MARXISMO E LITERATURA A RECEPÇÃO DO PENSAMENTO DE GYÖRGY LUKÁCS EM LEANDRO KONDER E CARLOS NELSON COUTINHO RAFAEL DA ROCHA MASSUIA MarxisMo e literatura CONSELHO EDITORIAL ACADÊMICO Responsável pela publicação desta obra Ana Lúcia de Castro Maria Orlanda Pinassi Carla Gandini Giani Martelli Maria Teresa Miceli Kerbauy RAFAEL DA ROCHA MASSUIA MarxisMo e literatura A recepção do pensAmento de GyörGy Lukács em LeAndro konder e cArLos neLson coutinho © 2013 Editora Unesp Cultura Acadêmica Praça da Sé, 108 01001-900 – São Paulo – SP Tel.: (0xx11) 3242-7171 Fax: (0xx11) 3242-7172 www.culturaacademica.com.br feu@editora.unesp.br CIP – BRASIL. Catalogação na publicação Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ M372m Massuia, Rafael da Rocha Marxismo e literatura [recurso eletrônico]: a recepção do pensa- mento de György Lukács em Leandro Konder; Carlos Nelson Coutinho/ Rafael da Rocha Massuia. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2013. recurso digital Formato: ePDF Requisitos do sistema: Adobe Acrobat Reader Modo de acesso: World Wide Web ISBN 978-85-7983-479-0 (recurso eletrônico) 1. Lukács, Gyorgy, 1885-1971 2. Ontologia. 3. Comunismo. 4. Ciência política. 5. Socialismo. 6. Livros eletrônicos. I. Título. 14-08302 CDD: 111 CDU: 111.1 Este livro é publicado pelo Programa de Publicações Digitais da Pró-Reitoria de Pós-Graduação da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp) Editora afiliada: Aos meus avós paternos, Argemiro (in memoriam) e Maria, a minha companheira, Carolina, e ao meu orientador, José Antonio Segatto, com os quais tanto aprendi e aprendo e sem os quais o presente estudo jamais teria ganhado vida. “Enquanto não realizares esta indicação: ‘Morre e renasce’, serás apenas um triste hóspede na obscura terra.” Johann Wolfgang von Goethe Sumário Introdução 11 1 A recepção de György Lukács no Brasil 15 2 Leandro Konder 41 3 Carlos Nelson Coutinho 115 Considerações finais 277 Referências 291 introdução O presente livro é resultado de uma pesquisa de mestrado realiza- da junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da Fa- culdade de Ciências e Letras, pertencente a Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), campus Araraquara, sob orientação do Prof. Dr. José Antonio Segatto, intitulada “A recepção das ideias estético-literárias de Lukács em Leandro Konder e Car- los Nelson Coutinho: análise de suas produções teóricos-críticas”, ainda que se apresente de forma ligeiramente modificada da versão definitiva, que foi depositada na biblioteca da mesma instituição. Essas alterações, ainda que pontuais, se justificam pela tentativa de encontrar uma forma mais fluída, buscando facilitar a leitura da pesquisa com a supressão de citações excessivas e outras questões técnicas que, se numa dissertação acadêmica fazem-se necessárias, num livro mostram-se inoportunas. A ideia inicial da pesquisa remete ao período em que cursei a graduação em Ciências Sociais na Universidade Estadual de Ma- ringá (UEM), entre 2007 e 2010, onde tive o primeiro contato com as ideias e concepções do filósofo húngaro György Lukács, que levariam, num segundo momento, a uma pesquisa de Iniciação Científica sobre suas concepções estéticas, mais especificamente no que dizem respeito ao fenômeno artístico-literário. 12 MARXISMO E LITERATURA Uma vez no mestrado, resolvi seguir, também em função das linhas de pesquisas existentes, os desdobramentos locais das ideias lukacsianas, mais especificamente na obra e no pensamento de dois importantes autores marxistas no Brasil: Leandro Konder e Carlos Nelson Coutinho. A escolha não foi aleatória, pois tratam-se de dois pensadores de peso, que se valem intensamente das formula- ções do pensador húngaro. O enfoque respeitou o interesse inicial, também devido à limitação temporal imposta ao mestrado na insti- tuição (24 meses, realizado entre 2011 e 2013), a dimensão estético- -literária, que avulta como parte – ainda que bastante expressiva –, que de maneira alguma pretende esgotar a amplitude temática pela qual o pensamento de Lukács se move com grande facilidade. De forma