unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP ELISA CRISTINA GARCIA BARBOSA OS DIREITOS HUMANOS NA VOZ DE PROFESSORES E GESTORES: Teoria e Prática em Escolas da Rede Pública de Ensino no Interior do Estado de São Paulo ARARAQUARA – S.P. 2018 ELISA CRISTINA GARCIA BARBOSA OS DIREITOS HUMANOS NA VOZ DE PROFESSORES E GESTORES: Teoria e Prática em Escolas Rede Pública de Ensino no Interior do Estado de São Paulo Dissertação de Mestrado apresentada ao Conselho, Departamento, Programa de Pós Graduação em Educação Escolar da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Educação Escolar. Exemplar apresentado para exame de qualificação. Linha de pesquisa: Teorias Pedagógicas, Trabalho Educativo e Sociedade Orientador: Prof. Dr. Ari Fernando Maia Bolsa: CAPES/DS ARARAQUARA – S.P. 2018 ELISA CRISTINA GARCIA BARBOSA OS DIREITOS HUMANOS NA VOZ DE PROFESSORES E GESTORES: Teoria e Prática em Escolas da Rede Pública de Ensino no Interior do Estado de São Paulo Dissertação de Mestrado, apresentada ao Conselho, Departamento, Programa de Pós em Educação Escolar da Faculdade de Ciências e Letras – UNESP/Araraquara, como requisito para obtenção de Mestre em Educação Escolar. Exemplar apresentado para exame de qualificação. Linha de pesquisa: Teorias Pedagógicas, Trabalho Educativo e Sociedade. Orientador: Prof. Dr. Ari Fernando Maia Bolsa: CAPES/DS Data da defesa: 27/07/2018 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientador: Prof. Dr. Ari Fernando Maia Universidade Estadual Paulista – UNESP/FCLAr Membro Titular: Profa. Drs. Ana Maria Klein Universidade Estadual Paulista – UNESP/IBILCE Membro Titular: Prof. Dr. Eli Vagner Francisco Rodrigues Universidade Estadual Paulista – UNESP/FC Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara A todos aqueles que lutam por um mundo melhor. AGRADECIMENTOS Primeiramente, agradeço a todos aqueles que me fizeram enxergar o mundo de uma forma diferente. Seria injusto nomeá-los aqui, sob pena de me fugir à (fraca) memória cada um de seus nomes. Foram e ainda são tantos – amigos, colegas, vizinhos, colegas de trabalhos, do meio acadêmico, parentes, autores, trabalhadores, artistas, pensadores, alunos, jovens, idosos, crianças, adultos – que me permitem espelhar-me e encontrar detalhes que nunca havia visto. Muito obrigada por me permitirem. Aos meus pais, João e Beti (in memoriam), cujas batalhas para criar a mim e ao meu irmão foram muito além da luta pelo pão de cada dia. Foram brigas para nadar contra a maré deste mundo cão, para termos “olhos de ver” e “ouvidos de ouvir”, para sermos verdadeiros humanos, no sentido mais poético e belo da palavra. Ao meu irmão, que sempre viu tudo de modo tão diferente e tem me emprestado seus olhos para olhar a vida de forma mais leve e simples. À minha querida amiga Rosangela, companheira de Mestrado e de inúmeros cafés, nos quais discutíamos sobre aulas, disciplinas, e repartíamos nossos anseios e angústias da pós-graduação e da vida. Aos amigos do Departamento de Mocidades do estado de SP, minha família por laços do espírito. Obrigada por serem, por lutarem e levarem o amor por onde passam. Amo-os sem limites. Ao Guilherme, Néris e Mauro, por serem, tantas vezes, minha família na cidade de Araraquara, pelo apoio, cuidado e carinho durante todo este tempo. À minha psiquiatra, Kátia, e ao meu psicólogo, Gabriel, que me ajudaram, literalmente, a manter minha sanidade durante a minha jornada no mundo acadêmico. Ao grupo do Facebook “Bolsistas Capes”, pela troca de informações e momentos de descontração e apoio coletivos. Ao meu orientador, Professor Doutor Ari Fernando Maia, em quem eu vejo, também, a luta e o espírito crítico e tão belo na busca por um ideal baseado na igualdade e no conhecimento. À Professora Doutora Ana Maria Klein e ao Professor Doutor Eli Vagner Francisco Rodrigues, que aceitaram, prontamente, compor minha banca de defesa. Em especial, à Ana Maria Klein, cujo trabalho é peça valiosíssima no “mundo real” e no “mundo acadêmico” no tocante aos Direitos Humanos, e que contribuiu carinhosamente e de um tanto sem tamanho para o desenvolver e concluir deste trabalho. Sua ajuda me foi essencial. À vida. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001 “There have been times that I thought I couldn't last for long But now I think I'm able to carry on It's been a long, a long time coming But I know a change is gonna come, oh yes it will” Sam Cooke (1964) RESUMO Este trabalho apresenta os resultados da pesquisa de Mestrado em Educação Escolar cujo objetivo foi levantar a percepção dos professores e gestores do ensino médio da rede pública de ensino de uma cidade interiorana do estado de São Paulo no tocante aos direitos humanos e à educação em direitos humanos. Para isso, a partir da teoria crítica, foi realizada pesquisa bibliográfica e documental, com análise do currículo do ensino médio do estado de São Paulo, além da coleta de dados empíricos por meio de entrevistas semiestruturadas com esses professores e gestores. As legislações, normativas, planos e programas que se referem aos direitos humanos, bem como à educação em direitos humanos, em âmbitos nacional e internacional, foram estudados. Também se buscou compreender a matriz dos direitos humanos na nossa sociedade atual, em especial, na América Latina e no Brasil. Verificou-se que a educação em direitos humanos tem ganhado visibilidade como uma das formas na construção de uma sociedade mais justa, igualitária e cidadã. No entanto, a partir da análise do currículo do ensino médio do estado de São Paulo, bem como da fala dos professores e gestores, também do ensino médio, da rede pública de ensino, percebe-se que ainda há um caminho longo a ser construído em direção à educação em direitos humanos, tendo em vista que a temática não encontrou espaço para ser desenvolvida no currículo analisado, tampouco era conhecida e, muitas vezes, distorcida pelos entrevistados. A partir desta pesquisa, pode-se perceber que também não há grandes incentivos governamentais no tocante à educação em direitos humanos, seja pela falta da estrutura permissiva à disseminação desses direitos, seja pela falta de políticas públicas e ações que reafirmem a necessidade e obrigatoriedade deles no contexto atual. E, por isso, se confirma o motivo pelo qual uma educação em direitos humanos, questionadora, emancipadora e reivindicatória é tão imprescindível para que esta situação se transforme. Palavras-chave: direitos humanos; educação em direitos humanos; ensino médio; professores; gestores. ABSTRACT This paper presents the results of a Master's Degree in School Education whose objective was to collect the perception of the teachers and school managers of high school in the public school network of a countryside city of the state of São Paulo related to human rights and human rights education. For this, based on the critical theory, a bibliographical and documentary research was carried out, with analysis of the high school curriculum of the state of São Paulo, as well as the collection of empirical data through semi-structured interviews with these teachers and school managers. Laws, regulations, plans and programs relating to human rights as well as human rights education, both nationally and internationally, have been studied. We also sought to understand the human rights matrix in our current society, especially in Latin America and Brazil. It has been verified that human rights education has gained visibility as one of the ways in building a more just, egalitarian and citizen society. However, from the analysis of the high school curriculum of the state of São Paulo, as well as from the teachers and school managers speech, also from the high school, from the public school system, it is noticed that there is still a long way to be built in the direction of human rights education, considering that the theme did not find space to be developed in the analyzed curriculum, nor was it known and, often, its concept was distorted by the interviewees. From this research, it can be seen that there are also no major governmental incentives regarding to human rights education, either because of the lack of a permissive structure for the dissemination of these rights, or because of the lack of public policies and actions that reaffirm their need and obligation in the current context. And for this reason, it is confirmed the reason why a human rights education, questioning, emancipating and demanding, is so essential for this situation to change. Keywords: human rights; human rights education; high school; teachers; school managers. LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS AL – América Latina CNE – Conselho Nacional de Educação CONEP – Comissão Nacional de Ética em Pesquisa DH – Direitos Humanos DNEDH – Diretrizes Nacionais para Educação em Direitos Humanos DUDH – Declaração Universal dos Direitos Humanos ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente EDH – Educação em Direitos Humanos EFAP – Escola de Formação e Aperfeiçoamento de Professores EUA – Estados Unidos da América FCLAr – Faculdade de Ciência e Letras de Araraquara HREA – Human Rights Education Associates (Associados da Educação em Direitos Humanos) LDB – Leis de Diretrizes e Bases da Educação LGBT – Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros. MEC – Ministério da Educação MJ – Ministério da Justiça ONG – Organização Não-Governamental ONU – Organização das Nações Unidas PIDESC – Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais PMEDH – Programa Mundial para Educação em Direitos Humanos PNDH – Programa Nacional de Direitos Humanos PNEDH – Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos PNE – Plano Nacional de Educação SDH – Secretaria de Direitos Humanos SEDH/PR – Secretaria de Estado de Direitos Humanos do Paraná SEE/SP – Secretaria da Educação do Estado de São Paulo UFBP – Universidade Federal da Paraíba UNESP – Universidade Estadual Paulista „Júlio de Mesquita Filho‟ SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 11 1.1 Motivações, decisões e caminhos percorridos 11 1.2 Direitos humanos e educação – considerações preliminares 14 1.3 Objetivos da pesquisa 23 1.4 Método e abordagem da pesquisa 1.5 Entrevistas e coleta de dados 24 25 2 OS DIREITOS HUMANOS E BREVES ANÁLISES JURÍDICO- FILOSÓFICA E SÓCIO-HISTÓRICA 26 2.1 Os direitos humanos na visão jurídico-filosófica 31 2.2 Uma rápida caminhada pelo cenário histórico dos direitos humanos 38 2.2.1 Os antecedentes e os fundamentos de direitos humanos 38 2.2.2 A formação social moderna e os direitos humanos 3 EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS: SUA FINALIDADE, PRINCÍPIOS, DESAFIOS E A REALIDADE BRASILEIRA 42 47 3.1 Os princípios orientadores e os desafios da prática da educação em direitos humanos 54 3.2 Normatividade da educação em direitos humanos nas Nações Unidas e no Brasil 56 4. CONHECER OS DIREITOS HUMANOS: SUA IMPORTÂNCIA E IMPACTO NA EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS 68 4.1 A educação em direitos humanos e o currículo do ensino médio do estado de São Paulo 4.2 Análise das entrevistas com os professores e gestores do ensino médio 71 78 4.2.1 A concepção de direitos humanos de professores e gestores dentro do recorte proposto 80 4.2.2 Fontes de informação sobre legislações e normativa em direitos humanos 86 4.2.3 Identificação dos problemas para a efetivação de uma educação em direitos humanos e eventuais soluções 93 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS REFERÊNCIAS 96 99 ANEXO I 105 ANEXO II 106 ANEXO III 132 11 1 INTRODUÇÃO “Eu queria insistir Mas o caminho só existe Quando você passa” Chico Amaral e Samuel Rosa (Acima do sol, 2001) 1.1 Motivações, decisões e caminhos