UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA JÚLIO DE MESQUITA FILHO - UNESP BACHARELADO E LICENCIATURA EM ARTES VISUAIS FERNANDA AIUB QUESTÕES SOBRE NARRATIVA E VISUALIDADE EM ANIMAÇÃO 2D SÃO PAULO 2017 FERNANDA AIUB QUESTÕES SOBRE NARRATIVA E VISUALIDADE EM ANIMAÇÃO 2D Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” como pré-requisito para a obtenção do grau de Bacharel em Artes Visuais, sob a orientação do Professor Doutor Sérgio Mauro Romagnolo. SÃO PAULO 2017 Dedicado a todos os anônimos da indústria da animação, que possibilitaram seu desenvolvimento. Agradecimentos A minha mãe, Monica Aiub. Ao meu orientador, Prof. Dr. Sérgio Mauro Romagnolo. À minha banca, Prof. Dr. aGNuS VaLeNTe. Aos meus professores de Animação 2D, Cláudio Imamura e Rogério Ferraz da Silva. À Iara Catunda, minha pessoa para discutir animação. À tia LuB que mantinha a ordem no grupo de animação do IA. À Vera Cozani, técnica dos ateliês de BLAV. Aos funcionários da Seção Técnica de Graduação do Instituto de Artes da UNESP. À Ivy Costa, do Escritório de Pesquisa e Internacionalização do Instituto de Artes da UNESP. Ao Instituto de Artes. À Universidade Estadual “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP. À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP. “Come with me And you'll be In a world of Pure imagination Take a look And you'll see Into your imagination” (Willy Wonka) Resumo O presente trabalho visa analisar as técnicas e o processo de produção das animações norte-americanas japonesas, de modo a compará-los. A animação tem início no começo do século XX, com experimentos feitos por artistas, porém, em seu estado inicial, não era viável a produção de animações muito longas, ou de produzir diversas animações em um curto espaço de tempo. Pouco a pouco, vão se desenvolvendo novas técnicas que facilitam o processo de animação, assim como novas tecnologias que possibilitam uma melhora na qualidade do produto final. Este mesmo processo ocorre quase que concomitantemente nos Estados Unidos e no Japão, levando a pequenas diferenças na forma de se fazer animação nos dois países. Nestas diferenças é que reside o escopo desta pesquisa. Palavras Chave: animação 2D, animação tradicional, animação norte-americana, animação japonesa, processos de produção de animação. Abstract The present work seeks to analyze the techniques and the production process of north American and japanese animation. Animation production starts at the beginning of the 20th century, with experiments made by artists, but at the time, it was not viable to produce long animations, or to produce too many animations in a short period of time. With time, new techniques are developed, which make the animation process easier, as well as new technologies that make it possible to achieve a higher quality on the final product. This same process happens almost at the same time in the USA and in Japan, which generates some differences on the way animation is made in both countries. In these differences lies the scope of this research. Keywords: 2D animation, traditional animation, North American animation, Japanese animation, animation production processes. Sumário Introdução p.09 1. História da Animação p.11 1.1 Primórdios p.11 1.2 Primeiros estúdios e o processo de industrialização da animação p.13 1.3 Era de Ouro da Animação Americana p.20 1.3.1 Estúdios Disney e a Revolução Técnica da Animação p.20 1.3.1.1 A Consolidação do Estilo Visual Disney p.30 1.3.1.2 Os 12 Princípios da Animação p.32 1.3.2 Nem só de Disney é feita a Era de Ouro da Animação p.36 1.3.2.1 Estúdios Inkwell – Irmãos Fleischer p.36 1.3.2.2 Warner p.37 1.3.2.3 MGM p.38 1.3.2.4 UPA p.38 1.4 A Idade das Trevas da Animação p.39 1.5 A Renascença da Animação p.40 1.6 História da Animação no Japão p.42 2. Narrativa p.54 3. Técnica atualmente p.56 3.1 Estados Unidos p.56 3.2 Japão p.57 4. Produção p.60 4.1. Produção no modelo norte-americano p.60 4.2 Produção no modelo japonês p.67 Conclusão p.70 Bibliografia p.73 Referências Videográficas p.74 Outras Referências p.75 9 Introdução O presente trabalho se propõe a fazer um estudo comparativo das técnicas e processos de produção de animação nos Estados Unidos e no Japão, partindo de um estudo histórico do desenvolvimento da animação em ambos países. A animação estadounidense começa a se desenvolver a partir dos experimentos fotográficos de Muybridge, no final do século XIX. As primeiras experiências com animação têm uma carga muito mais artística do que comercial. Apenas com a criação de estúdios de animação, onde diversos artistas colaboravam para fazer uma mesma produção, é que se torna viável ter a animação como um produto comercial. Dentre os estúdios que contribuíram para a evolução das técnicas de animação, podemos destacar o estúdio de John Randolph Bray, onde trabalhava Earl Hurd, inventor da técnica de animação em acetato; o estúdio de Raoul Barré, onde trabalhou Bill Nolan, inventor da técnica de uso de cenários panorâmicos; o Inkwell Studios, dos irmãos Fleischer, inventores da rotoscopia; o estúdio de Otto Messmer, criador do Gato Felix; e os estúdios Disney, onde foram sistematizados os princípios da animação, surgiu o pencil test e a prática do storyboarding, entre outros avanços técnicos e tecnológicos que moldaram a animação na época. Os primeiros filmes de animação japoneses datam do início do século XX, porém, a animação japonesa como a conhecemos hoje começou a se desenvolver em meados do século XX, ganhando maior visibilidade com o surgimento de grandes companhias, como a Toei, dedicadas a produção de animação no Japão após a Segunda Guerra Mundial. Uma das grandes diferenças no desenvolvimento da animação nos Estados Unidos e no Japão é quanto à narrativa. Nos Estados Unidos, apenas a partir das animações de Disney, já na Era de Ouro da Animação, é que há uma preocupação em ter uma narrativa coesa, boa parte das animações anteriores focava em ser uma expressão do artista, outras tantas focavam apenas na piada. Disney queria que as pessoas se conectassem a suas personagens, para tanto, achou importante o uso da narrativa. Já no Japão, desde muito cedo, as animações têm uma narrativa. 10 Na animação japonesa, são, ainda, amplamente utilizadas as técnicas tradicionais de animação 2D. Embora, atualmente, grande parte do processo de pintura das animações japonesas se dê por meios digitais, os desenhos base da animação ainda são feitos em papel. Porém, existem algumas diferenças básicas entre as animações japonesas e americanas, como, por exemplo, o uso de diferentes holds (número de vezes que um mesmo quadro é filmado em sequência). Existem, também, algumas diferenças no processo de produção das animações japonesas em relação às americanas, principalmente no que toca ao período de pré-produção, uma vez que uma boa parte das animações no Japão são adaptações de outras obras, passam por etapas diferentes na pré-produção. Além disso, a dinâmica da produção difere bastante, sendo a produção americana um tanto mais segmentada e, em geral, tendo equipes muito mais numerosas. É nestas diferenças existentes no processo de animação americano e japonês que reside o foco deste trabalho, uma vez que, embora a indústria de animação japonesa seja, atualmente, um grande negócio, ainda são relativamente escassos os materiais de pesquisa existentes sobre ela. Grande parte do que se sabe sobre os processos japoneses de animação está em artbooks de animes, que muito raramente são traduzidos para o inglês, e apenas recentemente autores norte- americanos e europeus começaram a lançar livros sobre animação japonesa, que em sua grande maioria não se focam tanto nos aspectos de produção. Academicamente, são poucas as pesquisas no assunto e, em grande maioria, estas costumam se focar em aspectos folclóricos, ou em temas recorrentes às animações japonesas; como esportes, slice of life (animes com temática sobre o cotidiano escolar, familiar ou de trabalho de pessoas comuns), entre outros; e não em suas técnicas e processos de produção, estando aí a importância de se fazer esta pesquisa. 11 1. História da animação 1.1 Primórdios A animação como a conhecemos hoje - desenho animado e montado em forma de filme - é uma arte relativamente recente, tendo pouco mais de um século, e só sendo possibilitada com o advento da fotografia; porém, há desde tempos remotos um desejo humano de passar a impressão de movimento em suas expressões artísticas. A palavra "animação", e outras a ela relacionadas, deriva do verbo latino animare ("dar vida a") e só veio a ser utilizada para descrever imagens em movimento no século XX. Portanto, a despeito de estar inserida no conjunto das artes visuais, a animação tem sua essência no movimento. Em verdade, o movimento tem sido motivo de dedicação por parte de desenhistas e pintores desde os tempos mais remotos. E isso por um motivo definitivo: o movimento é a atração visual mais intensa da atenção, resultado de um longo processo evolutivo no qual os olhos se desenvolveram como instrumentos de sobrevivência (LUCENA JR., 2002, p.28). Levando em consideração que a definição básica de animação é "uma sequência de imagens posicionadas de forma a dar ilusão de movimento", há quem considere que as primeiras animações seriam pinturas pré-históricas, em que animais foram representados com mais patas do que têm na realidade, para dar sugestão de movimentos, como é o caso do javali encontrado em uma das pinturas da Caverna de Altamira, na Espanha. Javali de oito patas encontrado na Caverna de Altamira, na Espanha. Fonte: site História do Pré Cinema 12 Porém, a animação, como ilusão de movimento advinda da rápida sucessão de imagens, requeria elevado grau de desenvolvimento científico e técnico para ser viabilizada enquanto arte, grau este que só será atingido no início do século XX (LUCENA JR., 2002, p.29). Dentre as invenções que levaram ao desenvolvimento inicial das técnicas de animação, podemos citar a lanterna mágica, de Athanasius Kircher, criada ainda no século XVII, o taumatroscópio, o fenaquistoscópio, o estroboscópio, o zootroscópio, o kineograph, também conhecido como flipbook, e o praxinoscópio, todos criados no decorrer do século XIX. Todos estes dispositivos tinham algo em comum: o uso de imagens sequenciais vistas em sucessão e, excetuando o flipbook, a sucessão de tais imagens se dava por meio da rotação de um disco de imagens ou tambor. Em 1878, o fotógrafo anglo-americano Eadward Muybridge fez uma sequência de fotografias com o intuito de comprovar que em determinado momento do galope as quatro patas de um cavalo ficariam suspensas. Esta pesquisa foi publicada em livros no final da década de 1880, que posteriormente se tornaram referência para os animadores. A partir do desenvolvimento de novas tecnologias fotográficas, que levaram ao início do cinema, foram desenvolvidas, pouco a pouco, as técnicas de animação conhecidas atualmente. Uma das primeiras técnicas desenvolvidas foi a substituição por parada de ação, também conhecida como stop-motion, técnica que consiste em manter a câmera fixa e mover objetos que serão fotografados sequencialmente. O primeiro desenho animado de que se tem registro foi Humorous Phases of Funny Faces, do ilustrador James Stuart Blackton, feito em 1906. Em Humorous Phases of Funny Faces, Blackton fazia desenhos em um quadro negro, que eram fotografados, apagados, modificados, e fotografados novamente; técnica muito similar a da animação frame a frame. Porém, o desenho animado de Blackton não foi totalmente produzido frame a frame, apenas alguns instantes se utilizavam desta técnica, em outros, para agilizar o processo, ele usava de recortes de papelão para animar os membros de uma personagem. Somente em 1908, com Fantasmagorie, de Emile Cohl, é que temos o primeiro desenho animado utilizando a técnica de animação frame a frame em sua totalidade. Segundo Lucena Júnior (2002, p.50), na produção de Fantasmagorie, 13 Cohl utilizou-se da caixa de luz para retraçar os desenhos com precisão, e simplificou os traços para agilizar a execução dos desenhos, ambos recursos que viriam a ser parte integrante das técnicas de animação 2D tradicional. Emile Cohl, juntamente a Winsor McCay, elevaram a animação ao status de arte, reavendo o interesse do público que já não via a animação como algo inovador após uma saturação inicial de filmes animados muito similares. Ao contrário de Cohl, McCay traz para animação o seu sofisticado estilo gráfico, previamente estabelecido em suas histórias em quadrinhos, sem comprometer a qualidade de seu design (LUCENA JR., 2002, p.54). Gertie the Dinossaur, de McCay, é considerado o primeiro grande marco da história da animação, pois nele surgem vários dos Princípios da Animação, além de ter impressionado vários jovens artistas que deram continuidade ao desenvolvimento da animação e pavimentaram o caminho para a sua industrialização. 