UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA JÚLIO DE “MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS MARIA GABRIELA BONFIM ALCANTARA Escurecendo e feminilizando o constitucionalismo: as vivências femininas pretas na Assembleia Nacional Constituinte de 1987 FRANCA 2022 MARIA GABRIELA BONFIM ALCANTARA Escurecendo e feminilizando o constitucionalismo: as vivências femininas pretas na Assembleia Nacional Constituinte de 1987 Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Direito da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual “Júlio de Mesquita Filho” como parte das exigências para obtenção do título de Bacharel em Direito. Área de Concentração: Direito Constitucional. Orientadora: Professora Doutora Ana Gabriela Mendes Braga. FRANCA 2022 MARIA GABRIELA BONFIM ALCANTARA ESCURECENDO E FEMINILIZANDO O CONSTITUCIONALISMO: AS VIVÊNCIAS FEMININAS PRETAS NA ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE DE 1987 Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Direito da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade “Júlio de Mesquita Filho” como parte das exigências para obtenção do título de Bacharel em Direito. Área de Concentração: Direito Constitucional. BANCA EXAMINADORA Presidente: Profa. Dra. Ana Gabriela Mendes Braga 1ª Examinadora: Profa. Ms. Letícia Cardoso Ferreira 2º Examinador: Prof. Ms. Júlio Camargo de Azevedo Franca, 23 de novembro de 2022. AGRADECIMENTOS Agradeço, primeiramente, a Deus, aos Orixás e aos Guias por tornar este sonho possível, por me guiarem e me protegerem durante toda minha jornada. Agradeço aos meus pais, Roberta Cristina Bonfim Santos Alcantara e João de Souza Alcantara Filho, por serem os meus maiores incentivadores e apoiadores, por conseguirem se fazer presentes todos os dias, principalmente, nesses cinco anos em que estive longe de casa, por depositarem em mim seu amor incondicional, por serem os meus maiores exemplos, principalmente, de força, de garra e de coragem. Agradeço por formarem a melhor e mais linda família que eu poderia ter, por isso, não existem palavras suficientes para demonstrarem minha eterna gratidão. Sem vocês nada disso seria possível. Agradeço à minha avó materna, Maria do Carmo Bonfim Santos, por ser uma segunda mãe, por sempre ter feito parte da minha criação, por ser minha apoiadora, pelas suas orações e proteção, pelo seu amor incondicional, por ser mais um dos meus grandes exemplos. Vóinha, a senhora sempre esteve certa, quando disse que você era e é meu presente. Obrigada por escolher fazer parte da minha vida. Nunca conseguirei expressar em palavras minha eterna gratidão. Agradeço à minha avó paterna, Nilzete Pires Machado, em memória, por, desde pequena acreditar em mim e me apoiar, pelo seu amor, pelo seu cuidado e pelo seu carinho. A senhora sempre nos falou que sua roupa para nossa formatura já estava separada, que suas netas iriam se tornar “Doutoras”. Então, Vó, felizmente, tenho o prazer de te falar que esse sonho está começando a se tornar realidade. Infelizmente, parte desse sonho foi interrompido, porque não terei você presencialmente comigo, mas te levo em meu coração. Essa conquista também é sua, obrigada. Agradeço às minhas irmãs, Isabela Cristina Bonfim Alcantara e Manuela Vitória Bonfim Alcantara, e dedico a vocês a linda temática deste TCC. Obrigada por serem as melhores irmãs deste mundo, por serem minhas melhores amigas da vida, pelo apoio incondicional, pelo amor mais puro e sincero, por compartilharem comigo os melhores e os piores momentos, pela cumplicidade e lealdade, por acreditarem em mim, até quando eu mesma duvidei. Aprendo todos os dias com vocês e sou muito grata por ter um pouco de cada uma comigo. Obrigada por enxergarem e aflorarem o melhor de mim. Com vocês eu sou a minha melhor versão. Agradeço por chorarem comigo as minhas dores e as tornarem de vocês, por vibrarem comigo as minhas conquistas como se fossem suas, por vivermos tudo juntas uma pela outra, porque só a gente sabe que eu sou todinha vocês e vocês são eu. “Desde as estrelas até o fundo do mar”. Agradeço à minha professora orientadora, Dra. Ana Gabriela Mendes Braga. Desde que você entrou na sala, para a primeira aula, fiquei encantada e admirada pela mulher incrível que você é, em todas as suas formas. Desde então, você se tornou referência e inspiração em minha vida. Obrigada por todo aprendizado. Agradeço a todos os professores e a todas as professoras do curso de Direito da Unesp Franca, por toda educação concedida. Foi uma honra ouvir e aprender com cada um de vocês. Com toda certeza desse mundo, cada um e cada uma contribuiu para me tornar a pessoa que sou hoje e a profissional que quero ser. Agradeço à UNESP. Antes de fazer parte e ser uma unespiana, achava que esse sonho era longe demais para mim, saí da segunda fase do vestibular desacreditada, jamais achei que esse poderia ser meu lugar, mas, o resultado foi uma feliz surpresa. Hoje, em vias de me formar, só consigo dizer obrigada. Nestes cinco anos, tive o privilégio de ocupar um lugar de tamanha excelência, no qual cresci e aprendi muito e que formou a mulher que sou hoje. Amo e tenho orgulho de ser da UNESP. Agradeço imensamente à minha professora de Redação e de Português Lucidinéia Maria de Carvalho Silva, por todo ensinamento, por me motivar a cada aula e a cada correção, por cada dica, por acreditar em mim e por me acompanhar antes e durante minha graduação. Agradeço aos meus amigos e colegas de sala, Três e Meio, Redbull, Sanfoninha, Feudo, Deboísta, Caião, que viveram comigo estes cinco anos intensos, por se tornarem verdadeiros companheiros de luta, por cada gargalhada, por cada desespero e choro compartilhados, por todos os momentos juntos, enfim, pela amizade, que transcendeu as salas de aula. Em especial, minha amiga, colega de sala e “compi de piso” Três e Meio, por dividir comigo mais que um apartamento, mas, sim, um lar. Obrigada por cada momento inesquecível que vivemos juntas, aprendi e cresci muito com você. Agradeço às minhas amigas e aos meus amigos da Gestão Apis 2018 e da Gestão Ubuntu 2019 da Atlética VI de Junho, em especial às minhas amigas Nazaré, Curva e Activia. Obrigada por me acolherem e por permitirem ser quem eu sou, vocês foram partes importantes deste processo. Obrigada por compartilharem comigo os melhores anos da minha graduação e pela amizade verdadeira que construímos juntas. “Explicar a emoção de ser um atleticano a um atleticano é totalmente desnecessário e a quem não é um atleticano, simplesmente impossível”. Agradeço às minhas amigas da república Bamba, Coxia, Cersei, Coice, Furacão, Grama, Greta, Gretchen, Hawkins, Mainha, Redbull, Pescadora, Patroa, Tarê, Trending e VIP, por me acolherem nesta família tão linda e amorosa, pela amizade e pelo companheirismo, que foram fundamentais durante minha trajetória na UNESP Franca. Obrigada pela enriquecedora troca, admiro cada uma de vocês. Enfim, cada um e cada uma de vocês tem meu amor e um lugar especial no meu coração. “[...] O livro diz que vilões eram heróis Quem colheu e construiu Nunca teve o que deixar pra nóis Além da força pra lutar, não me contentar Quando não acreditar, sempre contestar [...]” (Não acredite se quiser, Kamau, 2008). RESUMO A partir de uma análise uma análise social, identifica-se que, devido a posição da mulher preta na pirâmide, essas estão condicionadas a um movimento comum em suas vidas: para se fazerem ouvidas e, por conseguinte, provocarem transformações acabam por, necessariamente, subirem degrau por degrau apoiando as camadas de cima até que sua vez chegue. Dessa forma, é válido ressaltar essa subida de degraus através das vivências femininas pretas na Assembleia Nacional Constituinte de 1987, como recorte temporal. O estudo utiliza como método o empirismo qualitativo, que tem como a base principal artigos científicos da temática, os documentos oficiais, os quais são a Carta da Mulher Brasileira aos Constituintes e as Atas das Reuniões da Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias, além de bibliografia especializada na temática com livros de autoras e autores nacionais e estrangeiros. Em vista disso, leva-se em conta que o resultado da investigação científica em torno desse debate tem repercussões diretas na compreensão do fenômeno jurídico da tutela constitucional dos direitos das mulheres pretas. Palavras-Chave: Assembleia Nacional Constituinte; Movimento Feminista; Movimento Negro; Mulher Preta; Pirâmide Social. ABSTRACT A social analysis, it is identified that, due to the position of the black woman in the pyramid, these are conditioned to a common movement in their lives: to make themselves heard and, therefore, to provoke transformations, they end up, necessarily, go up step by step supporting the top layers until their turn comes. Thus, it is worth highlighting this ascent of steps through black female experiences in the National Constituent Assembly of 1987, as a temporal cut. The study uses qualitative empiricism as a method, which is based on scientific articles on the subject, official documents, which are the Letter of the Brazilian Woman to the Constituents and the Minutes of the Meetings of the Subcommittee on Blacks, Indigenous Populations, Disabled People and Minorities, in addition to a specialized bibliography on the subject with books by national and foreign authors. In view of this, it is taken into account that the result of the scientific investigation surrounding this debate has direct repercussions on the understanding of the legal phenomenon of the constitutional protection of the rights of black women. Keywords: National Constituent Assembly; Feminist Movement; Black Movement; Black Woman; Social Pyramid. LISTA DE QUADROS Quadro I - Etapas da Constituinte............................................................................................ 66 Quadro II - Reuniões realizadas pela Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias ................................................................................................ 67 Quadro III - Demandas do Movimento Negro - Resoluções da Convenção Nacional o Negro e a Constituinte ......................................................................................................................... 87 Quadro IV - Demandas do Movimento Negro - Centro de Estudos Afro-brasileiros ............. 