudio. A minha perpétua atenção sobre mim perpetuamente me aponta traições de alma a um carácter que talvez eu não tenha, nem ela julga que eu tenho. Sinto-me múltiplo. Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas. Como o panteísta se sente árvore [?] e até a flor, eu sinto-me vários seres. Sinto-me viver vidas alheias, em mim, incompletamente, como se o meu ser participasse de todos os homens, incompletamente de cada [?], por uma suma de não-eus sintetizados num eu postiço. Fernando Pessoa, Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Lisboa: Ática, 1966. p. 93. 9 RESUMO Maura Lopes Cançado, uma escritora de carreira breve, publicou, em 1965, sua primeira obra, Hospício é Deus: diário I, um diário autobiográfico sobre seus dias de clausura em instituições psiquiátricas, dando ênfase para as críticas ao sistema manicomial. Por outro lado, João Moreira Salles, em 2007, lançou o documentário Santiago, no qual revisita a própria história por meio das lembranças do mordomo que trabalhou para os Moreira Salles por mais de três décadas. As duas obras em questão, Hospício é Deus: diário I (1965) e Santiago (2007) foram selecionadas para compor o corpus das análises comparativas desta pesquisa, uma vez que se constituem como narrativas singulares com traços autobiográficos a partir da perspectiva de Vapereau (1876) e Leonor Arfuch (2002), autores que ampliam as definições do gênero, chamando de autobiografia todo discurso cujo autor teve a intenção, secreta ou confessa, de contar trechos ou partes inteiras de sua vida. Intenciona-se, portanto, partindo da perspectiva comparativa destes discursos autobiográficos construídos a partir de sistemas sígnicos distintos, promover uma reflexão acerca dos limites normativos deste gênero do discurso, assim como uma ponderação sobre a conceituação tradicionalista proposta por Lejeune (1975) e as implicações da necessidade restritiva de um pacto para posicionar um discurso no espaço biográfico que reúne as narrativas do eu. Palavras-chave: Autobiografia; Espaço Biográfico; Maura Lopes Cançado; João Moreira Salles; Pacto Autobiográfico; Gêneros do Discurso; Dialogismo. ABSTRACT Maura Lopes Cançado, a short career writer, published in 1965 her first work, Hospício é Deus: diário I, an autobiographical diary about her cloistered days in psychiatric institutions, with emphasis on criticism of the asylum system. On the other hand, João Moreira Salles released, in 2007, the documentary Santiago, in which he revisits his own history through the memories of the butler who worked for the Moreira Salles for more than three decades,. The two works in question, Hospício é Deus: diário I (1965) and Santiago (2007) were selected to compose the corpus of comparative analyzes of this research, since they constitute singular narratives with autobiographical traits from the perspective of Vapereau 1876) and Leonor Arfuch (2002), authors who expand the definitions of the genre, calling autobiography every speech whose author had the intention, secret or confessed, to tell parts or whole parts of his life. It is therefore intended, starting from the comparative perspective of these autobiographical discourses constructed from distinct sign systems, to promote a reflection on the normative limits of autobiography as a genre of discourse, as well as a consideration of the traditionalist conceptualization proposed by Lejeune (1975) and the implications of the restrictive need for a pact to position a discourse in the biographical space that brings together the narratives of the self. Keywords: Autobiography; Biography; Maura Lopes Cançado; João Moreira Salles; Autobiographic Pact; Discourse Genres; Dialogism. 10 Lista de Figuras Imagem I: Maura Lopes Cançado em entrevista sobre o lançamento de sua obra Hospício é Deus: diário I (1965)................................................................................................................................71 Imagem II: Atestado da primeira internação de Maura Lopes Cançado, em 1949, na Casa de Saúde Santa Maria, em Belo Horizonte (SCARAMELLA, 2010, p. 216).................................................73 Imagem III: Capa do Suplemento Dominical, do Jornal do Brasil, contendo o primeiro conto de Maura Lopes Cançado veiculado na imprensa nacional, no dia 16 de novembro de 1958............77 Imagem IV: João Moreira Salles em entrevista durante a 11ª CineOP – Mostra de Cinema de Ouro Preto.............................................................................................................................................107 Imagem V: Cena extraída do documentário Santiago (2007)....................................................127 Imagem VI: Cena extraída do documentário Santiago (2007)...................................................139 Imagem VII: Cena extraída do documentário Santiago (2007)..................................................139 Imagem VIII: Cena extraída do documentário Santiago (2007).................................................140 Imagem IX: Cena extraída do documentário Santiago (2007)....................................................146 Imagem X: Cena extraída do documentário Santiago (2007).....................................................149 Imagem XI: Cena extraída do documentário Santiago (2007)....................................................162 Imagem XII: Cena extraída do documentário Santiago (2007)...................................................163 Imagem XIII: Cena extraída do documentário Santiago (2007).................................................163 11 Lista de quadros Quadro I: Apresentação das possíveis relações identitárias ou não estabelecidas entre autor, narrador e personagem, a partir da utilização das três pessoas gramaticais do singular (LEJEUNE, 1975, p. 18).....................................................................................................................................62 Quadro II: Determinação dos pactos entre autor e leitor a partir da conceituação de Philippe Lejeune sobre pacto autobiográfico e pacto romanesco (LEJEUNE, 1975, p. 28)..........................65 Quadro III: Categorização dos traços delimitativos dos discursos autobiográficos..................121 12 SUMÁRIO I – INTRODUÇÃO......................................................................................................................14 1.1 Metodologia.......................................................................................................................18 1.1.1 Fundamentos teóricos da análise dialógica do discurso........................................19 II - O QUE FUI E O QUE SOU: A NARRATIVA AUTOBIOGRÁFICA COMO FORMA DE BUSCA MEMORIALÍSITICA E DESCOBERTA IDENTITÁRIA.................................21 2.1 A autobiografia como gênero do discurso...........................................................................24 2.2 Inflexão autobiográfica: da insipiência à consciência.........................................................29 2.2.1 A tomada de consciência: contextualizando os primeiros debates oficiais sobre autobiografia......................................................................................................................31 2.3 O espaço biográfico de Leonor Arfuch: as variações das narrativas do “eu”.......................37 2.3.1 O espaço biográfico a partir de uma perspectiva bakhtiniana.....................................41 2.3.1.1 Os conceitos de cronotopo e exotopia...........................................................44 III - MAURA LOPES CANÇADO E A NARRATIVA AUTOBIOGRÁFICA NA LITERATURA.............................................................................................................................48 3.1 O desenvolvimento do gênero na literatura.........................................................................50 3.1.1 As variações do gênero autobiográfico: o romance autobiográfico e a autobiografia ficcional..............................................................................................................................54 3.2 Os pactos estabelecidos com o leitor e seus impactos na produção de sentido a partir da receptividade da obra..........................................................................................................59 3.2.1 As definições sociais de sujeito e seus impactos na autobiografia contemporânea....66 3.3 Maura Lopes Cançado: intersecções entre vida e obra........................................................69 3.3.1 O Jornal do Brasil......................................................................................................72 3.3.1 Suplemento Dominical..............................................................................................73 3.4 Hospício é Deus: diário I (1965)........................................................................................77 3.4.1 Foucault e a escrita da loucura: contextualizando Hospício é Deus: diário I (1965)..77 3.4.1.1 A temática da loucura na literatura brasileira.................................................79 3.4.2 Literatura do cárcere: construção do ethos prisional a partir da clausura de Maura....................................................................................................................81 13 IV- JOÃO MOREIRA SALLES E A NARRATIVA AUTOBIOGRÁFICA NO CINEMA DE NÃO-FICÇÃO..............................................................................................................................85 4.1 A genealogia da escrita autobiográfica aplicada ao cinema de não-ficção..........................87 4.1.1 O psicodrama e a inscrição da subjetividade no cinema lírico....................................88 4.1.2 A virada epistemológica do Cinema Direto: o desenvolvimento do documentário autobiográfico...........................................................................................................91 4.1.2.1 A questão da nomenclatura............................................................................94 4.2 A problemática da definição autobiográfica no cinema de não-ficção................................98 4.2.1 Possíveis soluções contemporâneas para os desafios de Lejeune.............................100 4.2.2 Conceituando Santiago (2007): uma proposta menos normativa para a autobiografia...........................................................................................................102 4.3 Vida e obra de João Moreira Salles: entroncamentos entre realidade e ficção...................105 4.3.1 O Instituto Moreira Salles (IMS).............................................................................107 4.3.2 Características fílmicas de João Moreira Salles.......................................................108 4.4 Santiago (2007)................................................................................................................111 4.4.1 A construção do sujeito autobiográfico a partir da estrutura de mise-en- abîme....................................................................................................................113 V - A PRODUÇÃO DE SENTIDO AUTOBIOGRÁFICO: UMA ANÁLISE COMPARATIVA E DIALÓGICA ENTRE OS RELATOS DE MAURA LOPES CANÇADO E O ROTEIRO DE SANTIAGO, DE JOÃO MOREIRA SALLES......................................................................................................................................117 5.1 A