1.2 Primeiros estúdios e o processo de industrialização da animação Durante todo o período inicial do desenvolvimento da animação enquanto forma de expressão artística, os trabalhos em animação eram desenvolvidos de maneira independente. Realizavam-se um ou outro filme, de tempos em tempos, dispendendo-se do tempo que fosse necessário para finalizá-lo. Em geral, os artistas faziam todas as etapas, desde a concepção até a pós-produção, sozinhos, ou com ajudas mínimas em partes do processo, pois o mesmo ainda não era segmentado como nos dias atuais. Assim, a animação, além de ter um processo de produção demorado, não tinha público formado, tornando-a uma produção onerosa demais. Ainda sobre os problemas enfrentados pelos pioneiros da animação, temos: […] Para animação, em particular, os problemas eram mais difíceis. Os primeiros artistas precisavam tornar suas obras interessantes – o que queria dizer, pelo menos, ser vistas enquanto filme, com começo, meio e fim. Paralelamente, tinham de preocupar-se com a concepção gráfica e a realização de movimentos convincentes, afinal, não custa lembrar que estávamos no início da animação e não havia profissionais experientes. Esses artistas eram desenhistas talentosos, mas fazer animação implicava o conhecimento de novas habilidades – a maior parte ainda por ser descoberta. Como se esses problemas não bastassem, a imprensa não dava a devida atenção à animação, bem ao contrário do que sempre ocorreu 14 com o cinema de ação ao vivo. O desafio desses pioneiros, como se percebe, era enorme. Não apenas para desenvolver a animação propriamente dita, mas obter respeito profissional e criar uma audiência "que pudesse apreciar e aceitar os movimentos e expressões de personagens desenhados em papel" (LUCENA JR., 2002, p.60-61). A mudança do cenário da produção de animação nos Estados Unidos só irá acontecer com o surgimento dos estúdios de animação, pouco antes da Primeira Guerra Mundial. A ocorrência da guerra contribui para que se consolide o domínio norte-americano na indústria cinematográfica, uma vez que a produção europeia diminui durante a guerra, fazendo com que não houvesse concorrência, e abrindo espaço para que as produções norte-americanas ocupassem uma fatia do mercado consumidor europeu. Para produzir animação de maneira rápida e barata, a fim de atender a prazos e orçamentos curtos, surgem os estúdios de animação, apoiados em novas técnicas e organização empresarial. Criados e gerenciados por animadores autodidatas no domínio do processo básico de animação, esses empreendedores recrutavam sua mão de obra nos departamentos de arte dos jornais, ensinando aos jovens cartunistas os rudimentos da animação. Só mesmo o grande talento desses artistas (que formarão a primeira geração de grandes mestres) para explicar o excepcional desenvolvimento técnico e artístico da animação entre as décadas de 1910 e 1940. A formação em escolas de belas-artes, com sólida base em desenho e pintura, era o ponto comum entre todos esses precursores. (LUCENA JR., 2002, p.61). Ainda segundo Lucena Júnior: Ganhar em expressividade artística ao mesmo tempo em que se agilizava o tedioso processo de produção na animação, constituía-se numa tarefa determinante a ser devidamente equacionada se se desejasse seu desenvolvimento como um negócio lucrativo. Veremos como, entre a contribuição de fatores de ordem técnica e estética, a introdução de procedimentos administrativos completamente estranhos aos estúdios de arte implicará uma revolução na prática artística, na disseminação de obra de arte (nesse caso, o filme de animação) e sua influência popular (LUCENA JR., 2002, p.61). Uma das grandes preocupações da época quanto à industrialização da animação era a questão da individualidade do artista. Para que houvesse, de fato, uma produção em larga escala, era necessária a uniformização de representações gráficas, o que acarretaria em uma "anulação criativa" do artista, que teria de adotar traços e formas plásticas que não lhe diziam respeito (LUCENA JR., 2002, p.62). 15 O que se estabilizou como prática foi que artistas talentosos e bem aceitos pelo público ocupavam cargos que determinavam as diretrizes para a obra final, atribuindo-lhe unidade formal e coerência, enquanto artistas menos experientes trabalhavam junto aos grandes mestres, em um modelo análogo ao sistema de formação de artesãos existente desde a Idade Média, em que aprendizes frequentavam o ateliê de um mestre até que tivessem condições de trabalhar por conta própria. Ao longo dos anos, foram criadas diversas técnicas para facilitar a produção da animação. John Randolph Bray foi um dos pioneiros em procurar meios mais eficientes de se produzir animação. […] Sua estratégia para viabilizar a produção atacava quatro pontos: primeiro, descartar ou modificar a maneira então vigente de produzir animação com esforços em detalhes proibitivos; segundo, abandonar a produção individual e partir para a divisão do trabalho; terceiro, proteger os processos por meio de patente; quarto, aperfeiçoar a distribuição e o marketing dos filmes (LUCENA JR., 2002, p.63-64). Uma das grandes dificuldades da animação na época era a necessidade de se redesenhar os cenários em todas as folhas. A solução de Bray para este entrave foi imprimir o cenário nas folhas em que seriam desenhadas as personagens, e quando as linhas de personagem se confundiam com o cenário, preencher de branco o interior da personagem. Na mesma época, Raoul Barré, que rivalizava com Bray pelo domínio da produção de animação, contornou a necessidade de se redesenhar os cenários com um sistema de corte das folhas. Nesta mesma época, Bill Nolan começou a utilizar uma técnica existente até os dias atuais, na qual se desenha o cenário em folhas de papel compridas, que são movimentadas por trás do personagem para dar impressão de movimento. Essa solução é, também, utilizada em cenas panorâmicas. Atualmente, mesmo em animação digital, é comum se desenhar cenários compridos que serão movimentados por trás do personagem que caminha em um mesmo lugar. Graças às novas técnicas de animação desenvolvidas na década de 1910, e começo da década de 1920, temos o surgimento das séries de desenhos animados. Tendo a expressão "desenho animado" aparecido com a série The Newlyweds, de 16 Emile Cohl, lançada em 1913, que adaptava para animação os quadrinhos The Newlyweds and Their Baby de George McManus. Ainda na década de 1910, temos o que será o grande advento dentre as novas tecnologias para a produção de animação do início do século XX. Em dezembro de 1914, foi patenteada por Earl Hurd a técnica de desenho sobre folhas de celuloide transparente, também conhecidas, no Brasil, como acetato. O desenho sobre folhas de acetato permitia a completa independência entre cenários e personagens, dando abertura para uma melhor exploração das possibilidades plásticas dos cenários. A partir daí surge um novo nicho de artistas dentro do ramo da animação: o cenarista, artista especializado em idealizar e pintar cenários, de acordo com a identidade visual do projeto. É, também, a partir do uso das folhas de acetato na animação, que surge a possibilidade de se fazer animações que utilizam cenários reais, combinando animação e fotografia, o que posteriormente nos levará a produções que misturam cinema live action e animação, como Uma Cilada para Roger Rabbit, e Space Jam. Uma Cilada Para Roger Rabbit, da Warner Bros. Fonte: site AdoroCinema. 17 Além da maior independência entre elementos da cena que o acetato garantia, outro advento ligado ao acetato na produção de animação foi o uso de cor na animação. Uma vez que o cinema passou a produzir filmes coloridos, as técnicas de desenho e pintura sobre acetato foram imprescindíveis para se produzir animações coloridas, uma vez que o uso de acetato permitia que o cenário fosse pintado uma única vez, sendo apenas os personagens pintados mais de uma vez em acetatos separados para serem animados. Junto ao acetato, outra técnica que irá revolucionar a animação será a rotoscopia, criada em 1915 por Max e Dave Fleischer, que, posteriormente, tornaram- se referência obrigatória para a animação enquanto arte, tendo criado personagens icônicos como Koko, o palhaço, Betty Boop e Popeye (LUCENA JR., 2002, p.69). Betty Boop em uma de suas primeiras aparições. Fonte: Youtube A técnica da rotoscopia consiste em filmar imagens reais, e decalcar sobre cada frame do filme para se obter um movimento mais realista. Até hoje a rotoscopia é utilizada como técnica de animação, embora o procedimento da rotoscopia atual tenha mudado bastante em relação ao usado pelos irmãos Fleischer, que exigia todo um aparato para projetar o filme em um vidro, permitindo o decalque das imagens. 18 O trabalho dos irmãos Fleischer é de tamanha importância, não apenas quanto à questão técnica, mas também ao estilo, sendo uma das vertentes representantes da Era de Ouro da Animação, e sendo seu estúdio de animação uma das poucas produtoras capazes de rivalizar com os estúdios Disney. Até os dias atuais, Betty Boop e Popeye são personagens extremamente conhecidos ao redor do mundo e, recentemente, foi produzido Cuphead, um jogo animado tradicionalmente, que faz homenagem ao estilo de animação dos Fleischer na década de 1920. Cuphead, um jogo altamente influenciado pelo estilo de animação dos Fleischer. Fonte: Página oficial do jogo na Steam. Ainda no começo da década de 1920, surge o conceito de animação elástica. Embora Cohl e McCay já utilizassem esse tipo de recurso, apenas com experiências de animadores como Bill Nolan esse conceito se tornaria um recurso característico da arte da animação (LUCENA JR., 2002, p.72). Na animação elástica, o corpo de uma personagem se comporta como uma borracha, não seguindo as limitações naturais de angulação limitadas pelas juntas. É como se os membros e, muitas vezes, o tronco das personagens, não tivessem ossos podendo se mover de forma fluida, como uma corda. Com o advento das séries animadas, tornou-se comum a repetição de poses, expressões e movimentos das personagens em todos os episódios, o que além de facilitar o processo de produção, dava maior facilidade ao reconhecimento de 19 determinada personagem. Afinal, quem não se lembra do andar peculiar do Pateta ou das poses de luta do Pato Donald? Imagem do Pato Donald em sua clássica pose de luta em uma tampa de garrafa de leite da Alemanha. Fonte: site Milk Cap Mania Além da repetição de poses, expressões e movimentos das personagens, começou-se a limitar o número de cenários utilizados nos episódios de uma determinada série. Desta forma, boa parte do trabalho de ilustração estaria pronto, precisando pensar-se apenas em novos roteiros, montar o episódio e filmá-lo, eventualmente trabalhando em novos movimentos necessários para uma cena específica, o que viabilizou a produção de séries com episódios semanais. Outra transformação que ocorre na época é a supressão da participação direta do animador. Até o momento era comum o animador estar literalmente presente na animação, a partir do advento das séries animadas, as personagens passam a ter maior independência, o que nos leva ao surgimento de vários personagens marcantes, muitas vezes representantes das ideologias de seus criadores. Na mesma época começam a surgir personagens animais de formas antropomórficas, que rapidamente ganharão a simpatia do público, se tornando as maiores estrelas da animação (LUCENA JR., 2002, p.75). 