geral e sucinta, o presente trabalho busca realizar uma discussão sobre o significado da recepção das ideias estético-lite- rárias no interior do pensamento de dois dos pensadores mais ex- pressivos que se valeram das formulações de Lukács nesse campo, mas que não se limitaram à mera reprodução local das concepções de um autor estrangeiro (o que, infelizmente, como numa insistente distopia pós-colonial, acontece com relativa frequência), mas bus- caram testar os seus limites e mesmo buscar enriquecê-la a partir de reflexões próprias, como, se fui bem-sucedido no meu intento, mostrarei ao longo da exposição que se seguirá. O primeiro capítulo retoma o contexto de renovação do marxis- mo no país, em função sobretudo do quadro de crise do socialismo real, da denúncia dos crimes do regime stanilista e da necessidade de uma renovação do pensamento marxista. Dentro desse quadro, são destacadas a importância da atuação teórica de Antonio Gramsci e György Lukács, bem como a importância dada a esses pensadores (mais pelo segundo, mas de maneira alguma negligenciada pelo primeiro) ao fenômeno artístico – que futuramente ocuparia pri- vilegiado espaço também entre os teóricos da Escola de Frankfurt. Nos segundo e terceiro capítulos são discutidas mais detida- mente as obras e concepções dos dois autores analisados central- mente pela pesquisa, buscando demarcar as suas especificidades. No caso de Leandro Konder, fica patente sua inclinação enciclo- RAFAEL DA ROCHA MASSUIA 13 pédica, apresentando ao público brasileiro o então desconhecido teórico marxista György Lukács, o que não o impediu de realizar críticas a pontos que julga problemáticos. Carlos Nelson Couti- nho, por sua vez, demonstra um trato diferente em relação à obra lukacsiana, já desde seus primeiros escritos buscando aplicá-la à realidade e aos autores brasileiros; sua contribuição vai desde esse inédito movimento ao questionamento do juízo negativo emitido por Lukács a autores como Franz Kafka e Marcel Proust (questio- namento também levantado por Konder, com o acréscimo de James Joyce, ainda que de forma menos detida e sistemática). Finalmente, no quarto e último capítulo, aponto o significado da recepção do pensamento lukacsiano em Konder e Coutinho, buscando ainda indicar uma curiosa relação de complementaridade presente nas atividades teóricas dos dois pensadores estudados. Não posso deixar de agradecer meu orientador, o Prof. Dr. José Antonio Segatto, pelo inestimável apoio, pela paciência e pela in- calculável contribuição à minha formação intelectual. Aos profes- sores que gentilmente aceitaram o convite de participarem da banca de qualificação, o Prof. Dr. Newton Duarte e a Prof. Dra. Maria Célia de Moraes Leonel, que souberam relevar meus muitos erros, fornecendo-me outras tantas dicas e soluções – também ao profes- sor Prof. Dr. Wilton Marques, que tão solicitamente (e mesmo em cima da hora) aceitou o convite para participar da banca da defesa. À minha companheira, Carolina Góis Ferreira, pela leitura, críticas e sugestões, sem a qual a existência deste trabalho – literalmente – não seria possível. Também agradeço a Capes, que forneceu as bases materiais necessárias a realização da pesquisa. Da realização da pesquisa, gosto de pensar com o Goethe de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, que redige as magníficas linhas que se seguem: É tão agradável podermos recordar, se contentes estamos com nós mesmos, os diferentes obstáculos que, com um sentimento doloroso, acreditávamos por vezes insuperáveis, e comparar o quanto evoluídos somos agora com o quão pouco evoluídos éramos então (Goethe, p.34). 14 MARXISMO E LITERATURA Ao leitor, desejo que a leitura deste livro provoque a mesma reação que experimentei ao realizá-lo, a de “morrer e renascer”, da sugestão goethiana, tão cara também a Lukács, que é a evoca- ção da busca progressiva pelo conhecimento, da expressão de seu movimento dialético. 