percorridos O construir desta pesquisa – o seu campo de estudo, os objetivos, seu título, os referenciais teóricos, sua metodologia – propagou-se por um longo caminho. A vontade, desde a graduação – realizada entre os anos de 2006 e 2011 na Universidade Estadual de Londrina – de tratar do tema direitos humanos era algo que prosseguia ao meu lado. Comigo não havia conceituação alguma, nem mesmo qualquer busca aprofundada sobre o assunto, apenas a vontade. O termo “direitos humanos” sempre foi algo que me chamou atenção, não pela sua explicação, mas – correndo o risco de parecer fútil e superficial – pela beleza das palavras quando unidas. Sempre enxerguei os direitos humanos como algo que merecesse mais entusiasmo, mais foco e desenvolvimento dentro da área acadêmica, e na prática do dia a dia também. No entanto, o bacharelado em direito não me permitiu “ir além”. Enxergar as normas e o próprio direito como progressão natural da sociedade e do homem cingiu-me uma possível visão crítica da nossa história e evolução. A narrativa da sociedade que o curso trouxe aos meus olhos enveredou-me para uma estrada aonde é fácil marchar, por me fazer crer que o movimento “natural-histórico-social” levaria à formação das normas e que todos estariam de acordo com estas. Assim é que, no decorrer da minha graduação, pela romantização do direito – e também por questões pessoais que me afastaram da vontade de me debruçar sobre o assunto – a temática dos direitos humanos tomou, em minha cabeça, a forma comum: direitos humanos eram, naquele momento, alguns ideais normatizados que se prestavam a controlar excessos cometidos por entidades (como a polícia, por exemplo), pelo governo nacional ou internacional (o Oriente Médio sempre me saltava à mente), ou pelos indivíduos (em casos de massacres, terrorismo, entre outros). Ainda, eles eram “acionados” apenas por determinadas minorias e por “bandidos”. Parecia-me muito claro que os direitos humanos se prestavam a 12 proteger àqueles que não conseguiam alcançar o direito que era dado a “todos” dentro da sociedade. E “apenas” isso. Finda a graduação, o convívio no mercado de trabalho se intensificou, o que me levou a questionar, novamente, o que era o direito e os direitos humanos. Os quase três anos em que atuei como advogada junto a uma instituição financeira privada após o término da faculdade somados à experiência de um estágio, atuando na assessoria de um juiz de uma das comarcas cíveis da cidade de Londrina, no Paraná, por aproximados dois anos, me levaram a indagar o porquê a lei se aplicava daquela forma, já que ela existia, na minha visão, para tornar o mundo um lugar melhor – e, naqueles casos concretos, isso não ocorria sempre. Foi quando, enquanto advogada naquela instituição financeira, me deparei com um caso que mudou meus conceitos de justiça: responsável pelas negociações de débitos com clientes de tal instituição, encontrei- me com um senhor de aproximadamente 75 anos. Sua pele castigada pelo sol, suas vestes humildes e seu falar simplório, de quem estava prestes a perder sua única propriedade da qual se utilizava para plantar – e cuja safra não vingou, levando à dívida ali cobrada –, deixavam claro que aquela transação não era tão justa. A advogada, estudiosa e aplicadora da lei, deu lugar à Elisa questionadora e crítica. Pode parecer algo tolo, mas aquele evento, somado a tantos outros acontecimentos ao longo da minha caminhada, me fez repensar os direitos humanos, o que eles eram de fato, sua importância e o que eles representavam. Muitos fatos me foram relevantes de modo a encaminharem minha mente para este objeto de estudo. Tenho como referência, por exemplo, o estudo que minha mãe – psicóloga – enquanto viva, realizou entre os anos de 2001 e 2004, juntamente com meu pai – estudante de direito na época – sobre como se dava a aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente na educação escolar em determinada cidade do estado de São Paulo, pesquisa que sempre me chamou atenção. Além disso, meu trabalho de conclusão da pós-graduação em Direitos Civis, que cursei também na Universidade Estadual de Londrina, finalizada em 2012, tratou sobre os direitos dos homossexuais à constituição de família dentro do ordenamento jurídico brasileiro, quando tal matéria ainda não era regulamentada. Ao decidir pesquisar sobre a temática, saltou-me aos olhos a Lei nº 9.934/1996 - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), em especial o seu artigo 1 26, §9º, que 1 “Art. 26. Os currículos da educação infantil, do ensino fundamental e do ensino médio devem ter base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e em cada estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e dos educandos. [...] § 9o Conteúdos relativos aos direitos humanos e à prevenção de todas as formas de violência contra a criança e o adolescente serão incluídos, como temas transversais, nos currículos escolares de que trata o caput deste artigo, 13 trata dos currículos da educação infantil, do ensino fundamental e do ensino médio e do conteúdo dos direitos humanos dentro deste programa de educação. A partir de então, o tema “educação em direitos humanos” passou a tomar forma para mim, e o desejo de entender e observar como e se essa educação ocorria na prática, tendo em vista a ampla legislação neste tema, se intensificou. Assim é que busquei desviar-me do campo jurídico, propositalmente, e enveredar-me no horizonte da educação, horizonte este que me reservou magníficas surpresas, e fez tão clara a máxima de Sócrates – e que tanto se aplica a mim: “só sei que nada sei”. Qual não foi o meu espanto a me deparar com autores dos quais sequer havia ouvido falar, mas cujos ensinamentos me faziam tanto sentido. Voltando ao meu estado natal, encontrei na UNESP de Araraquara o campus que me acolheu como aluna nesta jornada rumo a uma nova visão de mundo. A minha hipótese, à primeira vista, era a de que não havia implantação, de forma adequada e crítica, do ensino de direitos humanos, a despeito das legislações, diretrizes e normas, em qualquer estado brasileiro 2 . Ainda, que a concepção de direitos humanos por parte dos professores e gestores era equivocada e se comparava à de grande parte da população, com uma visão restrita e, até mesmo, preconceituosa sobre o assunto. Com foco, então, no estado de São Paulo, centralizamos, eu e meu orientador, Prof. Dr. Ari Fernando Maia, nossa pesquisa, em determinada cidade no interior deste estado, de modo a compreender qual a percepção sobre direitos humanos e sobre educação em direitos humanos dos professores e gestores do ensino médio de escolas da rede pública e que tipo de conteúdo entendem como essenciais para a educação em direitos humanos. Ainda, que nível de conhecimento eles possuem no tocante às legislações, diretrizes e normas específicas que abordam os direitos humanos e a educação em direitos humanos e como (e se) é trabalhada essa educação em seus cotidianos escolares. Tal pesquisa desenvolveu-se, então, nos seguintes níveis: teórico, recuperando o histórico da educação em Direitos Humanos no Brasil, e empírico, através de pesquisa documental, com análise curricular e por meio de entrevistas com professores e gestores do ensino médio da rede pública de ensino. As entrevistas foram realizadas partindo de um tendo como diretriz a Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), observada a produção e distribuição de material didático adequado.” (BRASIL, 1996). 2 Felizmente, no decorrer da pesquisa, deparei-me, em especial, com intensa e ampla produção acadêmica, oriunda da UFPB, sobre direitos humanos e educação em direitos humanos. Juntamente ao eixo teórico, verifiquei que a Universidade desenvolve um trabalho prático, relativo à educação em direitos humanos, junto à sociedade e ao governo, através de cursos, palestras, debates, seminários, fóruns, etc., além da criação de disciplinas e cursos de extensão dentro da própria Universidade, de modo a produzir o conhecimento e disponibilizá-lo a quem fosse necessário. 14 conjunto de questões (anexo), de caráter aberto, permitindo a intervenção da entrevistadora de modo a estimular a fala dos entrevistados sobre os temas abordados. Foram entrevistadas 08 pessoas, nas instituições de ensino na qual trabalham, em horários de intervalo de trabalho (que variavam das 7h às 22h30), em sala reservada e com boas condições de privacidade. Considerando o número de participantes e a natureza qualitativa da investigação, foi priorizado o sentido atribuído aos direitos humanos pelos professores e as práticas que poderiam ser decorrentes de seus princípios. Todos os participantes passaram por um processo de consentimento esclarecido e assinaram um termo de consentimento, de acordo com a Resolução 466/12 do CONEP. O protocolo da pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da FCLAr (anexo). 1.2 Direitos humanos e educação – considerações preliminares Abranger o universo dos direitos humanos vai muito além de argumentar sobre os direitos do indivíduo. Existe, como pano de fundo, uma construção histórica, social, econômica e cultural possibilitando e originando a existência desses direitos – e também os tornando contraditórios, além de vetar muitas das suas possibilidades. E é a convivência entre as pessoas que fez nascer, por motivos como a desigualdade, falta de liberdade, a exploração do indivíduo em suas tantas variáveis – dentre outros que serão discutidos neste trabalho – os direitos humanos como hoje conhecemos. (GALLARDO, 2014) Na atualidade, tais direitos estão declarados e são amplamente fundamentados 3 . Vide a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), proclamada no cenário pós Segunda Guerra Mundial pela Assembleia Geral das Nações Unidas em Paris, em 10 de dezembro de 1948, através da Resolução 217 A (III) da Assembleia Geral, como uma norma comum a ser alcançada por todos os povos e nações, e que estabeleceu, pela primeira vez, a proteção universal dos direitos humanos. (ONU, 2017) Ainda que, historicamente, outras declarações e legislações compreendidas no período da História Moderna (a título de exemplificação) – como a Lei de Habeas Corpus (Inglaterra, 1679), Bill of Rights (Inglaterra, 1689), a Declaração de Independência e a Constituição dos Estados Unidos da América do Norte (EUA, 1776), e as Declarações de Direitos da Revolução Francesa (França, 1789) – apresentassem direitos do indivíduo que em muito se 3 Cabe aqui destacar que a “ampla fundamentação” dos direitos humanos leva a eventuais contradições. Conforme veremos no decorrer deste trabalho, há autores que defendem que os direitos humanos têm natureza jusnaturalista, outros atestam que são, na verdade, fruto do contratualismo, dentre outras escolas de pensamento. 