categorização...............................................................................................................118 5.2 Análises dialógicas: estudos comparativos.....................................................................120 5.2.1 Parâmetros analíticos para a seleção dos fragmentos autobiográficos do corpus desta pesquisa.............................................................................................................................121 5.3 Análises dialógicas..........................................................................................................122 5.3.1 Ambiguidades (A)..................................................................................................122 5.3.2 Descontinuidades lógico-temporais (D).................................................................128 5.3.2.1 O tempo como organizador do discurso autobiográfico............................129 5.3.2.2 A lógica temporal em Hospício é Deus: diário I (1965) e Santiago (2007)..................................................................................................................................134 5.3.3 Resgates memorialísticos de tempos passados (RM)..............................................140 5.3.4 Dissociação entre “autor-criador” e “autor-indivíduo” (D1)...................................149 5.3.5 Ambientações memorialísticas (A1).......................................................................156 5.3.6 Impactos contextuais das vozes sociais externas (I)................................................164 VI – CONCLUSÕES FINAIS....................................................................................................175 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.....................................................................................180 14 1. INTRODUÇÃO Não se encontrarão, pois aqui, mescladas ao romance familiar, mais do que as figurações de uma história do corpo – desse corpo que se encaminha para o trabalho, para o gozo da escritura. Pois tal é o sentido teórico dessa limitação: manifestar que o tempo da narrativa (da imageria) termina com a juventude do sujeito: não há biografia a não ser a da vida improdutiva. Desde que produzo, desde que escrevo é o próprio Texto que me despoja (felizmente) de minha duração narrativa. O Texto nada pode contar, ele me carrega para outra parte, para longe da minha pessoa imaginária, em direção a uma espécie de língua sem memória que já é a do Povo, da massa insubjetiva (do sujeito generalizado), mesmo se dela ainda estou separado por meu modo de escrever (BARTHES, 2003, p. 14). Este é um trecho da obra autobiográfica Roland Barthes por Roland Barthes (2003), do escritor, filósofo e crítico literário francês, Roland Barthes. Logo na contracapa deparamo-nos com a seguinte frase: “Tudo isto deve ser considerado como dito por uma personagem de romance”. O autor, ao fazer tal sugestão semântica de leitura, oferece-nos uma perspectiva sobre a verossimilhança possível e existente entre o sujeito e a sua imagem construída discursivamente, promovendo, assim, reflexões acerca do posicionamento e dos usos da personagem em narrativas autobiográficas. Nestes escritos de Barthes, por exemplo, o sujeito desaparece, tornando-se, de acordo com o autor, “um fantasma, a sombra ou qualquer coisa que não seja ele mesmo. Espécie de sensação ausente cuja presença só pode ser percebida entre as palavras” (BARTHES, 2003, p. 32). Roland Barthes por Roland Barthes (2003) foi uma das leituras autobiográficas iniciais da fase bibliográfica, proposta como o primeiro passo do percurso metodológico desta pesquisa. A partir do mergulho no pretérito de Barthes e nas informações sobre sua infância e memórias mais relevantes, por meio de suas próprias palavras, tornou-se notável a concepção de que a maneira como construímos a narrativa de nossa vida e de nossas experiências passadas é um reflexo de nossa personalidade e, principalmente, de nosso modo de existir no mundo. Essas sugestões semânticas de leitura propostas por Barthes são, portanto, necessárias para que o autor alcance a produção de sentido intencionada, a fim de que o leitor percorra sua trajetória de vida sempre guiado pelas peculiaridades da construção discursiva de seu relato em primeira pessoa. 15 Estudar o gênero autobiográfico mostra-se, dessa forma, sinônimo de analisar narrativas que carregam em seus enredos características singulares, esbarrando nos consequentes desafios de se criar parâmetros estabilizadores de classificação de um discurso e de outro. Diante disso, é provável que, durante a incursão nos caminhos teóricos e metodológicos desta pesquisa, surjam questionamentos edificados a partir das tendências padronizadoras que rodeiam as discussões teóricas acerca dos gêneros discursivos. No entanto, aproveito este momento introdutório para fazer alguns esclarecimentos, direcionando, semanticamente, conforme fez Barthes, a leitura de cada um dos capítulos que foram selecionados para compor a versão final deste trabalho. Desde o início, propõe-se uma reflexão sobre os limites discursivos de uma autobiografia, uma vez que, tradicionalmente, os gêneros do discurso são tratados de forma pragmática, como se a definição de cada um destes gênero pudesse existir sem a possiblidade de nelas se verificar brechas categóricas e conceituais. Bakhtin (1979) é um dos teóricos da linguagem que norteiam nossos estudos e nos oferecem embasamento para esta reflexão, quando, em sua própria obra, demonstra que as fronteiras entre um gênero e outro são difusas e que, devido à essa inexatidão fronteiriça, muitas das características estabilizadoras de um gênero confundem-se com as características estabilizadoras de outro. Diante dessa problemática, que é comum a todos os gêneros discursivos, partimos para um questionamento mais específico ao caso das narrativas autobiográficas, que é o enfoque teórico deste trabalho. É possível reunir um conjunto de traços característicos e categóricos que estejam presentes em todas as construções narrativas dos indivíduos plurais que desejam compartilhar fatos de sua própria vida? Para chegarmos à resposta desta questão, selecionamos, para compor o corpus de análise desta pesquisa, duas narrativas autobiográficas que se constroem de maneiras distintas, a partir de sistemas sígnicos também distintos, a fim de que se pudesse demonstrar as particularidades de produção de sentido de cada uma delas. Além disso, a escolha deste corpus oferece a possibilidade de, a partir de suas distinções, demarcar um panorama favorável à discussão da autobiografia enquanto gênero e enquanto modelo discursivo componente do espaço biográfico, conforme propôs, conceitualmente, Leonor Arfuch (2002). São elas: a obra autobiográfica literária de Maura Lopes Cançado, Hospício é Deus: diário I (1965) e o documentário memorialístico de João Moreira Salles, Santiago (2007). Antes de direcionarmos a luz das discussões para cada um destes objetos de pesquisa, no 16 entanto, posicionando a autobiografia no contexto sígnico de cada um deles, encontrar-se-á, no segundo capítulo desta dissertação, um panorama geral sobre este gênero do discurso. Discutir-se- á como, tardiamente, a autobiografia constituiu-se enquanto gênero, incluindo, desta apresentação teórica, as motivações contextuais para que se aplicasse a denominação autobiografia de forma tardia às narrativas do eu. Posteriormente a essa explicação inicial formalística, que intenciona também demonstrar os incentivos memorialísticos para a edificação da autobiografia na literatura e no cinema de não- ficção, bem como a influência da memória enquanto instância formadora destes discursos, iniciar- se-á a discussão acerca de cada um dos objetos de análise. No terceiro capítulo, o enfoque será direcionado ao desenvolvimento do gênero autobiográfico na literatura, bem como à apropriação deste por Maura Lopes Cançado para a elaboração de seu diário íntimo Hospício é Deus: diário I (1965). Neste momento, a perspectiva autobiográfica estará no âmbito literário, contextualizando, assim, os aportes teóricos necessários para que se analise uma autobiografia construída a partir do sistema sígnico das palavras, identificando quais traços autobiográficos influenciam diretamente na produção de sentido desta obra, especificamente. No tocante à obra, propriamente dita, discutir-se-á a temática predominante nas páginas do diário íntimo de Maura Lopes Cançado, a partir da apresentação do tratamento dado ao estado de loucura na literatura brasileira. Além disso, Hospício é Deus: diário I (1965) será também incluído no rol de obras que compõem a literatura do cárcere, ou seja, discursos literários produzidos em situação de clausura, o que nos leva a expor um panorama da gênese deste modelo literário a fim de contextualizar as motivações de Maura, quando na reclusão psiquiátrica. No quarto capítulo, direcionar-se-á a perspectiva teórica ao desenvolvimento do gênero no cinema de não-ficção, que é o campo conceitual no qual se desenvolve o documentário autobiográfico, como é classificado Santiago (2007), de João Moreira Salles. Apresentar-se-á, portanto, a gênese deste modelo documental, a fim de que se possa traçar um panorama acerca de como se deu a inserção de traços autobiográficos em âmbito audiovisual, tomando a fotografia e o autorretrato como ponto de partida. Ainda neste quarto capítulo, quando nos deparamos com um formato narratológico distinto daquele que se enquadra na conceituação tradicionalista de Lejeune (1975), são propostas reflexões acerca das hipóteses a serem consideradas nas discussões contemporâneas sobre 17 autobiografia, principalmente diante da variedade de narrar fatos autobiográficos, intensificada pela dispersão tecnológica de ferramentas de transmissão discursiva. Nestas reflexões, intenciona- se discutir as fronteiras conceituais entre autobiografia e autoficção, além de direcionar o leitor a um momento propício aos questionamentos formalísticos sobre este gênero do discurso. Após a apresentação individualizada de cada um dos objetos desta pesquisa, chegamos ao quinto e último capítulo deste trabalho, destinado à análise dialógica dos discursos de Maura Lopes Cançado e João Moreira Salles. Neste quarto capítulo, serão apresentadas categorias construídas pela pesquisadora para a identificação de traços autobiográficos em Hospício é Deus: diário I (1965) e Santiago (2007). É preciso ressaltar que, apesar de ser possível encontrar algumas características típicas de discursos autobiográficos, como aquelas propostas por Kathy Davis, em sua obra Biography as critical methodology (2003), não se encontrou, durante toda a pesquisa bibliográfica, um conjunto categórico que direcionasse as análises destes discursos em primeira pessoa, independentemente da forma narratológica como se apresentam ao leitor e/ou espectador. A dificuldade fez-se presente durante toda a elaboração da metodologia de análise, guiada pela perspectiva bakhtiniana do dialogismo, uma vez que não se encontrou parâmetros capaz de dar conta de ambos os discursos selecionados para compor o corpus de pesquisa. Por isso, a pesquisadora, a partir da bagagem reunida pela trajetória por caminhos autobiográficos da literatura e do audiovisual, estipulou traços que, notadamente, repetiam-se nas narrativas do eu, criando, assim, categorias inéditas para a análise da produção de sentido de discurso autobiográficos, a partir