JULIANA DOS SANTOS CONCEPÇÕES DA CO-DEPENDÊNCIA: ESTUDO NA COMUNIDADE NOVA JERUSALÉM FRANCA 2004 JULIANA DOS SANTOS CONCEPÇÕES DA CO-DEPENDÊNCIA: ESTUDO NA COMUNIDADE NOVA JERUSALÉM Dissertação apresentada à Faculdade de História, Direito e Serviço Social da Universidade Estadual Paulista, Campus de Franca, para obtenção do título de Mestre em Serviço Social Orientadora: Profa Dra Íris Fenner Bertani FRANCA 2004 Ficha catalográfica elaborada pela Bibliotecária da FHDSS Jacqueline de Almeida. Santos, Juliana dos Concepções da co-dependência: estudo na Comunidade Nova Jerusalém / Juliana Santos –Franca: UNESP, 2004 Dissertação – Mestrado – Serviço Social – Faculdade de História, Direito e Serviço Social – UNESP – Franca. 1. Serviço Social – Drogas. 2. Comunidade terapêutica – Uberaba-MG. 3. Tóxicos – Assistente social. CDD – 362.293 JULIANA DOS SANTOS CONCEPÇÕES DA CO-DEPENDÊNCIA: ESTUDO NA COMUNIDADE NOVA JERUSALÉM COMISSÃO EXAMINADORA DISSERTAÇÃO PARA A OBTENÇÃO DO GRAU DE MESTRE EM SERVIÇO SOCIAL Presidente e Orientador: _______________________________________________ 2º Examinador: ______________________________________________________ 3º Examinador: ______________________________________________________ Franca, de de 2004 Dedico este trabalho aos meus sobrinhos Lucas e Gustavo, que um dia saberão entender minha ausência. AGRADECIMENTOS O meu muito obrigada a quem me ensinou a trilhar com coragem os caminhos da vida. À todos que direta e indiretamente contribuíram para a concretização deste trabalho. À toda equipe das Faculdades Santo Agostinho que acreditaram em meu potencial. Às amigas eternas: Lú, Luzinha e Vanilda. À Íris Fenner Bertani que soube compreender minha proposta. À Helen e Lolô que sempre me estimularam em minha trajetória pessoal e profissional. E, principalmente, a todos os sujeitos significativos que souberam entender que as recordações dos sofrimentos vivenciados poderão contribuir para a busca incessante da felicidade! “Durante a vida nenhum ato, nenhuma palavra são indiferentes. Tudo deixa um rastro, transforma-se em sementes. É como uma pedra que atiras na água: de círculo em círculo o movimento atingirá a margem distante”. (autor desconhecido) RESUMO A presente pesquisa tem como foco de investigação a análise do fenômeno da co-dependência em sujeitos significativos na vida de usuários abusivos de substâncias psicoativas, internados na Comunidade Nova Jerusalém, situada no município de Uberaba – M.G. Trata-se de um processo cuja ocorrência vem permeando o comportamento desses sujeitos, causando-lhes sofrimentos e angústias, tornando-se necessário entendê-lo, para que os profissionais ligados à área da dependência química possam ter um norte de intervenções profissionais frente a tal categoria. Durante o desenvolvimento do estudo, coletamos seis depoimentos de sujeitos significativos para os internos, observando a característica da co- dependência e fazendo uso de uma análise permeada pela proposta teórica- epistemológica da fenomenologia. Com isso, obtivemos uma pesquisa de caráter qualitativo e reflexivo. Pudemos observar através deste estudo, evidências de comportamentos co-dependentes, cabendo neste momento, aos profissionais ligados à área da dependência química adentrar neste universo para que as propostas de tratamento obtenham melhores resultados frente à abstinência. Palavras chave: dependência química; co-dependência; interdisciplinaridade; comunidade terapêutica; assistente social. RESUMEN La presente investigación tiene como foco de indagación, el análisis del fenómeno de la co-adicción en individuos significativos en la vida de usuarios abusivos de sustancias psico-activas, internados en la Comunidad Nova Jerusalém, situada en el municipio de Uberaba – MG. Se trata de un proceso cuya ocurrencia está envolviendo el comportamiento de estos individuos, causándoles sufrimientos y angustias, volviéndose necesario entenderlos para que los profesionales ligados al área de dependencia química puedan tener una noción como hacerle frente a esta categoría. Durante el desarrollo del estudio, colectamos seis testimonios de individuos significativos para los internos, observando la característica de la co- adicción y haciendo uso de un análisis envuelto por la propuesta teórica – epistemológica de la fenomenología. De esta manera obtuvimos una investigación de carácter cualitativo y reflexivo. Pudimos observar a través de este estudio, evidencias de comportamiento co dependientes, cabiendo en este momento, a los profesionales ligados al área de la dependencia química entrar en este universo para que las propuestas de tratamiento obtengan resultados frente a la abstinencia. Palabras-Clave: dependencia química, co-adicción, interdisciplinaridad, comunidad terapéutica, trabajador social. SUMÁRIO INTRODUÇÃO.............................................................................................. CAPÍTULO I – DEPENDÊNCIA QUÍMICA: AVANÇOS E REARRANJOS ............................................................. 1.1 Algumas considerações sobre dependência química .............................. 1.2 Tratamento do dependente químico: limites e possibilidades ................ 1.3 Comunidades terapêuticas ...................................................................... CAPÍTULO II – CO-DEPENDÊNCIA ......................................................... CAPÍTULO III – A PESQUISA .................................................................... 3.1 O cenário ................................................................................................. 3.2 Metodologia ............................................................................................ 3.3 Análise dos dados ................................................................................... CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................... REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................... 10 13 14 22 30 41 59 60 63 70 85 90 10 INTRODUÇÃO Durante os anos vivenciados na trajetória profissional que embasou este estudo, uma das experiências mais marcantes e desafiadoras centrou-se na atuação profissional numa Comunidade Terapêutica de tratamento de dependentes químicos. Essa experiência se apresentou significativa pelo fato de envolver a pesquisadora numa missão de busca de conhecimentos em uma área pioneira na intervenção do Serviço Social, com poucas experiências de atuação de Assistentes Sociais. Durante os dois anos de trabalho na comunidade, foi possível vivenciar uma convivência direta não só com os residentes (usuários abusivos de substâncias psicoativas em tratamento), mas com alguns familiares e/ou pessoas ligadas a esses usuários, que acompanhavam o tratamento. O respectivo acompanhamento era respaldado pelas intervenções técnicas através de visitas domiciliares, reuniões grupais – tanto com os residentes como com os sujeitos que se relacionavam com os dependentes químicos (familiares ou não) – e mesmo através de diversos tipos de atendimentos. À medida que se desenvolvia a ação profissional, percebeu-se que alguns familiares, e/ou pessoas próximas aos residentes, manifestavam comportamentos que envolviam uma super-proteção aos residentes. Por mais que o propósito de tais atitudes fosse positivo, o que ocorria era o contrário: alguns residentes desistiam do tratamento por se sensibilizarem com 11 o sofrimento dos familiares e/ou pessoas próximas, que em muitas ocasiões relatavam sensações de “vazio” quando da ocasião do período de internação. Uma vez que o compromisso frente à demanda atendida perpassou essa trajetória de atuação como Assistente Social, foi como um convite a iniciar um processo de compreensão das atitudes acima relatadas, que tanto causam sofrimento para esses sujeitos significativos, podendo afirmar que também geram uma angústia para o profissional. Talvez as reflexões teóricas e os relatos, que foram construídos com cuidado neste trabalho, não possuam um impacto de esclarecimento total sobre a co- dependência. Mas, certamente nortearão os profissionais e sujeitos significativos do campo da dependência química a assumirem tais sentimentos e entendê-los, construindo estratégias conjuntas que venham amenizar tais comportamentos. Trata-se do início de uma proposta que deverá ser somada a outras tantas que poderão surgir. Assim, a trajetória deste estudo procura refletir no primeiro capítulo os aspectos que envolvem a dependência química, bem como os principais tipos de tratamento, focando o atendimento em comunidades terapêuticas. Ao caminhar por essa área, foram construídas algumas reflexões sobre o fenômeno da co-dependência que, apesar de seu caráter subjetivo, incomoda muitas pessoas que convivem com dependentes químicos ao ponto de, às vezes, anular suas próprias vidas perante o dependente. O referido propósito foi dimensionado no segundo capítulo. 12 A pesquisa de campo forneceu o conteúdo do terceiro capítulo, que tem o propósito de objetivar, concretizar, através dos relatos das pessoas significativas, as experiências passadas – ou até mesmo recentes – de atitudes co- dependentes. Ressalta-se que a divisão de capítulos ocorreu por questões didáticas, mas a inter-relação entre o teorizado e o vivenciado se fez fundamental, uma vez que se concebe uma relação dialética de tais elementos. O compromisso de pesquisadora talvez seja o de instigar outros estudiosos a se aprofundarem nessa temática da co-dependência, objetivando a busca de qualidade de vida e felicidade para as pessoas que vivenciam esta experiência, além de proporcionar a oportunidade dos profissionais da área buscarem formas de instrumentalização para lidarem com o assunto. 13 CAPÍTULO I DEPENDÊNCIA QUÍMICA: AVANÇOS E REARRANJOS 14 1.1 Algumas considerações sobre dependência química O homem, ser que se relaciona diretamente com a natureza, diferencia-se de outras formas de vida por uma característica peculiar: sua racionalidade. Tal elemento lhe favorece o controle frente a situações periculosas, exploração dos elementos naturais, favorecendo sua subsistência e qualidade de vida. Podemos observar que a racionalidade humana é extrapolada do âmbito da auto-manutenção e subsistência física quando propiciadora da busca de sensações de prazer. Portanto, a partir do momento em que o homem descobre o prazer, tende a ações favorecedoras de tais sensações. Tal descoberta pode ser observada no próprio recém-nascido que, numa situação de fome tem acesso ao peito para que sugue o leite materno, assim que sanada sua fome, a sucção, que lhe proporciona prazer, faz-se contínua. Esses modos de agir fazem-nos inferir que o prazer é uma característica do ser humano, e que desperta inclusive uma busca incessante do mesmo. Quando estudamos algumas sociedades peculiares, como as indígenas, vamos perceber que seus rituais de oferendas aos deuses são permeados do uso de substâncias que ao serem ingeridas pelo organismo humano, causam sensações de prazer e de modificação intencional do estado de consciência. Isso demonstra que o prazer, ao ser buscado através da “ajuda” de tais substâncias, encontra-se vigente desde os primórdios da humanidade. Toscano Júnior defende que A ênfase nos problemas derivados das drogas, sejam aqueles ligados ao tráfico ou às conseqüências individuais e coletivas do consumo, está inserida no cotidiano das pessoas. Entretanto, a relação do homem com as 15 substâncias psicoativas é bastante antiga ou, melhor dizendo, ancestral. Assim, mostra-se equivocada a idéia de que a presença das drogas é um evento novo no repertório humano. Na verdade, trata-se de uma presença contínua no tempo e que envolve não somente medicina e ciência, mas também magia, religião, cultura, festa e deleite. (In: SEIBEL; TOSCANO JÚNIOR, 2001, p. 07). Visualiza-se o aspecto sócio-cultural existente em tais comportamentos. Essas substâncias acima citadas vêm a ser o que denominamos