15 assemelhavam aos que compõem a Declaração de 1948, nenhuma delas possuía, em seu cerne, a pretensão de abranger a universalidade de indivíduos que esta última trouxe em sua elaboração, ainda que de forma geral. O chocante contexto pós-guerra, tomado por medo, destruição, desolação, tristeza e indignação culminou com o surgimento da Organização das Nações Unidas (ONU) em 24 de outubro de 1945, e foi também o motivo do despertar da simpatia e solidariedade naqueles que sobreviveram ao massacre e ao trauma deixado pela guerra violenta. Hoje, 193 países são membros da ONU, cujo documento de fundação, a Carta das Nações Unidas, traz em seu preâmbulo os seguintes dizeres: “Nós, os povos das Nações Unidas, resolvidos a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra, que, por duas vezes no espaço da nossa vida, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade, e a reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, assim como das nações grandes e pequenas, e a estabelecer condições sob as quais a justiça e o respeito às obrigações decorrentes de tratados e de outras fontes de direito internacional possam ser mantidos, e a promover o progresso social e melhores condições de vida dentro de uma liberdade mais ampla. E para tais fins praticar a tolerância e viver em paz uns com os outros, como bons vizinhos, unir nossas forças para manter a paz e a segurança internacionais, garantir, pela aceitação de princípios e a instituição de métodos, que a força armada não será usada a não ser no interesse comum, e empregar um mecanismo internacional para promover o progresso econômico e social de todos os povos. Resolvemos conjugar nossos esforços para a consecução desses objetivos. Em vista disso, nossos respectivos governos, por intermédio de representantes reunidos na cidade de São Francisco, depois de exibirem seus plenos poderes, que foram achados em boa e devida forma, concordaram com a presente Carta das Nações Unidas e estabelecem, por meio dela, uma organização internacional que será conhecida pelo nome de „Organização das Nações Unidas.” (ONU, 1945, p. 3) (grifo nosso) Um primeiro olhar – mais utópico – deste preâmbulo nos leva a crer, em um primeiro momento e, em suma, que, após a Segunda Guerra Mundial, os governos se uniriam em ideal de modo a prevenir que outras barbáries nestes moldes ocorressem. Imagens de um futuro mais justo e equilibrado começaram a apresentar contornos mais ou menos delineados. O mundo, então, passaria a ter uma organização voltada ao incentivo da paz, da união entre as nações e os povos, da busca pela igualdade entre as pessoas, e do desenvolvimento mundial como um todo. Entretanto, já neste primeiro momento, nem todos os países se mostraram entusiasmados com a ideia de integrar a Organização das Nações Unidas, o que ressaltou a 16 divisão ideológica e política entre as nações. Além disso, nem todos os países estavam dispostos assinar a DUDH, ante a não concordância de todas as convicções expressas no documento. Embora aprovado por unanimidade, os países do chamado “bloco comunista”, como a União Soviética, a Polônia e a Iugoslávia, além da África do Sul, entre outros, se abstiveram de votar. (COMPARATO, 2008) Isso porque, apesar de sua pretensão utópica de conciliar mais liberdade, mais igualdade e proteção social, a DUDH já indicava apartação entre a declaração e os direitos civis, sociais, políticos, econômicos e culturais, o que se tornou explícito quando da aprovação, em separado, dos Pactos de Direitos Civis e de Direitos Sociais, em 1966. Norberto Bobbio afirmou que a divisão em “categorias” dos direitos humanos na própria Declaração dos Direitos Universal dos Direitos Humanos – direitos sociais e políticos – se justifica pela genuína “progressividade” dos próprios direitos humanos, e que os direitos econômicos e sociais são, naturalmente, mais difíceis de satisfazer, do que os direitos de liberdade, por exemplo: Os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizados por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas (...). Nascem quando devem ou podem nascer. (BOBBIO, 2004, p. 9) Bobbio observa ainda que, na medida em que as pretensões aumentam, sua satisfação se torna cada vez mais difícil. (GALLARDO, 2014). O fato é que, ainda que a ONU pretendesse participação igual dos países em suas Assembleias Gerais, durante a Guerra Fria, a própria Organização manteve-se essencialmente a serviço da mútua contenção das superpotências (econômicas e militares) saídas da Segunda Guerra Mundial. (ALBUQUERQUE, 1995). A realidade nos mostra que, ainda que declarados e amplamente fundamentados (mesmo que em frente a tantas discussões sobre a amplitude destes), os direitos humanos, em muitos momentos, não passam de conceitos sem efetividade prática por conta de diversos fatores. Um exemplo que pode ser dado dos dias atuais é o caso ocorrido nos Estados Unidos da América, país que sedia o headquarter da própria ONU. Na cidade de Charllotesville, estado de Virgínia, ocorreu, durante o governo Trump 4 , no dia 13 de agosto de 2017, a 4 O governo de Donald Trump tem sido marcado por inflamados discursos de ódio. Não raro, o presidente dos Estados Unidos vem a público com falas xenofóbicas, racistas, ofensas às minorias, manifestações favoráveis à exploração de diversos países e povos. Além disso, tem demonstrado desconhecimento relativo a causas ambientais e o impacto que o meio ambiente vem sofrendo com a ação humana no planeta. 17 chamada “marcha dos supremacistas branco”, cujos indivíduos dela participaram acreditam serem os “homens brancos” superiores aos demais 5 . Confrontos e morte de manifestante e policiais são algumas das sequelas desse episódio. No entanto, o que nos salta aos olhos, além de vidas arrebatadas, foi o discurso de ódio, a evidente xenofobia e a tão aclamada supremacia branca, por parte dos manifestantes. Placas com os dizeres “vamos defender os brancos e seus direitos” ao lado de bandeiras com o símbolo do nazismo podiam ser vistas em meio ao que podemos chamar de insanidade coletiva. Ainda a título de exemplificação, podemos trazer a morte chocante de Marielle Franco, vereadora no estado do Rio de Janeiro, eleita em 2016, para a Legislatura de 2017- 2020. Socióloga, feminista e militante dos direitos humanos, Marielle foi executada no dia 14 de março de 2018 (em um cenário pós-impeachment da ex-presidente da República, Dilma Rousseff) juntamente com Anderson Gomes, motorista do veículo em que a vereadora se encontrava. Ainda em fase de investigação, a polícia suspeita que o crime que ocasionou a morte de Marielle tenha sido, na verdade, uma execução, ante a oposição, da vereadora, à violência da própria polícia militar do Rio de Janeiro e à intervenção federal nas comunidades cariocas. Em 10 de março, poucos dias antes sua morte, Marielle denunciou o 41º Batalhão da Polícia Militar do Rio de Janeiro por abuso de violência policial. Além disso, em 2008 ela havia trabalhado na CPI das Milícias (que investiga a articulação do crime organizado com o poder público), indiciando 226 pessoas, dentre as quais poderia estar o assassino de Marielle. (SCHREIBER, 2018) O que espantou a esta que lhes escreve, e também a tantos os que acompanhavam as notícias que esse caso gerou, foi a resposta das pessoas à morte de Marielle. Enquanto uns se sentiam abalados com a execução brutal, não foram poucas as manifestações, em especial nas redes sociais, de indivíduos favoráveis à morte cruel da vereadora justamente por ela ser defensora dos direitos humanos. Cabe aqui ressaltar que, segundo dados da Anistia Internacional, da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e da ONG Front Line, que monitoram direitos humanos pelo mundo, o Brasil está entre os países líderes em homicídios de ativistas de direitos humanos, juntamente com Colômbia, Filipinas e México. (MENA, 2018) 5 What‟s happening in Charlottesville? BBC. 2017. Disponível em: http://www.bbc.co.uk/newsround/40916141. Acesso em 16 ago. 2017. 18 Não serão trazidos mais exemplos, neste momento, de modo a poupar o leitor da extensa lista de barbáries que ainda são cometidas e seguem impunes através do tempo. Ideias absurdas, e que ainda sobrevivem, de que um grupo ou indivíduo é superior ao outro só nos leva a enxergar com clareza que “direitos humanos (por definição, universais) continuam a ser proposta ou exigência, não algo que se tem, mas que se deveria ter” (GALLARDO, 2014, p. 19). Em última instância, os discursos e práticas, que têm dentre seus fundamentos o ódio, o ressentimento em relação à cultura e aos direitos – em especial dos considerados mais fracos – , querem fazer valer o direito ao exercício direto do poder, ao invés de tornar mais efetivos os direitos que têm pretensão de universalidade. Ainda que a efetivação da DUDH tenha um horizonte utópico, não podemos deixar de lembrar que, através de seus artigos 22 a 27, que tratam dos direitos sociais, bem como dos artigos 28 a 30, que podem ser considerados “mecanismos” de realização destes direitos, a Declaração possibilitou a existência, em diversas sociedades, de direitos como a proteção e o bem-estar sociais. Além disso, em seu último artigo, a DUDH deixa claro que nenhuma das suas disposições pode ser interpretada com o objetivo de destruir direitos e liberdades, o que, em partes, funciona como obstáculo lógico aos defensores do ódio. Tendo em vista a importância dos direitos humanos e da sua conscientização entre todos os indivíduos do planeta, para a promoção de uma sociedade em que sejam respeitadas as diferenças e a dignidade humana, (e também de forma a ajudar na prevenção do acontecimento de episódios como os acima citados), a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) – agência especializada da ONU, com sede em Paris, que atua na Educação, Ciências Naturais, Ciências Humanas e Sociais, Cultura e Comunicação e Informação 6 – disponibilizou, em 2004, o Programa Mundial de Educação em Direitos Humanos. Há entre os direitos humanos e a educação uma relação complementar e imprescindível. Só se constrói o ser humano como humano efetivamente através dos processos educativos: (...) a Educação é o processo integral de formação humana, pois cada ser humano ao nascer, necessita receber uma nova condição para poder existir no mundo da cultura. Esse processo inclui a aquisição de produtos que fazem parte da herança civilizatória e que concorreram para que os limites da natureza sejam transpostos. Entre eles se colocam os conhecimentos racionais que promoveram o desenvolvimento científico e cultural da 6 UNESCO. Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. ONU. 2016. Disponível em: https://nacoesunidas.org/agencia/unesco/. Acesso em: 13 nov. 2016. 19 humanidade, e a consciência de que o ser humano é o próprio produtor das condições de reprodução de sua vida e das formas sociais de sua organização e devem ser orientadas pelos princípios da solidariedade, do reconhecimento do valor das individualidades, respeito às diferenças, e pela disciplina das vontades. (RODRIGUES, 2001, p. 232) Grifo nosso Neste tocante, o Parecer do Ministério da Educação sobre as Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos, publicado no Diário Oficial da União em 2012, pontua, de forma primorosa, a inter-relação acima mencionada: (...) a educação vem sendo entendida como uma das mediações fundamentais tanto para o acesso ao legado histórico dos Direitos Humanos, quanto para a compreensão de que a cultura dos Direitos Humanos é um dos alicerces para a mudança social. Assim sendo, a educação é reconhecida como um dos Direitos Humanos e a Educação em Direitos Humanos é parte fundamental do conjunto desses direitos, inclusive do próprio direito à educação. As profundas contradições que marcam a sociedade brasileira indicam a existência de graves violações destes direitos em consequência da exclusão social, econômica, política e cultural que promovem a pobreza, as desigualdades, as discriminações, os autoritarismos, enfim, as múltiplas formas de violências contra a pessoa humana. Estas contradições também se fazem presentes no ambiente educacional (escolas, instituições de educação superior e outros espaços educativos). Cabe aos sistemas de ensino, gestores/as, professores/as e demais profissionais da educação, em todos os níveis e modalidades, envidar esforços para reverter essa situação construída historicamente. Em suma, estas contradições precisam ser reconhecidas, exigindo o compromisso dos vários agentes públicos e da sociedade com a realização dos Direitos Humanos. Neste contexto, a Educação em Direitos Humanos emerge como uma forte necessidade capaz de reposicionar os compromissos nacionais com a formação de sujeitos de direitos e de responsabilidades. Ela poderá influenciar na construção e na consolidação da democracia como um processo para o fortalecimento de comunidades e grupos tradicionalmente excluídos dos seus direitos. (BRASIL, 2012) Para que se estabeleça uma cultura de direitos humanos, é fundamental que os indivíduos os signifiquem, os construam como valores e se tornem agentes de promoção e defesa dos direitos humanos. E um dos meios para que isso ocorra é a educação 7 . Por isso, tão importante o plano de ação do Plano Mundial de Educação em Direitos Humanos, que tem como finalidade a promoção de uma cultura de defesa e para os direitos humanos, com duas fases: a primeira, do ano de 2005 ao ano de 2009, com foco no ensino 7 A educação aqui debatida não é aquela que reproduz e legitima a sociedade da forma como ela se encontra. Pelo contrário, como defende Adorno (1995), é a educação para a emancipação, “para a contradição e para a resistência”. Tal ideia relativa à essa educação será debatida mais adiante neste trabalho. 