1 A recepção de GyörGy LukácS no BrASiL De meados do século XX em diante, sobretudo após a denúncia dos crimes do regime stalinista no XX Congresso do PCUS em 1956, a situação geral do socialismo global é de crise.1 No Brasil, os movimentos de esquerda veem-se, na maioria das vezes (com al- gumas, porém notáveis, exceções), sujeitos às inflexões globais, ou seja, orientações teórico-práticas de cunho altamente problemático. No entanto, após a referida denúncia, ocorre uma relativa abertura do PCB, que propicia o surgimento de novos quadros, ligados a pensadores marxistas heterodoxos, antes vistos com desconfiança. Esse movimento é bastante positivo e sinaliza a possibilidade de uma profunda reformulação das bases da esquerda nacional. Nas palavras de José Antonio Segatto (2005, p.205): Com as mudanças políticas e de concepções, o PCB a partir de 1958, não só atrairá, como formará uma “nova safra” de intelec- 1 “Três anos após o falecimento de Stálin, em 1956, N. Kruschev leu, na abertura do XX Congresso do PCUS, um “relatório secreto” denunciando o culto à per- sonalidade e fazendo diversas acusações (autoritarismo, rompimento da ‘legali- dade socialista’, crimes e outras) do período stalinista” (Segatto, 2003, p.126). 16 MARXISMO E LITERATURA tuais, que teriam significativa incidência na vida cultural e política. […] [Esse movimento é] fruto do processo de renovação do pen- samento marxista no Brasil, que ocorre em função do impacto do XX Congresso do PCUS e das mudanças levadas a cabo pelo PCB, além de outras transformações político-culturais que se processa- vam no país e no mundo naquele momento. Aí ocorre, no PCB, uma inserção mais intensa e extensa de ideias desses pensadores, fato extremamente favorável ao apareci- mento de possibilidades teóricas mais abertas que, anteriormente, eram tidas como demasiadamente heterodoxas (contrastando com a ortodoxia stalinista). Cabe acrescentar que, nesse período, o PCB passa a contar com amplo prestígio, inclusive entre as camadas sociais medianas. Renovação do marxismo É nesse contexto específico, com marcada inserção no movi- mento renovador, que há a divulgação da obra de autores mar- xistas, com centralidade para Antonio Gramsci e György Lukács (na época com a grafia usual da tradição editorial germânica, “Georg”).2 Destaca-se que a recepção da obra de György Lukács, pensador húngaro, ocorreu nesse contexto geral, mas atendendo a demandas locais específicas, inserindo-se nesse movimento que propunha renovação sem nele encerrar-se (cabe lembrar que, fora os pensadores europeus que estavam aqui radicados, data de fins dos anos 1950 e início dos anos 1960 as primeiras menções à obra 2 “Esse turbulento período que atravessava o movimento comunista, e em especial o PCB, forçou um repensar das dinâmicas políticas e teóricas do movimento, tornando possível a incorporação de pensadores que se empenha- vam por uma renovação do marxismo; como é o caso de Lukács e Gramsci” (Segatto, 1998). Fora esses dois autores que, inegavelmente, ocupam o pri- meiro plano em nível de importância, poderiam ainda ser citados Jean-Paul Sartre, Karel Kosik, Lucien Goldmann, entre outros. RAFAEL DA ROCHA MASSUIA 17 lukacsiana por uma série de outros pensadores, inseridos nos mais diversos grupos intelectuais).3 É somente após o XX Congresso do PCUS (Partido Comunista da União Soviética), em 1956, quando se inicia, ainda que parcial- mente, com o rompimento com a ortodoxia stalinista, que Lukács começa a ser conhecido pelo movimento comunista e, consequen- temente, pela esquerda brasileira (Frederico, 1995, p.188). A denúncia dos crimes do regime stalinista alastrou no cená- rio socialista global uma séria de incertezas. No Brasil, esse mo- vimento foi parcialmente revertido pela Declaração de Março de 1958, que sinalizou um movimento de ruptura e afastamento das posições stalinistas.4 Na prática, no entanto, um movimento de renovação estava em andamento, mesmo no período anterior ao XX Congresso de 1956. As obras de autores como Luiz de Aguiar Costa Pinto, Nelson Werneck Sodré e, sobretudo, Caio Prado Jr. atestam o perigo da realização de uma tabula rasa entre o pré e o pós-movimento renovador (ainda que algumas fragilidades de suas obras possam ser destacadas). Contudo, no contexto no qual se in- 3 “A descoberta de György Lukács no Brasil, simultaneamente com a de Ernst Bloch, começou por Guerreiro Ramos em 1955 no Instituto Superior de Estu- dos Brasileiros [ISEB] no Rio de Janeiro, em conferência intitulada “A Pro- blemática da Realidade Brasileira”, reunida, com outros textos de Guerreiro Ramos, no livro O Problema Nacional do Brasil. […] A obra lukácseana (sic) ali citada é a tradução italiana Il marxismo e la critica letteraria pela editora Einaudi de Turim, 1953. […] [Portanto,] a recepção de Lukács no Brasil prin- cipiou através da Itália” (Chacon, 1992, p.416). 