atualmente de substâncias psicoativas1, que em contato com o sistema nervoso alteram seu funcionamento, favorecendo mudanças no humor, percepções, comportamento e estados de consciência e mente. Por outro lado, à medida que o processo civilizatório adentra o mundo dos homens, vamos verificar que a estruturação do sistema econômico permite a formatação de uma sociedade desigual, uma vez que algumas pessoas passam a explorar a capacidade laborativa de outras, sempre com o intuito da vantagem da lucratividade. Tal configuração do sistema econômico envolve as relações sociais, sendo incorporada inclusive à comercialização de SPAs , às pessoas, objetivando lucros. Portanto, nos dias atuais, mesmo tendo a percepção de que somos seres que buscam incessantemente a sensação de prazer, e que essa busca perpassa aspectos sócio-culturais, o sistema econômico vigente proporciona o favorecimento da exploração deste prazer, sendo indiferente aos revezes patológicos sofridos por algumas pessoas. Kalina relata que Ao tentarem esta restrição, desconhecem os fatores condicionantes de caráter social e, da mesma maneira que os toxicômanos, chegam a acreditar que o consumo de drogas responde a uma livre opção. A 1 De agora em diante SPA. 16 inversão desta argumentação (que, quando não é produto da hipocrisia, resulta de uma franca irresponsabilidade e da inconsistência ideológica dos que a sustentam) evidencia a cumplicidade do sistema social na proliferação dos hábitos tóxicos. (1999, p. 20). A solidificação desta perspectiva encontra-se na mídia, cuja propaganda de SPAs lícitas é expressiva, sendo inclusive questionada por Associações de combate ao uso abusivo de drogas, travando-se uma “guerra” entre o mercado consumista capitalista e esses organismos que buscam a prevenção da drogadicção. Temos também presente o mercado ilícito de SPAs, que apresenta altíssimos rendimentos lucrativos, mas proporcionadores de alto grau de violência na efetivação do comércio ilegal. Denotamos que o prazer, almejado pelo ser humano, nos dias atuais passa a envolver não só os aspectos sócio-culturais. No que se refere ao uso de SPAs, também é envolvido por forte poder da mídia e por uma busca de prazer individual, ou seja, trata-se somente da relação do usuário com a substância psicoativa. A implantação de políticas públicas de combate ao uso abusivo de SPAs é urgente, pois a ineficácia ou inexistência de tais políticas vem favorecendo alto consumo de tais substâncias. O conseqüente aumento do número de pessoas em situação de uso abusivo de SPA atinge diretamente sua saúde bio-psíquica e das pessoas que estão próximas, como o grupo familiar. Mas, o que viria a caracterizar a dependência química? Sabemos que as pessoas, ao experimentarem uma substância psicoativa, não necessariamente 17 desenvolverão a prática do uso abusivo. Existe uma divisão utilizada, favorecedora de melhor visualização e diagnóstico da doença. O usuário experimental ou experimentador, que como a própria palavra descreve, é aquela pessoa que por motivos diversos tende a experimentar uma droga lícita ou até mesmo ilícita. Tais motivos resvalam em aspectos culturais, sociais, mídia, busca de prazer, curiosidade, contraposição à família, dentre outros. Kalina coloca-nos que: [...] no fundo desta convicção está a impotência, a intolerância à frustração, a impossibilidade de manter um projeto devido à incapacidade de esperar, de conceber o transcurso do tempo como um aliado e não apenas como uma força destruidora. (1999, p. 23). Como o objetivo deste estudo não é compreender esta “ação inicial” de contato com a SPA, não nos aprofundaremos em uma análise mais detalhada. Muitas pessoas, ao terem contato com a SPA, podem vir a não se interessar pela sensação que vivenciaram, e não voltam a ingeri-las. Outras, continuam buscando essa sensação inicial de prazer, passando para a próxima fase. A segunda divisão desenvolvida centra-se no usuário ocasional ou recreativo, que se utiliza de momentos propícios para a utilização de SPAs, como festas, encontros de amigos, ou seja, ocasiões em que o uso de tais substâncias tem uma conotação de normalidade. Vale ressaltar que este uso não prejudica em nada as relações sociais, afetivas ou profissionais. O terceiro aspecto centra-se no usuário habitual ou funcional, que já apresenta como hábito o uso contínuo de SPAs, independente das ocasiões, 18 apresentando já prejuízos nas relações profissionais, sociais, familiares, dentre outras. Finalmente, deparamo-nos com o usuário abusivo ou dependente que, além de realizar uso freqüente de SPA, compromete sua saúde física e mental, refletindo em todas as suas relações sociais. Geralmente há uma predisposição biológica/hereditária. A ciência ainda não conseguiu desvendar a citada predisposição, no sentido de se fazer uma prevenção, evitando o primeiro contato por aquelas pessoas que tenderiam a ser usuários abusivos de SPAs. Desta forma, o que a sociedade tende a fazer é reprimir a propagação de SPAs, o que vem sendo realizado de uma forma que apresenta resultados poucos convincentes. Kalina relata-nos que A experiência cotidiana mostra-nos que surgem aditos de determinados grupos familiares e não de outros, o que não significa nenhuma acusação nem valorização de natureza ético-moral, mas apenas que há determinadas circunstâncias da vida que são facilitadoras e indutoras do consumo de drogas. Estas são palavras que temos de exprimir com dor, com tristeza, com respeito e com compreensão para quem sofre, porque somos clínicos. (1999. p. 43). Geralmente, as ações políticas de repressão ao uso de drogas centram- se nas substâncias tidas como ilícitas, sendo que as lícitas, tais como o álcool, cigarro, medicamentos, não sofrem nenhuma sanção, mesmo sendo consideradas a principal “porta de entrada” das pessoas para o mundo da drogadependência. Há relatos de estudos que conseguem comprovar que uma pessoa que já tem o hábito de utilizar uma substância psicoativa lícita, possui maiores chances 19 de vir a experimentar as drogas ilícitas, em comparação a outra, que nunca fez uso do álcool ou do cigarro. O usuário abusivo de SPA, citado anteriormente, caracteriza-se pela pessoa que perpassou as três etapas iniciais do uso de SPA e que, pela predisposição à drogadependência passou a ser “dominado” pelo mundo das substâncias psicoativas, no sentido de que seu organismo necessita da substância química para que se sinta em completa funcionalidade. Nesta fase, o prazer é substituído pela dor, e a necessidade da busca incessante por SPA desencadeia processos de complicações frente às relações sociais, familiares, amorosas. O usuário abusivo de SPA, uma vez que tem como objetivo de vida a ingestão da substância química, deixa de ter como centralidade as pessoas de seu círculo. Sente-se incapaz de realizar atividade laborativa, de busca de prazer através de outras opções, de se relacionar com pessoas queridas, chegando a permanecer em estado de marginalidade absoluta. Essa marginalidade nem sempre se objetiva no abandono e desprezo da sociedade. Em alguns casos, quando a substância psicoativa tem uma característica ilícita, amplia-se no sentido de maior acessibilidade à violência, não só no mundo paralelo dos traficantes, mas na força de coerção policial e da justiça. Essa força desenvolverá, com esse usuário de SPA, um trato idêntico àquele reservado aos criminosos da sociedade. Temos alguns exemplos de iniciativas no Brasil – principalmente no Estado do Rio Grande do Sul, com a denominada Justiça Terapêutica – que, em sua formatação, visualiza o usuário de SPA como um doente. Assim é oferecida a ele a 20 opção de um tratamento médico em substituição ao tratamento criminológico comumente desenvolvido. Karam, advogada, Juíza de Direito (aposentada) no Rio de Janeiro, defende a idéia de que Um caminho mais racional e eficaz para o enfrentamento de eventuais problemas provocados pelo consumo abusivo das substâncias psicoativas, quer se trate daquelas qualificadas como ilícitas, quer se trate das demais, passa, necessariamente, pelo rompimento com a própria irracionalidade da política repressora concretizada na legislação, irracionalidade esta residente na opção pelo controle penal sobre a oferta e a demanda de determinadas daquelas substâncias tornadas ilícitas e que estende os danos, neste campo, para muito além da afetação da integridade física e mental de seus consumidores. (In: SEIBEL; TOSCANO JÚNIOR, 2001, p. 534). O usuário abusivo de SPA sempre apresenta uma substância de preferência, havendo diferenciações químicas, de sensações e de resistência. Habitualmente essas substâncias dividem-se em: 1. Depressoras do sistema nervoso central; 2. Estimulantes do sistema nervoso central; 3. Perturbadoras do sistema nervoso central. Na primeira categoria temos o álcool etílico, o ópio, a heroína, os tranqüilizantes, os inalantes (cola de sapateiro, lança-perfume), que causam a diminuição da atividade do Sistema Nervoso Central. Essa diminuição pode afetar a atividade global do cérebro ou incidir sobre certos sistemas específicos. Como conseqüência dessa ação, há uma tendência à diminuição da atividade motora, da reação à dor e da ansiedade. É comum um efeito de euforia inicial, seguido de sonolência. (SEIDL, 1999, p. 24). 21 Na segunda, encontram-se basicamente a cocaína e o crack Nessa categoria, estão incluídas as drogas capazes de aumentar a atividade de determinados grupos de células nervosas, o que traz como conseqüência um estado de alerta exagerado, insônia e aceleração dos processos psíquicos. (SEIDL, 1999, p. 27). E entre as perturbadoras do sistema nervoso central, estão a maconha e os alucinógenos (LSD). Nesse grupo de drogas, encontram-se diversas substâncias que provocam alterações no funcionamento do cérebro, das quais resultam fenômenos psíquicos tais como delírios e alucinações. Por isso, essas drogas recebem o nome de alucinógenos. (SEIDL, 1999, p. 28). O que devemos ter clareza é de que não existem drogas “leves” nem “pesadas”, conforme o senso comum nos descreve. Toda substância psicoativa tem seu potencial de favorecer a dependência química, independentemente das diversidades das sensações, efeitos colaterais e graus de tolerância. 22 1.2 Tratamento do dependente químico: limites e possibilidades Uma vez que temos clareza que a dependência química é uma doença, necessariamente os grandes estudiosos/pesquisadores tendem a formatar alguns modelos de tratamento, o que visualizaremos adiante. O primeiro aspecto a ser evidenciado diante das possibilidades terapêuticas é o despreparo dos profissionais de saúde no que se refere ao próprio entendimento dessa doença e seu possível diagnóstico. Vanderlei, em sua Dissertação de Mestrado, apresentada à Universidade de Brasília, com o título “Diagnóstico Precoce do Alcoolismo: um processo de exclusão?”, no ano de 1995, comprova que, no que diz respeito ao diagnóstico precoce, “A maior dificuldade para sua realização, conforme a opinião dos médicos, é a insuficiência e a qualidade dos conhecimentos transmitidos nos cursos de medicina.” (1995, p. resumo). A grande preocupação da estudiosa, volta-se na descoberta precoce da doença, cuja manifestação inicial tem características peculiares, objetivando melhores índices de seu controle (recuperação). A observação das características peculiares depende do estabelecimento de uma relação positiva entre médico e paciente, o que no atual sistema de saúde no Brasil, não apresenta sucesso, uma vez que o relacionamento, apresenta-se cada vez mais comprometido no que se refere à qualidade e tempo. O diagnóstico tem que ser um procedimento minucioso, justamente pelo fato da drogadependência possuir várias etapas conforme explicitado anteriormente (usuário experimentador, ocasional, habitual e abusivo). 