dos modos e intensidades de expressão de cada uma delas. Cada uma das seis categorias propostas, sendo elas ambiguidades (A), descontinuidades lógico-temporais (D), resgates memorialísticos de tempos passados (RM), dissociação entre “autor-criador” e “autor-indivíduo” (D1), ambientações memorialísticas (A1) e impactos contextuais das vozes sociais externas (I), será analisada individualmente. Por isso, neste último capítulo, ainda, demonstrar-se-á como cada traço se expressa em Hospício é Deus: diário I (1965) e em Santiago (2007), estabelecendo uma relação de aproximação ou distanciamento dialógico entre tais expressões, o que nos levará a concluir qual a produção de sentido apresentada por uma narrativa autobiográfica literária em comparação à produção de sentido apresentada por uma narrativa autobiográfica audiovisual. Já de antemão, neste momento introdutório, vale ressaltar que esta análise comparativa, 18 a partir de discursos derivados de sistemas sígnicos distintos, tem o propósito de expandir as reflexões acerca deste gênero do discurso autobiográfico, uma vez que a pluralidade de formas de narrar a própria vida, a partir de uma perspectiva individual e subjetiva, conforme se observou em Hospício é Deus: diário I (1965) e Santiago (2007), altera os traços expressivos das categorias propostas para caracterizar o gênero. Dessa forma, pretende-se, ao final deste trabalho, apresentar considerações sobre a conceituação autobiográfica e suas flexões a partir dos desafios encontrados para posicionar os discursos daqueles que compõem o corpus desta pesquisa no âmbito interdiscursivo do espaço biográfico, lócus conceitual no qual se reúnem as narrativas do eu, ampliando, assim, a bagagem teórica sobre este gênero que só começou, formalmente, a ser delimitado e edificado a partir da década de 60. 1.1 Metodologia Para o desenvolvimento desta pesquisa, que tem caráter dialógico e comparativo, realizou- se, inicialmente, um levantamento e análise de referenciais teóricos e bibliográficos que possibilitam a fundamentação das discussões subsequentes. Esta primeira etapa foi segmentada em duas instâncias: (1) A pesquisa bibliográfica, que ofereceu um aprofundamento do campo teórico e metodológico da investigação. No tocante às obras sobre a autobiografia enquanto gênero do discurso e no tocante às teorias relacionadas ao pacto autobiográfico e ao espaço biográfico, além daquelas referentes aos conceitos bakhtinianos de cronotopo e exotopia. (2) A pesquisa documental, responsável pela tarefa do recenseamento da fortuna crítica, geral e específica, de Maura Lopes Cançado e João Moreira Salles, bem como de fatos biográficos que estão direta ou indiretamente relacionados com os traços autobiográficos categorizados em cada objeto de análise. Em suma, estes dois caminhos estabelecidos para a pesquisa sedimentarão as bases da metodologia analítica composta pela (3) análise dialógica do nosso corpus de pesquisa, última etapa do percurso metodológico. Esta etapa previu, inicialmetne, uma investigação sistematizada dos elementos constitutivos da narrativa autobiográfica presentes em cada uma das obras, a fim de que se pudesse formular a categorização necessária para o desenvolvimento das análises à luz do 19 conceito bakhtiniano de dialogismo. As categorias, neste estudo, foram criadas de acordo com as tendências observadas no material compilado, e tiveram como base os conceitos previamente levantados na primeira etapa metodológica. Já a análise dialógica das vozes sociais presentes na obra Hospício é Deus: diário I (1965) e Santiago (2007) foi realizada a partir do conceito de dialogismo, defendido por Bakhtin (1979). Dessa forma, promoveu-se, como resultado metodológico, o cruzamento entre os dados da pesquisa bibliográfica e aqueles obtidos na pesquisa, a partir da análise individual dos objetos escolhidos para compor o corpus. 1.1.1 Fundamentos teóricos da análise dialógica do discurso Na última etapa do desenvolvimento deste trabalho, em que consta a análise e interpretação comparativa, realizou-se o estudo das relações dialógicas existentes entre as obras autobiográficas Hospício é Deus: diário I (1965) e Santiago (2007), a partir do cruzamento de dados, comparando e interpretando as temáticas, assim como as formas de expressão dos traços de cada categoria proposta para a identificação e avaliação crítica de discursos autobiográficos. Para que se cumpra o objetivo de colocar em prática uma análise dialógica do discurso, deve-se, inicialmente, definir uma metodologia para a análise das vozes presentes nos discursos de cada autobiógrafo, definidos como objetos centrais desta pesquisa, a partir de uma perspectiva dialógica. Beth Brait tenta definir um caminho teórico-metodológico da seguinte maneira: Sem querer (e sem poder) estabelecer uma definição fechada do que seria essa análise/teoria dialógica do discurso, uma vez que o fechamento significaria uma contradição em relação aos termos que a postulam, é possível explicar seu embasamento constitutivo, ou seja, a indissolúvel relação existente entre língua, linguagens, história e sujeitos que instaura os estudos da linguagem como lugares de produção de conhecimento de forma comprometida, responsável, e não apenas como procedimento submetido a teorias e metodologias dominantes em determinadas épocas. (BRAIT, 2006, p. 10). Primeiramente, é preciso destinar certa atenção analítica ao contexto mais amplo de produção e circulação dos discursos, no caso, mais especificamente voltado à composição da obra Hospício é Deus: diário I (1965), às discussões acerca do sistema manicomial do Brasil na década 20 de 50 que, posteriormente, resultaram na proposta da Reforma Psiquiátrica. Em relação ao contexto amplo de Santiago (2007), optou-se por discutir a hierarquização social proposta pela forma como se desenvolve a relação interpessoal existente entre o documentarista João Moreira Salles e o mordomo Santiago, a fim de que se possa demonstrar como a composição discursiva pode ser conduzida e edificada a partir da posição social ocupada por seus interlocutores. A partir do contexto delimitado, pode-se direcionar a análise interpretativa a determinadas categorias que emergem de relativas regularidades de unidades registros, como será demonstrado no último capítulo, que se propõe a apresentar as análises dialógicas e comparativas do corpus desta pesquisa. De acordo com Brait (2006), a escolha das categorias não pode, em nenhuma hipótese, ser realizada de forma mecânica, uma vez que as unidades de registro pertencem a discursos concretos e únicos, proferidos em um determinado espaço e tempo e por interlocutores distintos, que são considerados sujeitos sócio-historicamente constituídos. Ainda se tratando dos fundamentos teóricos para a análise dialógica do discurso, temos as considerações de Sobral (2007), em seu capítulo Ético e estético: na vida, na arte e na pesquisa em Ciências Humanas, componente do livro Bakhtin: conceitos-chave (2007). Neste capítulo, o autor destaca alguns aspectos a serem observados em uma pesquisa cuja base teórico-metodológica é o pensamento bakhtiniano, como as relações entre os aspectos gerais do contexto e os aspectos singulares de cada discurso, assim como a inserção do estudo das marcas linguísticas em uma esfera da atividade humana, em que se dão as interações discursivas, tornando a língua um elemento concreto. A análise das relações dialógicas, portanto, apontam para a presença de assimilação de discursos já-ditos e daqueles construídos a partir destes (ROHLING, 2014). No caso deste trabalho, as análises terão cunho comparativo, uma vez que se optou pelo estudo do discurso autobiográfico de dois sujeitos distintos e que, portanto, apresentam expressões distintas para os traços categóricos da autobiografia. Estas considerações parciais permitem que sejam traçadas as convergências e divergências presentes nos discursos, possibilitando, dessa forma, conclusões sobre as relações entre as vozes do discurso de Maura Lopes Cançado e João Moreira Salles, assim como as formas singulares de expressão impactam direta e indiretamente na constituição da autobiografia enquanto gênero discursivo. 21 2. O que fui e o que sou: a narrativa autobiográfica como forma de busca memorialística e descoberta identitária Uma das características mais relevantes, responsável por diferir o ser humano de outras espécies sociáveis, é a capacidade de fazer uso da linguagem como ferramenta de extensão dos limites do próprio viver. Registrar um acontecimento é driblar a brevidade incontestável da vida, portanto, utilizamo-nos da linguagem em suas diversas configurações para imortalizar de forma, muitas vezes, narcisista, fatos sobre o que nos rodeia e diz respeito ao outro, bem como sobre o que nos permeia e se refere, portanto, ao nosso próprio eu. O ato de lembrar e adentrar em uma busca memorialística é sinônimo de recriar experiências passadas com os olhos do presente (BOSI, 1994). Assim, ao trazer à tona o sentido de busca memorialística para a narrativa autobiográfica, deve-se, primeiramente, ressaltar a dicotomia do conceito de memória proposta por Maurice Halbwachs (1990), uma vez que o entendimento deste caráter dicotômico se mostra essencial para que possamos compreender as motivações dos escritos autobiográficos, assim como a gênese deste modelo enquanto gênero do discurso. Para o sociólogo francês, a memória não é um fenômeno apenas individual, mas, também, coletivo e social. Na medida em que entendemos que é preciso existir um acontecimento e um indivíduo que deste participou, como ouvinte, coadjuvante ou protagonista, atribuímos caráter psicológico à memória. Dessa forma, temos a definição de memória individual, uma vez que tal indivíduo será o responsável por lembrar do acontecimento supracitado, relatando-o ou guardando- o para si mesmo. A partir da perspectiva de Halbwachs (1990), no entanto, apesar de o indivíduo carregar em si a lembrança, ele é, ainda, um ser social, já que “nossas lembranças permanecem coletivas e nos são lembradas por outros, ainda que se trate de eventos em que somente nós estivemos envolvidos e objetos que somente nós vimos” (HALBWACHS, 2006, p. 30). Neste sentido, a memória de um indivíduo é constituída a partir das memórias dos diferentes grupos sociais dos quais ele participa e sofre influências, como a família, a igreja e os ambientes educacionais que frequenta. É possível, partindo do conceito de dialogismo, dizer que a memória é, assim como os enunciados componentes de um discurso, dialógica. De acordo com Bakhtin (1979), o dialogismo baseia-se nas relações de sentido que se 22 estabelecem entre dois enunciados. Diz-se que o enunciador, para constituir um discurso, leva em conta o discurso de outrem, ou seja, todo discurso é ocupado pelo discurso alheio. Por isso, a concepção dialógica da língua é fator essencial para o desenvolvimento de qualquer estudo no campo da linguagem. Diante de tal definição, o aspecto dialógico da memória é corroborado por Halbwachs (2006), que cita as intersecções entre nossa memória individual e a memória de outrem, definida como coletiva ou social: “ (...) para que a nossa memória se aproveite da memória dos outros, não basta que estes nos apresentem seus testemunhos: também é preciso que ela não tenha deixado de concordar com as memórias deles e que existam muitos pontos de contato entre uma e outras para que a lembrança que nos fazem