20 primário e secundário; e a segunda, do ano de 2010 ao ano de 2014, com prioridade no ensino superior e a formação de direitos humanos para professores e servidores públicos. O Brasil 8 , como país-membro da ONU, em respeito ao PMEDH e fundamentando-se neste, apresentou no ano de 2003 o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (PNEDH, com versão final no ano de 2006, que é de extrema importância no desenvolvimento da educação em direitos humanos no Brasil. O plano marca o compromisso do Brasil com a educação em direitos humanos 9 enquanto política pública. No entanto, cabe ressaltar, aqui, que a adesão do Brasil a esse plano sempre encontrou resistências, e sempre esbarrou em estereótipos reproduzidos à larga na indústria cultural sobre os direitos humanos. Claramente, isso não retira a importância do plano, mas, ao contrário, colocá-lo em prática deve acontecer de forma a favorecer a criticidade, e não apenas como mera afirmação de direitos). O próprio texto do PNEDH reconhece que, mesmo que existam normas que defendam os direitos humanos, a humanidade ainda sofre com a violação de tais direitos, com destaque para a América Latina, ante a extensão das violências social e política sofridas pelos povos deste continente. Podemos observar que as Constituições e legislações dos países latinos “dizem” os direitos humanos de suas formas. Estes direitos podem, por exemplo, encontrar-se, não só em leis específicas, mas também de forma integrada em diversas legislações, planos, diretrizes, emendas constitucionais, entre outros. Ou seja, eles estão lá. No entanto, nem toda a população latina tem capacidade para exigir tais direitos. Isso porque, ora não tem acesso às instituições que os defendam, ora porque aceita suas violações como algo natural, desconhecendo os direitos humanos que lhes são inerentes e, por isso, não luta por eles diante da cultura de exploração e dominação social por outras classes. (GALLARDO, 2014). Ou seja, a educação em direitos humanos é essencial porque, ao menos, permite que pessoas que não usufruem dos direitos saibam disso; mas, além disso, elas também precisam saber por que tais direitos lhes são negados, sendo de extrema necessidade que a educação em direitos humanos seja, também, uma educação crítica. 8 A cada quatro anos e meio, os países-membros da ONU devem prestar contas ao mundo sobre a situação dos direitos humanos. Com o aumento dos homicídios, ataques a comunidades indígenas e rebeliões nos presídios, o Brasil foi cobrado publicamente. Para a ONG Conectas, desde o último balanço, em 2012, o desrespeito aos direitos humanos vem aumentando gradativamente no Brasil. Fonte: Brasil é cobrado na ONU por situação dos direitos humanos no país. 2017. Disponível em: http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2017/05/brasil- e-cobrado-na-onu-por-situacao-dos-direitos-humanos-no-pais.html. Acesso em: 03 jun. 2017. 9 Esta pesquisadora não vê necessidade em diferenciar os termos educação em, para e através dos direitos humanos, por acreditar que elas se encontram interligadas e entrelaçadas. 21 No Brasil, assim como ocorre nos demais países da América Latina, a realidade configura um quadro desanimador. A desigualdade e o desrespeito aos direitos humanos foram fatores constituintes de nossa sociedade. O processo de acumulação capitalista, baseado na exploração, é estruturalmente excludente (MARX, 2016), e esse foi o cenário que propôs os moldes da sociedade brasileira. Frases como direitos humanos para humanos direitos, bandido bom é bandido morto, a justiça é feita por ricos para os ricos, pobre não tem direitos, entre tantas outras neste mesmo sentido, são por nós ouvidas e lidas diariamente. A verdade é que muitos acreditam devotadamente nessas afirmações 10 . E é por isso que a educação em direitos humanos não tem um caráter informativo, apenas. Ela também deve visar à formação para a diversidade, para a aceitação do outro, para a construção de uma consciência crítica e autocrítica, para a sensibilidade e para o conhecimento. Neste tocante, Ana Maria Klein (2011) aborda a educação em direitos humanos e o conceito de “conhecimento historicamente construído”: os valores, atitudes e práticas sociais, assim como o desenvolvimento de processos metodológicos participativos e de construção coletiva, além do fortalecimento de práticas individuais e sociais devem ser trazidos como dimensões da educação em direitos humanos, sendo que estes direitos devem se relacionar com a realidade do aluno, levando à formação de valores capazes de guiar as atitudes e práticas sociais que expressem a cultura dos direitos humanos. Fundamentalmente, a educação em direitos humanos deve possibilitar ao indivíduo que este desenvolva uma compreensão crítica sobre as condições existentes na coletividade em que habita e da conjuntura material na sociedade que impedem uma convivência pacífica e equilibrada. Ou seja, a educação em direitos humanos deve ser política no sentido de explicitar as contradições da sociedade e os limites que os próprios direitos humanos possuem em sua pretensão de garantir melhores condições de igualdade e solidariedade entre os homens num contexto social de exploração, violência, exclusão, discriminação, competição e guerra. Apesar de ser uma questão global, o Brasil, historicamente, sempre trouxe consigo enormes desigualdades em todas as áreas, e a educação em direitos humanos pode possibilitar um panorama em que o indivíduo seja crítico em relação ao modelo neoliberal vigente, 10 Antônio Augusto Cançado Trindade, Juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos acredita que o que distorce a visão dos direitos humanos, de modo geral, é a sua visão atomizada ou fragmentada. (Fonte: TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Dilemas e desafios da Proteção Internacional dos Direitos Humanos no limiar do século XXI. Rev. bras. polít. int. [online]. 1997, vol. 40, n.1, pp.167-177. ISSN 1983-3121. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0034-73291997000100007. Acesso em: 18 mar. 2018.) 22 vivencie seu papel político na sociedade, enxergando as desigualdades política, social, econômica como algo a ser enfrentado e derrotado, e desenvolvendo valores para que se respeite o indivíduo, suas necessidades, suas diferenças e seu real valor no mundo. A fim de que a educação em direitos humanos seja possível e efetiva, um dos grandes pontos necessários é que os professores “sejam agentes comprometidos com a construção de uma cultura dos direitos humanos na nossa sociedade”. (CANDAU et al., 2013, p. 59). No entanto, segundo a autora, várias pesquisas apontam que é muito comum que o professor reproduza, em sua atuação profissional, os modelos através dos quais foi educado, sem adquirir reflexão crítica durante o ensino superior. Neste ponto, parecemos nos deparar com um paradoxo: se a educação não permitiu ao professor uma visão crítica e emancipatória, ele jamais poderia transmitir tal educação ao aluno. Candau et al. (2013) afirma, no entanto, que existem pontos fundamentais que permitem a efetiva formação do professor para viabilizar que a educação em direitos humanos ocorra através dele. O primeiro trata da análise da educação do próprio professor, previamente ao ensino superior, através da perspectiva histórico-crítica dos direitos humanos. O segundo ponto aborda a necessidade da concepção do professor enquanto agente sociocultural e político, construtor não só de conhecimento, mas também de valores e práticas. Finalmente, a autora discorre sobre a essencialidade da construção de um projeto político-pedagógico que incorpore a educação em direitos humanos na concepção do curso como um todo. O próprio PNEDH traz em seu item “Formação e capacitação de profissionais” como linha geral de ação o desenvolvimento da promoção da formação inicial e continuada dos profissionais da educação em direitos humanos, oportunizando ações de ensino, pesquisa e extensão com foco na educação em direitos humanos, e o incentivo da interdisciplinaridade e transdisciplinaridade na educação em direitos humanos. Conforme leitura do documento, verifica-se a afirmação de que o governo se comprometeria com a população para a promoção de uma educação de qualidade para todos, tendo como princípio a afirmação dos direitos humanos. Deduz-se, então, que, para que isso ocorra, os profissionais da educação atuantes nos dias de hoje, em especial, os professores, sejam conhecedores dos direitos humanos e comprometidos com a construção de uma cultura pautada nestes. No entanto, a qualidade da educação no Brasil se encontra (bem) abaixo do esperado no que diz respeito à conscientização e à emancipação do indivíduo. Para confirmar isso, basta ter acesso, por exemplos, nas redes sociais e na grande mídia, ao discurso inflamado da 23 população em geral, bem como de políticos, líderes religiosos, artistas e demais personalidades contra os direitos humanos. Enquanto país “em desenvolvimento”, o próprio Brasil não é emancipado, o que torna difícil a implementação de uma educação que transforme o pensamento e a conscientização dos indivíduos. A real necessidade, aqui, é a da construção de um modelo de educação que busque romper com a atual estrutura do modo de produção de consciências humanas na sociedade capitalista, conforme preconiza Theodor Adorno. Em “Educação e Emancipação”, Adorno (1995) defende a necessidade da construção de uma teoria social que indicasse as possibilidades de libertar o indivíduo de sua incapacidade de perceber a realidade e de oportunizar o desenvolvimento de ações autônomas, o que só poderia ocorrer através da educação. E para que isso ocorra, o professor deve, nas palavras de Candau et al. (2013) ser um dos agentes transformadores e mobilizadores de processos pessoais e grupais de natureza cultural e social, verdadeiros promotores de uma educação em direitos humanos, possibilitando-se, assim, a emancipação defendida por Adorno e, futuramente, a mudança social. 