92 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS AA - Alcoólicos Anônimos AEUDF - Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal ANC - Assembleia Nacional Constituinte APAEs - Associações de Pais e Amigos dos Excepcionais BA - Bahia CLT - Consolidação das Leis Trabalhistas CNDM - Conselho Nacional dos Direitos da Mulher CS - Comissão de Sistematização DANC - Diário da Assembleia Nacional Constituinte ES - Emenda Substitutiva IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IFCS/UFRJ - Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro MG - Minas Gerais PCdoB/BA - Partido Comunista do Brasil da Bahia PDB/BA - Partido da Democracia Brasileira da Bahia PDT/CE - Partido Democrático Trabalhista do Ceará PDT/RJ - Partido Democrático Trabalhista do Rio de Janeiro PDT/RO - Partido Democrático Trabalhista de Rondônia PDT/RN - Partido Democrático Trabalhista do Rio Grande do Norte PDT/SP - Partido Democrático Trabalhista de São Paulo PDS/SE - Partido Democrático Social de Sergipe PEC - Proposta de Emenda à Constituição PFL/AM - Partido da Frente Liberal do Amazonas PFL/PE - Partido da Frente Liberal de Pernambuco PFL/PR - Partido da Frente Liberal de Roraima PFL/RJ - Partido da Frente Liberal do Rio de Janeiro PFL/RO - Partido da Frente Liberal de Rondônia PFL/SP - Partido da Frente Liberal de São Paulo PMDB/AC - Partido do Movimento Democrático Brasileiro do Acre PMDB/AL - Partido do Movimento Democrático Brasileiro de Alagoas PMDB/BA - Partido do Movimento Democrático Brasileiro da Bahia PMDB/CE - Partido do Movimento Democrático Brasileiro do Ceará PMDB/DF - Partido do Movimento Democrático Brasileiro do Distrito Federal PMDB/ES - Partido do Movimento Democrático Brasileiro do Espírito Santo PMDB/GO - Partido do Movimento Democrático Brasileiro de Goiás PMDB/MA - Partido do Movimento Democrático Brasileiro do Maranhão PMDB/MG - Partido do Movimento Democrático Brasileiro de Minas Gerais PMDB/PR - Partido do Movimento Democrático Brasileiro do Paraná PMDB/RS - Partido do Movimento Democrático Brasileiro do Rio Grande do Sul PMDB/SE - Partido do Movimento Democrático Brasileiro de Sergipe PMDB/SP - Partido do Movimento Democrático Brasileiro de São Paulo PSB/AP - Partido Socialista Brasileiro do Amapá PSB/BA - Partido Socialista Brasileiro da Bahia PSB/MA - Partido Socialista Brasileiro do Maranhão PSDB/AM - Partido da Social Democracia Brasileira do Amazonas PSDB/CE - Partido da Social Democracia Brasileira do Ceará PSDB/ES - Partido da Social Democracia Brasileira do Espírito Santo PSDB/PI - Partido da Social Democracia Brasileira do Piauí PSDB/RJ - Partido da Social Democracia Brasileira do Rio de Janeiro PSDB/SP - Partido da Social Democracia Brasileira de São Paulo PT/RJ - Partido dos Trabalhadores do Rio de Janeiro PT/SP - Partido dos Trabalhadores de São Paulo PTB/RR - Partido Democrático Trabalhista de Roraima PUC - Pontifícia Universidade Católica RS - Rio Grande do Sul Supl. - Suplemento UERJ - Universidade do Estado do Rio de Janeiro UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro SUMÁRIO INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 14 1. O LUGAR DA MULHER PRETA NO PANORAMA ESTRUTURAL DA SOCIEDADE BRASILEIRA, SUAS BARREIRAS E SUAS LUTAS .......................................................... 19 1.1 As raízes africanas do Brasil ........................................................................................... 19 1.2 O passado escravocrata brasileiro ................................................................................... 22 1.3 O Brasil pós “abolição da escravidão”: a estruturação da sociedade brasileira e a posição da mulher preta ........................................................................................................ 32 2. A ARTICULAÇÃO DO LOBBY DO BATOM NA ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE DE 1987: ONDE ESTAVAM AS MULHERES PRETAS? ...................... 41 2.1 O porquê de um feminismo negro ................................................................................. 41 2.2 Lobby do Batom: a articulação do movimento feminista na Assembleia Nacional Constituinte de 1987 ............................................................................................................. 49 2.3 Das conquistas inseridas na Constituição Federal de 1988 ............................................ 60 3. A ATUAÇÃO DO MOVIMENTO NEGRO NA ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE DE 1987: PROTAGONISMOS DE HELENA THEODORO E LÉLIA GONZALEZ ............................................................................................................................. 63 3.1 Gênero e raça: breves considerações .............................................................................. 63 3.2 Considerações gerais sobre a Assembleia Nacional Constituinte DE 1987 e sobre a Subcomissão dos Negros, das Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias ....... 65 3.3 A 7ª reunião ordinária - A primeira reunião da Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias ........................................................................... 75 3.4 A organização do Movimento Negro junto à Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias. .......................................................................... 86 3.5 Das conquistas inseridas na Constituição Federal de 1988 ............................................ 97 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................... 98 REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 103 14 INTRODUÇÃO A produção de pesquisas possibilita aquisição de um grande arcabouço teórico, além da grande contribuição no conhecimento do ser humano e de sua história, como bem explicita Edmund Burke em sua ilustríssima e fatídica frase: “Um povo que não conhece sua História está fadado a repeti-la". Segundo Battini (2003, p.12): “[...] a pesquisa é a ferramenta através da qual o investigador mergulha nas mediações (e também as produz) que revelam as particularidades e, municiado pelo seu compromisso político– ideológico, forja novo sentido às explicações do mundo, contribuindo para uma nova civilidade”. Destarte, colabora e influencia nas formas de expressão, visão e interpretação do cotidiano e das vivências sociais. Quando se fala na construção do Brasil, é impossível que, de imediato momento, não se pense no povo preto e nos trezentos anos de escravidão. Um povo que foi arrancado de seu continente, que teve suas histórias e origens apagadas, sua religião e seus costumes condenados, que teve a cor da pele inferiorizada, para trabalhar forçosamente neste país, sendo a força motriz de um sistema econômico e que, por longos e duros anos, estruturou um modelo de sociedade, que se baseava na sua dor e sofrimento. Povo este que, após sua ilusória libertação, promovida pela assinatura da Lei Áurea, em 1888, não contou com sua devida inserção na sociedade, sendo, mais uma vez, excluído e marginalizado. Colocar a questão do negro numa sociedade como a nossa é falar de um período histórico de construção de uma sociedade, construção essa que resultou em um grande País como o nosso e que, em última instância, resultou, também, para os construtores deste País, num processo de marginalização e discriminação. Invocamos aqui as palavras de Joaquim Nabuco, ao afirmar que o africano e o afro-brasileiro trabalham para outros, ou seja, construíram uma sociedade para classe dominante. E falar de sociedade brasileira; falar de um processo histórico e de um processo social, é falar justamente da contribuição que o negro traz para esta sociedade, por outro lado é falar de um silêncio e de uma marginalização de mecanismos que são desenvolvidos no interior desta sociedade, para que ela se veja a si própria como uma sociedade branca, continental e masculina, diga-se de passagem (Lélia Gonzalez - DIÁRIO DA ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE – SUPLEMENTO 62, 1987, p.120). Um povo que, por muito tempo, não teve sua história devidamente contada, mas sim, tida como vergonha e diminuída. Que atrativo pode ter a escola para uma criança negra, se a família que lhe apresentam como modelo é aquela da classe média branca, ‘certinha’, vivendo numa espécie de paraíso? Que atrativo pode ter a escola para uma criança negra se a opressão e a exploração em que vive sua comunidade são consideradas naturais? Que atrativo pode a escola oferecer para uma criança negra se seu passado histórico, sua ancestralidade 15 são caracterizados como exemplos de sujeição, submissão e subserviência e não de resistência e de luta contra a violência do sistema imposto pelo dominador branco? Que atrativo pode ter a escola para uma criança negra, se a produção cultural de sua comunidade só é considerada a partir da ótica distorcida do exotismo, nas camadas do folclore? Que atrativo a escola pode oferecer a uma criança negra e pobre se sua presença mesma, de criança negra e pobre, é cotidianamente negada nas atividades didáticas? Que atrativo pode ter a escola para uma criança negra se quando ela reage às práticas infantilizantes e repressivas dessa mesma escola é remetida para os setores de ‘assistência’ psicológica ou psiquiátrica como ‘desajustada’ ou coisas tais? Nem mesmo o único atrativo que lhe é oferecido, ou seja, a merenda escolar consegue reter por muito tempo o contingente de crianças negras e pobres que frequentam a rede escolar oficial. Preferem ‘ir à luta’, viver de expedientes, de pequenos trabalhos ‘pra ajudar em casa’ do que ‘perder tempo’ na escola. O mínimo de salário que venham a ganhar lhes parece muito mais compensador do que ficar ‘quebrando a cabeça’. E têm toda razão infelizmente. (BENEDITA DA SILVA - DIÁRIO DA ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE - SUPLEMENTO - SUGESTÃO nº 2754-5, 1987, p. 393-394) Nesse contexto, de sequenciadas e incessantes deslegitimações, urge a necessidade de se estudar e enaltecer a luta desse povo que nunca se calou e esteve em constante luta. O racismo, instrumento pelo qual o povo branco se sustentou para institucionalizar a escravidão no Brasil Colônia, não se findou juntamente como este período. Na sociedade contemporânea, encontra-se três tipos de racismo, como bem elucida Silvio Almeida (2018), o individual, aquele que diz respeito unicamente aos atos proferidos por um indivíduo; o institucional, aquele que não se remete aos comportamentos, mas sim, às instituições em que os negros estão inseridos, como no mercado de trabalho; e o estrutural, que é a junção dos dois anteriores, visto que as instituições são reflexo de uma sociedade racista. Dessa maneira, fica evidente que a vida do povo preto é sinônimo de luta. Outrossim, como a estrutura social, também, é moldada pelo patriarcalismo, por consequência, o machismo incidiu e, ainda, incide na promoção da desigualdade entre o gênero masculino e o feminino. Intersecionalizando gênero e raça, como fruto tem-se a mulher preta, cuja incidência do silenciamento e do preconceito é duas vezes maior, e, ainda incluindo o quesito classe, aumenta para três vezes mais. E são elas, as mulheres pretas, o objeto dessa pesquisa. Pesquisa esta que busca entender como a pirâmide social influenciou nas nossas vivências, além de se fazer necessário o estudo para compreensão de todo o processo que tornou a luta social uma condição inerente dessa camada. É notória a percepção de que, estando a mulher negra na base, esta não encontra outra forma de alcançar os seus direitos e de ser ouvida, se não subir cada grau, apoiando a camada que está acima. No período da escravidão, pessoas brancas criaram uma hierarquia social baseada em raça e sexo que posicionou homens brancos em primeiro lugar, mulheres brancas em segundo, apesar de às vezes serem colocadas na mesma posição dos homens negros, 16 que estavam em terceiro lugar, e as mulheres negras eram as últimas (hooks, 2020, p.93). A Constituição Federal de 1988 é a norma maior do Brasil, seguindo o princípio da hierarquia de normas de Hans Kelsen. Assim, foi perceptível para elas, assim como para outras camadas conhecidas como minorias, que necessariamente deveriam, de uma forma de outra, permear as discussões de organização dessa, já que elas fazem o processo de degraus acima exposto, mas os de cima não possuem o costume de fazer o processo inverso. Até aqui as Constituições brasileiras não foram mais que conversa entre brancos. As elites e os militares levaram à risca o velho ditado popular: “Eles os brancos que se entendam”. E se entenderam. As coisas, porém, já não podem ser assim. A próxima constituinte terá de incluir, no novo pacto social, o entendimento do que negros e índios pensam sobre como deve ser a organização da sociedade. A conversa terá de ser democrática plurirracial e popular. (CARDOSO, 1985, p.13). Além do mais, pode-se identificar essa percepção como o movimento do constitucionalismo feminista, visto que elas passam a se colocar como sujeitos de direitos e na qualidade de intérpretes da norma, através do contexto de suas vivências. Essa concepção de Constituição exige uma hermenêutica constitucional comprometida com a democratização da interpretação constitucional, visto que todo sujeito que vive a Constituição é seu legítimo intérprete, isto é, todo(a) aquele(a) que vive no contexto regulado por uma norma é um(a) intérprete dessa norma. Assim, estão vinculados a esse processo não apenas os julgadores e os procedimentos formalizados, mas todos os cidadãos, cidadãs, grupos sociais e potências públicas, participantes materiais de uma sociedade aberta dos intérpretes da Constituição e representantes de forças ativas de significação dos direitos (Haberle, 1997). A elaboração do significado dos direitos está ativamente associada às narrativas que situam e fornecem sentidos ao conjunto de instituições e de normas jurídicas. Essas narrativas estabelecem paradigmas para dinâmicas de obediência, consentimento, contradição e resistência (Cover, 2016) (Haberle, Cover apud Saveri, 2019, p.54). Nesse viés, o período da Assembleia Nacional Constituinte de 1987 foi marcado por intensas e significativas movimentações e atuações de figuras, as quais, até os dias atuais, são nomes de destaque para toda uma sociedade, vista a suma importância do dispositivo em assegurar direitos inerentes ao ser humano e que, em épocas anteriores, restringiam-se a pequenos grupos. o desenho institucional, isto é, as normas e regras que organizam as instituições públicas, quaisquer que elas sejam, só será justo na medida em que todos os segmentos da sociedade, sejam eles do grupo majoritário ou de grupos minoritários, tenham a possibilidade de participar de maneira igualitária na formulação dessas regras (CASTRO, 2010, p. 3). 