23 Enfatiza-se a importância desse diagnóstico ser realizado por equipe transdisciplinar2, facilitando a verificação da instalação da doença e objetivando a construção do plano terapêutico. A existência da equipe foi garantida recentemente através da Resolução nº 101, de 30 de maio de 2001, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), quando em seu item 5, que descreve os recursos humanos dos serviços de atenção a pessoas com transtornos decorrentes do uso ou abuso de SPAs, diz: A equipe mínima para atendimento de 30 residentes deve ser composta por: 01 (um) Profissional da área de saúde ou serviço social, com formação superior, responsável pelo Programa Terapêutico, capacitado para o atendimento de pessoa com transtornos decorrentes de uso ou abuso de SPA em cursos aprovados pelos órgãos oficiais de educação e reconhecidos pelos CONEN’s ou COMEN’s; 01 (um) Coordenador Administrativo; 03 (três) Agentes Comunitários capacitados em dependência química em cursos aprovados pelos órgãos de educação e reconhecidos pelos CONEN’s ou COMEN’s. Na atualidade, o tratamento oferecido para as pessoas que fazem uso abusivo de SPA envolve alguns aspectos particulares, ou seja, prima-se pela expressão da vontade do paciente na adesão ao mesmo, objetivando seu sucesso. Somente em casos mais crônicos utilizam-se medidas coercitivas, o que causa posicionamentos divergentes entre os estudiosos no assunto. A medida coercitiva ocorre quando há risco de vida, não somente do paciente/usuário, quanto de outras pessoas, e geralmente o método utilizado 2 “Coordenação de todas as disciplinas e interdisciplinas do campo, sobre a base de uma axiomática geral compartilhada; criação de campo com autonomia teórica, disciplinar ou operativas próprias. (VASCONCELOS, 1997, p. 140). 24 privilegia a internação em Hospital Psiquiátrico, ou Clínicas Particulares de Saúde Mental. [...] os profissionais e paraprofissionais que opinam contra a internação forçada não oferecem um caminho alternativo, porém sugerem deixar a pessoa a seu livre-arbítrio até que ela mesma solicite tratamento. E se morrem, ou, para ser mais trágicos, se sofrem lesões orgânicas macro e microscópicas que possam chegar a ser irreversíveis, durante esse lapso de espera, que, às vezes, não chega a terminar? Nossa posição está baseada na experiência de 18 anos na intensiva prática clínica, e no embasamento teórico de que todo drogadito, independente de padecer de uma psicose processual ou de um quadro de psicose tóxica, está funcionando psicoticamente [...] e, por tal razão, não é consciente de suas atitudes autodestrutivas, e carece da capacidade de agir pelo livre arbítrio. (KALINA, 1999, p. 201). Compartilhamos do posicionamento de Kalina uma vez que entendemos que há situações de risco para o dependente e/ou pessoas que convivem com o mesmo. Esta posição supõem que, nem sempre, o usuário abusivo de SPAs encontra-se em situação propícia para decidir sobre sua própria internação, devido aos efeitos das SPAs. Entretanto, defendemos a necessidade de instituições preparadas para o recebimento de internações coercitivas, que envolvam equipe técnica especializada. Outro aspecto a ser salientado é o fato de que as recaídas, terminologia esta utilizada quando do reinício do uso de SPA, durante o tratamento ou posteriormente ao mesmo apesar de serem dolorosas para o paciente, familiares e equipe profissional, fazem parte do cotidiano do tratamento, seja ele Ambulatorial, internação em Hospital Psiquiátrico, em Comunidade Terapêutica ou Grupos de Ajuda Mútua. 25 Deve-se levar em consideração, frente a tais colocações gerais, que a família é parte fundamental em qualquer metodologia de tratamento o que tem sido defendido de forma unânime por estudiosos da área. Yaria descreve sucintamente esta percepção quando afirma que Quando a instituição recebe um paciente, ela recebe uma família condensada em um paciente. Partindo dessa perspectiva, o tratamento será no sentido de “fazer falar” o que funciona como elemento condensado. Toda internação congrega um discurso familiar, no qual aquele que funciona “à margem” do discurso retrata todo um contexto. O paciente é a “caricatura” do contexto. (1992, p. 182). Concebe-se com isso que a família possui uma característica de co- partícipe na doença e desta forma isto deve ser estendido ao tratamento. Abordaremos mais detalhadamente este aspecto na segunda parte deste documento. Quando relatamos sobre a internação em Hospitais Psiquátricos ou Clínicas Especializadas, entendemos ser um procedimento que envolve, em alguns casos, até mesmo a contenção física, conforme já relatado anteriormente, principalmente se há riscos de vida. Esse tratamento ocorre comumente num prazo de 45 (quarenta e cinco) dias, através de medidas que envolvem o processo de desintoxicação. Isso é feito também através do uso de medicamentos apropriados e com rigoroso acompanhamento médico. Os casos em que ocorrem comorbidades, ou seja, em que uma doença é propiciadora do aparecimento de outra, são exclusivos de tratamento em Hospital Psiquiátrico. A comorbidade geralmente é desenvolvida entre a doença da dependência química e uma doença mental. 26 A prevalência de uso e dependência de drogas associadas a quadros psicóticos é muito significativa. Embora pacientes com dependência de álcool e outras drogas acometidos de problemas psiquiátricos estejam mais propensos a procurar tratamento, não se deve inferir que aqueles que não procuram tratamento estejam livres de problemas de comorbidade, uma vez que tais indivíduos podem estar negando o impacto do uso da droga em suas vidas. (SEIBEL; TOSCANO JÚNIOR, 2001, p. 305). O tratamento em Hospital Psiquiátrico denota a necessidade de posterior acompanhamento Ambulatorial, o que comumente se chama de manutenção, objetivando o controle da doença, uma vez que não há certificação sobre sua cura. Empiricamente, observa-se que um dos grandes fatores negativos ocorre justamente no abandono do tratamento pelo paciente, na fase de manutenção, tão enfatizada pela equipe médica. Geralmente, esse abandono do tratamento também inclui a família, que possui dificuldades de se conscientizar que é partícipe desse tratamento. Os profissionais que se encontram à frente de instituições de tratamento de usuários abusivos de SPAs devem propor, desde o início do tratamento, desenvolver um trabalho de acompanhamento das pessoas que se encontram ligadas diretamente ao usuário. Tal constatação pode desencadear um processo de reflexão frente aos comportamentos e atitudes que facilitam o uso abusivo de SPAs. Este trabalho não deve se restringir somente ao período de tratamento/internação, mas, sim ter uma continuidade na pós-internação, tanto para os dependentes químicos como para as pessoas que se encontram ligadas diretamente a eles. O procedimento Ambulatorial não prevê internação e sim um plano terapêutico consistente em sua diversidade de ações, com equipes multi e 27 interdisciplinares; em alguns casos há também a manipulação de medicamentos. São unidades conhecidas como Hospital Dia e Núcleos ou Centros de Atenção Psicossocial – NAPS e CAPS. Tal tratamento centra-se em terapias grupais e individuais, laborterapias e ações que envolvem um processo de conscientização do paciente frente à doença que possui. Envolve participação do núcleo familiar, que apresenta resistência em se interligar ao tratamento, uma vez que não percebe sua doença co-manifestada. Outra metodologia comumente utilizada são os Grupos de Apoio, formatados dentro da filosofia dos Doze Passos, organizados pelos próprios dependentes químicos que se encontram em abstinência, objetivando ajuda mútua. Segundo Viana, [...] os 12 Passos de Alcoólicos Anônimos são um processo de mudanças no campo espiritual e emocional, utilizados hoje por mais de 100 irmandades diferentes do mundo, algumas sem qualquer paralelo à dependência química, tais como neuróticos anônimos, psicóticos anônimos, vítimas de incesto, comedores compulsivos etc. (In: SERRAT, 2001, p. 205). O Programa se apresenta no reconhecimento dos seguintes postulados: 1. Admitimos que éramos impotentes perante o álcool e outras drogas, que tínhamos perdido o domínio sobre nossas vidas; 2. Viemos a acreditar que um poder superior a nós mesmos poderia devolver-nos à santidade; 28 3. Decidimos entregar nossa vontade e nossa vida aos cuidados de Deus, na forma em que O concebíamos; 4. Fizemos um minucioso e destemido inventário moral de nós mesmos; 5. Admitimos, perante Deus, perante nós mesmos e perante outro ser humano a natureza exata de nossas falhas; 6. Prontificamo-nos inteiramente a deixar que Deus removesse todos esses defeitos de caráter; 7. Humildemente, rogamos a Ele que nos livrasse de nossas imperfeições; 8. Fizemos uma relação de todas as pessoas que tínhamos prejudicado e nos dispusemos a reparar os danos a elas causados; 9. Fizemos reparações diretas dos danos causados a tais pessoas, sempre que possível, salvo quando fazê-lo significasse prejudicá-las ou a outrem; 10. Continuamos fazendo o inventário pessoal e, quando estávamos errados, nós o admitíamos prontamente; 11. Procuramos, através da prece e da meditação, melhorar nosso contato consciente com Deus, na forma em que O concebíamos, rogando apenas o conhecimento de Sua vontade em relação a nós, e forças para realizar essa vontade; 29 12. Tendo experimentado um despertar espiritual, graças a esses passos, procuramos transmitir esta mensagem aos alcoólicos e praticar estes princípios em todas as nossas atividades; Tais passos são mundialmente utilizados, e quando interpretados de forma correta denotam basicamente o reconhecimento do dependente químico como um doente, que necessita de tratamento, mas que este último é um processo, que perpassa pelo âmbito do reconhecimento, estendendo-se na constatação dos malefícios que foram gerados pelo uso abusivo de SPAs para as pessoas próximas. E portanto, havendo a necessidade de retratação, focada numa auto-avaliação contínua. Além de prever o compromisso desse usuário, quando em abstinência, ou seja, cumprida a primeira fase do tratamento, de dar continuidade, favorecendo que outros, que ainda se encontrem no uso abusivo, tenham a oportunidade de refletir sobre a doença e despertar para a necessidade de tratamento. Nesta pesquisa, temos como foco o tratamento de dependência química em Comunidade Terapêutica, o que nos leva a citar outros métodos de tratamento sem nos aprofundarmos nos mesmos. A seguir nos deteremos no relato mais detalhado sobre o tratamento em Comunidade Terapêutica. Ao verificarmos a bibliografia pertinente ao assunto, temos uma formatação de intervenções de tratamento de dependência química, citada principalmente no curso à distância, oferecido pela Universidade de Brasília, em parceria com a Secretaria Nacional Antidrogas, subdividindo-se em: 30 • Terapia Farmacológica: utilizam-se medicamentos, uma vez que se apresenta um quadro de intoxicação crônico; • Terapia Cognitivo-Comportamental: desenvolvimento de um processo reflexivo, objetivando a mudança de crenças, pensamentos e comportamentos que venham a proporcionar o uso da SPA. Utiliza-se terapia breve ou prevenção de recaída3; • Terapia Psicodinâmica: investiga-se o inconsciente, pois isto leva o paciente a conhecer-se melhor e portanto compreender o uso abusivo de SPA; • Terapias Sistêmicas: a intervenção busca ir além das características internas do indivíduo (inconsciente), estendendo-se para a compreensão das inter- relações com a família e grupos sociais; • Terapia Familiar: são tidos como pacientes todos os membros da família, por se entender que a dependência química está associada ao núcleo familiar; • Terapia Multi-Familiar: reunião com várias famílias e pacientes, despertando a percepção de que o problema é comum, sendo uma formatação de auto-ajuda; • Grupo de Familiares: concebe-se que a família é um suporte para o tratamento do dependente químico, devendo receber orientações acerca do processo; • Grupos de Ajuda Mútua: oferecidos geralmente pelas comunidades, formatando-se tanto para o atendimento de familiares quanto dos dependentes químicos. A filosofia de trabalho centra-se nos “Doze Passos”. 