20 1.3 Era de Ouro da Animação Americana 1.3.1 Estúdios Disney e a Revolução Técnica da Animação No final da década de 1920 a animação norte-americana entra na chamada Era de Ouro da Animação. Em 1928, os Estúdios Walt Disney lançam o primeiro desenho animado com som sincronizado: Steamboat Willie, dirigido por Walt Disney e Ub Iwerks. É a partir desse ano, com o desenvolvimento das animações sonoras, que consideram o período chamado de Era de Ouro da Animação. Sobre Steamboat Willie, Lucena Júnior diz: […] Nesse filme estreava o personagem Mickey Mouse, que iria pôr fim ao reinado do gato Felix. No entanto, o sucesso inicial de Mickey não estava em sua personalidade, desfavoravelmente comparada à de Felix, mas no uso do som sincronizado, na sofisticação gráfica e na superioridade da animação (LUCENA JR., 2002, p.105). A Era de Ouro da Animação vai até a década de 1960, tendo seu pico entre as décadas de 1930 e 1940. Durante esse período surgiram diversos personagens de sucesso, como Pica-Pau, Tom & Jerry, Pernalonga, Patolino, e outros personagens das séries animadas Looney Tunes e Merrie Melodies, entre outros. Model Sheet do Pernalonga desenhado por Robbert Givens na década de 1940. Fonte: site John K Stuff. Além do surgimento de personagens icônicos que seriam conhecidos por décadas, a Era de Ouro da Animação foi um período de consolidação para diversos estúdios de animação. Não apenas os Estúdios Disney, que rapidamente se tornariam a grande potência da animação, consolidaram-se neste período, mas vários outros estúdios de grande importância na animação, como a divisão de 21 animação da Warner Brothers, o Inkwell Studios dos irmãos Fleischer, a Metro- Goldwyn-Mayer (MGM), e a United Productions of America (UPA). Apesar de haver um grande avanço na animação anteriormente, com grandes personagens que influenciariam toda uma geração de animadores, como Gato Felix, de Otto Messmer, estes desenhos animados ainda não eram tão sofisticados graficamente quanto os desenhos da Era de Ouro da Animação. Além de serem feitos com técnicas um tanto rudimentares de animação, quando comparadas às técnicas que se tornariam padrão de mercado na "Era Disney". Os primeiros estúdios de animação faziam seus filmes baseados em piadas (gags), cujas sequências eram praticamente de situações para levar de uma piada a outra. À história, em si, não era dedicada maior atenção, para que através dela se capturasse o interesse do espectador (LUCENA JR, 2002, p.99). Boa parte do desenvolvimento da animação durante a primeira década da Era de Ouro da Animação se deve aos Estúdios Disney, sendo fruto da percepção do potencial e do sentido de uma mídia que fará de Walt Disney um fenômeno do universo da animação, aliada à sua extraordinária sensibilidade artística e à noção precisa de cinema enquanto arte, associada, ainda, à exploração como entretenimento. Esses seriam os fatores que levaram Disney e seus artistas a estabelecerem os conceitos fundamentais da animação (LUCENA JR., 2002, p.97). Não é nenhum exagero afirmar que o século XX não teria as feições culturais que o caracterizaram sem a influência do imaginário do mundo de fantasia criado a partir dos desenhos animados de Walt Disney. E esse sucesso se deve, inicialmente, ao enfrentamento dos problemas então existentes para a formulação de uma linguagem que verdadeiramente dotasse a animação de características artísticas próprias - a correta equação envolvendo imagem desenhada e seu movimento no espaço/tempo. A mais pura conquista da arte sobre a tecnologia que lhe permitia existir. Em outras palavras, ao sujeito que possuía o lápis (a tecnologia) foi oferecido um alfabeto (a arte), para que ele pudesse expressar-se. Claro que Disney não partiu do nada. Isso, no entanto, não lhe tira o mérito, pois soube proceder às escolhas indispensáveis, introduzir adaptações e acrescentar novos princípios para compor o repertório básico. Sem levar em conta esses conhecimentos, nem que seja para negá-los, não é possível obter uma animação de qualidade, quer seja pelo método tradicional ou fazendo uso do computador. Disney e seus artistas estabeleceram um paradigma e, como em outros momentos clássicos da arte, tornaram-se uma referência (LUCENA JR., 2002, p.97). 22 Segundo The Illusion of Life, livro de dois animadores dos estúdios Disney, Walt Disney dizia que estava interessado em entreter as pessoas, dar-lhes prazer, em especial, fazê-las rir, ao invés de estar preocupado em se 'expressar' por meio de impressões criativas obscuras (THOMAS; JOHNSTON, 1981, p.23). Para atingir seu objetivo, Disney percebia que a animação, nos moldes como vinha sendo feita, não teria futuro. Mesmo o personagem mais famoso daquele período, o gato Felix, tenderia ao esgotamento de suas estratégias de comunicação (sua personalidade, apesar de elaborada, estruturava-se em cima de piadas visuais externas à essência da animação - o movimento). As figuras se moviam pouco e, de maneira geral, o movimento era pobre. Os animadores dos anos 1920 pareciam ter se esquecido completamente dos filmes maravilhosamente animados de Winsor McCay e, se já não tinham seu talento, somem-se as condições precárias de trabalho, as produções apressadas para atender ao mercado, o uso de poucos recursos gráficos, o desconhecimento da linguagem visual e de recursos de representação. Essa era a situação da animação por ocasião da chegada de Disney. Em síntese, faltava vida - ação, movimentos convincentes; ou seja, faltava animação mesmo. Em uma expressão que ficou famosa, Disney almejava atingir, com a animação, a "ilusão da vida". Para ele, o personagem de animação tinha de atuar, de representar convincentemente; parecer que pensa, respira; convencer-nos de que é portador de um espírito. E, para envolver completamente a audiência, esse personagem tinha, por fim, de estar inserido em uma história (LUCENA JR., 2002, p.99). Para chegar à tal "ilusão da vida" era necessária uma grande mudança no modo em que eram feitas as animações. Para tal, Disney adotou novas práticas e tecnologias em seu estúdio. E foi a adoção de tais práticas e tecnologias que tornou viável a produção do primeiro longa metragem de animação: Branca de Neve e os Sete Anões, lançado em 1937. Uma das práticas iniciadas por Disney, segundo The Illusion of Life, e que até os dias atuais é muito comum em estúdios de animação de todo o mundo, é a pratica de local de trabalho compartilhado. Ao invés de cada animador se isolar em sua sala fechada e produzir dentro de seus próprios padrões, mantendo seu processo criativo em segredo, todos produziam em um mesmo espaço, e Disney, atuando como diretor de animação, quando via algo bom que poderia servir de exemplo para o resto da equipe chamava todos para observarem o desenho (THOMAS; JOHNSTON, 1981, p.31). 23 Sala de animação dos Estúdios Disney em 1931. Fonte: site PBS Além de transformar o estúdio em um espaço de conhecimento compartilhado, Disney desenvolveu algumas novas técnicas e tecnologias que facilitariam a melhora na qualidade técnica da animação. Dentre as tecnologias instauradas nos estúdios Disney estavam: a régua de animação, e a câmera de múltiplos planos. A régua de animação é uma fina barra de metal com pinos para fixação de folhas perfuradas à mesa de luz. A fixação das folhas auxilia no processo de flipagem, movimentação rápida das folhas de animação desenhadas, para que se observe o movimento dos desenhos; além de facilitar o processo de desenho, uma vez que as folhas não se moveriam tanto, e de auxiliar no ajuste de registro no processo de animação por keyframes. Até hoje animadores que ainda trabalham com animação em papel utilizam-se da régua de animação; o padrão de pinos mais conhecido para réguas de animação é o padrão ACME, composto de dois pinos retangulares de bordas arredondadas com um pino circular entre eles. Esse padrão se tornou amplamente utilizado pois a 24 existência de três pinos, em formatos diferentes, diminuiria a incidência de todos os furos da folha se rasgarem de uma só vez durante o processo de animação. Imagem esquemática mostrando diferentes réguas de animação e as medidas dos modelos utilizados na indústria. Fonte: site Cartoon Supplies. Em 1939, Kem Weber projetaria a famosa mesa de animação dos Estúdios Disney, atualmente sonho de consumo de qualquer animador que trabalhe em papel - e também de alguns colecionadores de objetos relacionados ao mundo Disney. Esta mesa era composta por uma bancada reclinável, no centro da qual tem-se um disco de animação, com duas réguas de animação, uma na parte superior e outra na parte inferior do disco, aos dois lados da bancada, existem três prateleiras, para se colocar as pilhas de papéis utilizadas nas cenas que se está animando, duas gavetas menores, com diversas divisões específicas para os materiais de animação, e duas gavetas maiores, que quando puxadas, também revelam diversas subdivisões. 25 Desenho conceitual de Kem Weber para as mesas de animação dos Estúdios Disney. Fonte: site Cartoon Brew. A câmera de múltiplos planos foi uma das invenções mais importantes para se atingir a ilusão de um movimento real em animação. Em um vídeo de 1957, Walt Disney explica como funciona a câmera de múltiplos planos e sua diferença do processo de filmagem de animação com uma câmera convencional. A explicação de Disney começa com ele explicando como era feita a fotografia de animação antes da criação da câmera de múltiplos planos, enquanto é mostrada uma filmagem do processo de fotografia em que uma pessoa coloca folhas de acetato pintadas com imagens do Mickey Mouse caminhando sobre um cenário de floresta, prensa ambas com um vidro e fotografa o frame. No exemplo em questão era utilizado um cenário panorâmico, que era movido pouco a pouco, antes da colocação no novo acetato com imagem do Mickey. 26 Filmagem de uma cena do Mickey Mouse sendo filmada. Fonte: Youtube. Disney discorre sobre como neste exemplo a personagem fica menor quando precisa dar impressão sobre a distância, maior para dar impressão de proximidade, e pode mover-se de forma que dê impressão de volume, porém, uma vez que saia de cena, fica aparente a planicidade do cenário. Depois, há um corte para um segundo exemplo, onde a câmera dá zoom in e zoom out em uma imagem. Disney fala sobre como neste exemplo o movimento de câmera não passa um sentimento de naturalidade, pois todos os elementos da cena aumentam e diminuem em uma mesma proporção, inclusive a lua, e quando você anda em uma estrada olhando em direção à lua, ela não aumenta, nem diminui se você anda de modo a se "afastar" dela. Então Disney explica o funcionamento da câmera de múltiplos planos, e como ela resolve a situação dos elementos que crescem de maneira não natural em cenas em que ocorre aproximação ou afastamento de câmera. O sistema consiste em fotografar de cima várias pinturas a óleo feitas em vidro, sobrepostas a certa distância umas das outras. Tais pinturas são colocadas em um dispositivo, no qual elas têm mobilidade tanto para subir e descer, quanto para se mover lateralmente. 