4 “Em 1956, o PCB é abalado de cima a baixo pelo XX Congresso do PCUS, que dá início à desestalinização. A isto juntam-se os problemas internos acumula- dos durante vários anos e vindos à tona nesse momento. Depois de uma certa perplexidade, abre-se um debate intenso, cujos desdobramentos terão como frutos uma mudança na política do partido, que já se manifestam na Declara- ção de março de 1958 e num texto de Luís Carlos Prestes, onde o PCB faz sua autocrítica e começa a esboçar a definição de uma política diferente daquela seguida anteriormente” (Segatto, 1989, p.129). 18 MARXISMO E LITERATURA seriu, a Declaração possuía inegáveis méritos, sendo o maior deles a recolocação da centralidade da questão democrática. Como afirma Celso Frederico: No plano internacional, iniciava-se um debate nos partidos comunistas ainda perplexos com o processo de desestalinização. Internamente, os grupos renovadores já haviam obtido uma impor- tante vitória política com a Declaração de Março de 1958, docu- mento aprovado pela direção do PCB, que acena pela primeira vez para a centralidade da questão democrática na construção do socialismo, rompendo assim, com a estratégia insurrecionista e com o dogmatismo fomentado pela importação de modelos teóricos (no caso: o modelo de revolução para os países coloniais, elaborado pela Internacional Comunista de 1928 e, desde então, seguido pelo PCB) (Frederico, 1995, p.190).5 A intensificação desse processo de acumulação cultural e a cons- tituição de um ambiente de efervescência cultural sem precedentes no Brasil caracterizaram o período que antecedeu o golpe militar de 1964. As condições econômicas favoráveis proporcionaram uma ampliação da classe média, o que impulsionou a criação de uma in- dústria cultural local – como aponta Frederico – e promoveu o for- talecimento de movimentos editoriais mais à esquerda, chegando mesmo a garantir uma relativa hegemonia cultural que, inclusive, sobreviveria ao golpe.6 Outras formas de protesto também surgi- ram, como a bossa nova, o CPC, o Cinema Novo etc., configurando 5 Coutinho, de acordo com essa visão, escreve que: “Na esteira do XX Con- gresso e da consequente renovação do PCB, teve lugar entre nós uma abertura do marxismo, uma quebra do monopólio quase exclusivo dos manuais soviéti- cos de ‘marxismo-leninismo’” (Coutinho, 2009, p.12). 6 “Em 1964 instalou-se no Brasil o regime militar, a fim de garantir o capital e o continente contra o socialismo. […] Entretanto, para a surpresa de todos, a presença cultural da esquerda não foi liquidada naquela data, e mais, de lá para cá não parou de crescer. A sua produção é de qualidade notável nalguns campos, e é dominante. Apesar da ditadura da direita, há relativa hegemonia cultural da esquerda no país” (Schwarz, 2008, p.71). RAFAEL DA ROCHA MASSUIA 19 um momento único na história brasileira mais recente. Segundo Frederico (1995, p.193), esse era o cenário em que ocorreu a “pu- blicação das primeiras traduções de Lukács”. Com a deflagração do golpe militar, contraditoriamente – mas não sem uma explicação razoável –, o interesse pela obra de Lukács aumentaria gradativamente. Ao fechar as “portas da participação política institucional, o golpe militar de 1964 fez da resistência cultural um polo de aglutinação dos opositores do regime” (Fre- derico, 1995, p.192). Em decorrência, o engajamento crescia com a expansão do nível cultural geral, o que culminou na formação de um verdadeiro front antiditatorial. Como nos resume José Paulo