17 A presente pesquisa com enfoque nas mulheres pretas estudará a atuação dessas na Assembleia Nacional Constituinte de 1987 e analisar-se-á as bagagens históricas que carregam de seus e de suas ancestrais, a fim de não só enaltecer a camada base da sociedade brasileira, responsável, significativamente, por grandes contribuições, mas, de também, contribuir para mais documentações de trajetórias de um grupo não pertencente a círculos hegemônicos do poder. Este projeto tem como objetivo investigar e discorrer sobre o papel das mulheres pretas na Assembleia Nacional Constituinte, que deu forma a Constituição Federal de 1988, por meio das atas da “Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias”. Além do mais, estudar o movimento conhecido como “Lobby do Batom”, através da Carta da Mulher Brasileira aos Constituintes, também, à luz do constitucionalismo feminista, intersecionalizando gênero, raça e classe. Outrossim, mapear as demandas e as conquistas, de cada um desses grupos, introduzidas na Constituição Federal de 1988. Destarte, até se chegar nesse ponto, analisar-se-á a formação social da população brasileira, entendendo, mais especificamente, o lugar ocupado pela mulher preta, a qual se encontra na base da pirâmide social e, consequentemente, as barreiras enfrentadas por esta camada, através de suas vivências históricas. Visto a construção à luz do evento epistemicida, que produz rebaixamento racial, provoca a discriminação e nega aos negros a posição de sujeitos de conhecimento, devido ao banimento e à exclusão das oportunidades educacionais, uma vez que essas permitem a mobilidade social do país (CARNEIRO, 2017). O primeiro capítulo estudará o panorama de formação social brasileiro, a fim de que se possa entender como a pirâmide - em que no topo se encontra o homem branco, em seguida a mulher branca, depois o homem preto e, por fim, na base, a mulher preta - foi se estruturando, assim, fazendo a devida interseccionalidade de raça, classe e de gênero. Esse estudo será guiado pelo uso de bibliografia especializada na temática, levando-se em consideração autoras e autores nacionais e estrangeiros. O segundo capítulo analisará, primeiramente, algumas divergências do movimento feminista que forçaram a necessidade do surgimento do feminismo negro. A posteriori, a organização do movimento feminista e sua comunicação com a vertente do feminismo negro, na composição do movimento chamado “Lobby do Batom”, observando suas movimentações para atingirem a bancada feminina da Assembleia Nacional Constituinte, através da Carta da Mulher Brasileira aos Constituintes. O terceiro e último capítulo deste trabalho de conclusão de curso observará criticamente a atuação do movimento negro, dando maior enfoque nas atuações das militantes Helena 18 Theodoro e Lélia Gonzalez, mediante a examinação de trechos de suas falas, disponíveis nas atas da 7ª Reunião Ordinária e da 10ª Reunião Ordinária da “Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias”, nas quais as discussões sobre raça e seus desdobramentos foram mais enfáticos. Considerando-se que o resultado da investigação científica em torno desse debate tem repercussões diretas na compreensão do fenômeno jurídico da tutela constitucional dos direitos das mulheres pretas, é de suma importância, a priori, compreender a dupla incidência do preconceito - racismo e machismo - nas vivências dessas mulheres. Para que se possa entender as motivações que as impulsionaram e o entendimento da necessária composição delas na organização da Constituição Federal de 1988, é imprescindível estudar o contexto social em que elas foram inseridas e o lugar que ocupam na pirâmide de estruturação brasileira, a partir do levantamento bibliográfico literário e de fontes indiretas sobre o processo de formação da sociedade deste país. Não obstante, sendo a Constituição Federal a norma maior - segundo a pirâmide de Hans Kelsen, a qual, à luz do princípio de hierarquia entre as normas legais, fixa tal dispositivo no topo - faz-se necessário investigar como os grupos das minorias, negros e femininos, mais precisamente das mulheres pretas, que é o ponto interseccional dos dois grupos, articularam-se para se fazerem ouvidas e atendidas na Assembleia Nacional Constituinte de 1987, a partir do levamento dos documentos oficiais. Para alcançar o objetivo proposto, o qual busca estudar e analisar a atuação das mulheres pretas na Assembleia Nacional Constituinte de 1987, além de entender como a barreira do racismo estrutural e o machismo incidiram e incidem nas suas vivências, resultando em lutas constantes, sugere-se utilizar a análise empírica qualitativa, que tem como a base principal artigos científicos da temática, os documentos oficiais, os quais são a Carta da Mulher Brasileira aos Constituintes e as Atas das Reuniões da Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias, além de bibliografia especializada na temática com livros de autoras e autores nacionais e estrangeiros. O Trabalho de Conclusão de Curso se estrutura, abordando a interseccionalidade de raça e gênero. Assim, para o desenvolvimento deste trabalho, é de suma importância adentrar no estudo das bases estruturais deste país, juntamente com afundo sociológico, a fim de demonstrar como o recorte escolhido - mulheres pretas - por se encontrarem na base, seguem um protocolo invisível de sempre irem se movimentando na luta dos que estão acima até que, finalmente, o nosso seja alcançando. 19 1. O LUGAR DA MULHER PRETA NO PANORAMA ESTRUTURAL DA SOCIEDADE BRASILEIRA, SUAS BARREIRAS E SUAS LUTAS 1.1 As raízes africanas do Brasil Pés brancos sobre estrelas Vocês se apoderaram das terras Dos rios e dos mares Dos campos e das cidades Dos costumes e das leis Da vida e da morte Do céu e do inferno De Deus e do Diabo Vocês se julgam senhores exclusivos de tudo Vocês estão esquecidos De que tudo aqui foi construído por mim E ninguém mais Vocês não percebem Que pisam o sangue sagrado de meus ancestrais Carlos de Assumpção Como Carlos de Assumpção enfatiza, o Brasil foi construído pelo povo preto. Tudo aqui tem raiz africana, pois a cultura deste país é afro-brasileira. Também, Sueli Carneiro (Podcast Mano a Mano,20221) foi certeira ao afirmar que tudo de bom que o Brasil carrega é fruto da influência africana, logo, é da comunidade negra. Para iniciar: a culinária, esse primeiro aspecto da cultura brasileira, é fortemente influenciada pelos elementos e pratos que os negros trouxeram durante a escravidão. Prova disso é o leite de côco que incrementa inúmeras receitas por diversas regiões do Brasil; a pimenta malagueta, a qual é o toque especial de muitos pratos rebuscados de variados restaurantes famosos; a feijoada, um dos pratos que, quando se pensa em Brasil, não tem como não falar dessa preciosidade; o acarajé, o vatapá, o caruru, a moqueca, os quais marcam a culinária baiana; a tapioca, a canjica e o bolo de milho que são adaptadas e presentes nas mesas e festividades do Brasil afora. Ademais, a música, a dança e os instrumentos musicais. Já dizia Emicida: “Tudo que bate é tambor, Todo tambor vem de lá, Se o coração é o senhor, tudo é África” (Principia, 2019). O ritmo, os instrumentos e a base da música popular brasileira têm suas raízes na cultura 1 Disponível em: 20 africana. Como exemplo: os tambores, o atabaque, mais especificamente, o caxixi, o agogô, a cuíca, além do mais, vale citar o samba, o maracatu e a lambada. Outro ponto: a capoeira, uma luta genuinamente brasileira, desenvolvida pelos negros durante a escravidão. Essa luta surgiu nas senzalas, onde os negros, como eram proibidos de praticarem qualquer luta, misturavam seus passos e movimentos de dança para disfarçarem a prática. E por falar neste molejo nato, de um povo que sabe se mover, balancear-se como ninguém, é válido ressaltar a história do drible do futebol. Essa invenção, que faz os jogos ficarem bonitos e que consagrou o Brasil como país do futebol, ganhou notoriedade com os jogadores pretos brasileiros. À época pairava uma regra informal, a qual permitia punição aos jogadores pretos que cometessem faltas em jogadores brancos, assim, os primeiros se tornavam verdadeiros acrobatas para jogarem com dignidade. Ainda garoto eu tinha medo de jogar futebol, porque vi muitas vezes jogador negro, lá em Bangu, apanhar em campo, só porque fazia uma falta, nem isso às vezes (...) Meu irmão mais velho me dizia: “Malandro é o gato que sempre cai de pé…Tu não é bom de baile?” Eu era bom de baile mesmo, e isso me ajudou em campo…Eu gingava muito… O tal do drible curto eu inventei imitando o miudinho, aquele tipo de samba (Domingos da Guia, vídeo Núcleo/UERJ, 1995). Outrossim, não se pode esquecer das religiões de matrizes africanas presente no Brasil: a Umbanda e o Candomblé. E, seguindo essa linha de raciocínio, os costumes e tradições delas que são praticados por milhares de brasileiros, como pular as sete ondas e jogar rosas brancas no mar na festa de Réveillon, fazendo menção e saudando a rainha do mar Iemanjá. Final de ano e início de outro são ocasiões de comemoração de uma porção de coisas que mostram a contribuição que a gente tem dado pra história e pra cultura de nosso país. Por isso mesmo, acho bom lembrar certas datas importantes em que a negrada (especialmente o mulherio) está muito presente. Estamos cansados de saber que nem na escola nos livros onde mandam a gente estudar se fala da efetiva contribuição das classes populares, da mulher, do negro e do índio na nossa formação histórica e cultural. Na verdade, o que se faz é folclorizar todos eles (GONZALEZ, 2020, p.204). Nesse sentido, é de suma importância destacar o Carnaval, a festividade que é mundialmente referência do Brasil e que é festejado por toda a sociedade brasileira. Os afoxés, cordões, blocos, escolas de samba, frevos, esses baratos todos que antes eram chamados de “coisa de negros” e por isso mesmo reprimidos hoje fazem parte de um “patrimônio cultural nacional” do qual, é claro os beneficiários não são os “neguinhos”, mas as secretarias e as empresas de turismo (GONZALEZ, 2020, p.206). Para tanto, em relação à influência na indústria da beleza, tem-se as tranças e os dreads. 