27 A câmera de múltiplos planos. Fonte: Youtube. Os primeiros testes da câmera de múltiplos planos foram feitos ainda na década de 1930, durante a produção de Branca de Neve e os Sete Anões. Devido à complexidade de operação, e ao alto custo, esse dispositivo não era amplamente utilizado, porém, o mesmo conceito utilizado pela câmera de múltiplos planos para compor uma cena é usado atualmente nas várias formas de animação digital, o que demonstra sua importância como inovação técnica na área. Disney foi, também, o primeiro a fazer filmes em cor com a tecnologia Technicolor de combinação de cores primárias em três tiras de negativo. Sendo, a animação Flowers and Trees, de 1932, o primeiro filme colorido, precedendo até filmes live action no uso desta tecnologia (THOMAS, 1997, p.51). Quando às técnicas de animação, em si, Disney instituiu em seu estúdio as práticas do storyboard, pencil test, clean-up, instaurou um programa de treinamento para que melhorasse o nível técnico da arte dos animadores do estúdio, e junto com sua equipe, sistematizou o que viriam a ser os 12 princípios da animação. O storyboard consiste em dispor pequenos rascunhos das ações-chave de cada cena na ordem em que elas ocorrerão na animação, junto à anotações, fixados em um quadro, para uma melhor compreensão visual do roteiro do filme. Durante a etapa de 28 storyboard costuma-se repensar ângulos de câmera e enquadramentos que possam ser melhor aproveitados na situação, consolidando o que deverá ser animado. Storyboard de uma cena de Pinocchio dos Estúdios Disney. Fonte: site Cappa Toons!. De acordo com Diane Disney Miller, "Os Três Porquinhos" também foi a primeira animação a ter um storyboard completo. Originalmente concebido por Win Smith, antigo assistente de Iwerks, o storyboard consistia em uma série de pequenos desenhos e legendas presos a um quadro de cortiça na parede, que mostrava a ação do filme. Rascunhos iniciais e planos em formatos semelhantes a uma história em quadrinhos já haviam sido usados em vários filmes anteriores. Prendê-los à parede permitia que os artistas adicionassem, removessem ou modificassem rascunhos, e, a ver com clareza como várias sequências do filme se relacionavam. O storyboard representava a solução de Disney ao problema de trazer estrutura e ordem ao curta animado. Animações não consistiam mais em cenas juntadas ao acaso, desenhadas por artistas isolados em seus espaços individuais. O diretor de animação poderia editar anteriormente o desenho, traçando o ritmo dos acontecimentos, o ritmo visual, e a exposição, antes que a animação fosse iniciada. O storyboard logo se tornou uma ferramenta padrão na indústria da animação. Hoje, todos os comerciais e filmes live action passam pelo processo de 29 storyboard antes de se começarem as filmagens (SOLOMON, 1994, p.53-54, tradução própria). O pencil test consiste em filmar a animação feita a lápis antes de fazer a arte final, e projetá-la para ver se passaram erros despercebidos durante a flipagem no processo de animação, a fim de corrigi-los antes de finalizar a linha, minimizando as correções necessárias na filmagem final. Walt tinha que ter um meio para ver a animação antes que ela fosse para seus filmes. Ele poderia flipar a cena, e estudar os desenhos na régua de animação, mas o único modo de ele dizer como elas ficariam era tendo os desenhos filmados. Isto era conhecido como "pencil test", e dava, tanto a Walt, quanto ao animador, a chance de estudar a ação e fazer correções antes que a cena fosse entintada e pintada (THOMAS; JOHNSTON, 1981, p. 82, tradução própria). Já o processo de clean-up consiste em arte finalizar o esboço final da animação, após feitas as correções de erros achados durante o pencil test, e incorporadas as possíveis melhoras ao esboço inicial, redesenhando cada frame com linhas "limpas". Em geral, este trabalho ficava a cargo de um assistente de animação, dando origem ao cargo de clean-up men, ou como algumas pessoas chamam atualmente: clean-upper. […] Walt foi rápido em perceber que havia mais vitalidade, imaginação e força em cenas animadas de maneira "grosseira", portanto ele pediu aos animadores que trabalhassem de forma mais solta. O assistente iria "limpar" os desenhos que pareciam tão desleixados, refinando-os em uma linha única que poderia ser traçada pelos responsáveis em passar o desenho para celuloide à tinta. Os assistentes ficaram conhecidos como "clean-up men", e os animadores desenvolveram inovação atrás de inovação, atingindo efeitos na tela que ninguém considerou que seriam possíveis. Em alguns casos, os desenhos eram tão bagunçados que era difícil achar uma personagem dentro do emaranhado de linhas, e os homens que faziam um pato ou um cachorro a partir desses rabiscos e manchas necessitavam um tipo de conhecimento muito especial (THOMAS; JOHNSTON, 1981, p.39, tradução própria). 30 1.3.1.1 A Consolidação do Estilo Visual Disney É senso comum que os Estúdios Disney desenvolveram uma forte identidade visual como marca, afinal, quem não conhece a icônica animação do castelo com o arco formado a partir de uma "estrela cadente", ao som de When You Wish Upon a Star? Ou as famosas orelhinhas do Mickey Mouse? Não é necessária a presença do Mickey, apenas uma representação de suas orelhas já remete a ele. E há quem diga que os Estúdios Disney também desenvolveram todo um estilo visual de animação, que seria facilmente reconhecido por todo o mundo, e influenciaria vários animadores durante todo o século XX e até o presente momento. Porém, há quem diga que o "estilo Disney" é um mito, pois cada filme tem uma identidade visual própria, com referências próprias que geram diferenças estilísticas. Acreditando ou não na existência de um "estilo Disney", é inegável que existem características comuns a boa parte dos desenhos animados produzidos pelo estúdio, como, por exemplo, o modo de desenhar os olhos das personagens. Por mais que existam variações de formato dos olhos de animação para animação, os olhos de muitas das personagens Disney se assemelham. Imagem comparando os olhos de diversas personagens femininas da Disney. Fonte: Pinterest. 31 Para que todos seus artistas desenhassem em unidade estilística, e atingissem o padrão de qualidade esperado por Walt Disney, instaurou-se um programa de treinamento, pensado de forma a maximizar as habilidades dos animadores do estúdio em diversos aspectos de sua arte. Chegando nos anos 1930, Disney toma providências decisivas para viabilizar seus projetos. Começa por contratar mais artistas com sólida formação e institui um programa de treinamento para elevar ao máximo as habilidades de seu pessoal. Para ele, tornara-se óbvio que, se quisesse realizar a melhor animação, o padrão de seus artistas teria de ser o mais elevado. Os estudos incluíam desenho de modelo vivo, anatomia, psicologia da cor, análise de movimentos e princípios de representação. Disney insistia na observação dos atores dos espetáculos de variedades, mímicos, os grandes mestres das comédias dos filmes mudos. Queria o domínio do movimento real, mas não a cópia do natural – a ação desenhada tinha de basear-se na realidade, para daí partir para a caricatura, o exagero, a encenação (LUCENA JR., 2002, p.105-106). Apesar de palestrantes ilustres serem convidados para os treinamentos no estúdio, algo que os animadores consideravam estimulante e enriquecedor, eles diziam que, em geral, aprendiam mais durante o processo de produção com seus companheiros de trabalho, e com Walt Disney (THOMAS; JOHNSTON, 1981, p.72). Pouco a pouco, as características plásticas inerentes à animação Disney foram se desenvolvendo e sendo moldadas por estes animadores, e passando para as próximas gerações de animadores, que seriam treinadas por seus predecessores. Para atingir uma maior expressividade, eram filmados atores, para que os animadores analisassem os movimentos e treinassem fazendo esboços de cada frame do filme, prática até hoje utilizada em animação, não apenas nos Estúdios Disney. Para animações com personagens animais, como Bambi ou Mogli, eram estudados animais vivos, em zoológicos, fazendas ou em seus habitats naturais. Além de haver todo um estudo de composição óssea, de modo a compreender como a diferenciação da estrutura óssea dos animais afeta no movimento de cada espécie, havia também o estudo por meio de vídeos, observando movimentos humanos. Tudo isso para dar maior veracidade aos movimentos animados. No making of de O Rei Leão, os artistas que participaram de sua produção falam sobre a experiência de fazer uma viagem de duas semanas para a África, para pesquisar o movimento dos animais na savana. 32 Graças a todo este esforço no desenvolvimento das técnicas de animação com o objetivo de atingir a excelência Disney torna-se uma referência na área, e garante a hegemonia de seu estúdio por muitos anos. 1.3.1.2 Os 12 Princípios da Animação Qualquer animador que se preze já ouviu falar dos doze Princípios da Animação, e sua importância para alcançar uma ilusão de movimento real. Grande parte dos manuais de animação têm capítulos dedicados aos doze princípios, isso quando o livro não é praticamente inteiro sobre eles. Alguns desses princípios já eram utilizados em animação desde Gertie the Dinosaur, de McCay, outros foram adicionados à lista e sistematizados pelos animadores dos Estúdios Disney, na década de 1930, e amplamente popularizados graças a Frank Thomas e Ollie Johnston que os explicam em seu livro The Illusion of Life, de 1981. Os animadores continuavam a buscar métodos melhores de relacionar os desenhos entre si, e acharam algumas formas que pareciam produzir um resultado previsível. Eles não podiam esperar por sucesso em todas as tentativas, mas essas técnicas especiais de desenhar uma personagem em movimento ofereciam alguma segurança. Enquanto cada um desses processos era nomeado, ele era analisado, aperfeiçoado e discutido, e quando novos artistas se juntavam ao estúdio essas práticas lhes eram ensinadas como se elas fossem regras. Para a surpresa de todos, elas se tornaram os princípios fundamentais da animação (THOMAS; JOHNSTON, 1981, p.47, tradução própria). Os doze Princípios da Animação são: squash and stretch, anticipation, staging, straight ahead action and pose to pose, follow through and overlapping action, slow in and slow out, arcs, secondary action, timing, exaggeration, solid drawing, e, appeal (THOMAS; JOHNSTON, 1981, p.47). Squash and stretch refereciam às deformações que ocorrem durante o movimento da personagem, ou do objeto. O exemplo mais comum é o da bolinha de borracha jogada contra uma superfície. Quando a bolinha bate contra a superfície ela é ligeiramente achatada pelo impacto. Ao animar esse movimento, adicionar antes e após o impacto uma bolinha levemente esticada tornava mais fácil de seguir a ação, e a deixava mais suave, assim, teve início o princípio do squash and stretch. 33 Antecipation é o princípio pelo qual se adiciona uma ação menor em antecipação a uma ação principal, como uma mudança de expressão facial, ou mesmo grandes movimentos, como quando antes de correr uma personagem levanta uma perna, que é um movimento muito comum em animações. Isso é feito para que o público entenda os acontecimentos da cena, tendo uma noção de continuidade entre diferentes ações. Staging tem a ver com a representação da personagem, no sentido teatral. O princípio básico do staging é que qualquer ação deve ser clara o suficiente para que ela seja completamente entendida. As personalidades das personagens devem ser facilmente reconhecíveis, as expressões devem ser vistas, e os humores devem ser construídos de forma a afetar a plateia. Straight ahead action and Pose to pose são, na verdade, duas maneiras diferentes de se animar uma cena. Straight ahead action refere-se à técnica de animar uma ação frame após frame, na ordem em que será filmada, até que se acabe a cena. Já Pose to pose é a técnica de se desenhar as poses inicial e final de uma cena, e, posteriormente, fazer os frames que levarão da pose inicial à final. Esses frames intermediários são chamados de inbetween, e geralmente são feitos por assistentes de animação, que ficaram conhecidos como inbetweeners. Follow through and Overlapping action são artifícios para tornar os movimentos da personagem mais suaves e naturais. O follow through corresponderia a uma extensão de movimento durante a frenagem, de modo a suavizar movimento de parada, como quando o cabelo de uma personagem continua a se mover no instante seguinte ao que a personagem parou de se mover. A overlapping action seria uma ação simultânea em tempo diferente da ação principal, que se sobrepõe à ação principal, como quando uma personagem vestindo uma capa se vira e o tempo de movimentação da capa é diferente do do corpo da personagem; ou como em uma cena de Enrolados, quando a Rapunzel se vira, sua trança se move mais rápido que seu corpo. Os conceitos de follow through e overlapping action estão amplamente relacionados, e, segundo The Illusion of Life, ninguém sabia onde um acabava e o outro começava (THOMAS; JOHNSTON, 1981, p.59). 