Netto (2009, p.13-14): O golpe de 1o de abril de 1964 não interrompeu o acúmulo ideo- -cultural que vinha dos anos precedentes, anos de precipitação democrática; ao contrário, dinamizou-o, aglutinando o melhor da intelectualidade brasileira no campo da democracia e dos projetos revolucionários – sabe-se que raros foram os intelectuais de peso que aderiram de forma aberta à ditadura. Realmente, na segunda metade dos anos 1960 condensou-se um caldo de cultura progres- sista que, entre os segmentos intelectuais mais jovens, tinha um claro sentido revolucionário. A tese defendida por Netto ganha eco nas posições de Frederico (2007, p.344), pois esse defende que, “no imediato pós-1964, os artistas e intelectuais ligados ao PCB deram inicialmente o tom na produção artística”. Isso, naturalmente, em função do conturbado contexto político que o país atravessava, era um convite para o esta- belecimento de uma resistência cultural,uma vez que havia um sen- timento de necessidade do estabelecimento de uma “[…] política de unidade no front cultural, tendo em vista a necessidade de lutar pela democratização do país”. Assinalando a contraditória manutenção dos influxos pré-1964 no cenário cultural brasileiro – o qual promo- veu uma contraditória intensificação pelo interesse em Lukács –, está o fato de que as ideias do pensador passaram a atender a interesses 20 MARXISMO E LITERATURA estratégicos de oposição à ditadura, sem que isso implicasse a sua apropriação crítica mais duradoura pelo marxismo, em um âmbito mais geral, como veremos. Marxismo e estética A referência central do marxismo no campo da cultura, do final do século XIX ao início do XX, foi Georgi Plekhanov, autor de A arte e a vida social. A posição teórica do pensador russo era típica de um marxismo vulgar, que não permite a exploração da rica dialética entre base e estrutura; o que significa um empobrecimento em suas análises sobre a arte e a literatura. Outro autor que procurou se inse- rir nessa problemática teórica, também sem alcançar grandes resul- tados, foi o alemão Franz Mehring. Ambos os pensadores possuem em comum um marxismo simplificador, que os impossibilitava ob- jetivamente de procederem com pesquisas férteis no campo artístico. Dois dos mais importantes intelectuais lukacsianos hoje, Guido Oldrini7 e Nicolas Tertulian,8 concordam que tanto Plekhanov quanto 7 “Plekhanov, os pseudomarxistas em geral da Segunda Internacional recaem, segundo Lukács, num ecletismo incoerente. Céticos acerca da capacidade do marxismo de resolver, no seu bojo os problemas da imanência estética da obra de arte, pretendem de fora completá-lo em estética, com Kant, como faz Mehring, ou com o positivismo” (Oldrini, 1999, p.76). 8 “Podemos fazer as mesmas considerações, mutatis mutandis, a propósito de seus escritos estéticos e de crítica literária. Ele criticava, por exemplo, a Mehing e sobretudo a Plékhanov, uma aproximação demasiadamente retilínea das relações entre a base econômica e a ideológica, e por consequência entre as concepções filosóficas dos escritores e a estrutura de suas obras. Mesmo demonstrando uma grande estima pelo marxista alemão Mehring por sua corajosa atividade, Lukács achava que na análise das obras de Lessing, Hebbel ou Nietzsche, ele estabelecia correlações muito diretas. [Escapam] a ele as mediações mais sutis da expressão ideológica: a dialética interna das obras não era suficientemente posta em relevo, sua especificidade estética ou filosófica negligenciada em favor da expressão ideológica direta, a complexidade das relações entre posição sócio-histórica e sublimação literária ou filosófica, por vezes sacrificada (no caso de Hebbel, por exemplo)” (Tertulian, 2007, p.19). RAFAEL DA ROCHA MASSUIA 21 Mehring não viam a possibilidade da edificação de uma teoria da arte marxista e, em função disso, recorriam a outras correntes teóricas visando suprir essa falha teórica que julgavam encontrar. Enquanto Mehring teria proposto uma incorporação das concepções estéticas kantianas (via, sobretudo, a Crítica do julgamento), Plekhanov teria insistido na referida simplificação