21 Por último, o aspecto mais gritante da nítida e evidente influência da cultura africana no Brasil: o idioma, a língua portuguesa, o português ou melhor, como defende Lélia Gonzalez, o “pretuguês”. O português falado aqui, as palavras, as marcas linguísticas, o modo de se falar e as mutações, não é o mesmo de Portugal, e isso se deve ao fato da mistura com os diferentes idiomas falados pelos africanos escravizados, além da indígena. Pode-se citar como exemplo, entre tantas: Canga (pedaço de pano retangular utilizado para sentar na areia da praia ou como vestimenta pelas mulheres), Bagunça (sinônimo de confusão e desordem), Cafuné (ato carinhoso feito com as mãos na cabeça de outra pessoa, levando ao sono), Moleque (sinônimo de menino, garoto), Caçula (irmão mais novo), Sunga (roupa de banho masculina), Cochilar (dormir leve e rapidamente), Bunda (nádegas), Gangorra (brinquedo de crianças), Catinga (odor desagradável, cheiro ruim, fedor), Minhoca (espécie de anelídeo), Cachaça (bebida alcoólica, aguardente). É engraçado como eles gozam a gente quando a gente diz que é Framengo. Chamam a gente de ignorante dizendo que a gente fala errado. E de repente ignoram que a presença desse R no lugar do L nada mais é que a marca linguística de um idioma africano, no qual o L inexiste. Afinal, quem é o ignorante? Ao mesmo tempo acham o maior barato a fala dita brasileira, que corta os erres dos infinitivos verbais, que condensa “você” em “cê”, o “está” em “tá” e por aí afora. Não sacam que tão falando pretuguês (GONZALEZ, 2020, p.90). Nesse contexto de evidenciar as inúmeras maravilhas trazidas pelo povo preto a este território e que dão a cara da cultura brasileira, faz-se necessário retornar ao começo da história da construção do Brasil, a fim de que se possa analisar as problemáticas de como a população negra foi se organizando na sociedade e, mais precisamente, o recorte do presente trabalho, a mulher negra. É revisitando o passado que se pode entender o presente. Qualquer relato histórico do surgimento do terror moderno precisa tratar da escravidão, que pode ser considerada uma das primeiras instâncias da experimentação biopolítica. Em muitos aspectos, a própria estrutura do sistema de colonização e suas consequências manifesta a figura emblemática e paradoxal do estado de exceção. Aqui, essa figura é paradoxal por duas razões. Em primeiro lugar, no contexto da colonização, figura-se a natureza humana do escravo como uma sombra personificada. De fato, a condição de escravo resulta de uma tripla perda: perda de um “lar”, perda de direitos sobre seu corpo e perda de status político. Essa perda tripla equivale a dominação absoluta, alienação ao nascer e morte social (expulsão da humanidade de modo geral). Para nos certificarmos, como estrutura político-jurídica, a fazenda é o espaço em que o escravo pertence a um mestre (MBEMBE apud GONZALEZ, 2019, p. 62). 22 1.2 O passado escravocrata brasileiro A priori, quando se estuda a História do Brasil na educação básica das escolas tanto públicas como privadas, a história do povo preto é resumida ao estudo da escravidão. E ainda, este estudo é de forma e do ponto de vista branco, ou seja, a maioria dos livros e apostilas são escritos por brancos, então, a sociedade inicia sua educação enviesada pelo teor negativo, e para as pessoas pretas, pode-se acrescentar a vergonha. O sistema educacional é usado como aparelhamento de controle nessa estrutura de discriminação cultural. Em todos os níveis do ensino brasileiro - elementar, secundário, universitário - o elenco das matérias ensinadas [...] constitui um ritual da formalidade e da ostentação da Europa e, mais recentemente, dos Estados Unidos. Se consciência é memória e fruto, quando e onde está a memória africana, parte inalienável da consciência brasileira? Onde e quando está a memória da África, o desenvolvimento de suas culturas e civilizações, as características do seu povo foram ou são ensinadas nas escolas brasileiras? Quando há alguma referência ao africano ou ao negro, é no sentido de afastamento e da alienação da identidade negra (NASCIMENTO apud GONZALEZ, 2020, p39). Quem já não fez um trabalho escolar, cuja temática era contar sobre sua ascendência? É de praxe, quão enriquecedor é a busca pela sua história, não é mesmo? Mas, recordo piamente da minha experiência em como os trabalhos de descendência italiana, portuguesa, francesa e outras enchiam os olhos de todos da sala e ao chegar nos trabalhos das alunas e alunos negros, falando de descendência africana, esses eram desvalorizados. Para começar, a primeira problemática é que os negros que aqui se encontravam foram arrancados de diferentes regiões do continente africano, assim, a nossa busca se limitou ao período escravocrata, como se antes disso, essas pessoas não tivessem diferentes vivências, como se também não existissem reinos, reis e rainhas e histórias tão - e aqui ouso a dizer até mais - lindas quanto as europeias. A segunda problemática é o fato de ao se pensar em África, esquecerem que é um continente, ou seja, em seu extenso território, cada região possuía diferentes línguas, costumes, religião, comidas, vegetação e, principalmente, diferentes formas de organização. Desse modo, quando chegaram ao Brasil foram reduzidos a uma coisa só. Outro problema é, e não diferente para mim, a vergonha. Desde cedo é grande a incidência do processo de desmerecimento da história, da cultura, das conquistas dos negros, somos inconscientemente ensinados a nos envergonhar de quem somos e dos que já se foram. Que atrativo pode ter a escola para uma criança negra, se a família que lhe apresentam como modelo é aquela da classe média branca, ‘certinha’, vivendo numa espécie de paraíso? Que atrativo pode ter a escola para uma criança negra se a opressão e a 23 exploração em que vive sua comunidade são consideradas naturais? Que atrativo pode a escola oferecer para uma criança negra se seu passado histórico, sua ancestralidade são caracterizados como exemplos de sujeição, submissão e subserviência e não de resistência e de luta contra a violência do sistema imposto pelo dominador branco? Que atrativo pode ter a escola para uma criança negra, se a produção cultural de sua comunidade só é considerada a partir da ótica distorcida do exotismo, nas camadas do folclore? (Silva apud Neris, 2015, p. 128). E continua: Que atrativo a escola pode oferecer a uma criança negra e pobre se sua presença mesma, de criança negra e pobre, é cotidianamente negada nas atividades didáticas? Que atrativo pode ter a escola para uma criança negra se quando ela reage às práticas infantilizantes e repressivas dessa mesma escola é remetida para os setores de ‘assistência’ psicológica ou psiquiátrica como ‘desajustada’ ou coisas tais? Nem mesmo o único atrativo que lhe é oferecido, ou seja, a merenda escolar consegue reter por muito tempo o contingente de crianças negras e pobres que frequentam a rede escolar oficial. Preferem ‘ir à luta’, viver de expedientes, de pequenos trabalhos ‘pra ajudar em casa’ do que ‘perder tempo’ na escola. O mínimo de salário que venham a ganhar lhes parece muito mais compensador do que ficar ‘quebrando a cabeça’. E têm toda razão infelizmente (Silva apud Neris, 2015, p. 128). Fiz escola primária e passei por aquele processo que eu chamo de lavagem cerebral dado o discurso pedagógico brasileiro, porque, na medida em que eu aprofundava meus conhecimentos, eu rejeitava cada vez mais minha condição de negra. E, claro, passei pelo ginásio, científico, esses baratos todos. (GONZALEZ, 1979 apud RIOS; RATTS, 2010, p. 31) Em 1550, dá-se, oficialmente, início ao tráfico negreiro. Essa atrocidade, que marcou mais de trezentos anos da história deste país, foi guiada pela eugenia da civilização europeia. Eles acreditavam na sua superioridade civilizatória e, munidos disso, estruturaram todo um sistema de exploração, o qual tinha a população africana como força motora. O delírio da diferenciação racial encontraria então na Lettre à madame de Graffigny de Turgot a justificação plausível da exploração europeia: “a desigualdade social radical se inicia na natureza física desigual dos ‘diferentes’ humanos.” Sendo o branco europeu mais próximo da racionalidade e desenvolvido tecnicamente, naturalmente sua posição seria a de comando. O delírio seria assim um exercício de expurgar as ações passionais e encontrar uma desculpa para o preenchimento de um vazio constitutivo. Um vazio que constituiu a modernidade e sua exploração capitalista. O negro, portanto, é colocado nesse não-lugar do delírio, que ora tem lastro de libertação libidinal, ora de regressão violenta (BARROS, 2019, p18). O sistema escravocrata brasileiro se manteve firme por longos anos pelo uso de duas estratégias: repressão e exploração. A primeira era usada da seguinte forma: de início, o fato de terem sido arrancados de diferentes territórios do continente africano, por conseguinte, o apagamento de suas histórias, sendo esse o ponto crucial. Eram proibidos de cultivar suas religiões e forçosamente obrigados a cultivarem a religião católica, assim, aqui se vê o papel importante exercido pela Igreja na manutenção da crueldade, que foi a escravidão. Foram 24 impedidos de falarem suas próprias línguas e obrigados a desenvolver a língua portuguesa. Imaginem, então, a diversidade de dialetos perdidos, visto que estamos falando de diferentes povos. Em relação à culinária, o problema é maior ainda, pois não eram corretamente alimentados, desse modo, possuíam pouco ou quase nada de elementos culinários e adaptando- os ao máximo. Suas vestimentas já não eram mais as mesmas, aqui vestiam restos de panos velhos e grossos remendados e, pelo que se conhece da história da África, hoje, pode-se ter uma noção de como eram coloridas e ricas e de acessórios. Ademais, as práticas festivas, danças, músicas, sons também foram comedidas. No que tange à exploração, essa era penosa, árdua e pesada o bastante para ocupar a mente revoltada de um grande contingente populacional. Destarte, a repressão da cultura africana foi tamanha e certeira, que juntamente com exploração incessante, teve a finalidade de gerar esquecimento intenso capaz de enfraquecer e suprimir qualquer movimentação/organização revolucionária. Quando se analisa a estratégia utilizada pelos países europeus em suas colônias, verifica-se que o racismo desempenhará um papel fundamental na internalização da “superioridade” do colonizador pelos colonizados. E ele apresenta, pelo menos, duas faces que só se diferenciam enquanto táticas que visam ao mesmo objetivo: exploração/opressão. Refiro-me, no caso, ao que comumente é conhecido como racismo aberto e racismo disfarçado (GONZALEZ, 2020, p.130). Nesse contexto, na complementação de estratégias de domínio, o termo negro e a cor preta foram associados a coisas ruins, a contextos negativos. Então, para além de injetarem a vergonha em nosso subconsciente, era necessário que também fossemos vistos negativamente. Um dos modos mais eficazes de domesticação utilizados pelas classes dominantes brancas tem sido o de estabelecer uma relação direta do termo negro com tudo aquilo que é mau, indesejável, feio, sujo, sinistro, maldito etc. Quem de nós já não está cansado de ouvir a expressão “os anos negros da ditadura”? Ou então, como diz o poeta famoso, numa música não menos famosa, que “a coisa aqui tá preta”? (GONZALEZ, 2020, p.242). E mais, “o ladro negro da força”; “mercado negro”; “magia negra”; o gato preto dá azar; o símbolo da paz é uma pomba branca e não preta; em conflitos a bandeira branca significa paz entre os envolvidos; o termo “ovelha negra da família” para fazer referência àqueles que são diferentes, negativamente, dos demais membros; “lista negra” para fazer menção a uma lista de inimigos; “cor do pecado” elogio às mulheres pretas, mas que atrela ao pecado, que é condenado pela religião; “inveja branca”, quando você inveja positivamente, ou seja, a inveja é por si só 25 uma coisa ruim, mostra que invejar é você querer o que o outro tem, dessa forma, para amenizar se atrela a palavra branca, a fim de se demonstrar uma coisa boa. Antes de mais nada, importa caracterizar o racismo como uma construção ideológica cujas práticas se concretizam nos diferentes processos de discriminação racial. Enquanto discurso de exclusão que é, ele tem sido perpetuado e reinterpretado de acordo com os interesses dos que dele se beneficiam (GONZALEZ, 2020, p.55). Ainda, é válido