34 Slow in and slow out são os conceitos de aceleração e desaceleração aplicados ao movimento da animação. Para atingir tal efeito, os inbetweens não são espaçados simetricamente no filme, os extremos da ação tem mais frames, portanto ocorrem um pouco mais devagar, enquanto o meio da ação tem menos frames, passando em poucos instantes quando a cena é assistida. Arcs é considerado por muitos um dos mais importantes princípios da animação, pois é o princípio que torna os movimentos em animação mais orgânicos. Observando os movimentos de seres vivos, são poucos os que se movimentam de forma truncada. Tais movimentos são, em geral, ligados a máquinas. Seres vivos, por sua vez, fazem movimentos levemente circulares. Esse princípio muda radicalmente a forma de animar o movimento de personagens, que nos primórdios da animação se moviam de maneira linear e rígida, não passando naturalidade. Secondary action são ações adicionadas à ação principal para reforçar uma ideia. Essas ações não devem se sobrepujar à ação principal. Uma ação secundária que se torna dominante, ou não era a escolha certa para a cena, ou está com o staging errado. É um dos princípios mais difíceis de se utilizar, justamente pela necessidade de um certo cuidado para que a ação secundária não prevaleça, porém sem fazer com que ela seja irrelevante demais para a cena. Timing é um princípio tão importante em animação que, em 1981, Harold Whitaker e John Halas lançaram um livro apenas sobre o timing na animação, e, até hoje, Timing for Animation continua sendo um dos livros mais importantes no estudo de animação. O timing está ligado a quantidade de desenhos utilizados para representar uma ação, e sua distribuição no processo de filmagem. Por convenção, animações são filmadas a uma taxa de vinte e quatro frames por segundo, o que significa que a cada segundo de filme existem vinte e quatro imagens. Porém, é comum que as animações sejam filmadas em hold2, ou em "dois", que consiste em fotografar duas vezes a mesma imagem. Além de reduzir o tempo de trabalho, a animação em hold2 deixa os movimentos lentos mais suaves, e os movimentos rápidos se destacam mais em hold2 do que em "uns". O timing é fundamental tanto para dar a ideia de que um movimento está submetido às leis da física, quanto para definir os traços de personalidade das personagens em cena. 35 O número de desenhos usado em qualquer movimento determina o tanto de tempo que uma ação ficará na tela. Se os desenhos são simples, claros, e expressivos, o ponto da história pode ser colocado rapidamente, e isso era tudo o que preocupava os animadores, inicialmente. Timing nessas animações se limitava a movimentos rápidos e movimentos lentos, com alguns movimentos acentuados demandando tratamento especial. Mas as personalidades que estavam se desenvolvendo eram definidas mais por seus movimentos que por sua aparência, e variando a velocidade desses movimentos determinava se uma personagem estava letárgica, excitada, nervosa, relaxada. Nem atuação, nem atitude podiam ser retratadas sem prestar extrema atenção ao timing. A complicada relação que veio com as secondary actions e overlapping movements pediu por extensivos refinamentos, porém, até mesmo os movimentos mais básicos mostravam a importância do timing, e a necessidade de mais estudo. […] (THOMAS; JOHNSTON, 1981, p.64, tradução própria). Exaggeration consiste em exagerar ações e emoções das personagens. A ideia por trás do exagero é ajudar a evocar um ponto. Disney queria que as emoções dos personagens mexessem com os espectadores e por meio da "exageração" era mais fácil transmitir os sentimentos como se fossem algo real. Havia alguma confusão entre os animadores quando Walt primeiro pediu por mais realismo e depois criticou o resultado por não ser exagerado o suficiente. Na cabeça do Walt provavelmente não havia diferença. Ele acreditava em chegar ao âmago de qualquer coisa, e desenvolver a essência do que lá ele achasse. Se uma personagem precisa estar triste, faça-a ainda mais triste; se precisa ser brilhante, faça ainda mais brilhante; preocupada, ainda mais preocupada; selvagem, ainda mais selvagem. Alguns artistas haviam sentido que "exageração" significava um desenho mais distorcido, ou uma ação tão violenta que fosse perturbante. Eles descobriram que haviam interpretado errado. Quando Walt pedia realismo, ele queria uma caricatura do realismo. Um artista analisou corretamente quando ele disse "Não acho que ele queira dizer 'realismo'. Acho que ele quis dizer algo que seja mais convincente, que faça maior contato com as pessoas, e ele só disse 'realismo' porque coisas 'reais' fazem.... Inúmeras vezes [na animação] a personagem faria algo não convincente, ou mostrar como o animador era esperto, e isso não era real, isso era falso." Walt não aceitaria algo que destruísse a habilidade das pessoas de acreditar naquela situação, mas ele raramente pedia ao animador para diminuir a intensidade de uma ação se a ideia estivesse de acordo com a cena (THOMAS; JOHNSTON, 1981, p.65-66, tradução própria). 36 Solid drawing se refere ao desenho com profundidade. Mesmo os desenhos 2D podem passar a noção de volume, e era isso que os animadores nos Estúdios Disney buscavam quando se falava em solid drawing. A perspectiva e a ideia de que as personagens no desenho têm volume tornam a animação mais crível. Appeal se relaciona muito com o design, a animação não devia ser apenas algo com o que as pessoas consigam se conectar, mas também algo que elas queiram ver. Algo bonito, de qualidade, charmoso, que traga a atenção do expectador para si, e consiga mantê-la. Algo grotesco muitas vezes chama a atenção pelo choque inicial, mas, após o impacto, não costuma prender a atenção, posto que não gera identificação (THOMAS; JOHNSTON, 1981, p.68). 1.3.2 Nem só de Disney é feita a Era de Ouro da Animação Apesar dos Estúdios Disney terem moldado a forma de produção de animação durante a Era de Ouro da Animação norte-americana graças ao estudo e dedicação de seus funcionários, eles não reinaram absolutos como um monopólio naquela época. […] se tecnicamente os outros estúdios poderiam contar com os mesmos recursos de Disney, restava o desafio de propostas estéticas alternativas. E será nesse campo que verificaremos o despertar vertiginoso de contribuições plásticas e narrativas que afastarão o fantasma do monopólio também estilístico na animação. Por um bom tempo a disputa ocorrerá primordialmente no âmbito artístico, um sinal de evidente maturidade para a tão jovem arte da animação (LUCENA JR., 2002, p.121). 1.3.2.1 Estúdios Inkwell - Irmãos Fleischer Como apontado previamente, os Estúdios Inkwell dos irmãos Fleischer continuariam a ser um dos estúdios importantes durante a Era de Ouro da Animação. Inicialmente, o estúdio dos irmãos Fleischer será a grande força a contrapor-se ao domínio total de Disney. Além da tradição de desenvolvimento técnico à qual já nos referimos (invenção da rotoscopia), os Fleischer contavam com personagens de grande apelo, a exemplo da charmosa e sensual Betty Boop e do extravagante e caricaturesco marinheiro Popeye. […] (LUCENA JR., 2002, p.121). 37 Tanto Betty Boop quanto Popeye atraíam a atenção do público, não com enredos super elaborados, mas com seus visuais distintos e movimentos plásticos, que destoavam bastante em relação aos curtas lançados por Disney. Porém, após o lançamento de Branca de Neve e os Sete Anões, a distribuidora dos filmes dos Fleischer os pressionou para que fizessem produções similares às de Disney, o que deu origem ao não inspirado longa metragem Gulliver, de 1939 (SOLOMON, 1994, p.79-80). Os Fleischer só voltariam às suas experimentações com Superman, de 1941, feito para a DC Comics. O mundo dos super-heróis permitia a eles fazer movimentos que não são possíveis quando se busca uma ilusão de realidade, e contar com uma personagem já consolidada e de grande prestígio no país ajudou bastante no sucesso da série animada. Tentativas como essa e aquelas de Betty Boop e Popeye vinham demonstrar que existia vida no cinema de animação para além dos princípios formulados por Disney e seus artistas. Dependendo do objetivo expressivo dependido (eliminar o drama e evitar o filme de longa-metragem) e desde que se afastasse de movimentos plasticamente elaborados (buscando na limitação a identidade do personagem), havia, sim, condições de alcançar resultados artísticos compensadores e mesmo bastante criativos. Os animadores independentes que trabalhavam com imagens abstratas há algum tempo seguiam nessa linha. O desafio estava na animação de personagens (LUCENA JR., 2002, p.124) 1.3.2.2 Warner A divisão de animação dos Estúdios Warner fica mundialmente conhecida pelos seus personagens tresloucados. No final da década de 1930, começo da década de 1940, a Warner irá contratar parte de um grupo de artistas que havia trabalhado previamente na Disney, que viriam a criar os Looney Tunes. No quesito técnico, os animadores que foram para Warner optaram por explorar os extremos dos 12 Princípios da Animação utilizados nos Estúdios Disney, de modo à atingir um efeito cômico pelo exagero. Na questão visual, a escolha de estilo da Warner foi por personagens mais esguios e desengonçados, indo em direção a uma aparência que denotasse agilidade, e os cenários são simples, servindo apenas para situar a ação (LUCENA 38 JR., 2002, p.126). Enquanto na narrativa, eles escolheram abordagens inovadoras, utilizando-se do domínio do tempo, manipulando-o com maestria, justapondo sequências agitadas com momentos de absoluta calma para atingir o efeito cômico desejado (LUCENA JR., 2002, p.126-127). 1.3.2.3 MGM A Metro-Goldwyn-Mayer, assim como a Warner, contratou para sua divisão de animação alguns dos animadores que saíram dos Estúdios Disney, dentre eles a dupla Bill Hanna e Joe Barbera, criadores de Tom & Jerry, que depois de saírem da MGM formariam seu próprio estúdio Hanna-Barbera, conhecido por desenhos como Os Flintstones, Os Jetsons, Corrida Maluca, Scooby-Doo e Smurfs. Em Tom & Jerry temos um humor muito similar ao utilizado nas produções da Warner, intercalando cenas agitadas e cenas de extrema calma. Por opção dos autores, não há uso de diálogos, o que impõe um alto nível de animação para suprir a ausência de falas (LUCENA JR., 2002, p.128). As outras produções em animação da MGM na época, incluem o cachorro Droopy, e os ursos George e Júnior, criados por Tex Avery, e os bulldogs Spike & Tyke, originalmente personagens de Tom & Jerry que ganharam seu próprio spin-off dirigido por Bill Hanna e Joe Barbera. 