recordar venha a ser constituída sobre uma base comum (HALBWACHS, 2006, p. 39). “ No enredo de uma narrativa autobiográfica é possível, portanto, analisar tanto as fontes de constituição do sujeito enquanto indivíduo, quanto seus modos de significação do universo no qual está inserido, os quais foram construídos a partir de suas relações sociais contemporâneas. O ato de narrar a própria vida é visto, a partir de uma perspectiva memorialística, como uma rememoração, que está sujeita a lacunas temporais e distorções, uma vez que o acontecimento do passado não pode, em hipótese alguma, ser considerado cópia exata do relato do momento presente. No entanto, o interesse das análises do gênero do discurso autobiográfico não se encontra na veracidade exata dos fatos, mas, sim, no que foi lembrado e selecionado, dentre todas as memórias contidas no inconsciente, para ser perpetuado na história narrada pelo sujeito. Bruner (1997) afirma que o estudo das narrativas autobiográficas, diante da busca memorialística e da descoberta identitária proporcionada pelo gênero do discurso, é uma metodologia valiosa para a constituição do conceito de subjetividade dos sujeitos, uma vez que traz consigo as marcas históricas e culturais internalizadas pelo narrador que se insere em uma determinada época e sociedade. Este ponto de vista nos permite classificar os estudos autobiográficos, assim como o conceito de memória, como dicotômicos, uma vez que trazem benefícios tanto para o indivíduo, que analisa a própria vida a partir de uma narrativa organizada de seu passado, quanto para a 23 sociedade, uma vez que a descoberta identitária depende de fatores socialmente compartilhados. Este ganho social justifica, em certa instância, a necessidade de direcionar certas análises acadêmicas às narrativas do “eu”, uma vez que “(...) o si-mesmo como narrador não apenas relata, mas justifica. E o si mesmo como protagonista está sempre, por assim dizer, apontando para o futuro” (BRUNER, 1997, p. 104). O panorama psicológico, marcado pela identidade do sujeito vista à luz do próprio eu, e social, permeado pela memória coletiva que se faz presente nas entranhas inconscientes do indivíduo, deve anteceder as definições e trajetórias linguísticas, literárias e cinematográficas do gênero do discurso que acolhe as narrativas autobiográficas, as quais serão esmiuçadas nos capítulos seguintes desta dissertação, a fim de complementar as futuras análises do corpus desta pesquisa. Além disso, tais enfoques permitem que as comparações entre a produção de sentido ocasionada pelo canal utilizado para que o receptor tenha acesso às memórias que compõem o enredo autobiográfico da obra, seja a literatura ou o cinema documental, sejam estruturadas e contextualizadas. Ainda no âmbito psicológico das narrativas autobiográficas, deve-se ressaltar que o gênero do discurso, quando explorado a partir da descoberta identitária do sujeito, permite que o receptor da mensagem seja situado no mundo simbólico da cultura na qual o indivíduo portador daquelas memórias esteve inserido (OLIVEIRA; REGO; AQUINO, 2006). Para que uma obra autobiográfica seja classificada como reflexo cultural, devemos esclarecer, neste ponto, o conceito de cultura utilizado para tal afirmação, uma vez que este não é – e nunca foi – unânime. Portanto, leva-se em conta a perspectiva cultural de Stuart Hall na obra A identidade cultural na pós-modernidade (2001), que aproxima identidade, cultura e comunicação, analisando, como questão central, a identidade cultural na era da globalização. Para Hall (2001), foram cinco os grandes avanços na teoria social que resultaram no nascimento do sujeito pós-moderno. São eles: os escritos de Karl Marx, a língua como sistema social e não individual, a conceituação de poder disciplinar de Michel Foucault, o impacto do feminismo como crítica teórica e movimento social e a descoberta do inconsciente de Sigmund Freud, sendo este último o mais importante para as análises dos estudos autobiográficos. Uma vez que “nossas identidades, nossa sexualidade e a estrutura de nossos desejos são formadas com base em processos psíquicos e simbólicos do inconsciente” (HALL, 2001, p. 15). 24 Quando, portanto, o relato autobiográfico traz à luz da consciência reflexões sobre as convergências e divergências de um “eu” do passado em relação a um “eu” do presente, é oferecida ao receptor a oportunidade de vislumbrar as transformações culturais e históricas a partir dos diferentes contextos nos quais este “eu” esteve inserido ao longo de sua própria vida. Tais transformações podem ocorrer a níveis sociais e coletivos, como em Hospício é Deus: diário I (1965), obra na qual Maura Lopes Cançado, além de relatar sua rotina, também oferece informações valiosas para a reforma psiquiátrica e a luta anti-manicomial; ou, a níveis individuais e subjetivos, o que pode ser notado quando João Moreira Salles expõe aspectos transformadores de sua própria personalidade e de sua visão metalinguística do cinema documental no Brasil. Neste capítulo, apresentar-se-á a autobiografia a partir de um enfoque linguístico e discursivo, expondo-a como um gênero do discurso composto de enunciados estáveis e características que permitem a reunião e categorização de textos literários e roteiros audiovisuais como narrativas do “eu”. Deve-se ressaltar, no entanto, que, apesar de o ser humano, desde os primórdios da comunicação interpessoal, relatar fatos sobre si mesmo, o termo “autobiografia” demorou a ser utilizado pelos teóricos do discurso, o que será discutido com maior profundidade no item seguinte. 2.1 A autobiografia como gênero do discurso Os gêneros do discurso, de acordo com Bakhtin (1979), são conjuntos de enunciados relativamente estáveis, que se agrupam a partir das características de três elementos centrais da estrutura enunciativa, os quais foram citados no item anterior deste capítulo. Devido à sua heterogeneidade funcional, os gêneros do discurso não apresentam uma classificação fundamentalmente definida. Dito de outro modo, as delimitações entre um gênero e outro mostram-se, de maneira geral, abstratas e intangíveis. No entanto, para que um gênero esteja apto a existir, é necessário que nele estejam agrupados textos com características e propriedades de caráter normativo comuns. Sendo assim, podemos reconhecer alguns gêneros a partir de marcas linguísticas e estruturação fixas. A autobiografia é um termo que carrega incertezas e ambiguidades, o que é demonstrado pelo teórico Philippe Lejeune em sua obra L’autobiographie en France (1971). O 25 conceito pode despertar o interesse de pesquisadores de diversas áreas, como a história, a antropologia ou psicologia. No entanto, primordialmente, a autobiografia se apresenta como texto literário (LEJEUNE, 1975). Diante desta colocação, deve-se identificar quais são os elementos constitutivos da narrativa responsáveis por estabilizar os enunciados autobiográficos, reunindo-os em um conjunto que posicione determinado texto que os contenha nos contornos da interioridade de um gênero discursivo. Dessa forma, uma narrativa em prosa, na qual o autor, o narrador e o personagem convergem para um mesmo sujeito é considerada autobiográfica. Há, portanto, uma diferenciação entre o sujeito da narrativa ficcional e o sujeito de uma narrativa autobiográfica, que dirige o foco de seu enredo para a reconstituição de experiências vividas. No enredo de uma narrativa ficcional, o “eu” do escritor assume o papel do outro de si mesmo. O conceito de dissipação do “eu”, apresentado por Costa Lima (1986), indica que o imaginário permite a irrealização do sujeito, ou seja, suscita possibilidades de criação para múltiplos “outros”. Em contrapartida, a construção autobiográfica parece reafirmar sua unidade a partir de um esforço que se assemelha ao psicanalítico, baseado na “procura do tempo perdido”, mote utilizado por Marcel Proust, que é figura central da literatura autobiográfica francesa (ALBERTI, 1991). Lejeune (2008) assim define o conceito: Narrativa em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando focaliza sua história individual, em particular a história de sua personalidade (LEJEUNE, 2008, p.14). Entretanto, diante do objetivo específico desta pesquisa de tratar de comparações entre obras do âmbito literário e do audiovisual, devemos levar em consideração a definição de Vapereau em seu Dictionnaire universal des littératures (1876), obra na qual amplia o conceito de autobiografia, situando-o em outra posição semântica. Dessa maneira, uma produção audiovisual, assim como uma obra literária, pode converter-se em matéria autobiográfica, mesmo que autor e personagem não sejam a mesma pessoa. Assim aponta Lejeune: 26 Em seu Dictionnaire universel des littératures (1876), ele chama ‘autobiografia’ todo texto, qualquer que seja sua forma (romance, poema, tratado filosófico), cujo autor teve a intenção, secreta ou confessa, de contar sua vida, de expor seus pensamentos ou de expressar seus sentimentos. (LEJEUNE, 2008, p. 223). É preciso, neste ponto, ressaltar que a análise de um produto audiovisual conta com instâncias analíticas distintas daquelas que se mostram presentes em um texto literário. Portanto, é indispensável que se pense o gênero autobiográfico a partir de uma conceituação teórica mais ampla e atual, uma vez que, no âmbito audiovisual, o cineasta encontra-se em apuros quando tenta encontrar imagens verdadeiras para suas memórias. Por outro lado, na literatura, o escritor, lidando com palavras, tem, como ferramenta para construção do relato autobiográfico, uma linguagem plenamente desenvolvida que substituirá os eventos memorados em frases e parágrafos de autorrepresentação. Dessa maneira, trabalhar-se-á, nos itens seguintes desta dissertação, a necessidade de contrapor visões contemporâneas, como a de Leonor Arfuch, às ideias tradicionais de Lejeune publicadas na década de 70, quando efervesceu o debate sobre a autobiografia, principalmente no âmbito literário. Lejeune mesmo, em obras posteriores, como O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet, publicada pela editora UFMG, em 2008, demonstra que o desenvolvimento tecnológico e o advento dos meios de comunicação de massa, que propiciaram a evolução do cinema e da televisão, impactaram diretamente na conceituação da autobiografia enquanto gênero do discurso. A obra Confissões, escrita pelo teólogo e filósofo Santo Agostinho, por exemplo, foi publicada no século IV e demarca as origens dos relatos autobiográficos, nos quais o “eu” adquire função protagonista. Agostinho de Hipona relata, na obra em questão, sua vida antes de se tornar cristão e seus primeiros anos que sucedem a conversão ao cristianismo. Marcada por uma profunda introspecção psicológica e existencialista, Confissões abriu espaço para as discussões referentes às questões identitárias do discurso. Séculos mais tarde, no ano de 1782, Jean-Jacques Rousseau publica um livro homônimo, também chamado Confissões, no qual narra interessantes fatos de sua vida, expõe seu caráter e valores, além de traçar o caminho de seu amadurecimento pessoal e filosófico. Nesta obra, o eu está à disposição do julgamento dos leitores. 