evidenciar que as primeiras aparições da noção de branco e negro se deram no contexto religioso e não racial: como já era de se esperar, o branco como sinônimo de luz, divindade, pureza, delicadeza e o negro relacionado com a ruindade, com a diabolicidade, culpa, pecado. Seguindo essa linha de raciocínio, quando começou a se desenvolver as classificações primordiais de raça, as teorias inclinaram para o distanciamento da narrativa religiosa, passando a ser entendida pela maioria dos pesquisadores como um reflexo de geografia e clima, e não por um fator de inferioridade biológica. Os pareceres do final do século XVIII concluíam que uma eventual mudança de tom de pele ocorreria ou estava relacionada para a mudança de regiões tanto quentes quanto frias. Todavia, a pontuação necessária que Barros faz acerca da origem do termo negro é que, muito ainda se debate sobre, porém, ele ressalta que se deve focar no propósito da adaptação/criação do termo. Os antropólogos discutem se a primeira aparição do termo negro deve ser identificada no Ocidente Clássico, ou deve ser investigada a partir da fundamentação da divisão da espécie humana pela raça recentemente criada do ponto de vista histórico: o que importa, aqui, é que em ambos os casos se trata de um olhar retroativo que visa desnudar a fundamentação de uma diferença utilizada para a organização estatal, cuja forma de controle tornou-se um poder soberano capaz de decidir quem vive e quem morre. Isto é, cuja decisão de quem tem ou não o status de cidadão passa pela cor ou pelo costume (BARROS, 2019, p.20). Nesse contexto, os europeus, quando se colocam na posição central do mundo civilizado, quando se colocam como ponto de referência de um ideário social, quando assumem para si e para todos que o branco é o modelo, constituem o EU. Por consequência, os diferentes e tudo que vai contra essa lógica, logo, o preto, são designados como o OUTRO. Ora, entender a posição de estruturação evanescente da identidade implica apreender o modo pelo qual ela se desdobra historicamente em sua relação com a linguagem e o solo social que a produz. De saída, a ficção daquele Eu=Eu estanque perpassa uma inumerabilidade de coisas e Eus. E é então, a partir dessa negatividade ao Eu=Eu que, por fim, o Eu pode pôr-se a si e se conhecer provisoriamente. Esta posição advém do momento em que uma consciência se vê negada por outra consciência igualmente 26 determinada. Dá-se a luta entre iguais que acaba por fundamentar uma desigualdade na relação, ao mesmo tempo que presume uma igualdade buscada como fundamento social em contraposição à desigualdade objetivada tanto simbolicamente quanto socialmente (BARROS, 2019, p.22). Mas, Barros, à luz de Fanon, ainda supera esse entendimento ao mostrar que a situação do negro é pior, na verdade, ele se constitui como NADA, como invisível. Isso porque, ao passo que o eu e o outro mesmo que desiguais conseguiriam constituir uma competição entre si, o nada se forma quando nem se é possível enxergar uma comparação com o eu. Mas, e quando a posição dessa desigualdade dada pelo Outro não é sequer formulada? Quer dizer, quando não há sequer uma estruturação da disputa entre um Eu e o Outro? Demarca-se com isso uma limitação que impõe uma invisibilidade, um não reconhecimento peremptório de um não-Outro inexistente, um nada. É exatamente por isso que a elevação da identidade não-relacional implica uma subordinação colonizada: porque elide as contradições da ficção de um Eu sempre em transformação e se coloca no elemento conservador de um olhar hegemônico que ignora e coisifica aquele que não é tido como um Outro. O negro tornou-se, dessa maneira, o nada. Isso porque a condição própria da existência se efetiva enquanto um olhar do Outro e uma compreensão entregue a nós por esse Outro, que ocorre no chão social (2019, p.22). Fanon evidencia O negro, nesse sentido, não é um Outro do branco em sua universalidade colonizadora, mas um inexistente numa universalidade que elide ao negro qualquer possibilidade de reconhecimento. Contraditoriamente, porém, o negro só existe em relação a essa exclusão do domínio branco. Ultrapassar essas limitações é o fim previsto na violência clínica fanoniana. (BARROS, 2019, p.23). Ou seja, a existência do negro esteve atrelada à existência do branco, o corpo negro não existia puro e unicamente sozinho, ele foi enxergado como reflexo e, assim sendo, os escravos tornaram-se obrigados a agir como extensão das vontades do seu senhor. Num primeiro momento o escravo é posto como mero instrumento e, portanto, reflexo do senhor. É como se na relação colonizada estivesse preso à descorporeidade do branco. O branco é um desejo sem corpo que obriga o negro a agir como seu corpo. Porém, o escravo sabe que não age como uma extensão do corpo do senhor e por isso sabe que pode ser um agente autônomo. No entanto, nessa lógica, o escravo ainda age como mero reflexo, pois ainda se encontra no interior da estrutura de dominação imposta pelo senhor (BARROS, 2019, p.46). Dessa forma, quando o europeu cria a construção do eu e do outro, ele passa a enxergar esse segundo como inimigo, que precisa servir o primeiro, tendo em vista que este é o centro, e mais, que precisa ser eliminado. A escravidão foi uma imensa estrutura que tratou como 27 descartáveis os pretos, destarte, o intuito era que estes fossem um pequeno instrumento da grande expansão e supremacia do branco europeu. Negro e raça constituem assim os polos convergentes de um mesmo delírio europeu: a redução do corpo e do ser vivo a uma questão de aparência. Como tal, elimina-se de si a noção de reconhecimento das diferenças como constitutivo do Eu europeu; há, portanto, aquilo que Mbembe chamou de alterocídio, ou seja, o Outro como objeto ameaçador que precisa ser extinguido (BARROS, 2019, p.18). Seguindo essa linha de raciocínio, o negro é produzido. É absurdo e insano, mas é verídico pensar que todo um povo, falando em Brasil, 54% da população, segundo dados obtidos no ano de 2020, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, é fruto de uma soberba e presunçosa soberania, que foi a força motriz desencadeadora da escravidão. Ou seja, este nojento sistema definiu e fundamentou toda uma visão de mundo de um povo, a consciência, o modo de agir e pensar, “Mitos que serão abraçados acriticamente inclusive por quase todos os membros da Negritude” (BARROS, 2019, p. 51), ou seja, tudo. [...]Mbembe, que é inigualável em demonstrar o que importa, enterrou a noção de igualdade europeia com uma impactante fórmula: “o negro não existe enquanto tal. É constantemente produzido. Produzir o negro é produzir um vínculo social de submissão e um corpo de exploração”. Também Fanon em algum ponto de Peles negras é categórico: é o branco que cria o negro. Em todo caso o fundamento da identidade negra foi concomitante com o delírio narcísico branco e europeu (BARROS, 2019, p.17). Falando da estrutura organizacional da escravidão brasileira, tem-se conhecimento de que os escravos eram divididos entre os de dentro e os de fora. As escravas e os escravos de dentro exerciam tarefas domiciliares, lavar, passar, varrer, cozinhar, cuidar das crianças, servir às senhoras e os senhores, e, ainda quando se pensa mais especificamente nas mulheres, estas possuíam certas especificidades em suas tarefas, as quais serão abordadas mais adiante. No que diz respeito aos de fora, estes eram encarregados de serviços e trabalhos nas plantações. Também, é válido ressaltar outra diferenciação de acordo com o quesito econômico de produtividade: De acordo com Freitas, duas eram as categorias de escravos: os produtivos e os não produtivos, isto é, os que trabalhavam diretamente para a sustentação econômica do regime (escravos do eito) e aqueles que eram dirigidos para prestação de serviços (feitores, criados, negros de ganho etc.) (GONZALEZ, 2020, p.52). 28 E as mulheres? Entretanto, o sistema não suavizou o trabalho dessa mulher. Vamos encontrá-la também nas duas categorias de Freitas: a trabalhadora do eito e a mucama. E o que percebemos é que, em ambas as situações, coube-lhe a tarefa de doação de força moral para seu homem, seus filhos ou seus irmãos de cativeiro (GONZALEZ, 2020, p.52). Quando é feito o recorte de gênero, é identificável essa influência direta na organização da escravidão, é possível enxergar outras atrocidades e tarefas específicas condicionadas às mulheres. Enquanto escrava do eito, ninguém melhor do que a mulher para estimular seus companheiros para a fuga ou a revolta - trabalhando de sol a sol, subalimentada e, muitas vezes, cometendo o suicídio para que o filho que trazia no ventre não tivesse o mesmo destino que ela. Vale notar que a vida média de um escravo produtivo não ultrapassava os dez anos. Depois disso, os senhores dele se livravam mediante a concessão da alforria, que significava um tipo especial de “liberdade”: a de morrer de fome, em função da invalidez precocemente adquirida (sendo este o sentido da “Lei” dos Sexagenários) (GONZALEZ, 2020, p.53). Desde a colonização, a condição de ser do gênero feminino traz consigo desvantagens. As escravas mulheres sofriam, para além das mesmas punições que os escravos homens, com o estupro, tanto dos seus senhores quanto dos capitães do mato, além de serem “instrumento” para iniciação da vida sexual dos filhos de seus donos. Outrossim, às escravas mulheres de dentro, que trabalhavam diretamente na casa grande, foi-lhes incumbida a tarefa de cuidar das crianças, exercendo grande influência na educação dessas. Desse modo, pode-se notar outra forma de como a cultura africana se misturou com a portuguesa, originando a cultura brasileira. Enquanto mucama, cabia-lhe a tarefa de manter, em todos os níveis, o bom andamento da casa-grande: lavar, passar, cozinhar, fiar, tecer, costurar e amamentar as crianças nascidas do ventre “livre” das sinhazinhas. E isso sem contar com as investidas sexuais do senhor branco que, muitas vezes, convidava parentes mais jovens para se iniciarem sexualmente com as mucamas mais atraentes. Desnecessário dizer o quanto eram objeto do ciúme rancoroso da senhora. Após o trabalho pesado na casa-grande, cabia-lhes também o cuidado dos próprios filhos, além da assistência aos companheiros chegados das plantações, engenhos etc. quase mortos de fome e de cansaço (GONZALEZ, 2020, p.53). “Mãe preta” foi a denominação dada a essas escravas, as quais exerciam as tarefas de cuidado dos filhos de suas senhoras e senhores. A elas foram associados os elementos do alimento e do afeto, o primeiro, no sentido de que se tinha o mito, o qual dizia que o leite das mulheres pretas eram mais ricos e mais fartos e assim davam mais sustância ao crescimento das 29 crianças; já o segundo aspecto, na medida que essas mulheres fizeram todo o papel de mãe, contando histórias, criando laços, pelo menos na primeira infância. Muitos criticam o papel da “mãe preta”, dizem que essa foi uma das formas pacíficas de aceitação da escravidão. Isso nunca existiu, em nenhum momento um povo, como já dito anteriormente, que foi arrancado seu lar, despido de seus valores e costumes e forçados a trabalhar em um sistema intenso de exploração e repressão, aceitou pacificamente essas situações. Resistência e revolução possuem diversas maneiras e instrumentos para se concretizarem, e olhando especificamente para forma de atuação das “mães pretas” podemos identificar seu modus operandi na transmissão das línguas africanas, nas histórias de dormir contadas às crianças, ou seja, deixando viva a cultura africana e, certamente, transmitindo-a. Foi em função de sua atuação como mucama que a mulher negra deu origem à figura da mãe preta, ou seja, aquela que efetivamente, ao menos em termos de primeira infância (fundamental na formação da estrutura psíquica de quem quer que seja), cuidou e educou os filhos de seus senhores, contando-lhes histórias sobre o quibungo, a mula sem cabeça e outras figuras do imaginário