1.3 Objetivos da pesquisa A presente pesquisa se constituiu em duas frentes: a) buscar a conceituação do termo direitos humanos, a sua história e importância social e cultural dentro da sociedade e do modelo econômico capitalista em que vivemos. De forma mais específica, nos dedicamos à leitura e análise das principais legislações, diretrizes, planos, decretos e programas brasileiros e mundiais especificamente voltados à educação em direitos humanos; b) realizar uma investigação empírica sobre as concepções e práticas de professores do ensino médio da rede pública de ensino sobre direitos humanos. O objetivo geral deste trabalho ficou estabelecido da seguinte forma: • Verificar a percepção de professores e gestores do ensino médio da rede pública de ensino de uma cidade do interior de São Paulo sobre direitos humanos e educação em direitos humanos, identificar resistências e lacunas na formação em direitos humanos destes profissionais, a partir da bibliografia pesquisada, diagnosticar a distância entre a normatização (legislações, diretrizes, planos, decretos e programas) e a realidade destes profissionais, em especial com relação às Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos e o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos, e quais as ações destes profissionais no âmbito 24 escolar para que tais direitos sejam abordados e discutidos, respeitadas as legislações, diretrizes, planos, decretos e programas brasileiros e mundiais no tocante ao assunto. Já os objetivos específicos foram organizados da seguinte maneira: • Questionar professores e gestores sobre o que estes entendem por direitos humanos e educação em direitos humanos, bem como seus parâmetros legais e normativos; • Indagar as fontes de informação relacionadas aos direitos humanos utilizadas pelos professores e gestores; • Indagar como são trabalhados, por professores e gestores, os direitos humanos no ambiente escolar; • Investigar quais as dificuldades para se ensinar e se trabalhar os direitos humanos. 1.4 Método e abordagem da pesquisa A abordagem utilizada na presente pesquisa é a qualitativa e as técnicas utilizadas são: entrevistas (aprovadas previamente à suas aplicações pelo Comitê de Ética da UNESP/FCLAr) com professores e gestores, no ambiente escolar, de modo a permitir que o(a) entrevistado(a) se expressasse livremente dentro das questões realizadas a ele(a), em um ambiente privado. Para isso, foi elucidado que não havia respostas corretas, mas sim uma visão pessoal sobre o assunto abordado. Isso porque, A abordagem da investigação qualitativa exige que o mundo seja examinado com a ideia de que nada é trivial, que tudo tem potencial para constituir uma pista que nos permita estabelecer uma compreensão mais esclarecedora do nosso objeto de estudos. (BOGDAN; BIKLEN, 1994, p. 49) Além disso, A entrevista é uma das técnicas de coleta de dados considerada como sendo uma forma racional de conduta do pesquisador, previamente estabelecida, para dirigir com eficácia um conteúdo sistemático de conhecimentos, de maneira mais completa possível, com o mínimo de esforço de tempo. (ROSA; ARNOLDI, 2006, p. 17). A riqueza de informações obtidas através da entrevista foi o ponto principal que levou esta pesquisadora a se utilizar desta ferramenta como fonte de informações. Além das entrevistas, e previamente a estas, outra estratégia utilizada é a realização de revisão bibliográfica, com levantamento de pesquisas sobre a mesma temática, o que levou à decisão de conceituar os direitos humanos, a partir de uma visão crítica da sociedade, 25 observando sua história social, entendendo-os como produtos de lutas sociais, em sociedades crescentemente desiguais. Isso, porque, as pesquisas encontradas por esta autora em bancos de teses e dissertações (que tratam da educação em direitos humanos e da percepção e do trabalho com direitos humanos do professor e do gestor na rede pública de ensino) não traziam a conceituação do termo. Finalmente, utilizei-me da pesquisa documental, ao analisar o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos e o currículo do ensino médio do estado de São Paulo e sua ligação com os direitos humanos e a educação em direitos humanos. Desta forma, foi possível o desenvolvimento e desfecho da presente pesquisa. 1.5 Entrevistas e coleta de dados De modo a possibilitar a realização das entrevistas, foram estudadas as principais legislações, diretrizes, planos, decretos e programas nacionais e mundiais de educação em direitos humanos, além de realizada a análise do currículo do Ensino Médio do Estado de São Paulo com base na teoria crítica. Tais documentos e legislações propõem que a educação em direitos humanos exista como uma educação para uma cultura democrática, compreendida como um processo sistemático e multidimensional que orienta a formação do sujeito de direitos. Para que tal educação exista, necessário é que o professor e o gestor das escolas públicas do estado de São Paulo tenham conhecimento da temática e saibam aplicá-la em seu cotidiano escolar. Com base nas informações contidas em tais documentos, bem como nas legislações, diretrizes, planos, decretos e programas nacionais e mundiais de educação em direitos humanos, esta pesquisadora, juntamente com o Prof. Dr. Ari Fernando Maia, desenvolveram questionário, sendo posteriormente aplicados a professores e gestores. Com tais resultados, foi possível, assim, compreender quais as percepções e conceitos relativos a direitos humanos e educação em direitos humanos destes profissionais e, ainda, se há ou não respeito às normas e planos educacionais que regem o nosso país neste âmbito. 26 2 OS DIREITOS HUMANOS E BREVES ANÁLISES JURÍDICO-FILOSÓFICA E SÓCIO-HISTÓRICA “Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo; Considerando que o desconhecimento e o desprezo dos direitos do Homem conduziram a atos de barbárie que revoltam a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os seres humanos sejam livres de falar e de crer, libertos do terror e da miséria, foi proclamado como a mais alta inspiração do Homem; Considerando que é essencial a proteção dos direitos do Homem através de um regime de direito, para que o Homem não seja compelido, em supremo recurso, à revolta contra a tirania e a opressão [...].” Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948. Preâmbulo Para poder desenvolver esta pesquisa, a primeira ideia que me ocorreu à mente foi a da necessidade de esmiuçar o conceito de direitos humanos. Para mim, impossível seria tratar de tais direitos e da educação em direitos humanos sem antes, ao menos, tentar esgotar a análise de todas as perspectivas que eu pudesse encontrar na literatura sobre eles, de modo a me permitir maior segurança e embasamento não só na escrita desta dissertação, mas, em especial, no momento das entrevistas, instante crucial que iria me oportunizar o alcance dos meus objetivos da pesquisa. Assim é que eu, com o saber limitadíssimo sobre o tema, dei início, no ano de 2015, às primeiras buscas sobre o tema, finalizando-as (pelo menos no tocante a este estudo), no mês de março de 2018, com a conclusão desta dissertação de mestrado. Incontáveis foram as definições com as quais me deparei. No início, muitas dúvidas pairavam sobre mim com relação a qual linha de entendimento seguir quanto aos direitos humanos e sua compreensão. Percebi que conceituar tais direitos não é exercício simples. No entanto, ainda que existam diversos posicionamentos, estudos, análises e pensamentos sobre a questão, me debrucei sobre as abordagens jurídico-filosófica (termo que tomei a liberdade de utilizar, por entendê-lo como o que melhor nomearia a fundamentação dada ao conceito de direitos humanos a partir do direito e de seus filósofos) e sócio-histórica, a partir das reflexões e considerações do professor chileno Helio Gallardo em sua atual obra “Teoria crítica: matriz e possibilidade de direitos humanos” (2014). 27 Assim o fiz porque, com o natural evoluir da pesquisa, pude notar que estas seriam, a meu ver, e ante a construção social em que vivemos, as melhores aproximações à realidade conceitual dos direitos humanos. Em um primeiro momento, durante as buscas, me deparei com a conceituação de direitos humanos dada pela Organização das Nações Unidas. A ONU “define” os direitos humanos como […] direitos inerentes a todos os seres humanos, independentemente de raça, sexo, nacionalidade, etnia, idioma, religião ou qualquer outra condição. Os direitos humanos incluem o direito à vida e à liberdade, à liberdade de opinião e de expressão, o direito ao trabalho e à educação, entre e muitos outros. Todos merecem estes direitos, sem discriminação. (ONU, 1948) A expressão “define” está amparada acima pelas aspas porque a explicação da Organização das Nações Unidas sobre os direitos humanos não é, na verdade, uma definição. Ela apenas se refere aos direitos humanos como inerentes a todos os seres humanos, independente de sexo, raça, nacionalidade, etnia, língua, religião e outros status. Em seguida, então, a sequência natural da busca pela definição do que seriam os direitos humanos me levou à Declaração Universal de Direitos Humanos, de 1948. Qual não foi o meu espanto quando nada encontrei neste documento, de forma clara, a me permitir conceituar, de forma simples e objetiva, os direitos humanos. Busquei, desta forma, amparar- me em dicionários e doutrinadores clássicos do direito brasileiro. De acordo com o dicionário Michaelis (2018), o vocábulo humano significa “1 Relativo à natureza do homem; humanal. 2 Constituído por homens. 3 Que denota compaixão.”. Já direito é um substantivo que têm, dentre outros sentidos, os de “1 Indivíduo que segue os bons costumes. 2 O que é justo perante a lei. 3 Prerrogativa legal, conferida a alguém, para exigir de outrem algum procedimento. 4 Privilégio de praticar ou não um determinado ato. 8 JUR Conjunto de normas jurídicas que funcionam como referencial de justiça.” Conforme o Dicionário de Políticas Públicas, A expressão “direitos humanos” também é normalmente empregada para designar direitos que existem independentemente de seu reconhecimento na ordem jurídica, com validade universal. Conceito por vezes associado à ideia do direito natural, inerente à natureza humana, própria do Iluminismo; nessa acepção, são direitos em sentido fraco. “Direitos fundamentais”, por sua vez, são direitos de categoria especial, consagrados nas Constituições; representam a base ética do sistema jurídico estatal e podem não ter a vigência universal, própria dos direitos humanos. O conceito de direitos 28 humanos, portanto, seria mais amplo e impreciso do que a noção de direitos fundamentais. A distinção entre direitos humanos e direitos fundamentais encontra-se hoje superada, sendo mesmo irrelevante, posto constituírem um só instituto jurídico. (GIOVANNI; NOGUEIRA org. 2015) Para o respeitado jurista e doutrinador constitucionalista, José Afonso da Silva (2006), direitos humanos podem ser definidos como aqueles que se referem a “princípios que resumem a concepção de mundo e informam a ideologia política de cada ordenamento jurídico”. Ou seja, os direitos fundamentais são positivados 11 em uma determinada legislação de um dado país, são reconhecidos formalmente e de forma concreta e materialmente efetivados. São leis que existem de modo a possibilitar que haja uma convivência digna, livre e igual para todos os indivíduos. Buscando, então, a visão de outras áreas sobre o tema, defrontei-me com o respeitado canal no YouTube denominado “Casa do Saber”. Nele, a consultora da Comissão Nacional da Verdade, doutora em Ciência Política, Glenda Mezarobba (2015), afirma que “os direitos humanos são os direitos que todos os serem humanos possuem por serem seres humanos”, e dizem respeito a toda a humanidade. A partir de então, dentro do universo da pesquisa, pude compreender que o conceito simples e objetivo que buscava talvez nunca fosse encontrado, justamente porque os próprios direitos humanos não são simples, tampouco, objetivos. Diversas são as possibilidades em definir os direitos humanos fundando-se em pressupostos epistemológicos distintos. Podemos enxergá-los enquanto direitos que já nascem com o indivíduo (jusnaturalismo); como acordo entre indivíduos; ainda, como lutas e conquistas de alguns povos/agrupamentos na sociedade; e, finalmente, como direitos discutidos entre partes. Gallardo (2014, pp. 21-22) evidencia que “nem todo mundo diz, nem diz da mesma maneira, direitos humanos”. Com esta afirmação concorda a autora Marie-Bénédicte Dembour (2010), que esclarece, em um estudo mais aprofundado sobre o tema, que as pessoas não contemplam os direitos humanos da mesma forma. Neste trabalho de dissertação, de modo a elucidar e exemplificar os diferentes pensamentos sobre os direitos humanos, foram utilizadas as considerações da autora acima 11 Esta pesquisadora utiliza-se, neste trabalho, do termo “positivado” no sentido de “transformado em lei, em norma jurídica”: “Instituído em códigos e leis; vigente e eficaz (diz-se de direito)”. Novíssimo Aulete. Dicionário da Língua Portuguesa. Versão Digital. Disponível em: . Acesso em 06 dez. 2016. 