27 Deve-se ressaltar o fato de que as origens da autobiografia, enquanto gênero literário, estão centradas no campo filosófico, uma vez que as obras supracitadas, fundamentalmente, resultaram em textos literários que buscavam elaborar uma explicação e uma significação para o passado. Os primeiros textos autobiográficos, portanto, apresentavam como principal objetivo a formulação da imagem do próprio autor e do próprio narrador, à qual se confere, por meio da escrita, um sentido e um ponto de fixação do eu. O relato autobiográfico, desde suas primeiras práticas, tem a pretensão de organizar a história do “eu”, como se o autobiografado tivesse um sentido de vida palpável. A noção de vida como uma história, que tem começo, meio e fim, torna-a coerente e orientada – ou seja, os encadeamentos lógicos dos acontecimentos do passado configuram as circunstâncias do presente, fornecendo, dessa maneira, significação às ações daquele que narra a si próprio. Na literatura, a autobiografia ganhou destaque no continente europeu, principalmente dentre as obras francesas. À la recherche du temps perdu, obra de Marcel Proust, publicada em sete partes entre 1913 e 1927, é considerada, atualmente, como uma das mais densas obras autobiográficas dos catálogos literários. Outros exemplos notáveis de autobiografias incluem a obra The Words, de Jean Paul Sartre, L’amant, de Marguerite Duras, a carreira literária de Annie Ernaux e os quatro volumes da autobiografia de Simone de Beauvoir. No Brasil, o pioneiro da narrativa autobiográfica foi o jornalista Joaquim Nabuco, um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, que publicou, em 1900, a obra Minha formação, classificada como um livro de memórias no qual o autor aborda fatos de sua vida intelectual, política e diplomática. Além de Nabuco, destaca-se também Pedro Nava, autor da obra Baú de Ossos (1972), José Lins do Rego, com sua obra Meus verdes anos (1956), A menina do sobrado (1979), de Ciro dos Anjos, e Infância (1945), de Graciliano Ramos. Já no audiovisual, deve-se levar em consideração as transformações do cinema do último século, que apresentam ao espectador novas formas de narras histórias do outro e de si mesmo. Neste contexto, intensifica-se a necessidade do real, enraizada na sociedade atual, o que abre espaço para as produções biográficas e autobiográficas. Até a década de 1980, havia predomínio de uma abordagem geral nos documentários brasileiros. Ou seja, as temáticas eram tratadas de forma abrangente, com foto nas questões coletivas, como podemos observar nas produções Aruanda (1960), de Linduarte Noronha, e Maioria Absoluta (1964), de Leon Herszman, que retrata o cotidiano dos trabalhadores rurais 28 analfabetos do Nordeste, os quais não apresentam histórias individualizadas, mas, sim, são representados como massa homogeneizada de coletividade. Nestas produções, predomina o tipo sociológico, definido por Jean Claude Bernardet em seu artigo O modelo sociológico ou a voz do dono, que faz parte da composição da obra Cineastas e Imagens do Povo (1985). O tipo sociológico, de acordo com o autor, justifica a presença dos personagens a serviço da representação de um “modelo sociológico”, barrando a expressão de particularidades típicas de cada indivíduo. A partir de 1985, no entanto, com a produção Cabra marcado para morrer, de Eduardo Coutinho, podemos notar uma alteração no panorama da produção audiovisual. O documentarista e cineasta apresenta ao espectador um ponto de vista histórico a partir de abordagens particularizadas. Dessa maneira, os assuntos do cotidiano substituem, eventualmente, os grandes temas sociais e políticos e, consequentemente, as narrativas do modo de vida alheio e de si mesmo tornam-se privilegiadas, permitindo a dispersão e intensificação das biografias e autobiografias no universo do cinema e do documentário. A classificação do livro de Joaquim Nabuco, pioneiro nos traços autobiográficos no cenário brasileiro, como um livro de memórias permite-nos retomar uma discussão proposta por Moreira (2011), em sua dissertação A autobiografia no Brasil, entre desejo e negação: quantas formas há de se escrever uma autobiografia? A partir de leituras de autobiografias, é possível perceber que há, de um lado, aqueles autores que, ainda que estejam escrevendo suas autobiografias, pouco hesitam em detratar a prática, executando a escrita de suas vidas do modo mais racional possível, preferindo sempre o moral, o público, e dando a ideia de que estão cumprindo uma mera obrigação social. Há, de outro lado, aqueles autores que se lançam sem pejo a essa tarefa, deixando claro seu desejo pela escrita e mergulhando, com todos os riscos decorrentes do ato, na face privada de suas existências, em suas experiências mais íntimas (MOREIRA, 2011, p. 17). Há, portanto, diversas estruturas textuais e audiovisuais aptas a transmitir ao leitor a seleção de acontecimentos capazes de elaborar uma síntese do enredo de vida do personagem, que pode ser, também, autor e narrador. As memórias, biografias, romances pessoais, poemas autobiográficos, diários íntimos e autorretratos são formas de discurso semelhantes, que circundam 29 a escrita autobiográfica, podendo entrecruzar-se e hibridizar. Apesar de tal diversidade, marcada pelas mais variadas formas de manifestação, Philippe Lejeune, ao examinar minuciosamente a produção autobiográfica de língua francesa, identificou um traço constante nas leituras, principalmente de obras literárias, ao qual ele deu o nome de “pacto autobiográfico”. Em 1975, lançou a obra Le pacte autobiographique, onde aprofunda as discussões sobre o conceito. O conceito será apresentado com maior detalhamento no terceiro capítulo desta dissertação. Durante a pesquisa bibliográfica realizada para a conceituação da autobiografia como gênero do discurso, proposta como caminhos metodológicos iniciais desta pesquisa, tornou-se evidente que, independentemente da plataforma midiática utilizada para difundir as memórias de um determinado “eu”, recai sobre o leitor ou espectador a responsabilidade da crença nas informações e na construção daquela personagem que, teoricamente, reflete as lembranças, os desejos e os anseios de seu próprio autor. A trama de vida apresentada deve, portanto, ser lida ou assistida de forma a se descobrir quão “real” será a pessoa do autobiógrafo em seu texto. E mais: até que ponto pode se falar de identidade entre autor, narrador e personagem? É sobre isto; os traços autobiográficos, a discussão do pacto autobiográfico, que se mostra indispensável para a formulação de categorias analíticas que guiarão as investigações acerca do enquadramento dos objetos que compõem esta pesquisa, a obra literária Hospício é Deus: diário I (1965) e o documentário pessoal Santiago (2007), neste lócus discursivo. 2.2 Inflexão autobiográfica: da insipiência à consciência Já foi dito, anteriormente, que o termo “autobiografia” só começou a ser usado no meio acadêmico após um grande esforço para pensar em convenções e categorias que definissem as produções e narrativas do “eu” como pertencentes a um gênero do discurso. Ou seja, a prática e a forma autobiográfica não eram novidade, mas, a consciência e o debate em torno dela, enquanto gênero discursivo, sim. Desde a consolidação do capitalismo e do mundo burguês no Ocidente, fez-se necessário criar um espaço de autorreflexão para que fosse firmado o individualismo consequente deste sistema econômico baseado na legitimidade dos bens privados e que apresenta como principal objetivo a 30 obtenção de lucros. Diante desta transformação histórica, social e econômica, as confissões, as memórias, os diários íntimos e as correspondências, ou seja, variações do gênero do discurso autobiográfico, começam a ser praticadas no âmbito literário, como foi dito anteriormente, ao se fazer menção às Confissões, de Rousseau. Entretanto, de acordo com Mourão (2016), foi só na década de 70, durante a Buffalo Conference on Autobiography in the Independent American Cinema1, que o termo passou a ser amplamente discutido entre os teóricos e críticos do audiovisual. Anteriormente ao evento, mais precisamente em 1959, o cineasta Stan Brakhage divulgou Window Water Baby Moving, produção na qual documenta eventos familiares íntimos, incluindo o parto de sua primeira filha. Nas filmagens, nota-se, claramente, a intenção de eternizar acontecimentos de sua própria história de vida, bem como as sensações individuais e subjetivas causas por estes, na película cinematográfica. No entanto, suas obras, que o tornaram um dos principais pioneiros do cinema de vanguarda norte- americano, não continham, ainda, em sua denominação, o termo “autobiografia”. Patrícia Mourão, a autora da tese intitulada A invenção de uma tradição: caminhos da autobiografia no cinema experimental (2016), ainda apresenta a transição do psicodrama, gênero no qual o cineasta dramatiza suas perturbações interiores, para o cinema lírico, marcado pelos registros da vida cotidiana, como um divisor de águas importantíssimo para a consciência da autobiografia enquanto gênero próprio. Na literatura, até 1960, a autobiografia também não existia como problema de pesquisa ou área de interesse especial, ou seja, não havia consciência do gênero, apesar de vários textos anteriores à época apresentarem características autobiográficas. Como foi ressaltado anteriormente, as escritas de si intensificam-se, principalmente nas décadas de 70 e 80, como uma tentativa de organização do “eu”, que, em um futuro próximo, resultaria e transitaria entre as classificações de sujeito pós-moderno, cujas identidades múltiplas, apresentadas por Hall (2001), orbitam um núcleo caótico e altamente mutante. As narrativas autobiográficas, desta maneira, surgem como o caminho integralizador de um 1 Em março de 1973, cineastas, escritores e pesquisadores reuniram-se na Sta- te University of New York, na cidade de Buffalo, para um seminário de quatro dias sobre autobiografia no cinema independente americano, o “Buffalo Conference on Autobiography in the Independent American Cinema”. Entre os cineastas presentes estavam Jonas Mekas, Stan Brakhage, Hollis Frampton, Andrew Noren, Ed Elmsh- willer, Bruce Baillie, Scott Bartlett, Michael Stewart, Will Hindle, Ed Pincus e Robert Frank. Completavam a programação, homenagens a realizadores já falecidos como Jerome Hill, Christopher MacLaine e Marie Menken (MOURÃO, 2016). 31 sujeito fragmentado. Décadas mais tarde, já quando se conceitua a globalização, nota-se que tal fragmentação permitiu, com maior facilidade, que o indivíduo tivesse contato com outras identidades culturais fragmentadas. Assim, a auto representação reafirma, mais uma vez, a busca por uma identidade coerentemente lógica (HALL, 2001). Dessa maneira, pode-se dizer que tais construções narrativas tem sua práxis, ou seja, a integralização da prática com os avanços teóricos, firmada a partir do contexto histórico, social e econômico no qual seus autores, críticos e pesquisadores estão inseridos. Ainda que, já no século XXI, ficasse clara tal necessidade de resgate memorialístico e busca identitária por meio das manifestações artísticas e culturais, a noção de sujeito pós-moderno e sua consequente descentralização, à época, ainda não havia sido conceituada. Por isso, devemos questionar os motivos pelos quais surgiu o interesse pela autobiografia a partir da década de 60, tanto na literatura e, alguns anos mais tarde, no cenário audiovisual. Para responder a este questionamento, é preciso traçar um panorama histórico e contextualizar as décadas em questão, uma vez que toda e qualquer vertente artística, seja ela literária ou audiovisual, é intensamente impactada pelos acontecimentos da época em que está situada. 