popular (Zumbi, por exemplo). [...] Entretanto, não aceitamos tais estereótipos como reflexos “fiéis” de uma realidade vivida com tanta dor e humilhação. Não podemos deixar de levar em consideração que existem variações quanto às formas de resistência. E uma delas é a chamada “resistência passiva”. A nosso ver, a mãe preta e o pai-joão, com suas histórias, criaram uma espécie de “romance familiar” que teve uma importância fundamental na formação dos valores e crenças do povo, do nosso Volksgeist. Conscientemente ou não, passaram para o brasileiro “branco” as categorias das culturas africanas de que eram representantes. Mais precisamente, coube à mãe preta, enquanto sujeito suposto saber, a africanização do português falado no Brasil (o “pretuguês”, como dizem os africanos lusófonos) e, consequentemente, a própria africanização da cultura brasileira (GONZALEZ, 2020, p.54). Abrindo parênteses para o tópico da resistência, para além do acima mencionado, é válido ressaltar outros métodos utilizados pelos escravos. Em primeiro plano, pode-se citar as fugas, tanto individuais quanto coletivas. Por consequência, os quilombos, uma espécie de acampamento dos escravos fugidos e, principalmente, onde organizavam ataques aos engenhos, outra espécie de resistência. De acordo com as informações que obtivemos da historiadora negra Maria Beatriz Nascimento, já em 1559 se tem notícia da formação dos primeiros quilombos, essas formas alternativas de sociedade, na região das plantações de cana do Nordeste. E os quilombos existiram em todo o país como a contrapartida, o modo de resistência organizada do povo negro contra a superexploração de que era objeto. Sua distribuição geográfica se articulou com a migração interna da população escrava (principalmente depois de 1850), forçada a satisfazer as exigências econômicas regionais do sistema. Os chamados “ciclos da economia brasileira” do período escravista (açúcar, mineração e café, além de outros mais secundários como algodão, fumo etc.) obrigavam a população escrava a tais deslocamentos, e esta, por sua vez, resistia com a formação dos quilombos (GONZALEZ, 2020, p.50). 30 Além desses, outro método utilizado foram as revoltas, tanto no meio rural quanto no meio urbano, que se davam por meio dos assassinatos dos feitores, dos capitães do mato e, até mesmo, dos senhores, também, através do suicídio, do aborto, a fim de que seus filhos não fossem escravizados. Ademais, outro grande trunfo utilizado era a desobediência, a recusa de exercer as tarefas designadas e os movimentos armados, nos quais a população negra foi, em sua grande proporção, atuante principal. Vejamos: A resistência negra também se deu em termos de movimentos urbanos armados com aqueles que, iniciando-se em 1807 na cidade de Salvador, culminariam com a famosa Revolta dos Malês (muçulmanos) em 1835. Sua importância maior reside no fato de que, diferentemente dos demais, seu objetivo primordial era a efetiva tomada do poder. Nela se destacaria a figura de uma mulher extraordinária, Luísa Mahin, que não só participou da organização como também da luta armada contra a minoria branca dominante. [...] Desnecessário dizer que o negro não deixou de também participar nos movimentos de libertação nacional, ocorridos tanto no período colonial quanto no império. Referimo-nos à chamada Revolta dos Alfaiates, à Confederação do Equador, à Sabinada, à Balaiada, à Revolução Praieira etc. Mas o fato é que, apesar de sua importante contribuição, o negro jamais recebeu os benefícios obtidos pelos demais setores (“brancos”) da sociedade brasileira (GONZALEZ, 2020, p.51). Importante salientar, que esse último aspecto mencionado por Lélia, ou seja, a falta de notoriedade às lutas e às conquistas da população preta deste país, é uma das grandes motivações de confecção do presente trabalho. O que buscarei, incessantemente, destacar é como sempre tivemos, e a autora como mulher preta, coloca-se no meio, presente e, diversas vezes, liderando revoluções, que provocaram e, até hoje provocam mudanças na estrutura social do Brasil. A posteriori, quando se fala dos estupros sofridos pelas escravas, deve-se pensar em toda ideologia construída como pano de fundo motivador: a sexualização do corpo preto. De duas uma, ou a mulher preta é ridicularizada ou sexualizada. Ridicularizada quando sua cor, seus traços, sua feição não é o padrão ideal da beleza feminina, isso na época da escravidão e ainda hoje. Foi ensinado que o cabelo crespo é ruim, que o nariz largo é feio, que a boca grande e os lábios carnudos são grosseiros e, acima de tudo, que a pele preta não é o ideal. E assim, quanto mais clara a pele negra fosse, quanto mais os traços fossem parecidos com os dos brancos, e aqui pensando na miscigenação que será abordado mais adiante, mais fácil seria a inserção e a aceitação social. Mas o aspecto que nos interessa aqui é o do modelo estético ocidental (branco) que nos foi imposto como superior ideal a ser atingido. Por isso mesmo nós, negras e negros, éramos sempre vistos como o oposto daquele modelo através do reforço pejorativo das nossas características físicas: cabelo ruim, nariz chato ou fornalha, beiços ao invés de lábios, tudo isso resumido na expressão “feições grossas ou 31 grosseiras”. E quantos de nós se deixaram enganar por tudo isso, acreditando realmente que ser negro é ser feio, inferior, mais próximo do macaco do que do homem (branco, naturalmente). E a ideologia do branqueamento estético destilou o seu veneno mortal não apenas no interior da comunidade negra, mas no falseamento da nossa própria história (GONZALEZ, 2020, p.242). Outrossim, aprofundando o aspecto de sexualização do corpo negro durante a escravidão, principalmente do corpo da mulher negra, ocorre primeiro a etapa de seleção, ou seja, entre as escravas mulheres, selecionava-se as de melhor aparência para exercerem as tarefas e trabalharem na casa grande. Tem-se como melhor aparência as de corpos curvilíneos, seios fartos, bundas grandes e com o rosto marcado por traços “mais delicados”, classificados como “finos”. Essa seleção já era estrategicamente pensada pelos senhores, com o intuito de que elas servissem como objeto sexual. Desse modo, deu-se a miscigenação deste país. A miscigenação brasileira é tratada como um belo fenômeno, em que dois povos se uniram durante o período de colonização e decidiram, de forma consentida e de livre espontânea vontade, formar um terceiro grupo de população, que, futuramente, denominariam-se brasileiros. Seguindo essa linha ilusória, surgirá o mito da democracia racial, que por hora será somente pincelado, fortemente defendido por Gilberto Freyre. A diferença (se é que existiu), em termos de Brasil, estava no fato de que os “casamentos inter-raciais” nada mais foram do que o resultado da violentação de mulheres negras por parte da minoria branca dominante (senhores de engenho, traficantes de escravos etc.). E esse fato daria origem, na década de 1930, à criação do mito que até os dias de hoje afirma que o Brasil é uma democracia racial. Gilberto Freyre, o famoso historiador e sociólogo, é seu principal articulador, com sua teoria do luso tropicalismo. [Segundo Freyre, os portugueses foram superiores aos demais europeus em suas relações com os povos colonizados porque não eram racistas. Daí o processo de miscigenação ocorrido no Brasil e a harmonia racial que o caracteriza. Todavia, o que Freyre não leva em conta é que a miscigenação se deu às custas da violentação da mulher negra]. O efeito maior do mito é a crença de que o racismo inexiste em nosso país graças ao processo de miscigenação (GONZALEZ, 2020, p.50). Como já explicitado, a população deste país é fruto da intensa crueldade do estupro. A sexualização do corpo da mulher escrava é a continuidade do processo de produção do outro de Fanon. Esse outro, o negro, é animalesco, é irracional, é selvagem, desprovido de alma, não se insere no contexto de civilização do eu branco europeu, então, como já visto, ele sendo reduzido a nada, porque se esperava que os senhores entenderiam e enxergariam a mulher negra e seu corpo? Elas foram invisibilizadas como seres humanos, elas não eram nada além de objeto, o qual sendo de propriedade dos senhores estavam ali disponíveis para os servir, também, sexualmente. Também é válido ressaltar aqui, que além da violência sexual suportada pelas 32 escravas, estas ainda sofriam com a punição dada pelas suas senhoras, como forma de vingança devido ao ciúmes. Mais adiante será visto como a erotização e a hiper sexualização, ainda incidirá na vida das mulheres pretas. Será analisada a figura da mulata, que é fruto dessa construção de “mulher fácil”, durante o período da colonização. Vale observar que a expressão popular mencionada anteriormente - “Branca para casar, mulata para fornicar, negra para trabalhar” - tornou-se uma síntese privilegiada de como a mulher negra é vista na sociedade brasileira: como um corpo que trabalha, e que é super explorado economicamente, ela é uma faxineira, cozinheira, lavadeira etc. que faz o “trabalho pesado” das famílias de que é empregada; como um corpo que gera prazer e que super explorado sexualmente, ela é a mulata dos desfiles de Carnaval para turistas, de filmes pornográficos etc., cuja sensualidade é incluída na categoria do “erótico-exótico” (GONZALEZ, 2020, p.69). 1.3 O Brasil pós “abolição da escravidão”: a estruturação da sociedade brasileira e a posição da mulher preta Caminhando na linha do tempo, no dia 13 de maio de 1888 foi decretada a falsa abolição da escravatura nas terras brasileiras, pela Princesa Isabel. O “fim” da escravidão no Brasil se deu de maneira forçada, visto que, no exterior, a prática já estava sendo condenada. Antes desse decreto, em 1845, instaurou-se a Lei Bill Aberdeen, que dava poderes à marinha inglesa de destruir e/ou capturar os navios negreiros que viessem da África para o Brasil; depois em 1850, foi promulgada a Lei Eusébio de Queirós, a qual reprimia o tráfico negreiro. Abrindo parênteses, também, neste mesmo ano, promulgou-se a Lei de Terras, a qual foi uma forma de prevenção da elite agrária do país, que já estava atenta ao fim da escravidão. Tal lei definia normas acerca da posse, da utilização e da venda de terras, a contar do Segundo Reinado. Logo, como a compra e venda se tornara a única forma de adquirir terras, ela surgiu com intuito de preservar a concentração agrária nas mãos de poucos, de fato tomando o status de propriedade privada. Já em 1871, veio a Lei do Ventre Livre, que dizia que, a partir daquele momento, todos filhos de escravas eram livres; em 1885, foi promulgada a Lei dos Sexagenários, a qual deu liberdade para todos escravos e escravas acima dos sessenta anos de idade. A libertação paulatina de filhos de escravizados (Lei do Ventre Livre) e dos escravizados que conseguiam chegar até os 60 anos (Lei dos Sexagenários) permitiu que os senhores de escravos fossem liberados de determinados “custos” – manutenção das crianças e idosos da senzala que pouco ou não produziam. Um pouco antes, a lei que proibia o tráfico de escravos (Lei Eusébio de Queiroz, 1850), possibilitou o 33 redirecionamento dos recursos empregados no tráfico para investimentos capitalistas. (OLIVEIRA, Revista Fórum, 2015) Dessa sorte, como ficou evidente, o “fim da escravidão” neste país somente aconteceu, não se concretizou, pois, graças a pressões e a boicotes exteriores, não havia mais condições de se manter, e não de forma espontânea e crítica, pensando como a prática se configurava absurdamente ultrajante. Essa história, muito bem contada, de que a liberdade foi concedida, foi dada como presente, é mais um método dos brancos de apagarem o protagonismo das lutas, das diversas formas de revolução e de boicote dos pretos e pretas, que buscavam, dia e noite, o fim do horror vivido por mais de 300 anos. Fala-se em uma falsa abolição, tendo em vista que se esperava que a população negra recém-liberta fosse devidamente inserida na sociedade e, como se sabe, não foi o que aconteceu. Seguindo o mesmo ideário da inferioridade biológica do negro, dissipado na escravidão, a sociedade e o governo brasileiros intensificaram a exclusão dessa nova parcela da população. Agora a desculpa não era mais por ser escravo, era, nitidamente, por ser preto e preta. Como lidar com um grande contingente populacional que expressamente compunha socialmente o país? A vergonha e o horror dos brancos, em se imaginarem dividindo os mesmos espaços e, até mesmo, estar em um grau comparativo com pretas e pretos, era tão grande, que eles precisavam fazer algo. E fizeram. Complexo A nação tem vergonha de si mesma Tem vergonha de si mesma tem vergonha Tem vergonha de minha presença Tem vergonha da minha cultura Tem vergonha de meu sangue que em suas veias circula Então se volta contra mim maldosamente Então se volta contra mim me pisa me humilha Distorce minha história deseja que eu desapareça Eu era livre na África Não vim aqui porque quis De repente precisaram de braços que construísse este país E me arrebataram para cá preso em correntes Fui eu que construí o que esta nação tem Agora a nação tem vergonha de si mesma Agora tem vergonha de minha presença Agora tem vergonha de minha cultura Agora tem vergonha de meu sangue Agora se volta contra mim Fui eu (repito e repetirei sempre) Fui eu quem construiu o que esta nação tem Não quero saber de coisa alguma Só sei que esta nação é minha também (ASSUMPÇÃO, 2020, p.98). 