29 citada 12 . Segundo Dembour, foi realizada análise da literatura acadêmica, abrangendo todas as áreas em que se produz conteúdo sobre direitos humanos, e se baseiam em Max Weber e o conceito de tipos ideais 13 . A primeira é descrita como escola naturalista. É, deveras, sedutor enxergar os direitos humanos de forma jusnaturalista, enquanto intrínsecos ao ser humano, como se bastasse existir para ser possuidor destes direitos. Aliás, não se trata aqui de posse, mas de direitos enquanto parte do que se é. Não são necessários quaisquer esforços, basta ser e os direitos humanos são e estão com o ser humano. Nesta definição, os direitos humanos são dados e existem sem depender de leis, declarações, acordos e pactos. Além disso, são absolutos e sua universalidade deriva do seu caráter natural. A escola naturalista defende que os direitos humanos existem independentemente do reconhecimento social. A desvantagem desse tipo de pensamento está na evidente diversidade de formas de ser dos humanos, e da tendência recorrente de determinados grupos de consideraram outros menos humanos; além disso, o que aparentemente se ganha em afirmação da legitimidade dos direitos humanos se perde em relação à necessária autocrítica histórico-filosófica desses direitos, sua origem racionalista, ocidental, patriarcal. Já para a escola deliberativa, os direitos humanos são valores políticos que sociedades livres decidem adotar, e existem devido a um acordo social. Para essa escola de pensamento, as leis constitucionais de cada país expressam os valores dos direitos humanos, mas, ainda que cada país possua sua constituição, a escola deliberativa entende que os direitos humanos não são universais e isso só acontecerá quando todos os indivíduos estiverem convencidos de que tais direitos são a melhor forma de regular uma sociedade. A inconveniência de tal perspectiva diz respeito ao pressuposto de que as sociedades ocidentais são intrinsecamente democráticas e igualitárias, ou seja, os argumentos de cada indivíduo podem ser ouvidos para compor a “vontade geral”. Efetivamente, entretanto, a existência de uma esfera pública atuante é altamente duvidosa, considerando, principalmente, a força da indústria cultural e as diferenças abissais de nível educacional e de poder de comunicação. A terceira escola apontada pela autora é a escola de protesto. Segundo Dembour, há aqui grande preocupação em reparar injustiças e equilibrar a sociedade em defesa de pessoas pobres, sem privilégios e oprimidos. No entanto, diferentemente das escolas já apresentadas, a escola de protesto tende a enxergar as leis que amparam os direitos humanos como parte de 12 Marie-Bénédicte Dembour é professora de Direito e Antropologia na Universidade de Sussex e autora no Projeto MUSE – Human Rights Quarterly, publicado pela John Hopkins University Press. 13 Tradução da pesquisadora. 30 um processo de tornar rotineira a tendência de favorecer a elite e, por isso, estão ainda longe de corporificarem a verdadeira ideia dos direitos humanos. Ou seja, os direitos humanos não são o fim das lutas sociais pela igualdade, nem constituem a finalidade das lutas. Há uma aporia, uma contradição essencial, entre a perspectiva marxista e dos direitos humanos porque esses são, histórica e epistemologicamente, vinculados a valores burgueses, e a luta socialista aponta para além da ordem social capitalista. Entretanto, é preciso reconhecer que eventualmente as lutas sociais podem se utilizar dos direitos humanos como ferramentas úteis, seja para buscar conquistar igualdades, seja para desconstruir privilégios. A última escola trazida por Dembour é a discursiva. Para ela, os direitos humanos só existem porque as pessoas falam sobre eles. Os estudiosos desta escola defendem que os direitos humanos não são dados, e nem mesmo são a resposta para os males do mundo, mas reconhecem que a linguagem em torno dos direitos humanos se tornou poderosa para expressar reinvindicações políticas. Mesmo vendo os direitos humanos como um proeminente discurso ético-político que traz bons resultados, a escola discursiva justifica que outras ideias superiores de emancipação podem surgir e serem colocadas em prática. Essa escola nos previne contra apreensões ingênuas dos direitos humanos, chamando a atenção para o caráter ambíguo dos discursos que se inserem, de uma forma ou de outra, em relações de poder – todo discurso que afirma determinada forma de poder encontra resistências e discursos contrários, constituindo essa dinâmica um elemento essencial das relações. Assim, essa perspectiva nos torna atentos a pressupostos ingênuos que deduzem harmonia entre sujeitos sociais distintos que afirmam de forma diferente os vários discursos que circulam na sociedade. Ainda que a escola naturalista seja a mais comumente referida e tendo prevalecido mais tempo como ideal de fonte do surgimento dos direitos humanos, as demais escolas têm se destacado dentro da academia. A escola discursiva não tem tido muito espaço dentro dos estudos dos direitos humanos, tendo em vista que não acredita que estes sejam uma boa forma de se trabalhar os problemas do indivíduo, enxergando-os apenas enquanto discurso. (DEMBOUR, 2010) Este trabalho adota, dentro da perspectiva da teoria crítica, as concepções das escolas de protesto e discursiva. Isso, porque, os direitos humanos surgem a partir de contradições e conflitos sócio-políticos. A razão é, aqui, determinada e condicionada pelos indivíduos, pela sociedade e suas mudanças, assim como ocorre com os direitos humanos, e apenas a razão crítica irá percebê-los como e o que são e sua importância dentro da sociedade capitalista em 31 que vivemos. Além disso, a escola discursiva defende o poder dos direitos humanos dentro do âmbito político-social. 2.1 Os direitos humanos na visão jurídico-filosófica O direito é construção histórica, resultado das mudanças que ocorrem no espaço e tempo. Conforme ensina Silva (2005, p. 33), o “Direito é fenômeno histórico-cultural, realidade ordenada, ou ordenação normativa da conduta segundo uma conexão de sentido.” O direito nunca é pronto e acabado. Logo, os direitos humanos também estão sempre em construção. Os registros mais remotos da proteção dos direitos humanos datam da Era Axial 14 , período em que despontou a ideia de uma igualdade essencial entre os homens, ao mesmo tempo em que nasce a lei escrita. (COMPARATO, 2008) Assim, então, no decorrer da história da humanidade, [...] alguns antecedentes formais das declarações de direitos foram sendo elaborados, como o veto do tribuno da plebe contra ações injustas dos patrícios em Roma, a lei de Valério Publícola proibindo penas corporais contra cidadãos em certas situações até culminar com o Interdicto de Homine Libero Exhibendo, remoto antecedente do habeas corpus moderno, que o Direito Romano instituiu como proteção jurídica da liberdade. Não nos iludamos, contudo, porque essas medidas tinham alcance limitado aos membros da classe dominante, mas, em Atenas, já se lutava pelas liberdades democráticas. Foi, no entanto, no bojo da Idade Média que surgiram os antecedentes mais diretos das declarações de direitos. (SILVA, 2005, pp. 150,151). (Grifo nosso) Para o Direito, o primeiro documento a assegurar alguns dos direitos do homem foi a Magna Carta, em 1215, – que, em realidade, não tem natureza constitucional e sim de convenção, mas que vinculava o rei às suas próprias leis – redigida na Inglaterra e direcionada à proteção dos privilégios dos “homens livres”, o que quer dizer, na verdade, proteger os senhores feudais dos poderes exorbitantes dos reis e do clero. (COMPARATO, 2008) Entre o advento da Magna Carta, em 1215, e o Bill of Rights, em 1689, a ideia defendida por Thomas Hobbes, em Leviatã (1651), tomou força por toda a Europa, e, em especial, na Inglaterra. Para o filósofo, 14 O filósofo Karl Jaspers nomeou o período que vai de 800 a. C. a 200 a. C. Segundo ele, neste período, o homem tomou consciência de si e de seus limites. Fonte: JASPERS, Karl. Origem e meta da história. Barcelona: Edições Altaya, 1995. 32 [...] o primeiro direito do ser humano consistia no direito de usar seu próprio poder livremente, para a preservação de sua própria natureza, ou seja, de sua vida. [...] para sobreviver ao estado da natureza, no qual todos estão em confronto (o homem seria o lobo do próprio homem), o ser humano abdica dessa liberdade inicial e se submete ao poder do Estado (o Leviatã). A razão para a existência do Estado consiste na necessidade de se dar segurança ao indivíduo, diante das ameaças de seus semelhantes. (RAMOS, 2014, cap. 4) (grifo do autor) Ainda que o conceito de liberdade de Hobbes seja diferente daquele que compõe o direito à liberdade como conhecemos, – já que, para ele, o homem é livre quando pode usar o próprio poder da maneira que quiser, e que, fatalmente, a liberdade levaria à guerra e à destruição, devendo a sociedade se submeter ao poder soberano de um Estado que tudo pode (RIBEIRO, 2002) – o seu pensamento foi importante para a gênese do Bill of Rights, pois, enfatizou a ideia do homem enquanto indivíduo. Cabe apontar aqui que o filósofo defende, conforme sua célebre frase, que “o homem é o lobo do homem”. Para ele, o homem não conseguiria conviver em sociedade sem regras impostas juridicamente e aplicadas pelo Estado. Hobbes foi estritamente importante, também, porque seu raciocínio amparou o pensamento de que a força normativa pertence ao Estado. Para ele, o Estado só existe se todos os indivíduos assinarem um contrato transferindo a este o poder de manutenção da vida e da liberdade de cada um desses indivíduos. Em contrapartida, o Estado deve agir sempre em prol da manutenção da vida e da liberdade de cada um da sociedade, sob pena de ser desobedecido pelo indivíduo. Desta forma, Hobbes rompe com a ideia de que o poder de Deus se encontra também no clero, transferindo-os somente para o soberano, reforçando, ainda mais, o entendimento da Magna Carta de que a igreja não deveria ter poder desmensurado sobre as pessoas. Em contrapartida, John Locke (1632-1704) contribuiu essencialmente na força do Bill of Rights, de 1689. Para o pensador, o direito dos indivíduos deve existir mesmo contra o Estado, ideia que dá força aos direitos humanos nos tempos contemporâneos. Além disso, Locke – representante do jusnaturalismo – apresentou a teoria da propriedade, que defendia que a posse já existe no estado de natureza, sendo um direito natural do indivíduo que não pode ser violado pelo Estado. Outra ideia defendida pelo filósofo – e talvez a de mais valia – é a de divisão de poderes (Legislativo, Executivo e Federativo, sendo este último relativo às atividades de guerra e paz, omitindo o Judiciário por argumentar que este fazia parte do Poder Legislativo, tendo como função a execução das leis). (RAMOS, 2014) 33 O Bill of Rights surgiu a partir da iniciativa do Parlamento, colocando fim ao regime de monarquia absoluta, transferindo o poder de legislar e criar tributos