1.3.2.4 UPA De todos os estúdios de animação atuantes durante a Era de Ouro da Animação, o que causou a maior revolução na animação foi o United Productions of America (UPA). Os artistas que formaram a UPA apoiavam-se na negação, tanto do estilo quanto dos fundamentos dos Estúdios Disney, vindo, posteriormente, a surgir a expressão "estilo UPA", para se referir às animações da UPA (LUCENA JR., 2002, p.128). […] A aposta dos artistas da UPA era arriscada justamente por limitar esse espectro, embora, por outro lado, tivesse o grande mérito de propiciar experimentações com configurações plásticas até então impensáveis no modelo de figuras rotundas e sólidas, baseadas no naturalismo, de Walt Disney. As configurações da UPA se apoiavam nas mais recentes conquistas estéticas da arte moderna surgidas a partir do 39 cubismo, com ênfase na geometria e nas linhas simples encontradas nas telas de Picasso, Matisse, Modigliani, Flee, entre outros (LUCENA JR., 2002, p.129). O estilo chapado de desenho da UPA, com formas angulares, embora não fosse o mais adequado para se dar ideia de movimento em animação, pois limitava os possíveis movimentos ao plano bidimensional, foi uma das grandes influências para a ilustração do século XX, e começo do século XXI. Posteriormente, os Estúdios Disney fariam experimentações em animação com formas chapadas, similares às utilizadas pela UPA, animadas dentro dos seus 12 princípios, o que lhe rendeu o Oscar com Toot, Whistle, Plunk and Boom, de 1953. 1.4 A Idade das Trevas da Animação Dos anos 1960 aos anos 1980, alguns considerando inclusive o final dos anos 1950 nesse período, temos a chamada "Idade das Trevas da Animação". Atualmente boa parte das animações da época são consideradas "clássicas", mas na época elas não eram um sucesso de público estrondoso. Vários fatores levaram a essa situação. Primeiramente, o sistema de estúdios corrente começou a sucumbir, as divisões de animação da Warner e da MGM foram fechadas devido a cortes no orçamento. Os curtas de animação para cinema deixaram de existir, e as animações passaram a ser exibidas na televisão, focando no público infantil. Para suprir a necessidade de uma produção rápida e com baixos orçamentos, o uso de animação limitada deixa de ser uma escolha artística, e passa a ser regra, levando a uma considerável queda na qualidade das produções. A mudança de público alvo das animações leva a outros dois fatores: as animações passam a ser duramente censuradas, pois grupos de pais norte- americanos faziam pressão para que não se pudesse haver violência ou uso de determinadas palavras, o que gera os tropes "The Complainer is Always Wrong" e "Never Say 'Die'", e faz com que animações como Looney Tunes acabem severamente censuradas, perdendo sua essência. 40 O outro fator relevante para que se considere esse período a Idade das Trevas da Animação, que tem relação com a mudança de público alvo, é uma produção massiva de animações que serviam ao propósito de vender produtos. Nessa época surgem séries como My Little Pony, criada por Lauren Faust para a Hasbro, fabricante de brinquedos norte-americana, para promover a linha de pôneis em miniatura voltada para garotas que a Hasbro havia começado a vender alguns anos antes. Um último fator que contribui para que se considere esse período pobre no desenvolvimento de animação nos Estados Unidos é que muitas das séries na época se apoiavam em piadas recorrentes e reuso de conceitos de episódios prévios, uma vez que havia um esgotamento criativo após alguns episódios, mas a série precisava continuar sendo exibida. Nessa mesma época, devido a mudanças no gosto do público, as animações dos Estúdios Disney tiveram que sofrer uma reformulação temática, depois de A Bela Adormecida ser um fracasso de bilheteria. Já em seu filme seguinte, 101 Dálmatas, há uma mudança perceptível de cenário para algo contemporâneo. Isso afastaria Walt Disney das produções de longa metragem, pois o mesmo havia se voltado ao planejamento de parques temáticos, depois de sentir que suas ideias não agradavam tanto o público da época. 1.5 A Renascença da Animação Da segunda metade dos anos 1980 até os anos 2000 há o que alguns chamam de A Renascença da Animação, ou A Era de Prata da Animação norte- americana. Nesse período há uma ascensão na qualidade das animações para televisão, por influência das primeiras séries de animação originais para TV dos estúdios Disney. Nessa época, também, surgem novos estúdios, como a Cartoon Network, que além de produzir tem seu próprio canal de televisão, e a Nickelodeon, nos mesmos moldes. Há também a reabertura da divisão de animação da Warner, agora com 41 alguns ex-animadores da Hanna-Barbera e produção de Steven Spielberg, que culminaram em grandes sucessos como Tiny Toons e Animaniacs. Animaniacs, da Warner Bros. Fonte: site Sick Chirpse. As novas animações para a televisão trazem de volta um humor mais tresloucado como das séries antigas de Looney Tunes, tendo, inclusive a Disney, aderido a esse tipo de humor em algumas de suas séries animadas dos anos 1990, como Bonkers, ou Timão e Pumba, série spin-off de O Rei Leão. Bonkers. Fonte: site TV Tropes. 42 Já no cinema, após um período sem grandes sucessos, e depois de ver seu monopólio ameaçado pelas produções de Don Bluth, a partir de 1989, com A Pequena Sereia, os Estúdios Disney voltam a crescer, vendo suas produções se tornarem sucessos cada vez mais estrondosos de bilheteria, até que em 1994, com o sucesso de O Rei Leão, já era claro que os Estúdios Disney haviam, novamente, se consolidado como o padrão de qualidade para a animação norte-americana. O Rei Leão. Fonte: site AdoroCinema. 1.6 História da Animação no Japão Quando se fala em anime (アニメ) é comum incorrer no erro de pensar que a palavra remete especificamente em animação japonesa. Porém, anime nada mais é que a abreviação da palavra animēchon (アニメーション), que seria a transliteração direta de animation para o japonês. Portanto, no Japão, qualquer animação é chamada de anime, independentemente de seu país de origem. Há controvérsias sobre quando se origina a animação japonesa, sendo a mais antiga animação de que se tem notícia no Japão o curta intitulado Katsudō Shashin, datado de 1907, uma descoberta recente, tendo sido encontrado apenas em 2005. Porém, como muito do que foi produzido em animação no começo do século XX no Japão foi destruído, ou se desintegrou com o tempo, não se pode afirmar exatamente um ponto em que começa a história da animação japonesa (CLEMENTS; MCCARTHY, 2015, p.169). 43 Katsudō Shashin Fonte: Youtube. 1917 é o ponto em que se começa uma produção comercial de animação no Japão, sendo Dekobo Shingacho - Meian no Shippai (O Novo Livro de Figuras do Pequeno Deko - Falha de um Grande Plano), de Shimokawa Oten, a primeira animação a ser comercialmente lançada. É possível, porém, que esse não seja o primeiro filme animado de Shimokawa. Assim como nos estágios iniciais da animação americana, a animação japonesa é, inicialmente, feita por artistas já consolidados em outras áreas. Shimokawa Oten e Kouchi Junichi trabalhavam na área editorial como ilustradores antes de começarem a fazer animações, e Kitayama Seitaro era, inicialmente, um aquarelista. Os filmes dessa primeira década da animação japonesa diferiam bastante em técnica, alguns eram feitos com a mesma técnica de desenhar com giz sobre uma lousa utilizada por James Stuart Blackton em Humorous Phases of Funny Faces, enquanto outros eram feitos utilizando a técnica de cut-out em papel, outros ainda, eram desenhados diretamente sobre película. Porém, apesar de muito diferentes em técnica do que se faz em animação no Japão atualmente, em conteúdo eles não diferem muito dos temas mais atuais de animação japonesa. Em geral, essas animações tinham como temas histórias sobre samurais, contavam lendas japonesas, mostravam temas do cotidiano, ou mesmo, promoviam o serviço postal japonês. 44 A animação é um trabalho demorado, e naquela época, não muito rentável, então, eventualmente, seus pioneiros deixariam a animação de lado, voltando a trabalhar com ilustração, ou partindo para outras formas de arte, como cinema live action (CLEMENTS; MCCARTHY, 2015, p.170). Durante essas décadas iniciais, em que os filmes eram mudos, as animações japonesas eram exibidas acompanhadas, não apenas música ao vivo, mas também, de um narrador, chamado benshi (弁士). Os benshi advêm da cultura do teatro de bonecos japonês e, posteriormente, das exibições utilizando a lanterna mágica (CLEMENTS; MCCARTHY, 2015, p.170). Segundo o historiador de cinema japonês Yomota Inuhiko, era comum na época, que os benshi, com a ajuda do profissional de projeção, modificasse o tempo das cenas, modificando a velocidade de projeção para acomodar seu tempo de fala. Ainda segundo Yomota, era comum que as pessoas fossem ao cinema especialmente para ouvir a interpretação do benshi, sem necessariamente ter interesse no trabalho de um determinado cineasta (BOEHM, 2017). Devido a essa cultura da narração e comentários, algumas das animações japonesas da década de 1910 que sobreviveram até os dias atuais são consideradas incompletas, por terem espaços para os comentários do benshi. Comentários esses que se perderam com o tempo (CLEMENTS; MCCARTHY, 2015, p.170). No final da década de 1920, porém, os animadores japoneses começam a fazer experimentações com som. A primeira animação japonesa com som foi Kujira (Baleia), de Ofuji Noburo, em 1927, que consistia em uma animação da silhueta de uma baleia sincronizada ao som de William Tell's Overture, de Gioachino Rossini. Em 1933, é lançada a primeira animação "talkie", animação com som pré- gravado e sincronizado, nos moldes utilizados até hoje para áudio, também conhecido por afureko (アフレコ, do inglês after record): Chikara to Onna no Yo no Naka (Em um Mundo de Poder e Mulheres), de Kenzo Masaoka, que contava a história de um homem tendo um romance com sua secretária após se cansar de sua esposa dominadora. 45 Chikara to Onna no Yo no Naka. Fonte: Tumblr. Pouco depois, em 1934, Kenzo Masaoka lança Chagama Ondo (Dança da Chaleira), que foi a primeira animação japonesa a ser feita com o uso de folhas de celuloide ao invés de papéis translúcidos. Chagama Ondo conta a história de um grupo de tanukis que invade um templo para roubar o novo gramofone e os discos com músicas da moda utilizados pelos monges (CLEMENT; MCCARTHY, 2015, p.171). Chagama Ondo. Fonte: Youtube. A cor ainda demoraria a chegar às animações japonesas, sendo Boku no Yakyū (Meu beisebol), de Megumi Asano, a primeira animação colorida a ser lançada no Japão, apenas em 1948 (CLEMENT; MCCARTHY, 2015, p.171). Ainda na década de 1930, a indústria da animação começa a se expandir no Japão e, com o tempo, as animações começam a ser utilizadas como forma de propaganda bélica, gerando todo um gênero de animação japonesa chamado de Wartime Anime. (CLEMENT; MCCARTHY, 2015, p.171). 46 O primeiro filme longa metragem animado no Japão foi Momotarō: Umi no Shinpei (桃太郎 海の神兵, "Momotarō, Deuses Guerreiros do Mar", também conhecido como "Momotarō, Marinheiros Divinos"), de 1945, produzido por Mitsuyo Seo à pedido da Marinha Japonesa (CLEMENT; MCCARTHY, 2015, p.424). Momotarō: Umi no Shinpei. Fonte: Youtube. Além de propaganda a favor das forças armadas japonesas, eram comuns, também, algumas animações feitas como antipropaganda americana na época, como Omochabako series dai san wa: Ehon senkya-hyakusanja-rokunen (Série Caixa de Brinquedos Número Três: Livro de Imagens 1936) também conhecida popularmente como Evil Mickey Attacks Japan, de 1934. Omochabako series dai san wa: Ehon senkya-hyakusanja-rokunen. Fonte: site LACOSACINE. 47 Após a Segunda Guerra Mundial começam a surgir alguns dos estúdios conhecidos até os dias atuais. O primeiro deles foi a Japan Animated Films (日本動画映画 Nihon Dōga Eiga), hoje em dia conhecida como Toei Animation, fundada em 1948, comprada pela Toei Company, em 1956, e renomeada Toei Animation (東映動画株式会社 Tōei Dōga Kabushiki-gaisha). Em 1958, a Toei Animation lançaria a primeira animação longa metragem colorida japonesa: Hakujaden (A Lenda da Serpente Branca), que chegaria aos Estados Unidos três anos depois, em 1961. Embora Hakujaden tenha ganho um prêmio de honra no Festival de Filmes Infantis de Veneza em 1959, sua recepção na estreia americana não causou grandes impressões (CLEMENT; MCCARTHY, 2015, p.478). Ainda em 1958, a Toei começa a produzir Boku no Son Goku (Son Goku - O Rei Macaco, também conhecido como Jornada para o Oeste) de Osamu Tezuka, que já havia se tornado um grande nome dos mangás. A falta de sucesso comercial da estreia americana de Boku no Son Goku foi o que fez com que a indústria percebesse que americanos não aceitariam a animação japonesa de modo algum (CLEMENT; MCCARTHY, 2015, p.314-315). A experiência de fazer esse filme inspirou Tezuka a abrir sua própria empresa de animação, a Mushi Production, também conhecida como Mushi Pro, pela qual ele iria produzir algumas das adaptações de suas grandes obras para animação, como Tetsuwan Atom (Astro Boy), exibida, inicialmente, pela TV Fuji, com estreia no ano novo de 1963, eventualmente mudando de emissora para NHK, que foi a primeira série de animação japonesa a ser exibida fora do país, e por isso, é muitas vezes, erroneamente, chamada de "primeira série de animação japonesa", e, Ribon no Kishi (A Princesa Cavaleiro), exibida pela TV Fuji de 1967 a 1968. 