2.2.1 A tomada de consciência: contextualizando os primeiros debates oficiais sobre autobiografia Jonas Mekas, junto a Stan Brakhage, Andrew Noren, Marie Menken, Jerome Hill, Carolee Schneemann, dentre outros, é um dos pioneiros do cinema de vanguarda norte-americano, também conhecido como cinema experimental ou underground. Para Mekas, a introspecção e o retorno do “eu” para si próprio estão relacionados à desilusão presente nos EUA e no mundo com o fim do idealismo dos movimentos juvenis de 1960 (MEKAS, 1975). Tomando tal desilusão como ponto de partida, podemos dividir esta contextualização em dois momentos distintos, um deles intimamente relacionado ao conteúdo das narrativas autobiográficas e outro voltado à forma deste gênero do discurso. Primeiramente, trataremos do contexto histórico do final da década de 1960, período protagonizado pela decadência dos movimentos antiautoritários, como a contracultura, e o declínio do movimento hippie e outros estilos de vida alternativos, que foram citados por Mekas em seu 32 texto sobre a Buffalo Conference on Autobiography in the Independent American Cinema. Aqui, vale destacar os estudos feministas que se mostraram evidentes, à época, quando se trata das discussões acerca da noção de indivíduo e subjetividades do sujeito, os quais são pontos cruciais para o desenvolvimento de um debate voltado às narrativas do “eu” – ou seja, trata-se do momento intimamente relacionado ao conteúdo das narrativas autobiográficas. Até a Primeira Guerra Mundial, a figura feminina, em uma sociedade patriarcal, limitava-se a cuidar do lar, dos filhos e do marido. De 1914 a 1918, em virtude da escassez de mão-de-obra gerada pelo conflito, as mulheres começaram a sair de casa para garantir a produtividade. No entanto, apesar de ocuparem seus espaços nas linhas de produção, não eram vistas como indivíduos sociais independentes, ou seja, não havia espaço para subjetividades no cenário feminino, que era, ainda, condicionado à proteção e ao controle da figura masculina hierarquicamente mais próxima, seja o pai, o marido ou um irmão. O fato se repetiu durante a Segunda Guerra Mundial, já na década de 40, mas, ao fim do acontecimento histórico, principalmente nos Estados Unidos, deu-se início à chamada “era dourada”. A década de 50 ficou, portanto, marcada por uma mulher submissa, que se empolga diante da ideia de voltar-se, novamente, para o lar e cuidar apenas dos afazeres relacionados ao ambiente doméstico e à família. Dessa forma, durante a “era dourada” dos anos 50, as mulheres, em sua maioria, foram convencidas de que o feminismo era um movimento indesejado, na medida em que levaria à desmoralização e à destruição da família tradicional, um dos pilares da sociedade estadunidense. Paralelamente à difusão das ideias conservadoras graças ao contexto da Guerra Fria, no qual enraizava-se a chamada “era dourada”, em 1949, Simone de Beauvoir publica a obra O segundo sexo, que surgiu como uma grande reflexão diante do sentimento de frustração de uma parcela da sociedade, que era formada por mulheres que não se encaixavam nos padrões ditados pela cartilha da “era dourada”. Diferente do que aconteceu na chamada primeira fase do feminismo, iniciada no século XIX, que se centrava, em síntese, no sufrágio feminino, as discussões de Simone de Beauvoir iniciam um segundo momento do movimento social. Agora, a vontade de ir além e de ter o poder de escolha falou mais alto, consolidando o feminismo como movimento político, que chega à década de 60 trazendo grandes reflexões acerca da noção de indivíduo e integrando, em seu núcleo de reinvindicações, lutas civis relacionadas à defesa de muitas outras minorias. 33 Para complementar o embasamento teórico deste momento histórico, que enfatiza os movimentos feministas, utilizamos também, durante a realização de pesquisas bibliográficas, estudos contemporâneos de Judith Butler, que tratam da questão do falocentrismo e do patriarcado como fatores supressores do conceito de indivíduo feminino, não somente do ponto de vista psicológico, mas, também, sociológico. Esta visão contemporânea sobre o tema nos permite compreender os motivos pelos quais o feminismo mostrou-se tão importante para a tomada de consciência da autobiografia como gênero do discurso. A partir da leitura da obra Relatar a si mesmo: crítica da violência ética (2015), que é, de certa forma, um contraponto a determinados conceitos trabalhados por Beauvoir n’O segundo sexo (1949), tem-se a visão de que o processo de individuação da figura feminina, impulsionado graças ao movimento em questão, trouxe, em um contexto contemporâneo, determinadas reflexões que impactaram não só no discurso, mas, também, nas formas de narrar a si mesmo. Neste ponto, é imprescindível ressaltar que o que importa para a filósofa, em uma narração de si, não é a linearidade dos acontecimentos, mas, sim, a relação ficcional com o que se deseja narrar, ou seja, uma verossimilhança que se aproxima de um coerente biográfico, mas nunca da verdade essencial do portador daquelas lembranças. Portanto, há um paradoxo autobiográfico que se mostrou evidente quando se propõe a analisar, principalmente, narrativas femininas, o que corrobora, mais uma vez, a importância do feminismo para a delimitação deste gênero do discurso. (BLUTER, 2015). Este paradoxo, caracterizado pela tentativa de se aproximar da verdade, ainda que, simultaneamente, afaste-se dela naturalmente, uma vez que a ficção está incutida no próprio ato narrativo, é uma das cláusulas propostas por Lejeune (1975), em seu “pacto autobiográfico”. Mostrando-se, portanto, como a ponte teórica entre o conteúdo e a forma nos caminhos da tomada de consciência da autobiografia enquanto gênero discursivo. Paradoxalmente, essa evocação é um ato performativo e não narrativo, mesmo quando funciona como um ponto de apoio para a narrativa. Em outras palavras, estou fazendo alguma coisa com esse “eu” – elaborando- o e posicionando-o em relação a uma audiência real ou imaginaria – que não é contar uma história sobre ele, mesmo que “contar” continue sendo parte do que faço. Qual parte desse “contar” corresponde a uma ação sobre o outro, uma nova produção do “eu”? (BUTLER, 2015, p. 89). 34 Retomando O segundo sexo (1949) como ponto de partida para os desdobramentos dos debates oficiais sobre a autobiografia, pode-se dizer que a obra traz, originalmente, um intenso questionamento em torno das características da vida privada, tornando temas como a subjetividade humana e a consequente individualidade do “eu”, independentemente das hierarquias de gênero propostas à época, assuntos que começam a ser discutidos no âmbito cultural, literário e acadêmico. Dessa maneira, tem-se os estudos feministas como uma fonte histórica intensamente apropriada por aqueles que se interessavam em discutir a autobiografia enquanto gênero do discurso. Ainda com enfoque nas fontes histórias das décadas de 60 e 70 relacionadas às demandas sobre subjetividade e individualidade, é importante incluir os estudos do sociólogo francês Alain Touraine sobre o conceito de sociedade pós-industrial, no qual está englobada a questão da subjetividade humana, que é tão necessária à conceituação, à tomada de consciência e ao interesse crescente das narrativas auto representativas. Em sua obra La société post-industrielle (1969), Touraine afirma que a sociedade, após um longo período tomado, majoritariamente, pelo modelo industrial de produção, encontra-se em transição, principalmente devido ao desenvolvimento tecnológico, à globalização e à massificação dos meios de comunicação. Para o sociólogo, a sociedade pós-industrial distingue-se, essencialmente, pela sua necessidade e capacidade de projetar o próprio futuro, ou seja, de realizar escolhas a partir de previsões estatisticamente comprovadas. A subjetividade, analisada do ponto de vista sociológico, é um fenômeno complexo. Significa que o indivíduo possui autonomia de julgamento, que se permite faze escolhas baseadas em suas necessidades e recursos, reafirmando o ponto essencial de emancipação e projeção do próprio provir (TOURAINE, 1969). No entanto, as atuais circunstâncias tecnológicas e culturais, que não podem ser ignoradas na conceituação contextualizada de um gênero do discurso, tal indivíduo é posto diante de uma bifurcação: deixa-se carregar pela homogeneização massificadora da globalização ou aproveita as oportunidades, que, entretanto, existem, para afirmar a própria subjetividade. A sociedade pós-industrial, portanto, abre a discussão entre o público, caracterizado pelo global, e o privado, representado pela subjetividade. Esse contraste desemboca na necessidade de falar sobre si mesmo e na curiosidade de observar a vida de outrem, que é exacerbada, em décadas posteriores, devido à intensificação do processo de midiatização, principalmente com o surgimento 35 dos reality shows. Neste ponto da discussão, é importante lembrar que o primeiro reality show exibido na TV, An American Family, foi lançado pela emissora PBS, em 1973, ou seja, dentro do parêntese temporal das décadas de 60 e 70 em que estamos trabalhando. Esse dualismo, público versus privado, é uma ideia proposta por Leonor Arfuch (2010), quando trabalha a questão do espaço biográfico contemporâneo e as características limítrofes que determinam tais esferas dentro da autobiografia. No entanto, a discussão será retomada no quarto capítulo desta dissertação, quando trabalharemos o gênero autobiográfico à luz da produção audiovisual, explorando o percurso de produção e dos procedimentos narrativos do “eu”, bem como as modalizações do ser, dentro do âmbito cinematográfico – com ênfase para o documentário pessoal, gênero no qual se enquadra Santigo (2007), que é um dos objetos do nosso corpus de análise. Em um segundo momento desta tomada de consciência, é preciso contextualizar os fatores relacionados à forma do gênero em questão. Diante do contexto histórico do final da década de 60 e início da década de 70, nota-se uma tendência de deslocamento do interesse da “vida narrada” para o problema da narração (OLNEY, 1980). Para James Olney (1980), o debate em torno da forma que limitaria um gênero autobiográfico mostra-se difuso. Ou seja, enquanto alguns enxergam a questão esquematizada, com características e elementos constitutivos de uma narrativa estável, outros, em contrapartida, acabam tornando-se vagos na tentativa de fugir desta rigidez teórica. Diante das discussões acerca da forma do gênero em questão, James Olney organiza uma coletânea, na qual reúne as principais contribuições teóricas e críticas sobre a temática, intitulada Autobiography: Essays Theorical and Critical (1980). Uma destas contribuições é a de George Gusdorf. O artigo “Conditions and Limits of Autobiography” defende e corrobora que a tendência de voltar ao passado com o único propósito de narrar a própria vida, essa consciência da própria singularidade intensificada no final da década de 60 e início da década de 70, é produto do contexto histórico, social e econômico da época em questão. Ou seja, para Gusdorf (1980), a consciência da escrita autobiográfica enquanto gênero do discurso, com ênfase em sua forma, é limitada em tempo e espaço. Dessa maneira, depende dos acontecimentos supracitados para que exista tal consciência, que pode ser vista também como um processo de individuação. Ou seja, nasce a perspectiva de que narrar fatos singulares, pertencentes 