ao próprio Parlamento, provendo-lhe liberdade perante o chefe de Estado. (RAMOS, 2014) A monarquia constitucional inglesa fundamentou-se em Locke e sua teoria ao submeter-se à soberania popular. Ainda que não tratasse exclusivamente de direitos humanos, o Bill of Rights permitiu a divisão de poderes e a inspiração para as democracias liberais da Europa e América. Em 1762, surge a obra Do contrato social, de Jean-Jacques Rousseau. Para ele, igualdade e liberdade são próprias do ser humano e, sendo assim, são inalienáveis. Rousseau pretende estabelecer em Do contrato social “as condições de possibilidade de um pacto legítimo, através do qual os homens, depois de terem perdido sua liberdade natural, ganhem, em troca, a liberdade civil.” (NASCIMENTO, 2002, p. 26) Para o pensador, o povo é soberano, e o governo deve ser submisso a esse povo, que faz as suas próprias leis e segue-as, traduzindo o verdadeiro sentido de liberdade. A primeira declaração que trouxe a base dos direitos humanos como foco, bem como a ideia de homens livres com mais intensidade foi a Declaração de Direitos do Bom Povo de Virgínia, em 1776, que consolidava os fundamentos dos direitos do homem, como o direito à vida, à igualdade e à liberdade, delimitando o poder estatal e concebendo o governo democrático após a independência da coroa britânica. Essa Declaração é não muito anterior à Declaração de Independência dos Estados Unidos, também de 1776. Silva (2005) explica que ambas foram “inspiradas nas teorias de Locke, Rousseau e Montesquieu” e possuem, em sua base, similar texto em defesa dos direitos do homem no tocante à proteção à vida, liberdade e igualdade. Em 1787, a Constituição Norte-Americana não continha em seu texto base qualquer declaração de direitos do homem, o que só ocorreu após a pressão de alguns Estados independentes americanos, que “somente concordaram em aderir a esse pacto se se introduzisse na Constituição uma Carta de Direitos, em que se garantissem os direitos fundamentais do homem.”, conforme nos ensina José Afonso da Silva (2005, p. 73). O Bill of Rights americano foi aprovado em 1791, assegurando direitos individuais, que sobrevivem até hoje naquele país. Já a insatisfação do povo francês com o governo absolutista e o regime feudal 15 deu origem à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789. 15 Cabe aqui ressaltar que, além da busca filosófica pela liberdade, igualdade e fraternidade (lema da Revolução Francesa), os povos que deram origem à burguesia buscavam, também, a não intervenção do Estado no mercado, 34 Foi assim que os protagonistas da Revolução Francesa de 1789 compreenderam o momento extraordinário que estavam vivendo. A febre e o fervor revolucionários faziam com que cada militante se sentisse como que saindo das cinzas, da morte para a vida. E lá estavam eles a empunhar o Contrato social como uma espécie de manual de ação política e a eleger o seu autor como o primeiro revolucionário. (NASCIMENTO, 2002, p. 32) A declaração francesa emprestou a técnica das declarações americanas, sendo que elas [...] não eram, por seu turno, senão o reflexo do pensamento político europeu e internacional do século XVIII – dessa corrente da filosofia humanitária cujo objetivo era a libertação do homem esmagado pelas regras caducas do absolutismo e do regime feudal. E porque essa corrente era geral, comum a todas as Nações, aos pensadores de todos os países, a discussão sobre as origens intelectuais das Declarações de Direitos americanas e francesas não tem, a bem da verdade, objeto. Não se trata de demonstrar que as primeiras Declarações “provêm” de Locke ou de Rousseau. Elas provêm de Rousseau, e de Locke, e de Montesquieu, de todos os teóricos e de todos os filósofos. As Declarações são obra do pensamento político, moral e social de todo o século XVIII. (MIRKINE-GUETZÉVITCH, 1951 apud SILVA, 2006, p. 157) Ainda que com base nas Declarações americanas, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão possui eminente importância porque seu foco não é apenas o povo francês, estendendo-se à universalidade dos povos e se dirigindo a toda humanidade: Declarar os direitos também teve consequências fora da França. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão transformou a linguagem de todo mundo quase da noite para o dia. A mudança pode ser encontrada de forma especialmente clara nos escritos e discursos de Richard Price, o pregador britânico dissidente que havia inflamado a controvérsia com seu discurso dos "direitos da humanidade" em apoio aos colonos americanos em 1776. O seu panfleto de 1784, Observations on the Importance of the American Revolution, continuava na mesma veia: comparava o movimento de independência americano à introdução do cristianismo e predizia que ele "produziria uma difusão geral dos princípios da humanidade" (apesar da escravidão, que ele condenava categoricamente). Num sermão de novembro de 1789, Price endossava a nova terminologia francesa: "Vivi para ver os direitos dos homens mais bem compreendidos do que nunca, e nações ansiando por liberdade que pareciam ter perdido a ideia do que isso fosse. [...] Depois de partilhar os benefícios de uma Revolução [1688], fui poupado para ser testemunha de duas outras Revoluções [a americana e a francesa], ambas gloriosas". O panfleto escrito em 1790 por Edmund Burke contra Price, Reflexões sobre a revolução na França, desencadeou por sua vez um frenesi de discussão em várias linguagens sobre os direitos do homem. (HUNT, 2009, p. 134) a liberdade econômica, a livre circulação de mão de obra e de mercadorias, inclusive no tocante ao comércio exterior. 35 Com a consolidação da Declaração de 1789 e da sociedade burguesa, a Constituição Francesa de 1848 traz artigos que tratam sobre a liberdade do trabalho, bem como o direito à educação, desde que voltados para aquele fim. De 1864, a Convenção de Genebra trouxe a ideia de direito humanitário, de forma internacional, abordando sobre o cuidado dos militares feridos em guerra, e que foi assinada somente pelas potências europeias. (SILVA, 2005). Com o avançar do tempo e o fortalecimento do regime liberal-burguês, iniciaram-se as crises econômicas, a miséria dos proletários e o desemprego. A liberdade e igualdade defendidas pelas legislações eram apenas abstratas e segmentadas em determinadas classes sociais. Neste contexto, é promulgada a Constituição Mexicana, em 1917, sendo a primeira a atribuir direitos trabalhistas ao indivíduo, adicionando-os à lista dos direitos do homem. Na Europa, em 1919, logo após a Primeira Guerra, uma Alemanha devastada promulga a Constituição de Weimar, que segue o mesmo caminho da legislação mexicana, limitando a “jornada de trabalho, o desemprego, a proteção da maternidade, a idade mínima para admissão de empregados nas fábricas e o trabalho noturno dos menores na indústria”. (Silva, 2005, p. 79). Ainda, a Constituição de Weimar traçou as linhas para a estrutura mais elaborada do Estado, e, além de declarar os direitos e deveres fundamentais, coloca os direitos sociais em uma seção destinada apenas a eles. Cabe destacar aqui, que, para este trabalho, a Constituição de Weimar tem especial importância, pois, foi ela que dispôs, com destaque, sobre a educação pública, ajudando a organizar as bases da democracia social, conforme pontua Comparato (2008, p. 195 a 198): Consagrando a evolução ocorrida durante o século XIX, e que contribuiu decisivamente para a elevação social das camadas mais pobres da população em vários países da Europa Ocidental, atribuiu-se precipuamente ao Estado o dever fundamental de educação escolar. [...] Art. 145. A escolaridade é obrigatória para todos. Ela é realizada, fundamentalmente, pela escola popular em pelo menos oito anos letivos e pela anexa escola complementar, até os dezoito anos completos. O ensino e o material didático, na escola popular e na escola complementar, são gratuitos. Art. 146. A instrução pública é estruturada de forma orgânica. Para cada escola primária comum organiza-se uma escola média e uma escola superior. Para essa organização, o determinante é a pluralidade das vocações de vida, sendo que, para a admissão de uma criança em determinada escola, são levadas em conta suas aptidões e inclinações; não a situação econômica, a posição social ou a religião de seus pais. No âmbito municipal, porém, são instituídas, a pedido das pessoas responsáveis pela educação das crianças, escolas populares adaptadas à sua confissão religiosa ou à sua visão de mundo, desde que o ensino, no sentido disposto na primeira alínea deste artigo, não seja prejudicado. A vontade das pessoas encarregadas da educação das crianças deve ser, tanto quanto 36 possível, levada em consideração. As particularidades locais determinam a legislação dos Estados federados, respeitados os princípios de uma lei nacional. Para o acesso de pessoas de poucos recursos às escolas médias e superiores, subsídios públicos são oferecidos pelo Estado central, os Estados federados e os Municípios, para os pais de crianças que sejam consideradas aptas a cursar escola média e a escola superior, até o final de seus estudos. Após tantas declarações, constituições, leis e convenções tratando dos direitos do homem de forma esparsa, é em consequência da Segunda Guerra Mundial que nasce a Organização das Nações Unidas (1945) e sua posterior Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). A ONU é fundada com o objetivo de 1. Manter a paz e a segurança internacionais e, para esse fim: tomar, coletivamente, medidas efetivas para evitar ameaças à paz e reprimir os atos de agressão ou outra qualquer ruptura da paz e chegar, por meios pacíficos e de conformidade com os princípios da justiça e do direito internacional, a um ajuste ou solução das controvérsias ou situações que possam levar a uma perturbação da paz; 2. Desenvolver relações amistosas entre as nações, baseadas no respeito ao princípio de igualdade de direitos e de autodeterminação dos povos, e tomar outras medidas apropriadas ao fortalecimento da paz universal; 3. Conseguir uma cooperação internacional para resolver os problemas internacionais de caráter econômico, social, cultural ou humanitário, e para promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião; e 4. Ser um centro destinado a harmonizar a ação das nações para a consecução desses objetivos comuns. (ONU, 1945, p. 4-5) A Declaração Universal dos Direitos Humanos é, no campo jurídico, o natural desfecho de outras legislações esparsas sobre a questão e o instante mais importante no estudo dos direitos do homem. Em seu preâmbulo, a DUDH afirma a dignidade humana, o ideal democrático, a igualdade de direitos e a liberdade, como sendo um ideal comum a ser atingido por todos os povos e nações, objetivando que todos, através do ensino e da educação, promovam o respeito a esses direitos e liberdades. (ONU, 2017) Os direitos e garantias individuais, como o direito à vida, à liberdade, à expressão, por exemplo, são registrados do artigo 1º ao 21. Do artigo 22 ao 28, estão estampados os direitos sociais do homem, como o direito ao trabalho, à cultura, à segurança social, dentre outros. O artigo 29 trata da obrigação que o ser humano tem para com a sociedade, bem como suas limitações, que só podem existir em virtude da lei e, finalmente, o artigo 30 defende a própria Declaração e sua existência. 