3 A Prevenção de Recaída é um conjunto de habilidades e modificações do estilo de vida da pessoa para evitar uma recaída e visa: a aquisição de habilidades para lidar com as situações de risco; a modificação do estilo de vida. (LANDRE, In: SERRAT, 2001, p. 343). 31 1.3 Comunidades Terapêuticas O primeiro relato sobre o surgimento de Comunidade Terapêutica ocorreu em 1953, quando Maxwell Jones, psiquiatra do exército inglês, desenvolveu um modelo de atendimento para soldados que estiveram na II Guerra Mundial e que apresentavam traumas diversos. Veio a conceber, “[...] um serviço de internação baseado em abordagens educativas, encenações dramáticas e discussões, dentro de um ambiente pautado pelas normas de convivência em grupo.” (ARAÚJO, 2003.) Nesse período, desenvolveram-se dois modelos que formataram as primeiras comunidades: MINNESOTA e SYNANON. O modelo de MINNESOTA teve influências marcantes do tratamento dos Alcoólicos Anônimos, criado em 1935, por Bill Wilson, dependente de álcool e Robert Smith, médico. Esse modelo relatava um processo de tratamento caracterizado pela ajuda mútua, além da criação dos “Doze Passos”. O ápice do tratamento é a questão espiritual, que coloca o alcoolismo como sendo “[...] uma condição na qual o indivíduo torna-se incapaz de superar-se por si só. A esperança de mudança consiste em entregar a vida a uma força superior e a partir daí, segui-la rumo à recuperação.” (ARAÚJO, 2003). A partir do momento em que o modelo MINNESOTA interliga-se ao A.A. (Alcoólatras Anônimos), o regime de tratamento desenvolve-se de uma forma fechada e isolada, durando vários meses. Temos que pontuar que essa internação depende da livre adesão. Os métodos utilizados centram-se em terapia de grupo, 32 palestras, leituras e reuniões do A.A. Geralmente a equipe de trabalho é composta por pessoas que já vivenciaram o tratamento, tendo apresentado sucesso. O modelo SYNANON possui uma diferenciação particular frente ao MINNESOTA: enquanto o último prevê a confiança em uma força superior, o primeiro o faz interligando-se à auto-confiança. Neste modelo, pouco se enfatiza a característica religiosa/espiritual. Nos dias atuais, o conceito de Comunidade Terapêutica perpassa a questão da convivência entre os pares, havendo uma ênfase no crescimento pessoal por meio de mudanças de comportamentos, geralmente estimulada pela equipe de técnicos. É interessante enfatizar que A forma assumida por uma comunidade terapêutica reflete a filosofia subjacente da organização que a fundou. Algumas comunidades são notadamente marcadas pela hierarquização de funções e comandos, por técnicas de auto-ajuda e terapia comportamental, enquanto outras propõem uma estrutura mais democrática, com cursos profissionalizantes e abordagens psicanalíticas. Há também, as comunidades cuja proposta de recuperação é baseada em alguma filosofia religiosa, combinada às vezes e em diferentes proporções com o Modelo de MINNESOTA. (ARAÚJO, 2003). O objetivo do tratamento em Comunidade Terapêutica define-se no atendimento de usuários de SPAs, em uso abusivo das mesmas. Não se recomenda a internação de usuários que apresentam traços de doenças mentais (comorbidades), uma vez que a estrutura física e equipe técnica não possuem suporte para essa demanda, o que não ocorre nos Hospitais Psiquiátricos e Clínicas Especializadas. O que se constata no Brasil é um número significativo de Comunidades Terapêuticas ligadas a algum movimento religioso, havendo 33 dificuldades inclusive da equipe técnica, quando existente, para realizar sua intervenção. Enquanto os técnicos atuam com sua formação específica e com o conhecimento científico da dependência química como doença, os leigos, que estão à frente do trabalho de fundação e manutenção das Comunidades Terapêuticas, possuem a convicção de que é a falta de um credo que leva algumas pessoas a adentrarem o mundo das drogas. Se, por um lado, sugerir que a falta de um credo seja motivador do uso abusivo de SPAs, por outro lado encontramos em muitas comunidades terapêuticas a ênfase da religiosidade como ponto fundamental do tratamento da drogadependência. Segundo Rahm, no que se refere à espiritualidade, o lema se faz presente através da “[...] oração, trabalho, terapia de apoio.” (In: SERRAT, 2001, p. 256). Isso nos leva a inferir quão forte é o aspecto religioso, que aparece em primeiro lugar na escala de indicações do tratamento. Devido à nossa experiência profissional através de trabalho desenvolvido em comunidade terapêutica, o que percebemos é que a religião é fator fundamental na filosofia da equipe dirigente e mais, segundo apontamentos de Araújo (2003), conforme já citado anteriormente, há a necessidade da entrega da vida a uma força superior. Em contrapartida, observamos que muitos usuários abusivos de SPAs em tratamento em comunidade terapêutica, por vivenciarem a recuperação num ambiente com propósitos religiosos, convencem-se que este “poder superior” será 34 responsável pela recuperação. Essa crença impede que esses usuários percebam que eles próprios é que devem se responsabilizar pela permanência na abstinência, denotando que a religião passa a ser vista como “tábua de salvação”. Cavalcanti, ao tecer uma análise sobre religião e política, respaldado pelos escritos de Karl Marx, considera que “Como instituição social, a religião também participa nesse processo de alienação das massas, pregando a passividade e resignação”. (1998, p. 06). Essa passividade e resignação foram observadas como uma constante durante os anos que trabalhamos na comunidade terapêutica, manifestada pelos dependentes químicos bem como por seus familiares e/ou pessoas próximas. Percebemos também que, quando a família procura um tratamento da dependência química, esta procura está envolvida por aspectos objetivos e subjetivos. Objetivamente, pela própria constatação do uso abusivo de SPAs que é visível e concreto. Deve-se considerar também como objetivo, o fato das pessoas contarem nos municípios com um rol de serviços de atendimento em comunidades terapêuticas não governamentais, o que nem sempre ocorrem em atendimentos ambulatoriais públicos, pela escassez desses equipamentos. Subjetivamente, por se tratar de famílias que só têm esperança de tratamento da doença dependência química através de intervenção divina, pois já se encontram desacreditadas frente ao usuário abusivo de SPAs e a comunidade terapêutica passa a ser vista como uma forma de aproximação do dependente químico com o poder divino. 35 Observa-se também, haver um limite no atendimento realizado pela equipe técnica o qual é estabelecido a partir do objetivo da contratação dos profissionais que atuam nestas Comunidades. Ou seja, essas contratações geralmente ocorrem por observância da legislação vigente, e não pelo entendimento da necessidade de equipe técnica. Em 31 de maio de 2001, a Diretoria Colegiada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), estabeleceu o Regulamento Técnico, disciplinando as exigências mínimas para o funcionamento dos serviços de atenção a pessoas com transtornos decorrentes do uso ou abuso de substâncias psicoativas, segundo modelo psicossocial, também conhecidos como Comunidades Terapêuticas. De forma sucinta, a RDC4 101/2001 veio estabelecer normas mínimas referentes a estrutura física, recursos humanos necessários ao atendimento e metodologia de avaliação do tratamento, desde a triagem (que é o instrumento utilizado para a avaliação inicial da adesão ao modelo de tratamento), até os diversos modelos de alta. A referida Legislação é celebrada como um marco frente ao atendimento em Comunidades Terapêuticas, uma vez que elas deixam a “clandestinidade”, passando a obter um reconhecimento legítimo de seu trabalho, pelos órgãos ligados à saúde. E mais, recebem orientações quanto a um melhor desenvolvimento do atendimento que deve ser revestido de critérios técnicos e portanto, contar com equipe técnica mínima (psicólogo, assistente social, médico, enfermeiro). 4 Resolução da Diretoria Colegiada 36 Infelizmente, nota-se que os dirigentes de algumas comunidades terapêuticas desenvolvem resistência frente à legislação ora citada, conforme já abordado anteriormente, uma vez que ela pontua também duas questões importantes: de um lado a religiosidade e de outro a necessidade de profissionais com formação específica, contradizendo o que até então era usual, ou seja, não se via a necessidade de profissionais, uma vez que o tratamento era pautado na boa vontade das pessoas e denotava responsabilidades para com o “Ser Superior”. Em seu item 4, a RDC 101/2001 trata dos procedimentos do serviço de tratamento a pessoas com transtornos decorrentes do uso ou abuso de SPAs, enfatizando que: “4.1 No processo de admissão do residente e durante o tratamento, alguns aspectos devem ser contemplados: A admissão da pessoa não deve impor condições de crenças religiosas ou ideológicas.” (ANVISA, RDC 101/2001) A RDC traz uma mudança de paradigma, cuja aceitabilidade ocorrerá somente com o passar dos anos. O que ainda se evidencia, segundo Araújo, é que Os modelos terapêuticos utilizados dentro dessas comunidades são habitualmente baseados no Modelo de MINNESOTA, em preceitos religiosos ou em uma combinação de ambos. Muitas comunidades são administradas por equipes de dependentes em recuperação, que concluíram com sucesso o programa terapêutico. As comunidades terapêuticas de orientação católica e evangélica são bastante comuns e participam ativamente do tratamento dos dependentes de álcool e drogas e da capacitação de indivíduos interessados em participar desse tipo de tratamento comunitário. (2003). A legislação da ANVISA demonstra um salto qualitativo e de reconhecimento e preocupação frente ao atendimento em Comunidades Terapêuticas, pois 37 [...] há outras comunidades funcionando precariamente, sem infra- estrutura e equipe minimamente capacitada para lidar com os pacientes internados. [...] Talvez, a ausência de tratamentos públicos de qualidade, a inexistência de diretrizes, a fiscalização precária e a concepção geral pró-internação, tenham contribuído para o surgimento desenfreado e desestruturado desses serviços. (ARAÚJO, 2003). Basicamente, a estruturação de uma Comunidade Terapêutica respalda-se na internação em locais parcialmente isolados, de preferência na área rural. As atividades centram-se na manutenção do espaço físico, inclusive proporcionando o plantio de produtos hortifrutigranjeiros, criação de animais, além das atividades a serem desenvolvidas juntamente com a equipe técnica. Tais locais não possuem qualquer forma de contenção física dos residentes, ou seja, uma vez que a internação ocorre com o consentimento do paciente, este último pode desistir do tratamento antes do tempo estipulado pela instituição. A adesão a este tratamento deve ser uma atitude voluntária do usuário dependente de SPA, cabendo à equipe técnica a realização da triagem, com o objetivo de verificar se tal modalidade de tratamento se faz mais adequada para o paciente. A referida triagem leva em consideração o grau de comprometimento do paciente, subdividido em: • Comprometimento leve: há uma aceitabilidade do paciente frente ao tratamento, observando-se inclusive uma conscientização do mesmo em relação à sua doença; • Comprometimento moderado: o paciente apresenta um grau de restrições e questionamentos, uma vez que não tem uma percepção total do comprometimento do uso abusivo de SPA; 38 • Comprometimento grave: não apresenta disponibilidade para a abstinência, uma vez que não aceita seu comprometimento do uso abusivo de SPA e das dificuldades sociais já apresentadas. Pode-se observar que a atitude voluntária da adesão ao tratamento é passível de ponderações, uma vez que o paciente/usuário vivencia situação extrema de uso abusivo de SPA, tendo abdicado de suas relações sociais básicas, inclusive a convivência familiar, encontrando-se em alguns casos com problemas com a justiça, pelo fato de usar drogas ilícitas. O mesmo se utiliza da internação com o intuito de “dar um tempo, até que as pressões (família, polícia, amigos) diminuam”5. Outros pacientes buscam a internação como única alternativa que lhe restou e, desta forma, percebe a necessidade de se tratar. A internação geralmente ocorre da seguinte maneira: realiza-se uma triagem, anteriormente agendada, por parente ou amigo próximo e, uma vez detectada a positividade da internação, respeitando todos os critérios legítimos, o paciente é encaminhado à Comunidade. Na Comunidade, toma conhecimento do espaço físico, as regras e as atividades. Os primeiros dias são considerados períodos de adaptação, tanto pela coordenação, quanto pela equipe técnica e demais residentes, onde todos procuram esclarecer todas as dúvidas do novo residente. Segundo Fracasso [...] o programa terapêutico-educativo a ser desenvolvido no período de tratamento na comunidade terapêutica tem como objetivo ajudar o 5 Essa expressão foi utilizada por ter sido vivenciada ao longo do trabalho profissional com dependentes químicos. 