36 a vidas individualizadas, é tão digno e importante quanto narrar fatos históricos e coletivos, impactando, dessa maneira, diretamente, na forma dos textos auto representativos. A aparência da autobiografia implica uma nova revolução espiritual: o artista e o modelo coincidem, o historiador aborda-se como objeto. Isso quer dizer, que ele se considera uma grande personalidade, digna de lembrança mesmo que na verdade ele seja apenas um intelectual mais ou menos obscuro. (...) Montaigne, tinha uma certa proeminência, mas era descendente de uma família de comerciantes; Rousseau, não mais do que um comum cidadão de Genebra, era uma espécie de aventureiro literário; ainda assim, apesar de suas humildes posições no palco do mundo, consideravam seus destinos dignos de serem dados como exemplo (GUSDORF, 1980, p. 31). A tomada de consciência do termo “autobiografia” depende, portanto, de um determinado momento histórico, no qual culminaram debates oficiais sobre o tema, direcionando-o pelos caminhos teóricas da narrativa, dos elementos constitutivos desta, do discurso e da linguística. A autobiografia, agora, destituída de aspas, uma vez que a contextualização realizada neste subitem desta dissertação dissipou a inflexão temporal e conceitual do termo, supõe o reconhecimento do valor do eu individual. Assim, as narrativas do “eu”, que compõem o espaço biográfico, conceito que será trabalhado a seguir, mostram, historicamente, um sujeito autoconsciente, que é reflexo de um longo processo de aburguesamento decorrente da instalação do capitalismo como sistema hegemônico das sociedades ocidentais. Diferente do antigo nobre e de suas tradições ligadas à terra e ao nome de família, o homem burguês considera-se o autor do próprio destino, um ser autônomo que enxerga seu passado como uma trajetória vitoriosa e digna de ser narrada e compartilhada com terceiros. Este fenômeno processual de aburguesamento desemboca, séculos mais tarde, naquele sujeito fragmentado pós- moderno, que foi citado anteriormente, ainda neste capítulo, trazendo à tona a ideia de que a busca memorialística e a descoberta indentitária foram – e ainda são – fatores que impulsionam o ser humano a falar sobre si mesmo. É preciso salientar, no entanto, que tomar consciência de algo que já existe, mas, até então, não fora denominado, é resultado de um processo que extrapola o âmbito acadêmico. Isso quer dizer que oferecer um nome à certa prática traz consigo a ideia de que tal conceito sofreu elaboração significativa a nível social, cultural, psicológico e artístico. 37 No mais, tal consciência é responsável por propiciar que se crie um ambiente teórico favorável ao aparecimento de uma variedade de maneiras de narrar discursos auto representativos, o que será discutido no item seguinte deste capítulo. 2.3 O espaço biográfico de Leonor Arfuch: as variações das narrativas do “eu” O espaço biográfico é um conceito amplamente trabalhado por Leonor Arfuch, em sua obra O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea (2010). Para a autora, a convergência das diversas formas de narrar discursos biográficos resulta em um território, considerado uma circunferência interdiscursiva, no qual reúnem-se as formas narrativas que estes discursos assumem na constituição dos sujeitos, subjetividades, valores compartilhados, práticas de comportamento e vidas imaginárias. Em sua obra, a autora nos fornece uma genealogia do espaço biográfico, ou seja, mostra-nos como as práticas de escritas autografas ancestrais, distantes daquelas que compõem o gênero autobiográfico contemporâneo, como as Confissões, de Rousseau, que é considerada, hipoteticamente, a origem do gênero autobiográfico, exerceram importante influência dialógica para a construção das variações narrativas circulantes no espaço biográfico. Assim, nota-se uma elaboração gradativa das características estabilizadoras dos enunciados que compõem tais variações narrativas. Após demonstrar o percurso de tomada de consciência do gênero autobiográfico, é preciso, neste momento, localizá-lo em um lócus teórico dentro deste espaço biográfico que o permita existir dualísticamente; como ferramenta e como corpus de análise da pesquisa acadêmica. Conforme discutido no item anterior, houve, historicamente, um deslocamento de interesse para a forma das narrativas autobiográficas, o que nos leva a percorrer os caminhos formalísticos para o estudo deste gênero do discurso, uma vez que, posteriormente, analisar-se-á as narrativas de forma a destacar a autobiografia deste espaço interdiscursivo que envolve, ainda, outras representações do “eu”. Trazer a discussão e conceituação de espaço biográfico proposta por Arfuch (2010) para esta dissertação mostra-se essencial por dois principais motivos. Primeiramente, porque, em sua obra, a autora, apesar de apresentar a genealogia do gênero, enfatiza a autobiografia que caracteriza o 38 momento atual, ou seja, precavendo-nos de um anacronismo teórico entre procedimentos narrativos, esquemas enunciativos e contextualizações históricas e sociais. Levando-se em consideração que os objetos de análise desta pesquisa foram produzidos e publicados em épocas próximas à data atual, sendo Hospício é Deus: diário I, de Maura Lopes Cançado, publicado em 1965 e, mais recente, o documentário Santiago, de João Moreira Salles, gravado em 1992, reeditado anos depois e lançado em 2007, é de extrema importância que se represente o desenvolvimento da discussão acerca do discurso autobiográfico ao longo das épocas, desde a conceituação proposta por Lejeune (2008), que caracterizou a conceituação deste gênero em itens anteriores deste capítulo. Em segundo lugar, vale lembrar que, atualmente, há menos contratualismo do que aquele proposto por Lejeune nas narrativas autobiográficas, que foi corroborado quando o autor propõe um pacto a ser estabelecido entre o autor e leitor, o pacto autobiográfico. Quando o linguista francês realizou seus estudos utilizando como parâmetro certos materiais, como a autobiografia de Sartre ou o testemunho de Victor Hugo sobre a confluência de seus feitos literários e acontecimentos da própria vida, as características limítrofes do gênero do discurso em questão, pertencentes aos enunciados estáveis que o compõem, incluindo conteúdo temático, construção composicional e estilo, eram mais facilmente delimitadas. Com a diversificação dos modos de narrar, consequente, principalmente, do desenvolvimento tecnológico da sociedade pós-industrial, os limites discursivos tornaram-se difusos e a conceituação da autobiografia tradicional, aquela que centraliza o autor, o narrador e o protagonista em um único “eu”, inviável. A partir de uma análise bibliográfica temporalmente crescente, ou seja, que se inicia em um contexto passado, centrada nas obras de Lejeune, e desemboca em um panorama contemporâneo, representado pelos escritos de Arfuch, nota-se que a evolução das técnicas cinematográficas e a difusão do aparelho televiso como meio de comunicação de massa são, portanto, grandes responsáveis pelas transformações conceituais sofridas pela autobiografia ao longo das décadas. Foi dito, anteriormente, que alguns autores, como Vapereau (1876), já apresentavam uma conceituação mais ampla do que a proposta, inicialmente, por Lejeune, que se mostra engessada, quando o corpus de análise extrapola o âmbito literário. No entanto, deve-se levar em consideração a inexistência das tecnologias aqui citadas à época, o que não permite que se trabalhe as narrativas auto representativas a partir de uma perspectiva que considere a pluralidade de modalizações do 39 ser em um texto autobiográfico. Um exemplo é a não coincidência essencial entre autor e narrador, que é trabalhada por Leonor Arfuch, quando a autora discute o espaço biográfico contemporâneo. Essa não coincidência essencial será trabalhada com maior profundidade e mais especificamente na análise de Santiago (2007), uma vez que, no documentário, encontra-se uma grande carga dialógica devido às múltiplas intertextualidades entre a voz off do diretor, João Moreira Salles, bem como o seu poder exercido durante a edição, que o permite escolher os frames que comporão o discurso do próprio Santiago, que é considerado o narrador da obra, apesar de, em grande parte do tempo, ser o canal de uma “ego-história”, que é citado na obra O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea (2010) como uma das tendências atuais das narrativas do “eu”: Efetivamente, cada vez mais interessa a biografia de notáveis e famosos ou sua “vivência” captada no instante; há um indubitável retorno do autor, que inclui não somente uma ânsia de detalhes de sua vida, mas os “bastidores” de sua criação: multiplicam-se as entrevistas “qualitativas” que vão atrás da palavra do ator-social; persegue-se a confissão antropológica ou o testemunho do “informante-chave”. Mas não apenas isso: assistimos a exercícios de “ego-história”, a um auge de biografias intelectuais, à narração autorreferente da experiência teórica e à autobiografia como matéria da própria pesquisa, sem contar a paixão pelos diários íntimos de filósofos, poetas, cientistas, intelectuais (ARFUCH, 2010, p. 60-61). O conceito de espaço biográfico nos permite, portanto, apresentar a pluralidade de formas disponíveis para que se construa as narrativas do “eu”, que são representadas por estas tendências contidas no trecho extraído da obra de Arfuch. Neste momento da discussão, a intenção não é esgotar todas as formas de auto representação já categorizadas e difundidas pelos referenciais teóricos relacionados ao assunto, uma vez que o propósito desta pesquisa é analisar, especificamente e comparativamente, duas modalidades das narrativas autobiográficas, sendo elas o diário autobiográfico de Maura Lopes Cançado e o documentário pessoal de João Moreira Salles. No entanto, é indispensável que se crie a consciência de que este movimento de “retorno do sujeito”, marcado, principalmente, pela transitoriedade contextual que aflui na era da pós- modernidade, soma às formas tradicionais de relatar a própria vida, como as memórias escritas, os diários íntimos e as correspondências, formas híbridas, que irrompem na contemporaneidade. A 40 consequência desta somatória é a expansão das fronteiras que delimitam o gênero do discurso aqui discutido (ARFUCH, 2010). Esta somatória expansiva de esquemas enunciativos autobiográficos pode ser justificada por uma teoria psicanalítica de viés lacaniano, que trata do “vazio” com o qual se depara o sujeito autônomo, ou seja, aquele que, em uma sociedade pós-industrial, como citado no item anterior deste capítulo, encontra espaço para sua subjetividade e consequente possibilidade de escolha. Não à toa, a contextualização dos debates oficiais acerca da autobiografia enquanto gênero do discurso se dão, principalmente, nas décadas em que se inicia o declínio de uma sociedade pautada pelo modo de produção industrial. No prefácio da obra utilizada como referencial teórico norteador da discussão sobre espaço biográfico, O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea (2010), Ernesto Laclau faz a seguinte observação sobre a importância do “vazio lacaniano” para a conceituação do gênero autobiográfico na contemporaneidade, proposta por Arfuch: Pode-se dizer, como observação geral, que o vazio do sujeito autônomo clássico é ocupado neste livro – em consonância com várias correntes do pensamento atual – pelo o que