37 A DUDH, além de promover os direitos humanos na esfera internacional, também alicerçou as bases dos direitos humanos como conhecemos hoje. Segundo Trindade (2011), em um panorama jurídico, os direitos humanos passaram a configurar uma unidade universal, indivisível, interdependente e inter-relacionada. Sua força enquanto norma foi motivo de debates em seu advento. Silva e Accioly (2002) relatam que, quando da elaboração da Declaração, a Grã-Bretanha defendia a adoção de um tratado, que tornasse compulsório o combate à violação aos direitos humanos. No entanto, os Estados Unidos da América legitimavam apenas a declaração como simples recomendação que não teria força obrigatória frente aos Estados, sem afetar suas soberanias: A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi assinada solenemente em Paris em 10 de dezembro de 1948. Não obstante a ênfase dada ao reconhecimento dos direitos humanos, a Senhora Roosevelt 16 reiterou a posição de seu país, no sentido de que a Declaração não era um tratado ou acordo que criava obrigações legais. Aliás, a afirmativa era desnecessária. Conforme foi visto, não obstante a importância que algumas resoluções tenham tido, a doutrina é unânime ao afirmar que não são de implementação obrigatória. (SILVA; ACCIOLY, 2002, p. 354). Para o direito, uma declaração não possui força normativa, o que quer dizer que tecnicamente, a DUDH é uma recomendação da ONU aos Estados que a compõem, mas não uma lei. No entanto, ainda que sem força de lei, em dezembro de 1966, a Assembleia da ONU adotou dois pactos internacionais de direitos humanos – o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais –, que desenvolveram detalhadamente o conteúdo da DUDH, sendo que, ao primeiro foi anexado um Protocolo Facultativo, atribuindo ao Comitê de Direitos Humanos “competência para receber e processar denúncias de violação de direitos humanos, formuladas por indivíduos contra qualquer dos Estados-Partes”. (COMPARATO, 2008, p. 279). Ou seja, inicia-se, dentro do processo de institucionalização dos direitos do homem a criação de mecanismos de sanção às violações dos direitos humanos 17 . A DUDH foi um marco que possibilitou maior desenvolvimento e discussão com foco nos direitos humanos. A partir dela, têm se desenvolvidos inúmeros tratados, legislações e diretrizes, o que tem permitido um olhar mais valoroso e cuidadoso sobre questões 16 Eleonora Roosevelt, presidente da Comissão dos Direitos do Homem, da ONU, em 1948. (Esposa do ex- presidente dos EUA, Franklin D. Roosevelt) 17 Para Silva (2005), o grande problema está na eficácia das normas de Declarações de Direitos, ainda mais de uma Declaração Universal, que não possui instrumentos próprios para se fazer valer. Para o autor, bastaria ver o nosso continente e o nosso país. 38 relacionadas aos direitos humanos. Uma dessas diretrizes (o Plano Mundial de Educação em Direitos Humanos), por exemplo, voltou-se especificamente para a área da educação em direitos humanos – o que será, posteriormente, analisado neste trabalho, – ajudando na implementação e efetivação destes direitos, o que pode propiciar, no futuro, a mudança do nosso atual cenário jurídico e da nossa vida em sociedade. 2. 2 Uma rápida caminhada pelo cenário histórico dos direitos humanos A existência e o reconhecimento dos direitos humanos, hoje, só são possíveis, porque houve evolução desses direitos durante a história do homem e por causa dos movimentos sociais que a acompanham. O fato é que, se nos apoiarmos em apenas um viés de pensamento para estudarmos os direitos humanos, fatalmente limitamos a sua análise, a sua importância, o que eles representam e, principalmente, os motivos da sua efetividade – ou não – nas sociedades hoje. Uma concepção sócio-histórica de direitos fundamentais explica, por isso, tanto a distância que existe entre o que as autoridades dizem e fazem em direitos humanos quanto à violação, postergação e invisibilização que sofrem, em relação às liberdades de primeira geração, às obrigações do Estado para com as condições de existência econômico social e cultural das populações, assim como sua clara manipulação no trato internacional. A concepção sócio-histórica indica que o fundamento dos direitos humanos está em outro mundo possível, derivado das lutas das diversas sociedades civis emergentes modernas, e na capacidade dessas lutas de conseguir a judicialização de suas demandas e a incorporação de sua sensibilidade específica ou peculiar na cultura dominante e na cotidianidade que se segue dela e potencializa sua reprodução. (GALLARDO, 2014, p. 11-12) A concepção sócio-histórica nos traz, então, uma forma mais rica de metodologia ao estudarmos os direitos humanos, pois, abrange e envolve questões e manifestações filosóficas, históricas, religiosas, morais, políticas e econômicas como forma de construção de uma cultura de direitos humanos. 2.2.1 Os antecedentes e os fundamentos de direitos humanos Conforme pontua Gallardo (2014), os antecedentes dos direitos humanos na história ocidental são aquelas doutrinas filosóficas, ou jurídicas, ou religiosas, que tinham como base a promoção da universalidade e unidade da experiência humana. 39 O pensador romano Cícero (1999, p. 136) (106 a.C. - 43 a.C.) aponta a ideia do direito das gentes (jus gentium) como um direito natural. Em sua obra De Officiis, ele considera a natureza das obrigações que impedem prejudicar o indivíduo: “Ora, por certo isso não se dá apenas por força da natureza, isto é, pelo direito das gentes, mas também em virtude das leis dos povos, que sustentam a coisa pública em cada cidade. Elas preceituam igualmente que não é lícito prejudicar os outros em benefício próprio.” Paulo de Tarso (10 d.C. – 67 d.C.) defende a universalidade humana devido ao fato de perceber os seres humanos como sendo todos filhos de Deus. Para os romanos, em suas cartas, escreve que Deus não tem preferência por ninguém, igualando, dessa forma, povos e indivíduos em sua filosofia/religião cristã, com base no direito natural antigo, assim como Tomás de Aquino (1225-1274) e Luís de Molina (1535-1600). O direito natural antigo é antecedente dos direitos humanos porque considera a humanidade enquanto unidade, capaz de reconhecer o que é justo na ordem do mundo. Por outro lado, há, também, um antecedente dos direitos humanos nos discursos individualistas, como o de Protágoras (480-411 a. C.), na Grécia antiga, que “assinalou que o indivíduo (homem) é a medida de todas as coisas”. (GALLARDO, 2014, p. 36). No século XIV, o Renascimento desenvolve também o conceito do individualismo, defendendo que o ser tinha o poder de criar, construir e julgar, exaltando o indivíduo e sua particularização, sem, no entanto, se opor à ideia do coletivo, ou seja, tratando coletividade e individualidade como ideias que se complementam para fomentar a ideia de espécie humana. É na transição da Idade Média para a Idade Moderna que tal ideia se torna muito evidente: o desejo do indivíduo de se libertar do poder da coroa e da igreja leva à formação de grupos para lutar por reinvindicações individuais, culminando em documentos como a Magna Carta (1215) e o Bill of Rights (1689): Redigida em latim, em 1215, – o que explicita o seu caráter elitista – a Magna Charta Libertatum consistia em disposições de proteção ao Baronato inglês, contra os abusos do monarca João Sem Terra (João da Inglaterra). Depois do reinado de João Sem Terra, a Carta Magna foi confirmada várias vezes pelos monarcas posteriores. Apesar de seu foco nos direitos da elite fundiária da Inglaterra, a Magna Carta traz em seu bojo a ideia de governo representativo e ainda direitos que, séculos depois, seriam universalizados, atingindo todos os indivíduos [...]. (RAMOS, 2014, cap. 3) Mas, segundo Gallardo (2014, p. 17), “como antecedente, não é fundamento, ou seja, matriz desses direitos”, o fundamento original dos direitos humanos, 40 [...] no sentido categorial de base sócio-histórica, e não no sentido da metafísica como causa necessária ou indutiva, não é nenhum discurso filosófico, mas uma matriz: a formação social moderna com domínio patriarcal, burguês e etnocêntrico. (GALLARDO, 2014, p.40) Assim também defende Marx, em especial no que tange à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Marx sustentava que a declaração se tratava de um [...] manifesto contra a sociedade hierárquica de privilégios nobres, mas não um manifesto a favor de uma sociedade democrática e igualitária. [...] Os homens eram iguais perante a lei e as profissões estavam igualmente abertas ao talento; mas, se a corrida começasse sem handicaps, era igualmente entendido como fato consumado que os corredores não terminariam juntos. E a assembleia representativa que ela vislumbrava como o órgão fundamental de governo não era necessariamente uma assembleia democraticamente eleita, nem o regime nela implícito pretendia eliminar os reis. Uma monarquia constitucional baseada em uma oligarquia possuidora de terras era mais adequada à maioria dos liberais burgueses do que a república democrática, que poderia ter parecido uma expressão mais lógica de suas aspirações teóricas, embora alguns também advogassem esta causa. Mas, no geral, o burguês liberal clássico de 1789 (e o liberal de 1789-1848) não era um democrata, mas sim um devoto do constitucionalismo, um Estado secular com liberdades civis e garantias para a empresa privada e um governo de contribuintes e proprietários. (HOBSBAWN, 1996 apud TRINDADE, 2010, p. 28). Para o autor, os movimentos que acompanharam a proclamação dos direitos humanos foram o jusnaturalismo, ou direito natural moderno, o contratualismo também moderno, a economia política burguesa ou liberalismo econômico e o antiestatismo burguês. E foram essas ideias, de pensadores como Hobbes, Locke, Rousseau, Spinoza e Smith, que permitiram a reinvindicação desses direitos por indivíduos, exercendo sua liberdade, propriedade e racionalidade, através do mercado, do governo ou do Estado, fazendo coincidir seus interesses individuais com as finalidades sociais. Segundo Locke (1632-1704), aquele que atenta contra a propriedade individual, se coloca em estado de guerra contra a humanidade, já que o direito à propriedade era considerado por ele como um direito natural. Cabe a crítica aqui no sentido de que o indivíduo imaginado por John Locke não se pode universalizar, pois nem todos são proprietários. São as determinações sócio-históricas particulares que produzem o indivíduo tal como esse projetado pelo pensador. Gallardo (2014, p. 41) aponta que Hobbes (1588-1679) e Spinoza (1632-1677) contribuíram com a gênese desses direitos no sentido de que 41 Ainda que o contratualismo e o constitucionalismo tenham sido empregados para justificar o absolutismo (...), sua utilização mais propriamente moderna foi para limitar a ação do governo (garantismo) e, por isso, pode ligar-se à tese da divisão de poderes própria do Estado burguês e à imagem da “lei por trás da lei”, entendida em termos jusnaturalista, assim como à generalização do cidadão como alguém que pertence por sua vontade a um âmbito político (regime de direito). Para Rousseau (1712-1778), a liberdade seria não a individual, mas a social. Em ambas as ideias, prevalece o sentido de que o indivíduo pertence à sociedade porque assim escolhe fazer. Diferentemente destes, Adam Smith (1723-1790) defende que o Estado deve ter como função a defesa da propriedade e dos contratos, sendo o universal a lógica mercantil, a propriedade capitalista, e não o ser humano. De acordo com Gallardo (2014, p. 38), deve-se atentar, ainda, às ideias de Spencer (1820-1903), que defendem que as decisões políticas não podem interferir no desenvolvimento da sobrevivência do bem dotado, pois, são estes que “constituem a locomotiva do progresso humano, um tipo de desdobramento da evolução cósmica”. Seguindo o raciocínio de Spencer, os direitos existem naturalmente para aqueles que saibam lutar por si próprios e pelos seus direitos, sendo que os demais indivíduos são culpados por sua situação, visto quem não têm potencial para tal. Além de Spencer, Web