48 A Princesa Cavaleiro. Fonte: site Acervo Raro. Apesar de não ser a primeira série de animação japonesa, Tetsuwan Atom é a primeira série a utilizar técnicas de animação limitada, para conseguir produzir um grande número de episódios em um curto período de tempo. Até hoje, uma boa parte da produção japonesa de animação se utiliza de tais técnicas. Com o sucesso de Tetsuwan Atom, ficou provado que era viável produzir animação para a televisão, e diversas emissoras começaram a exibir animações, nos mais variados gêneros. No final da década de 1960, Tezuka sai da Mushi Productions e funda a Tezuka Productions. Sem seu fundador, eventualmente, a Mushi Productions fecha, e alguns de seus ex-funcionários fundam duas das mais famosas produtoras de animação japonesa até hoje conhecidas: a Mad House e a Sunrise (BENDAZZI, 2017, Volume III). Nos anos 1970 a produção de animações no Japão continua seu crescimento vertiginoso, com várias estreias importantes, como Alps no Shōjo Heidi (Heidi, Garota dos Alpes), de 1974, produzida pelo estúdio Nippon Animation (日本アニメーション) e exibida pela Fuji TV; e, mais tarde, em 1979, dois lançamentos das que seriam as séries animadas mais importantes do Japão: a primeira série de Mobile Suit Gundam, de 1979, produzida pela Sunrise, e o retorno de Doraemon, produzido pela Shin-Ei Animation, também lançado em 1979. Pode-se 49 dizer que tanto Gundam quanto Doraemon são patrimônios culturais do Japão, tendo séries para televisão até hoje, e, sendo duas das marcas mais rentáveis na venda de merchandise no Japão. Doraemon. Fonte: site TV Tropes. Na década de 1980, temos a que seria considerada a "Era de Ouro da Animação Japonesa". Em 1981 o Estúdio Pierrot adaptaria o mangá de Rumiko Takahasi: Yurusei Yatsura, para animação, que se tornou um grande sucesso e instaurou a prática de séries de animação para televisão no Japão terem músicas pop como música de abertura e encerramento, amplamente utilizada até os dias atuais. Urusei Yatsura. Fonte: site Furinkan. 50 Em 1983 é lançado Captain Tsubasa, a animação que moldaria a fórmula do anime de esportes: com movimentos altamente improváveis de acontecer em um jogo real, trabalho em equipe e, principalmente, o famigerado "o poder da amizade". "O poder da amizade" é um tema recorrente em animações japonesas de todos os gêneros, não apenas em animes de esportes. Em séries de esportes ele se manifesta no companheirismo para a superação de obstáculos, ou para superação de antigos traumas relacionados ao esporte em questão. Já em histórias de aventura ele pode se manifestar de diferentes maneiras, inclusive como a motivação de uma personagem que aparentemente já não conseguia mais lutar em se levantar e lutar para proteger seus amigos, até mesmo arriscando a própria vida. "Poder da amizade": reencontro de Luffy e Bon Clay em One Piece. Fonte: site Amino Apps. Ainda nos anos 1980, com o advento dos aparelhos de VHS, os estúdios japoneses começaram a prática de criar episódios lançados diretamente em vídeo, porém, como o termo direct-to-video era mal visto no mercado ocidental, eles cunharam o termo Original Video Animation (OVA), até hoje utilizado para se referir a episódios lançados diretamente em vídeo. Atualmente, boa parte dos OVA's são extras nas coleções de DVDs e Blu-rays, ou vêm como brindes junto aos mangás que deram origem a determinada série. Com o advento da internet surgirá, ainda, o termo Original Net Animation (ONA), que se refere a animações que são lançadas 51 diretamente na internet, e não por meio de emissoras de televisão. (CLEMENT; MCCARTHY, 2015, p.32). A década de 1980 viu, ainda, o primeiro uso de CGI (Imagem gerada em computador) em uma animação, em Golgo 13, de 1983. Em 1984 foi lançado o primeiro longa metragem do que viria a ser o prestigiado Studio Ghibli: Kaze no Tani no Nausicaä (Nausicaä do Vale do Vento). Ainda em 1984 aconteceu outro grande evento para a animação japonesa, a fundação da Daikon Films por um grupo de estudantes universitários, futuramente a Daikon Films viria a se tornar a Gainax, estúdio responsável por Shinseiki Evangelion (新世紀エヴァンゲリオン, Neon Genesis Evangelion, ou apenas Evangelion), famosa série dos anos 1990 (CLEMENT; MCCARTHY, 2015). Em 1986, a Toei Animation produziu a adaptação do mangá Dragon Ball, de Akira Toriyama, até hoje um dos animes mais populares de todos os tempos. Sendo Dragon Ball a grande influência quando se trata de mangás shōnen, gênero de aventura voltado para garotos entre 6 e 15 anos, e, por consequência, sendo uma grande influência para as animações do mesmo gênero. Goku, protagonista de Dragon Ball. Fonte: site IGN Brasil. 52 Após o sucesso de Dragon Ball, a Toei Animation produziu a adaptação de diversos shōnens de sucesso para animação, como Saint Seiya (聖闘士星矢, Seinto Seiya, no Brasil conhecido como: Os Cavaleiros do Zodíaco), de Masami Kurumada, também de 1986, que fez grande sucesso não apenas no Japão, mas também na França e no Brasil; Slam Dunk, de Takehiko Inoue, lançado em 1993; e um dos shōnens de maior sucesso da geração posterior a de Dragon Ball: One Piece, de Eiichiro Oda, de 1999. Além de shōnens, a Toei Animation produziu inúmeros animes de outros gêneros, como Bishōjo Senshi Sailor Moon (美少女戦士セーラームーン, também conhecido apenas por Sailor Moon), de 1992. Slam Dunk, de Takehiko Inoue. Fonte: site MyAnimeList. Apesar de várias séries mundialmente famosas terem sido produzidas nos anos 1990, nesta década a animação japonesa entra em declínio, pois devido à recessão de 1991 muitas produções perderam investidores e diversos estúdios tiveram que fechar. Desde os anos 1980, começou um movimento de diversificação do material base dos animes, que muito comumente consistiam em adaptações de histórias em quadrinhos e livros. Pouco a pouco, começaram-se a produzir, também, adaptações de jogos de vídeo game e light novels, tipo de livro, geralmente infanto-juvenil, com ilustrações em estilo típico dos quadrinhos japoneses. 53 Em 1998 é fundado o Studio Bones, que, em parceria com a Sunrise produz Cowboy Bebop: Tengoku no Tobira (カウボーイビバップ 天国の扉, Cowboy Bebop: Porta do Céu), filme de 2001, baseado na série Cowboy Bebop de 1998, produzida pela Sunrise. Atualmente, o Studio Bones é um dos estúdios de animação amplamente conhecidos do Japão, tendo feito algumas produções de grande sucesso dentre as quais estão Full Metal: Alchemist, em suas adaptações de 2003 e 2008, Soul Eater, de 2008, Space Dandy e Noragami, ambos de 2014, e suas continuações, e mais recentemente, o grande sucesso Boku no Hero Academia, que teve sua primeira temporada em 2016, e irá para a terceira temporada em 2018. Midoriya Izuku, protagonista de Boku no Hero Academia, animado pelo Studio Bones. Fonte: site Amino Apps. Nos anos 2000 há uma retomada do crescimento da indústria de animação no Japão, e o crescimento de sua influência sobre a animação ocidental. Entre o fim da década de 1990 e o começo da de 2000, praticamente todos os estúdios que ainda não utilizavam o computador em suas produções passaram a utilizar a técnica Computer Assisted Cell-Animation (CAC-A), que consiste em fazer animação no papel, e todo o processo de entintagem e pintura digitalmente, como é feito, também, em diversas produções ocidentais atuais. 54 2. Narrativa A grande diferença entre as animações dos Estúdios Disney e de suas predecessoras foi a introdução de uma narrativa coesa, com começo, meio e fim, em comparação à animações experimentais que não necessariamente tinham uma história, piadas soltas, ou histórias que existiam apenas como justificativa para uma piada que iria acontecer. Porém, as narrativas mais elaboradas de Disney, que não cabiam e um único curta, eram lançadas como um longa metragem. As animações seriadas americanas pós-Disney nem sempre apresentavam narrativas elaboradas, ou que se interligassem entre episódios. Ao assistir um episódio isolado de Popeye, Looney Tunes, Tom & Jerry, ou Animaniacs, há grandes chances de não ter dificuldade alguma em entender a história, mesmo que nunca tenha assistido outro episódio anteriormente. Mesmo as séries de animações da Disney, por muito tempo não tinham uma história linear, seguindo a ordem dos episódios. E quanto à narrativa, a grande diferença das animações japonesas para as norte-americanas era essa linearidade através dos episódios. Considerando-se que boa parte das animações japonesas que seguem o modelo seriado são baseadas em histórias em quadrinhos, que seguem certa linearidade, é natural que elas tivessem uma narrativa mais elaborada, seguindo os eventos da história na qual se baseiam, o que faz com que a compreensão de um episódio isolado, sem nenhum conhecimento prévio da história, seja bem mais complexa. Hoje, mesmo animações originais, como Kill la Kill, trabalho original do Studio Trigger, que apenas posteriormente se torna mangá, têm uma história linear com começo, meio e fim, começando no primeiro episódio e seguindo até o último. Poucos são os casos de animações que permitem a compreensão isolada de um episódio, em geral se resumindo a séries de humor baseadas em tirinhas, como Danshi Kōkōsei no Nichijō, ou Gintama, que têm arcos sérios que devem ser vistos 55 como um todo, intercalados com arcos de comédia em que um episódio, ou apenas metade de um episódio, conta uma história. Imagem promocional de Kill la Kill, do Studio Trigger. Fonte: Studio Trigger. Hoje em dia, muitas animações americanas utilizam-se do recurso da narrativa linear interligando diversos episódios, como Steven Universe, em que o começo da animação serve como apresentação das personagens e ambientação da história, e há uma linha narrativa principal através das temporadas, embora existam alguns episódios não relevantes a essa linha temporal, assim como ocorre em Gintama. Steven Universe. Fonte: site Polygon. 56 3. Técnica atualmente 3.1 Estados Unidos Hoje em dia, com todo o aparato tecnológico que possibilitou a produção totalmente digital de animação, a animação comercial norte-americana já não produz mais filmes feitos em papel. Em 2013 foi definitivamente fechado o setor de animação tradicional dos Estúdios Disney, e John Lasseter, chefe criativo da Disney, comunicou à imprensa que o estúdio já não tinha mais planos de produzir animações desenhadas à mão. Os Estúdios Disney já haviam parado de produzir longas há alguns anos, sendo Winnie The Pooh, de 2011, seu último longa metragem animado tradicionalmente. Nos últimos anos, apesar de algumas produções utilizarem as técnicas de animação tradicional, como o longa independente Hullabaloo, ou o jogo Cuphead, boa parte das animações é, pelo menos parcialmente, digital, sendo desenhadas em papel, digitalizadas, e pintadas digitalmente, técnica chamada de Computer Assisted Cel-Animation (CAC-A). Cuphead, jogo desenhado utilizando técnicas de animação 2D tradicional. Fonte: Página do jogo na loja da Steam. 