poderíamos denominar “estratégias discursivas”, isto é, por deslocamentos metonímicos que dão coerência aos relatos – coerência que não repousa em nenhum centro, mas que faz dessa não coincidência do sujeito consigo mesmo a fonte de toda representação e totalização (LACLAU in ARFUCH, 2010, p.11). Ou seja, o indivíduo, em uma sociedade pós-moderna, pós-industrial, que sentiu a possibilidade de seus hábitos, antes tão enraizados nas tradições que visavam, acima de tudo, a produtividade, voltarem-se para os desejos do próprio sujeito, necessita descobrir quais são estes desejos que compõem a própria subjetividade. E a escrita autobiográfica, em suas diversas formas e tendências, como proposto por Arfuch, contribui, neste contexto, significativamente para preencher o “vazio” metafórico que a psicanálise de Lacan fez uso para descrever o espanto do indivíduo em conhecer a si mesmo. Vale lembrar que, de acordo com Touraine (1969), durante a era industrial, em que imperou o fordismo, a sociedade era dividida em duas classes muito bem delimitadas, sendo elas compostas pelos empresários e pelos operários, que eram vistos como uma grande massa homogênea. No entanto, dentre as transformações observadas na transição para a fase pós-industrial, além da 41 subjetividade, nota-se também uma heterogeneização de classes, que permitiu, consequentemente, a expansão de uma classe média. Outro sociólogo que tratou da temática da subjetividade na sociedade pós-industrial, juntamente com Touraine, ainda que a partir de vieses distintos, foi o norte-americano Daniel Bell. Em 1976, Bell lançou a obra As contradições culturais do Capitalismo, na qual observa que, juntamente à essa expansão da classe média, predomina, nesta parcela da sociedade, o hedonismo e a satisfação imediata dos desejos, que são características predominantes do sujeito autônomo citado anteriormente. Dessa maneira, o contexto sociológico nos fornece o embasamento e apoio necessários, corroborando a ideia de que o desenvolvimento e a diversificação do gênero autobiográfico mostram-se fundamental para solucionar questionamentos sociais que se transformam junto à maneira com a qual lidamos com nossa vida pessoal e profissional ao longo da temporalidade histórica. No entanto, o conceito de espaço biográfico proposto por Leonor Arfuch é amplo, tanto em relação à janela temporal que vislumbra, quanto em relação às discussões que deriva. Para que se fosse delimitado um lócus teórico para a pesquisa bibliográfica, que constituiu os primeiros passos metodológicos desta pesquisa, foi utilizada a perspectiva bakhtiniana do conceito de espaço biográfico. Dessa maneira, centramo-nos na discussão sobre as vozes que dialogam em um discurso autobiográfico, assim como na questão identitária do sujeito que se coloca no enredo construído sobre si. A perspectiva bakhtiniana proporciona que este primeiro capítulo elucide, a partir do embasamento teórico necessário, um dos caminhos metodológicos propostos para a análise do corpus desta pesquisa. Posteriormente, apresentar-se-á uma análise comparativa entre os elementos autobiográficos presentes na obra de Maura Lopes Cançado e no documentário pessoal de João Moreira Salles, a qual será intensamente guiada pelo conceito de dialogismo, cronotopo e exotopia, que serão apresentados no item a seguir. 2.3.1 O espaço biográfico a partir de uma perspectiva bakhtiniana “Como estabelecer o quem do espaço biográfico? Como aproximar-se desse entrecruzamento das vozes, desses ‘eu’ que imediatamente se desdobram, não só em um ‘tu’ senão 42 também em ‘outros’?” (ARFUCH, 2010, p. 95). Para responder às questões propostas por Arfuch, buscamos a contribuição do trabalho de Mikhail Bakhtin e a noção de vozes narrativas dentro dos relatos biográficos e autobiográficos. O dialogismo bakhtiniano, dessa forma, mostra-se como conceito fundamental à identificação das articulações que permitem compreender o lugar teórico ocupado pelo espaço biográfico, bem como do posicionamento do narrador dentro de uma narrativa que fala sobre si mesmo, ainda que, como demonstrado anteriormente, a coincidência de vozes, entre autor, narrador e personagem não seja, necessariamente, obrigatória, principalmente quando se trata de obras audiovisuais. Vale lembrar que Bakhtin, em sua obra Questões da literatura e estética: a teoria do romance (1990), discutiu alguns aspectos autobiográficos que, posteriormente, auxiliaram Philippe Lejeune a definir a especificidade da autobiografia. Um deles é o conceito de valor biográfico, uma vez que o linguista russo assinala o estranhamento do enunciador a respeito de sua própria história, ou seja, esse estranhamento autobiográfico não difere, em grandes instâncias, da posição de qualquer narrador diante do enredo posto para si. O que é justificado pela falta de alinhamento temporal presente na autobiografia, que será melhor discutida quando, no capítulo seguinte, tratarmos dos elementos dêiticos da narrativa individualmente. Diante do posicionamento de Bakhtin, portanto, é preciso enxergar a narrativa autobiográfica, antes de tudo, como uma narrativa em seu sentido mais puro, levando-se em consideração seus elementos constitutivos, pontos de vistas, esquemas enunciativos e todas as questões formalísticas que rodeiam a questão narratológica como um todo. Este é o motivo pelo qual enviesamos o capítulo seguinte, o segundo desta dissertação, à conceituação e à apresentação da narratologia à luz das teorias literárias, bem como à luz das teorias cinematográficas, que regem as análises de obras audiovisuais, incluindo o documentário, com a intenção de demonstrar suas particularidades, que influenciarão diretamente na produção de sentido autobiográfico gerada por cada objeto de análise selecionado para esta pesquisa. Portanto, é preciso, neste ponto da leitura, deixar clara a importância da perspectiva bakhtianiana para o debate autobiográfico, uma vez que o linguista russo apresenta um viés analítico distinto daquele apresentado por Lejeune. Nota-se, em grande parte dos trabalhos acadêmicos sobre autobiografia enquanto gênero do discurso, publicados nas últimas décadas, uma tendência em se restringir a discussão à visão tradicionalista francesa, o que causa certa restrição a debates e reflexões que englobem, além de questões contemporâneas, como o desenvolvimento 43 tecnológico dos meios de produção e seu impacto direto nas relações sociais, também questões estruturais que extrapolem o texto literário. Nesta pesquisa, portanto, optou-se por incitar uma elucubração que resulte em uma síntese entre tese, na figura de Lejeune, e antítese, figurada pelo linguista russo. Tal síntese deve levar em conta tanto a visão tradicionalista e rigorosa, que tão bem se adapta às obras literárias, quanto a visão transgressora e, consequentemente, mais flexível, responsável por permitir que outras formas narrativas, como os enredos audiovisuais, pudessem ter seus traços autobiográficos analisados comparativamente. Para Bakhtin (1979), que apresenta suas concepções sobre este gênero do discurso a partir de um viés mais amplo, as formas biográficas e autobiográficas situam-se entre os romances bilíngue e bivocal, ou seja, há, nas escritas do “eu”, uma confluência de vozes sociais distintas, ainda que, conceitualmente e, na maioria das vezes, o autor, o narrador e o personagem do enredo narrativo estejam centrados em um mesmo sujeito. A bivocalidade é um conceito importante para esta discussão, pois é a característica da qual derivam a intertextualidade e a interdiscursividade, sendo a última um fator intrínseco às obras autobiográficas, uma vez que há, nas escritas do “eu”, uma voz do passado, tempo de ocorrência dos fatos narrados, e uma voz do presente, tempo em que se constrói a narrativa. Segundo Fiorin (1994), tanto a intertextualidade como a interdiscursividade são conceitos que resultam da presença de duas vozes no mesmo texto discursivo, porém apresentam diferenças entre si: “a intertextualidade é a incorporação de um texto em outro, seja para reproduzir o sentido incorporado, seja para transformá-lo” (FIORIN, 1994, p.30). E, em relação à interdiscursividade, o autor afirma que este conceito não implica a intertextualidade, embora o contrário seja verdadeiro, pois ao se referir a um texto, o enunciador se refere também ao discurso que ele manifesta. Pode-se, dessa maneira, definir que a interdiscursividade é formada pelas relações dialógicas entre enunciados, enquanto a intertextualidade é definida pelas relações dialógicas entre textos. Nesta pesquisa, portanto, utilizaremos como conceito-chave, para as análises posteriores, a interdiscursividade dos enunciados que compõem os discursos autobiográficos dos objetos escolhidos para representar a autobiografia enquanto gênero do discurso no âmbito literário e no âmbito audiovisual. 44 2.3.1.1 Os conceitos de cronotopo e exotopia nos discursos autobiográficos No capítulo “O autor e a personagem na atividade estética”, presente no livro A estética da criação verbal (1979), o linguista Bakhtin contempla o conceito de espaço biográfico a partir da noção de cronotopo, que é a ideia utilizada para tratar da relação espaço-tempo no âmbito literário, indicando a interdependência destes elementos constitutivos da narrativa. De acordo com Blommaert (2015), um dos autores que analisa o cronotopo a partir de uma perspectiva histórico-social, o conceito bakhtiniano pressupõe considerar o espaço-tempo como momentos de história invocáveis para organizar a ordem do discurso. Em outras palavras, as experiências, os discursos vividos em lugares e tempos específicos, criam condições para a nova experiência em desenvolvimento, que será narrada nos enredos autobiográficos. Isso significa que ao experimentar a linguagem em um contexto situado no espaço-tempo, os sujeitos poderão pautar- se dessas experiências para a construção de novas possibilidades de agir por meio da linguagem. Na obra Hospício é Deus: diário I (1965), por exemplo, Maura Lopes Cançado encontra-se internada em um hospital psiquiátrico, em um contexto anterior aos primeiros debates sobre a reforma psiquiátrica, que viria a condenar as dinâmicas funcionais dos manicômios. Neste caso, a relação espaço-tempo é essencial para construção da narrativa autobiográfica, uma vez que a ambientação, bem como o período temporal, rege o direcionamento e a seleção de memórias realizadas pela autora para organizar o seu discurso sobre a própria vida. Dessa maneira, Cançado não limita sua autobiografia a fatos isolados, relacionados somente a si própria, mas, como em um tear de histórias, tece uma peça que entrelaça as vozes sociais que impactaram diretamente em sua existência. O contexto espaço-temporal, ou seja, o cronotopo do enredo, permite, portanto, que a autora narre em tom de denúncia detalhes do sistema psiquiátrico que incitaram, posteriormente, o início dos debates acerca da necessidade de se realizar uma reforma neste setor, como prioridade da saúde pública brasileira. Se a internada, como Durvaldina, é bem tratada em casa, cai facilmente no desagrado das guardas. O trauma é inevitável ao de deparar com o tratamento dispensado por elas. Daí a revolta por parte da internada. Julga- se com direito de reclamar um pouco de consideração. Não consegue e se exalta, natural em qualquer circunstância. Diante das ameaças e dos gritos, se desespera, sem medir consequências. A guarda entra em ação, e no outro dia