39 dependente químico a se tornar uma pessoa livre através da mudança do seu estilo de vida. A proposta da comunidade terapêutica deve considerar que o dependente químico pode desenvolver-se nas diversas dimensões de um ser humano integral, através de uma comunicação livre entre a equipe e os residentes, em uma organização solidária, democrática e igualitária. (In: SERRAT, 2001, p. 279). A sugestão de mudança do estilo de vida acontece pois o dependente químico tem que resgatar, quando em tratamento, desde a preocupação com o asseio pessoal, (uma vez que este fator deixa de ocorrer quando do uso abusivo de SPA) até a reflexão de atitudes mais maduras, melhor habilidade para lidar com suas emoções, dentre outras. Geralmente o usuário de SPA, por não se preocupar com seu asseio pessoal, demonstra situações de total desprezo à higiene corporal: não toma banho, não cuida de seu cabelo/barba, e apresenta muitas vezes, doenças de pele. Cabe à equipe fortalecer o indivíduo para desenvolver sua força potencial para deixar o uso de drogas. Reforçar seu desejo do não uso das mesmas; da possibilidade de mudança do estilo de vida, evitando inclusive a freqüência em ambientes que favoreçam o uso de SPA; apresentando a possibilidade de busca de outras fontes de prazer, dentre outros aspectos (prevenção de recaída). Reconhece-se que a internação, mesmo em Comunidade Terapêutica, é uma medida extrema, pois desencadeia privação total do uso das SPAs e todo o sofrimento que esse processo acarreta, além da supressão das relações sociais com os amigos, família e atividades cotidianas. Tal medida se faz necessária nos casos críticos de uso abusivo de SPA, pois as relações sociais já haviam sido abandonadas pelo usuário e da forma que estava vivendo, desrespeitando as necessidades básicas 40 do próprio organismo como se alimentar e dormir, provavelmente seu destino seria a morte. Yaria coloca-nos que Toxicomania significa a escravidão do sem-adicção, do adictum. É no não-dizer que se esconde uma escravidão humana. É que na palavra suprimida a pessoa fica escravizada por um objeto, o qual passa, dessa forma, a ser o seu Amo e Senhor. É por meio da palavra que o sujeito demonstra uma independência relativa diante do objeto. Ao contrário, a sujeição ao objeto droga o enquadra no ato, fica como sujeito no ato, portanto falando desde o real. (1992, p. 56). A filosofia da Comunidade Terapêutica pode ser apresentada nos “Doze Passos”. Mas, para que se obtenha sucesso, a metodologia de Comunidade Terapêutica deverá envolver o tratamento/acompanhamento dos familiares, o que será abordado na segunda parte deste trabalho. 41 CAPÍTULO II CO-DEPENDÊNCIA 42 No capítulo anterior, foi destacada a percepção da dimensão da drogadependência enquanto doença e abordou-se algumas formas de tratamento dos sujeitos que vivenciam esta questão. Durante os anos de 2001 e 2002, a autora pôde experienciar o desenvolvimento de prática profissional do Serviço Social em uma Comunidade Terapêutica de tratamento de dependentes químicos do sexo masculino. Dentre as intervenções teórico-metodológicas planejadas, umas das esferas de atuação centrou-se no atendimento aos familiares dos usuários abusivos de SPAs. Naquela ocasião, percebeu-se que alguns comportamentos dos familiares eram semelhantes. Tais atitudes intrigaram a autora pois, apesar de terem um propósito positivo, tinham efeitos negativos no tratamento. Ou seja, de certa forma estimulavam alguns residentes a desistirem do tratamento (alta a pedido); virem a ser desligados (alta administrativa); a se evadirem (fuga) ou até mesmo a recaírem. Cabe ressaltar que apesar de se perceber nos familiares comportamentos que estimulavam atitudes negativas nos usuários abusivos de SPAs em tratamento, esta percepção não resultou em convicção de que tais comportamentos eram os únicos indicadores da desistência. Pois isto significaria culpabilizar a família e, de certa forma, proteger o dependente químico de sua responsabilidade de escolha. Mas também, não é possível desconsiderar que determinadas atitudes de alguns familiares facilitaram a tomada de decisão de alguns residentes a reverem e até abandonarem o processo terapêutico em que estavam inseridos. 43 Tais percepções levaram à seleção de bibliografias específicas de dependência química, até que se tornou possível visualizar alguns conceitos que se pautavam nesses comportamentos familiares. Constatou-se que numa relação dialética, ou seja, interligada à dependência química, apresenta-se a possibilidade de co-dependência. Isto acontece, pois, ao se tratar de relacionamento humano, conseqüentemente se inclui a vivência de afetividade, cujo eixo seria a busca incessante da felicidade. Freud, com sua perspicácia, também conseguiu demonstrar que essas mesmas relações de prazer podem vir a se tornar negativas: No auge do sentimento amor, a fronteira entre ego e objeto ameaça desaparecer. Contra todas as provas de seus sentidos, um homem que se ache enamorado declara que “eu” e “tu” são um só, e está preparado para se conduzir como se isso constituísse um fato. Aquilo que pode ser temporariamente eliminado por uma função fisiológica [isto é, normal] deve também, naturalmente, estar sujeito a perturbações causadas por processos patológicos. A patologia nos familiarizou com grande número de estados em que as linhas fronteiriças entre ego e o mundo externo se tornam incertas, ou nos quais, na realidade, elas se acham incorretamente traçadas. Há casos em que partes do próprio corpo de uma pessoa, inclusive partes de sua própria vida mental – suas percepções, pensamentos e sentimentos -, lhe parecem estranhas e como não pertencentes a seu ego; há outros casos em que a pessoa atribui ao mundo externo coisas que claramente se originam em seu próprio ego e que por este deveriam ser reconhecidas. Assim, até mesmo o sentimento de nosso próprio ego está sujeito a distúrbios, e as fronteiras do ego não são permanentes. (1969, p. 83-84). Esta linha divisória entre o eu e o outro na relação amorosa, entre prazer e sofrimento é que leva a entender, no caso da dependência química, o sofrimento não só do usuário abusivo de SPA, mas a possibilidade de entes envolvidos e ligados a este usuário tecerem sentimentos de sofrimento e dor. Parte- se do pressuposto que “o dependente é um ser em relação” (ZAMPIERI, 2004, 44 p.61), relação esta vivenciada entre o dependente químico e pessoas próximas a ele, podendo ser entes familiares ou até mesmo pessoas sem quaisquer vínculos consangüíneos. Constrói-se, neste contexto, a categoria de sujeitos significativos. A bibliografia sobre co-dependência aponta para a importância da figura de entes familiares. Parte-se do pressuposto que os familiares, por terem contato direto e constante com o dependente químico, podem vir a manifestar com maior facilidade o que vem a ser denominado co-dependência. O que se esquece é que, talvez, apesar de o dependente fazer parte de um sistema familiar – pais, avós, companheiros (as), filhos –, o mesmo apresente maior consideração, quando interpelado, a outros sujeitos ligados à sua existência, ou seja, amigos, vizinhos ou até mesmo parentes não próximos. Tais considerações permitem compreender o quão tem sido defendida a necessidade de inserção destes sujeitos significativos no processo de tratamento do dependente químico. Zampieri defende que Na fase da abstinência, o sujeito pode não ter acesso à droga, deve contar com um ambiente especificamente voltado a esta expectativa com mudanças relacionais e auto-expectativas favoráveis, ou com um forte motivador interno ou externo à sua vontade ou a seu controle. O próprio sistema familiar deve alterar sua dinâmica momentaneamente em função da expectativa; porém, a manutenção da abstinência requer mudanças duradouras. (2004, p. 59). Apesar de Zampieri defender a hipótese de alteração do sistema familiar, insistimos que a concepção deste sistema ultrapassa os limites de relações consangüíneas, fornecendo parâmetros de análise e até mesmo de possíveis 45 aproximações, ou não, dos usuários abusivos de SPAs a seus entes, familiares ou não. Vários ensaios também defendem a necessidade de intervenção no núcleo familiar, pressupondo que esses familiares são co-partícipes do tratamento. Schender e Minayo, através do artigo entitulado “A implicação da família no uso abusivo de drogas: uma revisão crítica”, percorrem a dimensão em que a família, associada à escola e amigos da adolescência é fonte primária de socialização, sendo importante dimensionar esta mesma família num processo de tratamento de dependente químico. Figlie, frente a esse mesmo posicionamento de inserção da família no tratamento de pessoas em uso abusivo de SPA, considera que O modelo de doença familiar considera o alcoolismo ou o uso nocivo de drogas como uma doença que afeta não apenas o dependente, mas também a família. Esta idéia teve origem nos Alcoólicos Anônimos, em meados de 1940 [...]