34 Pairava no imaginário da época que por haver grande grupo de pessoas pretas e, por consequência, por conta da inferioridade psíquica delas, o Brasil estava sendo prejudicado por um suposto atraso em relação a outros países. Dessa forma, iniciou-se o grande projeto de embranquecimento, através de políticas nitidamente eugenistas. O racismo latino-americano é suficientemente sofisticado para manter negros e índios na condição de segmentos subordinados no interior das classes mais exploradas, graças à sua forma ideológica mais eficaz: a ideologia do branqueamento. Veiculada pelos meios de comunicação de massa e pelos aparelhos ideológicos tradicionais, ela reproduz e perpetua a crença de que as classificações e os valores do Ocidente branco são os únicos verdadeiros e universais. Uma vez que estabelecido, o mito da superioridade branca demonstra sua eficácia pelos efeitos de estilhaçamento, de fragmentação da identidade racial que ele produz: o desejo de embranquecer (de “limpar o sangue”, como se diz no Brasil) é internalizado, com a simultânea negação da própria raça, da própria cultura (GONZALEZ, 2020, p.131). É válido iniciar essa discussão, retomando um ponto importante: o estupro sofrido pelas escravas, também é considerado um mecanismo dessa política, para tanto, o incentivo ao casamento inter-racial. Ademais, o maior instrumento utilizado pelo governo da época para concretizar o sonho do branqueamento, foi o incentivo à imigração. Sua expressão mais objetiva, contudo está no texto do decreto-lei nº 7.967, de 19 de setembro de 1945, o qual, em seu artigo 2º, afirma: “Atender-se-á, na admissão dos imigrantes, à necessidade de preservar e desenvolver, na composição étnica da população, as características, mais convenientes da sua ascendência europeia, assim como a defesa do trabalhador nacional” (grifo nosso) (GONZALEZ, 2020, p.68). Quando é decretado o fim da escravidão, os pretos e pretas, que se encontravam no país, almejavam ocupar formal e dignamente os postos de trabalhos. Entretanto, o plano imigracionista do governo substituía a mão de obra do negro pelo imigrante. Esse projeto é estabelecido inicialmente em São Paulo, no ano de 1840, ele passa a disseminar, através de cartazes e campanhas, a teoria da inferioridade biológica dos negros e negras, que estavam atrasando o desenvolvimento do país, destarte, dificultando a inserção deles no âmbito trabalhista. Concomitantemente, outra frente de atuação governamental, deu-se por meio da facilitação da vinda dos imigrantes com oferecimento de trabalho e de moradia. Nesse sentido, diversos políticos e intelectuais proliferavam discursos, dizendo que a mão de obra branca, de europeus não portugueses, seria mais produtiva. Chama a atenção o fato de que a reflexão e o projeto da intelligentsia brasileira, desde que começou a pensar num possível fim da escravidão, estiveram vinculados à proposta de importar mão-de-obra europeia. Sabemos que num período de menos de 35 25 anos (de 1890 a 1914) chegaram 2,5 milhões de europeus ao Brasil; quase um milhão deles (987.000) tinha suas viagens de navio financiadas pelo Estado. Um documento, publicado pela Diretoria Geral de Estatística e assinado por Oliveira Vianna (apud ANDREWS, 1997, p. 97; ênfase no original), avalia o resultado do censo de 1920 da seguinte maneira: [constata-se] ―uma tendência que está se tornando mais visível e definida: (...) [a] progressiva arianização de nossos grupos regionais. Ou seja, o coeficiente da raça branca está se tornando cada vez maior em nossa população (HOFBAUER, 2011, p.2). Dessa maneira, nota-se a chegada de uma adaptação do modelo antigo da escravidão, identifica-se um projeto organizado para perpetuar a exclusão social da população negra, com uma finalidade nítida de que tal boicote exterminasse de vez a parcela remanescente, que sobreviveu às atrocidades do sistema escravocrata. Liberdade passa a assumir diferentes conotações para as ex-escravas e ex-escravos, muitas vezes, ilusórias. Às vezes, ser livre significou poder viver longe da tutela e do teto senhorial ou poder ir e vir sem controle ou restrições; outras vezes, significou poder reconstruir laços familiares e mantê-los sem o perigo de ver um membro da família ser comercializado pelo senhor. Muitas vezes, a liberdade significou a possibilidade de não servir a mais ninguém, e, aqui, a palavra liberdade adquire dimensões econômicas, conectando-se à luta pelo acesso à terra: durante a escravidão e depois da abolição, muitos ex- escravos lutaram para mantes condições de acesso à terra conquistadas durante o cativeiro (LARA, 1998, p.28). Por conseguinte, esse grupo, por falta de oportunidades, derivada da discriminação racial, e pela condição econômica, ou melhor, pela falta dela, começa a se aglomerar em cortiços nas regiões centrais da cidade, pensando aqui como referência as capitais Rio de Janeiro, Fortaleza, Salvador. Os cortiços eram grandes casas imperiais, as quais acomodavam famílias ricas, mas que com escoar do tempo, não foram preservadas. Posto isto, passaram a ser ocupadas por inúmeras famílias pretas, as quais não possuíam outro lugar para se alojarem. Era uma moradia precária, sem acesso à água limpa, à coleta de lixo e esgoto, à luz, à ventilação e, ainda, com grande concentração de doenças. Contudo, nessa mesma época, as grandes cidades brasileiras estavam passando pelo seu processo de urbanização e embelezamento, isso porque se inaugurou o costume da importação da cultura internacional. Prova disso, Paris como inspiração para o Rio de Janeiro. Dessa forma, começaram os processos de expulsão dos moradores e destruição dos cortiços, obrigando-os a ocuparem as regiões periféricas das cidades, surgindo, assim, as primeiras favelas do país. Das senzalas para as favelas. Passou a ser notado então, em diversas capitais brasileiras, uma “cidade legal versus uma cidade ilegal” (MARICATO, 2002) formando assim uma marcante segregação socioespacial que está vigente até os dias atuais. É nas periferias, nos morros, nas 36 favelas que vivem os negros e pobres, com desemprego ou subempregos, com moradias sem condições de habitabilidade e com a prática dos serviços sociais praticamente inexistentes. “Ali onde a exclusão confunde-se com confinamento e serve para armazenar grandes contingentes populacionais em situação de longa exclusão, porque não têm acesso ao emprego e a renda” (CARRIL, 2006, p.17). Seguindo a análise das relações raciais no país após a abolição, com o que já foi falado e com o que vem a seguir, é evidente que o racismo é perpetuado, beneficiando os interesses de determinados grupos. Acontece que dois fatores irão contribuir mais fortemente: o capitalismo e o mito da democracia racial, ou ainda, podemos colocá-los como aspectos intrínsecos para existência um do outro. O primeiro à medida que, em uma sociedade como a nossa, ter um poder aquisitivo expressivo é uma das maiores expressões de liberdade e, como foi visto, quando as negras e negros foram libertos nenhuma política pública foi instituída para que eles adquirissem empregos, terras, moradias dignas, ou seja, não houve uma real inserção social dessa parcela. Desse modo, a população branca já vinha acumulando riquezas com a exploração do trabalho desses, então, só precisariam manter. Já a população preta que não tinha nada e ainda encontrou dificuldades para conseguir, entrou no sistema de forma desigual. Em termos de manutenção do equilíbrio do sistema como um todo, ele é um dos critérios de maior importância na articulação dos mecanismos de recrutamento para as posições na estrutura de classes e no sistema da estratificação social. Desnecessário dizer que a população negra, em termos de capitalismo monopolista, é que vai construir, em sua grande maioria, a massa marginal crescente. Em termos de capitalismo industrial competitivo (satelitizado pelo setor hegemônico), ela se configura como exército industrial de reserva (GONZALEZ, 2020, p.35). Logo, com toda a análise, desde os primórdios da construção social brasileira, podemos ver que a maioria da população pobre periférica sempre foi a preta. Isso também se repete nos índices de fome, de baixa escolaridade, de baixa expectativa de vida, por consequência, de mortalidade, de violência policial, de violência obstétrica, entre outros tantos índices, que podemos verificar, encontramos a população preta em desvantagem. A raça como atributo socialmente elaborado, está relacionada principalmente ao aspecto subordinado da reprodução das classes sociais, isto é, a reprodução (formação-qualificação-submissão) e a distribuição dos agentes. Portanto, as minorias raciais não estão fora da estrutura de classes das sociedades multirraciais em que as relações de produção capitalistas - ou outras relações de produção, no caso - são as dominantes. Outrossim, o racismo, como articulação ideológica incorporada em e realizada através de um conjunto de práticas materiais de discriminação, é o determinante primário da posição dos não brancos dentro das relações de produção e distribuição. Como se verá se o racismo (bem como o sexismo) torna-se parte da estrutura objetiva das relações ideológicas e políticas do capitalismo, então a reprodução de uma divisão racial (ou sexual) do trabalho pode ser explicada sem 37 apelar para preconceito e elementos subjetivos (GONZALEZ apud HASENBALG, 2020, p.34). No que tange o mito da democracia racial, este colabora no sentido de que, mascarando a existência do racismo, ignorando-o, não discutindo sobre as diferenças incidentes na vida de pessoas pretas em comparação às de pessoas brancas, acaba por fortalecer o racismo. Pois, ao não encarar a realidade de fato, mudanças que são necessárias para alterar essa realidade não são feitas, assim, o ciclo de discriminações e de condições desiguais vão se repetindo, de forma legítima. A primeira, desenvolvida por Gilberto Freyre na década de 1930, constitui a visão pública e oficial com relação aos negros. De acordo com ela, estes são cidadãos como quaisquer outros e, por causa disso, não são submetidos ao preconceito ou à discriminação (GONZALEZ, 2020, p.66). Todos os aspectos já analisados vão nos mostrando como a sociedade brasileira foi se estruturando, moldando o formato de pirâmide que se tem hoje. No período da escravidão, pessoas brancas criaram uma hierarquia social baseada em raça e sexo que posicionou homens brancos em primeiro lugar, mulheres