57 Do ponto de vista técnico, não houve tantas mudanças no modo de se fazer o desenho de animação em meios digitais, uma vez que as técnicas básicas advêm da animação tradicional, como a convenção de se animar em 24fps, o uso de hold2, o uso dos 12 Princípios da Animação, uso de cenários panorâmicos, uso de desenhos em diferentes camadas para possibilitar um movimento mais real de câmera quando há zoom in e zoom out. Existem duas formas básicas de se animar digitalmente: frame by frame, que funciona de modo análogo à animação tradicional em papel, porém com desenhos feitos diretamente no software de animação, com o uso de tablets; e, cut-out, técnica em que se tem personagens desenhados com partes móveis e a animação é feita mexendo estas partes móveis de um frame para o outro. South Park, um exemplo de animação comercial feita com a técnica cut-out. Fonte: site oficial de South Park. 3.2 Japão O Japão, apesar de ter alguns primeiros experimentos feitos diretamente em película, com cut-outs de papel, ou na técnica de desenho de giz sobre lousa, desde muito cedo se utiliza de técnica análoga à cel-animation americana. Antes mesmo da celuloide chegar ao Japão, os animadores japoneses já utilizavam-se de papéis translúcidos para produzir animação. Nas ultimas décadas, todas as produções de animação japonesas têm se utilizado da técnica "Computer Assisted Cel-Animation" em suas produções, sendo a animação feita a mão pelos artistas, scanneada para o software de animação, e a 58 partir daí feita digitalmente. Essa técnica garante uma economia de tempo, algo muito importante quando é necessário produzir um grande número de episódios em um curto espaço de tempo. Embora feitas em papel, de modo similar ao que se fazia no início da animação norte-americana, as animações japonesas não seguem o padrão de filmagem em hold2 das produções norte-americanas, sendo filmada em hold3, o padrão de frames por segundo continua sendo 24, porém, o padrão japonês de filmagem é uma frame repetida três vezes, totalizando oito frames filmadas para cada segundo. Outra diferença é que as animações japonesas se utilizam de técnicas de animação limitada, intercaladas com cenas feitas em full animation, ficou popular, entre os fãs de anime fora do Japão, chamar as cenas em full animation de sakuga (作画). Embora seja muito comum que chamem as cenas em que a animação melhora de sakuga, o termo, em produção de animes, na verdade se refere aos keyframes, que são desenhados pelo supervisor de animação da cena, algo perceptível em documentários sobre os estúdios japoneses e making ofs de animações japonesas. Animação limitada é a técnica pela qual são animadas apenas partes de uma personagem, enquanto o resto fica imóvel. Como por exemplo: em uma cena em que uma personagem está falando, com o foco da cena no rosto dela, ao invés de redesenhar todo o rosto para cada frame, é desenhada uma base para o rosto, e diversas bocas, e grava-se o mesmo rosto trocando as bocas, de certa forma, seria uma técnica análoga à técnica de cut-out. Aliada à técnica de animação limitada, outra prática comum para diminuir o tempo de produção é a reutilização de ações já animadas em outras cenas. Por exemplo, se determinada personagem irá correr em mais de uma cena, é possível reutilizar a animação da personagem correndo da primeira cena nas seguintes, desde que o ângulo de câmera de ambas as cenas seja o mesmo. Em algumas produções como Gundam, ou Sailor Moon, faz-se uso de animação 3D em cenas de transformação, algumas produções mais recentes com cenas de dança ou apresentações musicais, como Love Live! e Fukumenkei Noise também utilizaram modelos 3D para agilizar o processo. É um processo parecido ao processo 59 de produção do curta "2.5D" Paperman, dos Estúdios Disney, lançado em 2012, e vencedor do Oscar de melhor curta de animação, em que a animação é feita em 3D, com uma camada 2D animada por cima do modelo 3D para dar aparência de 2D. Tecnicamente falando, essas são as maiores diferenças na produção das animações japonesas, boa parte do que as torna singulares está no estilo gráfico e em suas narrativas, uma vez que as técnicas de produção são basicamente as mesmas, desde o começo da produção para televisão na década de 1960. 60 4. Produção 4.1. Produção no modelo norte-americano O processo de produção, como um todo, não mudou muito da animação em papel para a animação digital. Em The Animation Bible, temos dois capítulos dedicados a descrever todo o processo de produção de uma animação comercial nos Estados Unidos. Independentemente da técnica, ou do tamanho da equipe, toda produção tem alguns passos básicos. Na pré-produção, essas etapas são: desenvolvimento de conceito, pitch de projeto, roteiro, sound design, decupagem, storyboard, animatic, layout, cronograma e orçamento, marketing e promoção, direitos autorais, preparação do guia de estilos, e, teste de produção. Já na fase de produção em si, são feitos: animação de personagens, cenários, efeitos especiais, iluminação e, renderização. A pós-produção inclui: edição, adição de efeitos sonoros e legendas, design de embalagem, criação de material de divulgação, arquivamento de materiais da produção, distribuição, estreia, e, em alguns casos, inscrições em festivais. O produtor e o diretor devem trabalhar juntos desde a etapa de pré-produção até o final da pós-produção de um filme ou série de animação, para garantir seu sucesso. Existem casos em que o diretor é, também, produtor, porém, isso ocorre mais comumente em animações independentes, uma vez que animações comerciais costumam ter equipes maiores, que demandam muito mais trabalho administrativo, e o acúmulo das duas funções poderia prejudicar o trabalho criativo ou o controle administrativo, quando não ambos. O produtor e o diretor são as duas peças-chave em uma produção. O produtor lida com as preocupações administrativas do trabalho, incluindo financiar o projeto, conseguir o espaço [de produção], produção de cronograma, e manter as pessoas motivadas e dentro do cronograma. O diretor lidera a parte artística; o contador de histórias primordial, ele ou ela supervisiona o trabalho de outros artistas e faz as decisões criativas que propiciam uma produção eficiente e significativa (FURNISS, 2008, p.66, tradução própria). 61 Atualmente a fase de pré-produção é tão importante quanto a produção, pois o que garante que uma animação conseguirá fundos para sua produção é um conceito sólido, com uma história que agrade os possíveis patrocinadores, que tenha personagens com os quais o público possa se conectar e, de preferência, que gerem diversas linhas de produtos licenciados. Em The Animation Bible, Furniss cita uma extensa lista de perguntas que devem ser respondidas para definir melhor o trabalho a ser feito, em ordem de criar um plano de produção. Entre tais questões existem coisas de ordem prática, como: Como o trabalho será distribuído?, ou Quais os pontos de venda1 do trabalho? Há algo que o faça único?; e coisas de ordem artística, como: Como será o estilo visual do trabalho?, ou Qual o objetivo central da história? Respondendo tais perguntas se tem uma ideia da possibilidade de produção da animação, e suas respostas servem de base para uma autocrítica. Se algo parece impossível de ser feito, é na pré-produção que se faz correções no projeto, de modo a torná-lo realizável (FURNISS, 2008, p.68). O pitch consiste em apresentar sua ideia para os possíveis financiadores, sejam canais de televisão, uma empresa para quem se vá fazer uma animação, pessoas que possam vir a financiar o projeto, em geral. Em geral o pitch consiste em uma apresentação curta em que se descreve o projeto, comumente com o auxílio de elementos visuais como artes conceituais, e um pequeno teaser animado, para que os financiadores tenham uma melhor ideia do tom do projeto. O pitch é uma das poucas partes da produção de uma animação exclusiva às animações mercadológicas. Animações independentes, em que o autor financia o próprio trabalho, ou produz um trabalho com ajuda de financiamentos coletivos, costumam ter um projeto fixo, no qual o autor vai trabalhar mesmo que não seja um bom produto do ponto de vista mercadológico, por isso muitos as chamam de animações autorais. Em tais animações se tem maior liberdade artística. Segundo a produtora Vanessa Remonti, em seu workshop Como produzir/planejar um curta metragem de animação, no FILE 2015, boa parte do desenvolvimento visual de uma animação já está pronto antes do pitch. O que não 1 Pontos de venda é tradução direta da expressão em inglês selling point que se refere aos pontos fortes de um trabalho, ou produto, que o fazem se destacar em relação à concorrência. 62 quer dizer que não possam haver mudanças, muitas vezes é necessário modificar algo na história ou no design a pedido dos financiadores. Após aprovado o conceito e os designs, há a produção do roteiro. Se a produção é um filme ou uma série para televisão, o processo de escrita do roteiro difere. Mas, em geral, como regra na indústria, várias pessoas trabalham num mesmo roteiro, existindo, inclusive, a prática de sala de roteiro, literalmente uma sala aonde os roteiristas de uma animação se reúnem para discutir todas as ideias para o roteiro e desenvolver as melhores. Com o script feito, segue-se para partes da pré-produção que podem ser feitas concomitantemente: o sound design e o storyboard. Embora seja comum que os sound designers peçam para ver os storyboards, há a possibilidade de se fazer o sound design baseado no script, às vezes com auxílio de outros materiais produzidos pelos diretores para dar a diretriz sobre o tom das cenas, como uma "tabela de emoções na história". É, ainda, na pré-produção, que são gravadas as vozes originais das personagens. Cabe ao diretor do filme trabalhar junto aos dubladores para o desenvolvimento das personagens. O storyboard é, também, produzido durante esse período da pré-produção. Como apontado anteriormente, o storyboard consiste em pequenos rascunhos de cada cena, com algumas anotações contendo informações adicionais. Ele pode ser feito pelos próprios diretores, ou por profissionais especializados apenas em fazer storyboards, conhecidos como storyboard artists, ou apenas boarders. Com o storyboard e o sound design prontos, é feita a decupagem do roteiro, produzindo-se uma tabela de cenas com a minutagem do vídeo a ser feito e a distribuição das cenas no tempo de vídeo, e, então, montado o animatic, que nada mais é que uma filmagem de imagens estáticas do storyboard distribuídas no tempo correto das cenas em conjunto com o áudio base, para se ter ideia de como ficará o trabalho pronto. Durante a produção, as cenas prontas são coladas no animatic, substituindo as imagens estáticas, até que todo o animatic esteja com imagens em movimento. 63 O processo de layout resolve a logística de criar e representar o mundo animado. Idealmente, um artista de layout tem fortes habilidades em desenho de perspectiva, e conhecimento de cinematografia, (incluindo ângulos de câmera, composição, iluminação e staging) e de todo processo de animação. Ele ou ela segue o storyboard e faz o design para os cenários, precisando ser capaz de pensar em termos de níveis de ação (ou "camadas") e efeitos, e como eles irão se dispor no entorno (FURNISS, 2008, p.75, tradução própria). Durante a pré-produção há um grande foco na produção do cronograma e do orçamento, uma vez que as informações sobre o que é necessário para fazer a produção dentro do tempo estipulado e do orçamento são de suma importância, não apenas para a equipe de produção, mas também para o time criativo. A produção do cronograma envolve a cuidadosa estruturação do "pipeline de produção" e a estimativa de tempo que se leva para completar sues vários passos. Uma vez que um trabalho está em produção, uma "folha mestre" deve ser utilizada para manter controle sobre seu progresso. Essa folha lista todas as cenas de um filme e os passos para completá-las, que dependem do tipo de projeto que está sendo feito, e do meio de produção. No caso de animação 2D, a folha mestre para uma animação relativamente simples, sem diálogos, pode incluir colunas de storyboard, folhas de tempo/exposição, layouts, cenários, model sheets (mos