. Mais recentemente, estudos têm focado que a doença alcoolismo manifesta sintomas específicos nas esposas e companheiros de dependentes químicos, dando origem ao conceito de co- dependência, embora este tenha recebido críticas. (2004). Sendo assim, pode-se perceber a significância da abordagem dos sujeitos relacionados com o dependente químico em tratamento, adentrando a esfera da co-dependência. Ao enveredar pelas produções sobre a co-dependência, observa-se uma ênfase muito maior em categorizar os companheiros (as), ou pais – principalmente a figura materna – como possíveis sujeitos que manifestarão 46 comportamentos de co-dependência, uma vez que são eleitos como pessoas mais próximas aos dependentes químicos. Ao estudar a co-dependência, observa-se que a bibliografia é desenvolvida em sua quase totalidade através de relatos de pessoas que a vivem, ou já a vivenciaram; percebe-se a dificuldade em entendê-la e classificá-la como doença. O paradigma da dependência química, com uma conotação de doença multifatorial, está sendo construído através de um processo gradativo, o que vem a ocorrer também com a conceituação da co-dependência. Entretanto, é fato que, ocasionalmente, existam opiniões divergentes, que não consideram a dependência química e co-dependência uma doença, demonstrando que a mudança de paradigma percorre diversas etapas, sendo natural este processo. Entretanto já é possível considerar o surgimento de discussões sobre co-dependência na comunidade científica. Neste ano de 2004, a psicóloga Maria Aparecida Junqueira Zampieri, publicou um livro cuja temática envolve a co- dependência, iniciando a defesa da categorização da co-dependência como doença. Não existe no DSM-IV (1995) ou na CID-10 (1993) definição para a codependência. É possível que não seja ainda reconhecida como doença, ou não se tenha um consenso para sua classificação, merecendo ainda muitos estudos. Mesmo assim, a codependência já tem sido admitida como uma construção social, o que motivou um translado em tratamentos de abuso de substâncias, deixando-se de focar apenas o dependente para incluir um círculo importante, originalmente ignorado. (2004, p. 65). Defende-se aqui a idéia reforçada pela experiência profissional em instituição de tratamento de usuários abusivos de SPAs, que a co-dependência é 47 construída durante ou até antes da vivência da dependência química. Que a co- dependência se define como um conjunto de características que objetivam a proteção de todos os elementos que envolvem o comportamento do dependente químico, isentando-o desta forma da obrigação/necessidade de se assumir como um doente e almejar um tratamento. Schender e Minayo defendem que Em relação ao universo familiar, diferentes autores, dentre os quais Stanton & Shadish (1997), chegaram a algumas conclusões convergentes: a) uma série de fatores familiares tem relação com o processo adictivo; b) o início do abuso de drogas e de overdoses pode ser precipitado pelo rompimento familiar, estresse e perdas; c) o modelo dos pais no que se refere ao uso de drogas e álcool é importante; d) o abuso de drogas pode auxiliar a manutenção da homeostase familiar ou pode servir como uma forma de mobilizar os pais do adicto para tratamento; e) outros membros da família podem “facilitar” comportamentos que perpetuem o abuso de substância por um dos seus membros. (2003, p. 4). O relato acima descrito leva a um processo de reflexão, que ultrapassa a dimensão das possibilidades de tratamento da dependência química, para o debate sobre fatores que antecedem a manifestação da referida doença. Isso significa repensar estratégias de prevenção, e desfavorecimento de manifestações da doença dependência química. Uma sociedade que, através da mídia, enfatiza comportamentos sócio- culturais que incentivam o uso de álcool e tabaco, demonstra-se contraditória. De um lado, há a defesa da saúde e qualidade de vida; de outro o estímulo ao uso de substâncias prejudiciais à saúde que quando ministradas em excesso, refletem no comportamento de crianças e jovens. 48 No que se refere à co-dependência o limite estabelecido entre o comportamento de proteção normal, daquele considerado como do patológico, apresenta-se no momento em que a pessoa se predispõe a proteger o outro, mesmo que tal atitude cause danos para a sua própria vida. Pode-se concordar que a atitude de danos à própria vida torna-se relativa, principalmente quando o parâmetro de análise passa a ser a visão/concepção que o outro tem sobre a vida alheia. Mesmo que o co-dependente não admita verbalmente os malefícios de seus comportamentos/atitudes, a percepção é de um total vazio quando se refere à sua própria vida. Esse vazio às vezes é percebido através do silêncio, da falta de perspectivas pessoais, de sonhos e desejos pessoais, do receio de falar de si mesmo e até mesmo de representações específicas do próprio corpo como o olhar, o choro, dentre outros. Freud também abordou o sofrimento através de relacionamentos entre homens, quando se transpõe o limite do prazer, ou seja, Assim, nossas possibilidades de felicidade sempre são restringidas por nossa própria constituição. Já a infelicidade é muito menos difícil de experimentar. O sofrimento nos ameaça a partir de três direções: de nosso próprio corpo, condenada à decadência e à dissolução, e que nem mesmo pode dispensar o sofrimento e a ansiedade como sinais de advertência; do mundo externo, que pode voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras e impiedosas; e, finalmente, de nossos relacionamentos com outros homens. O sofrimento que provém dessa última fonte talvez nos seja mais penoso do que qualquer outro. (1969, p. 95). E desta forma se vai adentrando o mundo da co-dependência, percebendo que, os mecanismos que envolvem a proteção referida como patológica 49 apontam cinco principais elementos: minimização, controle, facilitação, pacto e inversão de responsabilidade.(Cf. SERRAT, 2001). A dificuldade do co-dependente aceitar a possibilidade da doença da dependência química ter-se manifestado em seu ambiente micro-social, advém da própria dificuldade de descoberta de mudança de paradigma que envolve a dependência química. Conforme já citado anteriormente, a família envergonha-se de assumir a doença existente em seu seio familiar, devido às pressões e retaliações que vivenciará em seu núcleo social, uma vez que não entende a dependência química como doença. O sentimento de culpa que assola principalmente a genitora – cujo papel principal ofertado culturalmente realça a mãe como responsável pelo zelo e educação da prole – passa a ser substituído por atitudes de minimização, o que é considerado o primeiro estágio da manifestação da co-dependência. Geralmente, o que se observa é a necessidade de se justificar a dependência química, originada por influências do meio, representadas pelas “más influências” dos amigos ou até mesmo situações negativas vivenciadas ao longo da vida. Desta forma, observando sempre que desde o início existe a presença da proteção, as freqüentes faltas escolares passam a ser justificadas pelo co- dependente, como pequenos problemas corriqueiros de saúde. A falta freqüente ao local de trabalho também se justifica através de mentiras, o que proporciona a instalação da cumplicidade (co-parceiros na dependência). Como tais justificativas tendem a cessar, transferem-se todas as atitudes a questões de âmbito mais genérico, 50 ou seja, a evasão escolar é fruto da incompetência dos professores e sua rigidez, a perda do emprego é devido à amargura do patrão e ao baixo salário oferecido. Instala-se o ciclo de cumplicidade e sofrimento; pode-se afirmar que o sofrimento do co-dependente é avaliado como mais intenso que o do dependente químico. Assim é que, o primeiro vivencia todas as mentiras num estado de sobriedade, o que não acontece com a pessoa no uso abusivo de substâncias psicoativas, já que se concebe que pelo menos durante o uso, encontra-se totalmente desligada da realidade presente. Essa cumplicidade passa a ser visualizada até mesmo nos ambientes em que residem, tanto o dependente químico quanto o co-dependente. É fato que esses mesmos ambientes em que os dependentes químicos residem, geralmente são utilizados para o uso abusivo de SPAs, principalmente quando esse uso adentra a esfera ilícita. São ambientes desprovidos de qualquer conforto, pois os próprios móveis e utensílios domésticos geralmente são negociados em troca das SPAs. Do contrário, ou seja, se fizesse uso das SPAs em ambientes públicos, o dependente poderia sofrer repressão policial. Constata-se, desta forma, que o sofrimento faz-se intenso para a pessoa que convive neste ambiente e que se apresenta sóbria. Com o passar do tempo, a atitude de controle se torna presente, embora possa ser denominada pseudo-controle, uma vez que se constata sua inexistência. A atitude presente é a de se estipular regras de conduta, esquecendo-se da característica principal da mesma: o limite. Observando-se empiricamente o comportamento dos seres humanos, constata-se que as regras usualmente mais seguidas são as que possuem concretamente formas de punição. Observe-se a ironia 51 implícita no exemplo do uso do cinto de segurança: a partir do momento em que se estipulou sua obrigatoriedade, todas as pessoas concordaram com a eficácia da legislação que se fazia protetora. Mas seu uso só se tornou um hábito quando se concretizou em multa a punição aplicada frente à transgressão da legislação. O controle que o co-dependente coloca ao dependente químico encontra-se distante do exemplo acima citado; impõem-se regras mas se encontram dificuldades em segui-las. São freqüentes os exemplos de regras estabelecidas nas famílias que estabelecem o impedimento da entrada do dependente químico em casa, após certo horário; mas o co-dependente, cujo sofrimento não tem limites, opta por aceitar os revezes de deixá-lo entrar a vê-lo sofrer na rua. A sensação é de que agiu corretamente e com certeza as pessoas ao redor, familiares, vizinhos, aprovarão tal atitude, envolta em bondade. Esquece-se da observância do limite, demonstrando que o descumprimento da regra é uma constante em famílias de dependentes químicos. Tal comportamento, sugere que, em núcleos familiares onde há super proteção e desobrigação do cumprimento de limites, existe propensão à dependência química. Isto conduz à seguinte indagação: a dependência química proporciona a co- dependência ou esta última proporciona a dependência química? Zampieri aponta que Vivências rígidas, insatisfatórias e altamente conturbadas nessas etapas preliminares da vida podem resultar num posterior uso do imaginário para fugir ou estereotipar papéis, com um progressivo empobrecimento do EU, que pode ser percebido como uma constante sensação de incompletude. Nessa condição poderiam encaixar-se os neuróticos, os co- dependentes e um sintoma geral do sujeito que busca psicoterapia. (2004, p. 83). 52 Portanto, aborda-se que o “modos vivendi” da família, desde o início de sua configuração, pode ser um dos elementos desencadeadores do comportamento co-dependente. Através da experiência, pode-se observar sistemas familiares com total rigidez de regras e/ou ausência total das regras, que, de certa forma, podem ser considerados elementos desencadeadores da co-dependência e dependência química. Ressalta-se novamente que tais doenças são multifatoriais, não podendo ser analisadas somente através de um único elemento. Devido à dificuldade do exercício do controle, a atitude consecutiva é a facilitação. Como a própria palavra define, acentua-se a permissividade do uso, que já não mais ocorre necessariamente em lugares afastados, específicos, tais como casas abandonadas, terrenos baldios, bares, bocas de fumo, dentre outros. Ocorre na própria residência do dependente químico, independentemente da condição dos demais familiares. Nesta fase, constata-se o uso próximo aos olhares das crianças, idosos, enfim, a conotação de limitação torna-se inexistente. O compactuar com o uso de substâncias psicoativas e seus malefícios, tanto de ordem física como social, torna- se premente. O co-dependente compactua, pois crê que tal atitude propiciará o entendimento que o dependente químico terá da necessidade de procura de um tratamento, o que dificilmente ocorre. O que se estabelece é o contrário: enquanto não se cumprirem as regras e se deixar de facilitar, não haverá nenhum propósito que venha estimular o dependente químico a procurar o tratamento. A co-dependência se faz tão nítida que acontece a inversão de responsabilidades: todos os malefícios causados pelo uso 53 abusivo de substâncias psicoativas tornam-se responsabilidades dos co-dependentes. A observação desses fatos tem permitido tal inferência, pois pode-se constatar que, quando o dependente químico já possui processos judiciais em seu nome, geralmente é o co-dependente que se preocupa com o andamento do mesmo e com a constituição de um advogado. Essas atitudes revelam o despropósito de que o co- dependente é quem será o cumpridor da pena a ser imposta. A própria procura pelo tratamento ocorre, na maioria dos casos, pelo co-dependente, que deseja ardentemente o tratamento do dependente químico, apesar deste último não o querer. Este momento deve ser ressaltado, pois geralmente a equipe profissional aconselha a família a procurar ajuda em grupos de apoio específicos (Amor Exigente, Núcleo de Apoio a Família de Toxicodependentes, dentre outros) possibilidade que é terminantemente negada, pois se visualiza a doença somente no dependente químico. A dificuldade inicial de constatação desta doença, a co-dependência, é a de que, diferentemente da maioria das outras doenças, sua manifestação é subjetiva. Ou seja, no caso do dependente químico, o uso de uma substância psicoativa é concreto, todos vêem a substância e constatam facilmente o efeito que ela desencadeia no organismo. Por outro lado, a co-dependência se manifesta somente através de atitudes e sentimentos, o que a princípio impõe dificuldade maior no diagnóstico. Prova-se, entretanto, que em muitos casos a co-dependência favoreceu a instalação de outras morbidades como doenças coronárias, pressão alta, depressões e neuroses diversificadas e até mesmo a dependência química através de uso abusivo de anti-depressivos. 