brancas em segundo, apesar de às vezes serem colocadas na mesma posição dos homens negros, que estavam em terceiro lugar, e as mulheres negras eram as últimas (hooks, 2020, p.93). Dito isso, como o recorte do presente trabalho é a mulher preta, serão, agora, evidenciadas as diferenciações e as consequências, frutos do racismo e do sexismo, que refletiram e refletem no dia a dia delas. Na vida das famílias pretas, muito se fala em matriarcado. A configuração dessas tem como pilar familiar a mulher negra, isso porque é muito mais fácil encontrar a seguinte composição: mãe com seus filhos e filhas e, até mesmo, com a inclusão de outros parentes como irmãs, irmãos, avós; do que encontrar, juntamente, a presença do pai. Quando se encontrava a presença do homem, este era “objeto da perseguição, repressão e violência policial (para cidadão negro brasileiro, desempregado é sinônimo de vadiagem; é assim que pensa e age a polícia brasileira)” (GONZALEZ, 2020, p.58), com isso, elas contribuíam de forma igual em comparação aos seus companheiros, às vezes até mais. Desse modo, as mulheres pretas ficavam encarregadas dos trabalhos domésticos, leia-se a subsistência da sua própria casa, os cuidados com seus filhos e demais familiares, e, ainda, do seu trabalho fora de casa. 38 No período que imediatamente se sucedeu à abolição, nos primeiros tempos de “cidadãos iguais perante a lei”, coube à mulher negra arcar com a posição de viga mestra de sua comunidade. Foi o sustento moral e a subsistência dos demais membros da família (GONZALEZ, 2020, p.40). Elas ocuparam massivamente e por muito tempo os setores de produção da indústria têxtil, para além da agricultura e dos serviços pessoais. Todavia, com a urbanização e a industrialização, esse primeiro setor entrou em decadência, por consequência, essas mulheres foram perdendo seus empregos. O racismo, como em tudo na vida das pessoas pretas, também incidia fortemente na distribuição dos empregos. Essas mulheres buscaram opções alternativas, como na indústria de roupas e alimentos, contudo, a prioridade era dada às operárias brancas e às “morenas”. Cada vez mais, as mulheres estavam buscando seu espaço no âmbito trabalhista, assim, muitos espaços que antes eram somente ocupados por homens, sofreram um processo de feminização, logo, teoricamente, mais oportunidades de trabalho as mulheres teriam. De fato, isso aconteceu, mas não para as mulheres pretas. O que se opera no Brasil não é apenas uma discriminação efetiva; em termos de representações sociais mentais que se reforçam e se reproduzem de diferentes maneiras, o que se observa é um racismo cultural que leva, tanto algozes como vítimas, a consideram natural o fato de a mulher em geral e a negra em particular desemprenharem papéis sociais desvalorizados em termos de população economicamente ativa (GONZALEZ, 2020, p.42) . O setor burocrático foi um dos que mais abriram espaços para contratação de mulheres. Mas para quais mulheres? Não as pretas. Esses serviços exigiam, expressamente em seus anúncios, certo grau de escolaridade e de “boa aparência”. As mulheres pretas, normalmente, não se encaixavam em nenhum dos dois pré-requisitos, tendo em vista, que o nível de escolaridade delas era baixo, e no que diz respeito à “boa aparência”, esta significava ser uma mulher branca. De qualquer modo, novas perspectivas se abriram nos setores burocráticos de nível mais baixo, que se feminizaram. É o caso da prestação de serviços em escritórios, bancos etc. Mas tais atividades exigem certo nível de escolaridade que a mulher negra não possui. Tal fato criou muito mais motivos para a reafirmação da discriminação, uma vez que o contato com o público exige “educação” e “boa aparência”. [...] Que se leiam os anúncios dos jornais na seção de empregos; as expressões “boa aparência”, “ótima aparência” etc. constituem um código cujo sentido indica que não há lugar para a mulher negra. As possibilidades de ascensão a determinados setores da classe média são praticamente nulas para a maioria absoluta (GONZALEZ, 2020, p.41). 39 Nesse momento, vê-se duas movimentações importantes que vão alterar a antiga configuração, a inserção da população negra na sociedade civil e, posteriormente, o movimento das mulheres que buscavam conquistar espaços e direitos. Então, agora falando em mulheres, no âmbito trabalhista, devemos pontuar ainda a questão da diferença salarial. As mulheres, ocupando os mesmo cargos e funções que homens, ganhavam menos e isso se dava com tamanha naturalidade pelos empregadores, que não viam tal prática como uma problemática. E para as mulheres pretas ainda pior, pois já que naqueles pré-requisitos, elas não encaixavam, elas nem chegavam a um patamar de comparação. E aqui vemos, mais uma vez, a construção do nada de Fanon, a mulher preta não chega a se vestir como outro para ser comparada ao eu da mulher branca, no ambiente de trabalho. Ou seja, elas não estavam e, ainda, não estão concorrendo em pé de igualdade. Então, onde estavam as mulheres pretas? Logo nesse período que sucedeu o fim do período escravocrata, encontra-se a mulher preta em dois cargos: mulata e empregada doméstica. Mulata deixa de ser um termo racista que se refere à filha de uma pessoa preta com uma pessoa branca, para assumir a significação de objeto sexual, produto de exportação. Lélia Gonzalez aponta que a origem desse serviço vem das Escolas de Samba. A profissão de mulata é exercida por jovens negras que, num processo extremo de alienação imposto pelo sistema, submetem-se à exposição de seus corpos (com o mínimo de roupa possível, através do “rebolado”, para o deleite do voyeurismo dos turistas e dos representantes da burguesia nacional. Sem se aperceberem, elas são manipuladas, não só como objetos sexuais, mas como provas concretas da “democracia racial” brasileira; afinal, são tão bonitas e tão admiradas! Não se apercebem de que constituem uma nova interpretação do velho ditado racista “Preta pra cozinhar, mulata pra fornicar e branca pra casar”. Em outros termos, são sutilmente cooptadas pelo sistema sem se aperceberem do alto preço a pagar: o da própria dignidade. A origem de tal “profissão” se encontra no processo de comercialização e distorção (para fins não apenas ideológicos) de uma das mais belas expressões populares da cultura negra brasileira: as escolas de samba. Sua invasão, de início por representantes dos setores ditos progressistas e, sem seguida, pelas classes média e alta que introduziram uma série de valores diretamente oriundos do sistema hegemônico, culminou com esse tipo de manipulação/exploração sexual, social e econômica de muitas jovens negras de origem humilde (GONZALEZ, 2020, p.59). Diante das pesquisas, é perceptível como essas mulheres foram colocadas nessa posição. Não abriram espaço para elas ocuparem empregos formais, reduziram-nas, mais uma vez, a um mero corpo, fizeram uma lavagem cerebral, por meio do mito da “democracia racial”, mostrando como isso era uma forma de valorizarem-nas, disseminaram uma linha de pensamento de que isso era oportunidade, isso - a objetificação do corpo preto - era uma ótima 40 e única oportunidade, já que eram escolhidas as “mais bonitas”, aproveitaram-se de um estado de necessidade e de busca pela independência dessas mulheres. Outrossim, a segunda “opção” era a de empregada doméstica nas casas das famílias brancas de classes média e alta. Mais uma vez, a continuação da escravidão chama atenção. Enquanto empregada doméstica, ela sofre um processo de reforço quanto à internalização da diferença, da subordinação e da "inferioridade" que lhe seriam peculiares. Tudo isso acrescido pelo problema da dupla jornada que ela, mais do que ninguém, tem de enfrentar (GONZALEZ, 2020, p.58). Esse ponto é principal, quando no segundo capítulo analisarmos mais profundamente algumas peculiaridades do feminismo negro. Aqui ficamos com o seguinte fato que inicia essa discussão, as mulheres pretas trabalham como domésticas na casa das mulheres brancas, o que contribui para que estas últimas pudessem sair e alçar voos nas suas conquistas feministas, por conseguinte, as mulheres brancas vão assumindo uma posição acima das mulheres pretas. As mulheres pretas são a base da pirâmide social, a sua importância pode ser perfeitamente vislumbrada na seguinte fala de Angela Davis, feita em 2017, no Encontro Internacional sobre Feminismo Negro e Decolonial na cidade de Cachoeira- BA: “Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade, se movimenta com ela”. Dessa sorte, neste capítulo, viu-se como a mulher preta foi assumindo a posição em que se encontra hoje. Para tanto, é esta posição que fez com elas notassem, desde a escravidão, que o seu processo de ascensão seria mais dificultoso. Logo, para que possam ser ouvidas e mudanças sejam feitas, faz-se necessário um processo de subida de degraus: primeiro elas devem apoiar os homens pretos, depois, subindo mais um pouco, devem apoiar as mulheres brancas, até chegarem no topo, onde se encontram os homens brancos, ditadores de regras dessa sociedade. Por último, o trecho a seguir, pode, incrivelmente, resumir o processo de inserção da população preta após o fim da escravidão. A princesa Isabel, uma branca “muito legal”, com o seu decreto, "permitiu-nos" entrar na festa, que é a sociedade brasileira. A gente, preto, representado pela “neguinha” do trecho, “muito mal-educado” não soube “aproveitar a oportunidade” e resolveu “bagunçar”, de forma análoga, essa “bagunça” foram e são nossas revoluções. Eles não “perceberam” que dava para todos acomodarem-se à mesa, aqui eu comparo à falta de uma dita reinserção, com políticas que possibilitassem a construção de uma vida digna às vítimas da escravidão. E por fim, quando Lélia termina dizendo que continuaram “malhando” a “neguinha”, que “não se comportou”, eu digo que podemos fazer referência a todos os brancos e brancas que “torcem o nariz”, falando que passado é passado e, hoje, já 41 conquistamos demais e estamos todos iguais. A gente sabe, sempre foi assim, nunca existiu racismo, não é mesmo? “Todos nós somos iguais”. Mas, a gente sabe: a luta não acabou e está longe de acabar. Foi então que uns brancos muito legais convidaram a gente para uma festa deles, dizendo que era pra gente também. Negócio de livro sobre a gente. A gente foi muito bem recebido e tratado com toda consideração. Chamaram até pra sentar na mesa onde eles tavam sentados, fazendo discurso bonito, dizendo que a gente era oprimido, discriminado, explorado. Eram todos gente fina, educada, viajada por esse mundo de Deus. Sabiam das coisas. E a gente foi se sentar lá na mesa. Só que tava tão cheia que não deu pra gente sentar junto com eles. Mas a gente se arrumou muito bem, procurando umas cadeiras e sentando bem atrás deles. Eles tavam tão ocupados, ensinando um monte de coisa pro crioléu da plateia, que nem repararam que se apertassem um pouco até que dava pra abrir um espaçozinho e todo mundo sentar junto na mesa. Mas a festa foram eles que fizeram, e a gente não podia bagunçar com essa de chega pra cá, chega pra lá. A gente tinha que ser educado. E era discurso e mais discurso, tudo com muito aplauso. Foi aí que a neguinha que tava sentada com a gente deu uma de atrevida (GONZALEZ, 2020, p.76). E segue: Tinham chamado ela pra responder uma pergunta. Ela se levantou, foi lá na mesa pra falar no microfone e começou a reclamar por causa de certas coisas que tavam acontecendo na festa. Tava armada a quizumba. A negrada parecia que tava esperando por isso pra bagunçar tudo. E era um tal de falar alto, gritar, vaiar, que nem dava mais pra ouvir discurso nenhum. Tá na cara que os brancos ficaram brancos de raiva da gente e a gente se comportava daquele jeito, catimbando a discurseira deles. Onde já se viu? Se eles sabiam da gente mais do que a gente mesmo? Se tavam ali, na maior boa vontade, ensinando uma porção de coisa pra gente da gente? Teve uma hora que não deu pra aguentar a