54 O co-dependente, inconscientemente, tem dificuldade em assumir sua própria doença, pois necessariamente vivenciaria dois principais conflitos: o de estar doente e o de ter que se tratar. Tais conflitos revertem o foco de atenção: como assumir o estar doente se a atenção principal deve ser dada ao (doente) dependente químico; e como almejar um tratamento, se aquele (doente) a ser buscado é o do dependente químico? Os dois conflitos acima elencados vêm de encontro à característica fundamental do co-dependente que abdicou do hábito de sentir ou falar sobre os seus próprios sentimentos. Tal atitude o leva a não ser vulnerável, e sim, perfeito. A necessidade condiciona o co-dependente a viver uma situação de desconforto no núcleo familiar em que vive, mas inibe manifestações contrárias frente ao mesmo. A sensação que se tem é de uma situação dúbia: o de ser herói e o de ser vítima. Desta forma, observando-se que, uma vez que o foco das atenções é o dependente químico, há dificuldades de se resolverem outras situações que envolvem questões familiares como a relação conjugal, a educação dos demais filhos, a situação financeira instalada. A vivência profissional com pessoas co-dependentes permite perceber que tais sujeitos manifestam dificuldade de falar sobre eles mesmos, de planejarem suas vidas sem a figura do usuário abusivo de SPAs. A sensação que se tem é que a centralidade de suas vidas é o dependente químico. A felicidade só existirá quando o outro estiver feliz, livre das drogas, “curado”. 55 A dúvida se coloca: ser co-dependente daria um sentido à vida dessas pessoas, que necessitariam manter o outro como usuário em situação de uso abusivo de SPAs, para se sentirem protetores e portanto “úteis”? Essas mesmas pessoas não conseguem ter a percepção de que anulam suas vidas através do outro; pelo contrário, sentem-se na obrigação de zelar pela vida do outro, mesmo que coloquem em risco sua própria existência. É comum visualizarmos co-dependentes arriscando perder o emprego – considerando a dificuldade de se trabalhar nos dias atuais – para proteger o dependente químico. Foi possível na experiência profissional que embasou essas reflexões, observar até mesmo co-dependentes que arriscaram suas próprias vidas para “limpar a barra” do dependente químico. Em momentos de desespero e frente às pressões que os traficantes exercem, ameaçando a vida do usuário abusivo de SPAs, essas pessoas, co-dependentes, dirigem-se até à “boca” para negociar a dívida do ente querido. Nega-se a todo tempo o ser egoísta, desconsiderando que tal característica é peculiar ao ser humano. O que parece à primeira vista um encorajamento do egoísmo, até do narcisismo, deveria ser antes compreendido como um ponto de partida essencial para a possibilidade de desenvolvimento do amor confluente. É em pré-requisito para o reconhecimento do outro como um ser independente, que pode ser amado por seus traços e qualidades peculiares; também oferece a oportunidade de libertação de um envolvimento obsessivo, de um relacionamento doente ou quase morto. (GIDDENS, 1993, p. 105-106). 56 Os elementos que compõem o quadro da co-dependência são tão claros que na maioria das vezes os co-dependentes encontram dificuldades em buscar uma diversão/lazer, em se proporem alguns momentos de alegria; enfim, em gozar a vida. A identidade do co-dependente passa a ser a identidade do outro, ou seja, faz-se perceptível esta inferência no momento em que se pede ao co- dependente para que o mesmo fale sobre si mesmo. O co-dependente simboliza e descreve sua singularidade através da identidade do dependente químico, sendo sua real identidade apontada sob o jugo da vida do outro. Tal elemento compromete a pluralidade humana, tão bem definida por Arendt como “[...] condição da ação humana pelo fato de sermos todos os mesmos, isto é, humanos, sem que ninguém seja exatamente igual a qualquer pessoa que tenha existido, exista ou venha a existir.” (2004, p. 16). Giddens traça a definição de co-dependência apontando Uma pessoa co-dependente é alguém que, para manter uma sensação de segurança ontológica, requer outro indivíduo, ou um conjunto de indivíduos, para definir as suas carências; ela ou ela não pode sentir autoconfiança sem estar dedicado às necessidades dos outros. (1993, p. 101-102). Entretanto, falar sobre co-dependência não se limita somente a teorizá-la, categorizá-la cientificamente, e quem sabe até mesmo comprová-la como uma doença, sendo uma das defesas de Zampieri. Não se trata de culpabilizar o co- dependente como único responsável pelo desencadeamento do processo de uso 57 abusivo de SPAs pelo sujeito que está próximo, pois desta forma se incorreria em duas contradições. A primeira contradição seria negar o fato da dependência química ser uma doença multifatorial, conforme já abordado no primeiro capítulo deste estudo. A segunda contradição, a qual já foi também apontada, seria desencadear um processo de culpabilidade numa pessoa que sofre a co-dependência ou seja, sentir- se culpada por estar doente. Conforme relatos de pacientes, ninguém desejou vivenciar a doença da dependência química e nem sequer da co-dependência. Talvez, um dos objetivos deste estudo seja o de despertar nos profissionais ligados diretamente a instituições ou até mesmo a grupos de tratamento de dependentes químicos, a possibilidade e até mesmo a necessidade de se acrescentar no processo terapêutico a abordagem da co-dependência, proposição já defendida pelos profissionais que escrevem sobre o assunto. Não caberia uma comprovação científica desta co-dependência para que posteriormente a abordássemos na atuação profissional. O que leva à reflexão sobre esta questão são as vivências e comportamentos percebidos no cotidiano profissional, frente aos sujeitos ligados aos dependentes químicos. O sofrimento que tais sujeitos vivenciam, o desconhecimento do porquê sofrem, é que devem servir de parâmetros para que os profissionais envolvidos na questão venham a intervir na mesma. O capítulo que se segue, propõe demonstrar, através de depoimentos significativos de sujeitos ligados, ora por laços familiares, ora por laços de amizade, 58 a expressividade e percepção que esses mesmos sujeitos possuem frente à dependência química e à co-dependência. 59 CAPÍTULO III A PESQUISA 60 3.1 O cenário Para que se possa apresentar de forma mais consistente o presente estudo, faz-se necessário contextualizar algumas evidências que envolvem a temática aqui apresentada. Quando se aborda a questão da dependência química e co- dependência, há a proposição de que são dois fenômenos interligados e que se encontram presentes num contexto amplo, num contexto social. Tal contexto social, no que se refere a essa temática, apresenta-se através de divergências e contradições. É fato que, como já exposto no primeiro capítulo desta pesquisa, a sociedade, desde os primórdios, utiliza-se do uso de substâncias psicoativas em rituais religiosos, ou até mesmo como um hábito ou costume tecido através de redes culturais. À medida que essa mesma humanidade caminha na linha do tempo, a proposta passa a ser, na esfera econômica, de uma política que valorize a lei da oferta e procura; e uma divisão social de classes, que incorpora de um lado os donos dos meios de produção, e de outro as pessoas que negociam sua força de trabalho. Apresentamos um quadro de uma sociedade cuja construção e vivência se baseia na competitividade e no individualismo. O forte fio que tece as relações sociais é o capital, que enfatiza a proposta da lucratividade. Esta última, ao permear as relações sociais, faz-se presente inclusive no universo da dependência química. É fato que o comércio das substâncias 61 psicoativas lícitas apresenta-se com altos índices de lucratividade. As indústrias do álcool e tabaco dificilmente convivem com cifras negativas de produção e comercialização. O “marketing” de vendas adotado é ao mesmo tempo sofisticado e intensivo, levando ao consumo de tais produtos de forma especialmente incisiva. Mesmo a observação empírica, permite perceber a insistência de tais propagandas nos canais populares da televisão brasileira na atualidade. O lema “experimenta”1 transpassa a preocupação de políticas de prevenção de SPAs, pelo contrário, massifica a importância do uso de SPAs no meio social. O tabaco, alvo de críticas de profissionais da saúde pela comprovação científica dos malefícios à saúde, apresenta em suas propagandas meros lembretes2 dos aspectos prejudiciais do hábito de seu uso. Desta forma, percebemos que o poder público, que deveria se preocupar com o bem-estar da população e propiciar saúde e qualidade de vida à mesma, controla minimamente as referidas indústrias do tabaco e álcool. A razão desse controle tão restrito talvez esteja no recolhimento das altas cargas tributárias, que lhe permitem beneficiar-se diretamente da comercialização de tais produtos. O propósito deste trabalho, ao apresentar tais reflexões, não é o de combater a comercialização do álcool e tabaco, mas atentar ao fato de que, dificilmente, um usuário abusivo de SPAs ilícitas não tenha se iniciado senão 1 Há alguns meses atrás, uma companhia de cerveja nacional divulgou em suas propagandas a frase acima colocada, tendo conseguido superar suas expectativas de comercialização do referido produto, sendo esta idéia utilizada popularmente durante um certo período, demonstrando o poder da propaganda. 2 Grifo nosso. 62 através de SPAs lícitas. Somando-se a essa colocação, não se pode desconsiderar a quantidade de pessoas que fazem uso abusivo de álcool. Quando se estabelece a relação entre o uso abusivo de SPAs lícitas e ilícitas, é importante igualmente apontar os altos índices de violência, acidentes, crimes e óbitos que envolvem tais práticas de uso abusivo. Por outro lado, observa-se um quadro de escassez de políticas públicas de atendimento/tratamento/prevenção frente aos usuários abusivos de SPAs. É fato que tem havido uma propagação de unidades públicas de atendimento ambulatorial ligados à drogadependência. Entretanto, tais serviços não conseguem contemplar a totalidade da demanda, e nem, em alguns casos, apresentar equipe técnica mínima, devidamente capacitada. Em contrapartida, os atendimentos de internação se restringem a poucos hospitais psiquiátricos; e as comunidades terapêuticas, como visto anteriormente, encontram-se na esfera não-governamental, em alguns casos relacionadas com filosofias de tratamento pautadas na religiosidade e benemerência. Observa-se, entretanto, que as temáticas dependência química e co- dependência têm sido alvo de estudos diversos, demonstrando uma preocupação incipiente de melhorar/adequar técnicas eficazes de atendimento tanto ao usuário de SPAs quanto às pessoas que convivem com o mesmo. É neste cenário que se apresenta a proposição do presente objeto de estudo, o que será detalhado com maior precisão. 63 3.2 Metodologia Para que se inicie a discussão da proposta metodológica que referendou este estudo, faz-se necessário primeiramente expor com clareza a dimensão epistemológica desta proposta. O próprio propósito de estudo, aponta a corrente fenomenológica como a que melhor incorpora os diálogos empreendidos neste estudo com os sujeitos significativos, e suas representações frente à co-dependência. Aranha e Martins iniciam a reflexão sobre a fenomenologia pontuando que A fenomenologia critica a filosofia tradicional por desenvolver uma metafísica cuja noção de ser é vazia e abstrata, voltada para a explicação. Ao contrário, a fenomenologia visa a descrição da realidade e coloca como ponto de partida de sua reflexão o próprio ser humano, no esforço de encontrar o que é dado na experiência, descrevendo “o que se passa” efetivamente do ponto de vista daquele que vive determinada situação concreta. Nesse sentido, a fenomenologia é uma filosofia da vivência. (2003, p. 150). É desta forma que aqui se incorpora a representatividade e significado das experiências relatadas pelos sujeitos da pesquisa, considerando até mesmo a “[...] provisoriedade, mutabilidade e relatividade da verdade”. (CRITELLI, 1996, p. 11). Esta mesma corrente não concebe verdades absolutas, e sim conceituações relativas, uma vez que desde o início, até no momento em que se voltou o olhar para os sujeitos, este olhar possuia uma representatividade única e 64 baseada naquele momento expressivo, o que poderá se alterar e até mesmo se contrapor num segundo momento. Magro e Graciano (Org.) expõem a concepção de Humberto Maturana sobre a questão da relatividade: Assim, se conforme o resultado de suas investigações, a percepção não pode ser vista nem como um fenômeno objetivo nem subjetivo, ele concluiu que a ciência não necessita – nem pode necessitar – do argumento de uma realidade objetiva e independente daquele que a observa para se validar enquanto saber e garantir seu estatuto de conhecimento verdadeiro. Maturana afirma que uma explicação científica, como qualquer explicação, é sempre a reformulação da experiência do observador, e que ela se constitui como tal na medida em que é aceita pelo observador (ou comunidade de observadores) através de um critério de validação por ele(s) mesmo(s) estabelecido. (MATURANA; MAGRO; GRACIANO, 1997, p. 20). A indagação da fenomenologia centra-se em conhecer o sentido de ser, mesmo que este conhecimento seja relativo e provisório. Engler apresenta o desafio de “[...] pensarmos sobre a finalidade do homem e sobre a essência do que é ser humano. Entendemos que ele é uma unidade fundamental que constrói a realidade ao mesmo tempo que se constrói”. (2001, p. 17). Ao perpassar a abordagem da pesquisa nas ciências sociais, a opção foi pela pesquisa qualitativa, uma vez que os métodos qualitativos são [...] basicamente úteis para quem busca entender o contexto onde algum fenômeno ocorre. Assim sendo, eles permitem a observação de vários elementos simultaneamente em um pequeno grupo. Essa abordagem é capaz de propiciar um conhecimento aprofundado de um evento, possibilitando a explicação de comportamentos. (VICTORA; KNAUTH; HASSEM, 2000, p. 37). 65 Desta forma, através da interpretação dos fatos pode-se refletir sobre uma realidade particular, considerando os sujeitos partícipes significativos nesta mesma realidade. A mensuração, através de estatísticas que desencadeiam a análise dos dados, torna-se inviável nesta esfera de proposta de pesquisa. Este estudo, desta forma, apresentar-se-á único mas não tecerá conclusões objetivas das experiências analisadas. Entretanto, pretende-se que esta investigação possa ser fonte de inspiração para outras pesquisas. “Seguindo esse fio de raciocínio compartilhamos também com a idéia de que a cientificidade tem que ser entendida como reguladora de alta abstração e não como sinônimo de modelos e normas a serem seguidos”. (ENGLER, 2001, p.79). Uma vez feita a opção pela pesquisa qualitativa, foi eleita a técnica de depoimentos como instrumento de coleta de informações. Esta técnica apresenta dificuldades em relação aos sujeitos significativos e ao pesquisador. Para aqueles sujeitos, suscita lembranças, sonhos, positivos e negativos de sua vivência. Para o pesquisador, apresenta-se a impossibilidade de neutralidade. A peculiaridade do Serviço Social ao conceber tal técnica na esfera da pesquisa qualitativa é que [...] adotada no Serviço Social, enquanto profissão da área social, com o sentido e perspectiva caracterizada anteriormente, dado a certas peculiaridades inerentes ao seu fazer profissional desde os primórdios incrustados na sua forma específica e na sua tradição de pesquisar, cuja finalidade consiste, a partir da escuta do outro (no Plantão, Visitas e tipos de Entrevistas diversas); em buscar significados sócio-histórico-psíquico- econômico e cultural nas vivências dos sujeitos, que numa investigação, no ato de interagirem com o Assistente Social comparecem por inteiro, desvelando todo o seu ser. (OLIVEIRA, 1998, p. 160-161). 66 Face à técnica de obtenção de dados escolhida, um dos pressupostos é a oralidade, envolvida de percepções frente à experiência dos atores envolvidos. Amado e Ferreira observam que A consideração do âmbito subjetivo da experiência humana é a parte central do trabalho desse método de pesquisa histórica, cujo propósito inclui a ampliação, no nível social, da categoria de produção dos conhecimentos históricos, pelo que também se identifica e solidariza com muitos dos princípios da tão discutida “história popular”. (2002, p. 16). Definido o tipo de pesquisa adotado, coloca-se a questão de demonstrar o universo pesquisado. Uma vez que a proposta deste estudo foi refletir sobre a co- dependência, o primeiro passo foi o da aproximação a usuários abusivos de SPAs em tratamento, numa comunidade terapêutica. A instituição escolhida foi a Comunidade Nova Jerusalém, fundada em 1992 por um grupo de pessoas ligadas a um movimento da Igreja Católica, no município de Uberaba, M.G. A escolha da entidade ocorreu porque durante os anos de 2001 a 2003 (maio), a pesquisadora desenvolveu um trabalho técnico de Serviço Social em equipe interdisciplinar. Foi possível experienciar a implantação do trabalho do Serviço Social na instituição que até então não possuía em seu quadro este profissional. Após a definição da instituição de tratamento, em que seria feita a pesquisa, o segundo passo foi a construção do método, através do qual se pôde 67 definir os sujeitos representativos do universo estudado, no caso, residentes3 internados na Nova Jerusalém. Um dos critérios adotados para a realização dessa opção foi baseado no processo de tratamento da Comunidade, onde o período de internação é de nove meses. Para isso, delimitamos a escolha dos sujeitos da pesquisa em dois residentes, de forma que o primeiro estivesse vivenciando a metade do tratamento, ou seja, experienciando o quarto mês; e o segundo residente, vivenciando o oitavo mês de tratamento, na fase final. No que se refere a este último residente, não haviam alternativas, pois no momento em que se iniciou o processo investigativo (setembro/04), havia somente um residente de oitavo mês de tratamento na Comunidade Nova Jerusalém. Em relação à seleção de sujeitos residentes de quarto mês, haviam três usuários nessa situação, e a opção foi a escolha aleatória (sorteio). Após essa etapa, foi explicado o propósito de nossa pesquisa à Assistente Social da Comunidade Nova Jerusalém, solicitando-se que a mesma apresentasse individualmente a proposta aos residentes escolhidos, e os questionasse a respeito de quem seriam as três pessoas mais importantes (significativas) na vida deles. O residente de quarto mês apontou a mãe, a avó e uma filha de onze anos de idade; posteriormente ao lhe explicar a Assistente Social a dificuldade de coletar depoimento de uma criança, indicou uma vizinha em substituição à filha. O residente de oitavo mês indicou duas irmãs e a filha mais velha. 3 Denominação comum que caracteriza as pessoas internadas em comunidades terapêuticas. 68 A partir destas informações e através do escritório da Comunidade Nova Jerusalém, foi possível obter contatos telefônicos das pessoas acima elencadas pelos residentes, denominados agora de sujeitos significativos da pesquisa. Desta forma, entende-se que sujeitos significativos são pessoas que sentimentalmente são importantes na vida dos residentes, ou seja, não necessariamente se encontram na esfera de parentesco e até mesmo de convivência numa mesma residência. Deve-se ressaltar que todas as informações coletadas através da Nova Jerusalém, o foram com autorização do responsável pela Instituição, por entender a importância do estudo e o procedimento ético que permeou o processo. O fato de escolher dois residentes, sendo um de quarto mês e um de oitavo, que por sua vez apontassem cada um, três sujeitos significativos, foi intencional. A proposta foi refletir as diferenças, ou não, de colocações dos sujeitos significativos, de forma a caracterizar a co-dependência em duas etapas diversificadas de tratamento. A terceira etapa da pesquisa foi iniciada através de contatos telefônicos do investigador com os sujeitos investigados. Apesar da primeira aproximação ter ocorrido através do contato telefônico – o que seria mais positivo se tivesse ocorrido de forma pessoal – os sujeitos significativos foram extremamente receptivos. O pesquisador preocupou-se desde o início em se apresentar e esclarecer o propósito da pesquisa, para que se pudesse agendar os depoimentos. 69 Percebeu-se que somente a avó demonstrou insegurança e oposição em se dispor a relatar sua experiência, justificando ora a falta de tempo, ora a inexperiência frente ao assunto, ora a falta de lugar para se estabelecer a conversa, dentre outros aspectos. Procurou-se esclarecer que o depoimento deveria ser espontâneo, e que não haveria nenhum problema caso a mesma se posicionasse contra; finalmente essa avó se mostrou favorável, pois poderia de certa forma contribuir com o seu neto que estava em tratamento. Desde o início estabeleceu-se que o dia, horário e local do depoimento seriam deliberados pelo próprio sujeito investigado. Todos os sujeitos significativos preferiram realizar os depoimentos em suas próprias residências, procurando inclusive adequar o horário em ocasiões em que não haveriam interrupções. A exceção foi a avó que, num primeiro momento, sugeriu utilizar uma Igreja, próxima à sua residência. Devido à impossibilidade relacionada à questão do sigilo, foi sugerido levá-la a uma instituição pública4, posição esta aprovada pela mesma. A percepção inicial em relação à cooperação da maioria dos sujeitos significativos, foi comprovada. O objetivo dos depoimentos foi o de refletir sobre comportamentos co-dependentes nos sujeitos investigados e a percepção que os mesmos apresentavam nessa esfera. 4 Uma vez que a pesquisadora foi funcionária pública municipal em Uberaba durante seis anos, tinha facilidades em conseguir uma sala de um equipamento público para realizar a coleta do depoimento, caso fosse necessário. 70 O registro foi feito utilizando-se gravador, com prévia autorização dos sujeitos depoentes, com o objetivo de garantir rigor e fidedignidade a esses registros. Apesar desse nosso propósito, sabe-se que, na própria transcrição há perdas, pois “[...] toda transcrição, mesmo bem feita, é uma interpretação, recriação, pois nenhum sistema de escrita é capaz de reproduzir o discurso com absoluta fidelidade; de certa maneira, é uma traição à palavra”. (AMADO e FERREIRA, 2002, p. 239) Por compartilhar dos pressupostos éticos na pesquisa, a pesquisadora utilizou o Termo de Consentimento Informado, resguardando eticamente tanto o pesquisador, quanto os sujeitos investigados. Relatado o procedimento investigativo, passa-se à análise dos depoimentos coletados. 3.3 Análise dos dados Ao iniciar a reflexão sobre os relatos orais dos sujeitos significativos, não de forma conclusiva, mas investigativa, o primeiro aspecto a ser observado foi a escolha dos sujeitos significativos pelos residentes. Deve-se esclarecer que quando da escolha dos dois residentes, o de quarto mês (metade do tra