da teoria de Marx, cujo escopo teórico posteriormente ficaria conhecido, de forma depreciativa, como sociologismo, ao buscar adequar mecanicamente o fenômeno literário às manifestações econômico-políticas. Lukács, em texto au- tobiográfico, tratando dessa questão, faz as seguintes considerações: Plekhanov e Mehring achavam que era necessário completar Marx quando eram debatidas questões diversas das econômico- -sociais. [Como consequência] […] Mehring insere a estética kan- tiana na teoria de Marx, e Plekhanov, uma estética em substância positivista. […] Logo, devia haver uma estética marxiana própria, que o marxismo não tomava nem de Kant, nem de nenhum outro. Essas ideias foram elaboradas por Lifschitz e por mim. Naquele tempo eu trabalhava com ele no Instituto Marx-Engels. Com a elaboração dessas ideias teve início todo o nosso desenvolvimento subsequente. A constatação não é comum hoje na história da filo- sofia, no entanto o fato é que fomos os primeiros a falar de uma estética marxiana específica, e não desta ou daquela estética que completasse o sistema de Marx (Lukács, 1999, p.87-88). De acordo com a originalidade e a importância da obra de Lukács, o pensador português Adolfo Casais Monteiro (1963), no texto “A crítica sociológica da literatura”, realiza uma breve síntese das posições teóricas anteriores ao período de atuação teórica do pensador húngaro. Para Monteiro, Lukács é o primeiro teórico interessado pela dimensão sócio-histórica (em oposição aos este- ticistas) que, efetivamente, consegue conceber, no plano da teoria, o fenômeno literário em sua especificidade, conjugando harmoni- camente as dimensões estética e sócio-histórica (sem cair em um determinismo de tipo plekhanoviano). 22 MARXISMO E LITERATURA Em um contexto de hegemonia de um marxismo empobrecido e empobrecedor, seja por Mehring ou Plekhanov, a obra de Lukács significou um grande avanço no sentido da apreensão da literatura por uma posição teórica calcada no marxismo. Contudo, tendo em vista as dificuldades políticas encetadas pelo esforço do regime stalinista de – sob a égide cultural de Jdanov – estabelecer uma orientação artístico-cultural oficial, os problemas encontrados por pensadores que ousassem desafiar os fundamentos do “realismo socialista”, por vezes, os submetiam a situações indesejadas. Como afirma Monteiro (1963, p.45): “Por isso mesmo um Lukács nem sempre teve a possibilidade de exprimir as duas ideias, e o exprimi- -las valeu-lhe séries riscos, por mais que uma vez”. E prossegue, referindo-se à obra lukacsiana: Desde 1930, ou seja: desde que Lukács iniciou uma obra a todos os títulos notável, tendo em vista formular uma interpretação real- mente marxista da literatura... Porque este é, na verdade, o único testemunho válido duma teoria e duma crítica, não só de inspiração marxista, mas que atende à básica exigência de não se confundir literatura e fatores sociais – ou antes, de não se afirmar a depen- dência daquele em relação a estes, mas sim a interdependência respectiva, num plano que até então tinham evitado quantos mani- festarem idênticas ambições. […] A surpresa de quem aborda os trabalhos de Lukács de teoria e crítica literárias é encontrar uma linguagem inteiramente diversa de que exemplificamos com os textos de Plekhanov. Pela primeira vez em toda a história do mar- xismo, Lukács aborda a literatura como literatura (Monteiro, 1963, p.44-45, grifo nosso). Se no plano teórico havia a predominância de uma certa corrente marxista de extração positivista, no que diz respeito à política cul- tural a situação era ainda mais problemática. Seguindo as determi- nações gerais jdavonistas, os partidos comunistas de todo o mundo encabeçavam uma campanha que tinha como consequência o em- pobrecimento das correntes artísticas em nome de uma suposta RAFAEL DA ROCHA MASSUIA 23 defesa da “cultura proletária”; aqueles que não se adequassem às exigências eram imediatamente tidos como traidores de classe. Como esperado, o Partido Comunista Brasileiro não consegui- ria ficar imune a essa política cultural oficial. Porém, como aponta Antônio Rubim (2007, p.378), a aplicação de tal projeto no país, felizmente, não pode ser plenamente realizada, pois, apesar das tentativas de imposição generalizada das concepções jdanovistas (amplamente referendadas por Stalin), houve espaços de reação, de modo que só “[…] marginalmente essa rota foi trilhada”. No período posterior, em função dos desdobramentos ocorridos nos anos 1950 – quando finalmente começam a aparecer espaços para o surgimento de correntes interessadas em refletir seriamente sobre as questões artísticas e literárias –, essas tendências são gra- dativamente abandonadas e os movimentos emergentes passam a desempenhar funções de relativa hegemonia no campo da esquerda brasileira (e não é exagero dizer que passaram a exercer relevância no cenário cultural mais geral). Se, no que diz respeito ao campo da teoria da arte, o quadro era de empobrecimento teórico, não é possível afirmar que havia uma situação tão catastrófica quanto no político. Até o início dos anos 1960, a influência estética era predominantemente a de Plekhanov, o que significou o mencionado empobrecimento teórico, mas que produziu alguns pensadores que têm como principal mérito a ob- servação de reflexões inovadoras no campo artístico-cultural brasi- leiro. Importantes pensadores do período, como Astrojildo Pereira9 e Nelson Werneck Sodré10 tinham como principal referência, no 9 Parece-me essencialmente correto o juízo de Konder […] sobre os fundamen- tos teóricos da crítica literária de Astrojildo. Segundo esse analista, Astrojildo tendia a pensar a crítica conforme os parâmetros de uma sociologia da literatura […]. Com efeito, o quadro teórico de Astrojildo era pobre: basicamente, ele não ultrapassou nunca as colocações típicas de Plekhanov” (Netto, 2004b, p.173). 10 Ainda que, em um momento posterior, Sodré passe a incorporar Lukács, como afirma Otsuka (2009, p.109): “Não obstante as declarações de princípio apoiadas em Lukács, as quais sinalizam o desejo de ultrapassar o marxismo vulgar, o trabalho de Sodré permanece limitado ao estudo paralelístico ou ao ângulo externo da sociologia da literatura, tanto na História quanto no livro sobre O Naturalismo no Brasil, editado em 1965”. 24 MARXISMO E LITERATURA campo estético-literário, o pensador russo. Mas o trabalho crítico de Astrojildo sobre Machado de Assis e a vasta obra de história e crítica literárias de Sodré não podem ser desprezados (ainda que devam ser compreendidas em seus contextos específicos). É claro que, concomitantemente, surgia no âmbito universitário, sobretudo ao redor da figura de Antonio Candido, uma corrente de interpretação literária crítica de grande relevo. Entretanto, a incor- poração das ideias de Lukács nessa esfera permaneceriam periféri- cas em virtude de Candido “[…] já [ter] desenvolvido uma teoria sobre as relações entre literatura e sociedade a partir da sociologia funcionalista, do new criticism etc.” (Frederico, 1995, p.218); ape- sar de uma clara inclinação marxista do autor e da existência de um diálogo com as concepções do pensador húngaro na obra do crítico e historiador da literatura – o que se constata por menções em “[…] salas de aula e em algumas breves referências” em textos e pales- tras do final da década de 1950 e início do período seguinte. Essa influência, referida pelo autor, seria mais perceptível na obra dos discípulos de Candido, mas é Roberto Schwarz, talvez, aquele que melhor soube se valer dos avanços teóricos realizados por Candido. A partir da interpretação do desenvolvimento da literatura brasi- leira formulada originalmente por Candido em Formação da litera- tura brasileira (1959), Schwarz põe à prova a tese de que a literatura nacional só experimentaria um acabamento efetivo na obra literária de Machado de Assis, noção proposta e defendida em seu estudo dedicado ao grande escritor: Ao vencedor as batatas (1977) e Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis (1990). Com a leitura da obra schwarziana, fica claro que a referência a Lukács se faz presente, mesmo que as referências no campo teórico sejam, em grande medida, a outros teóricos marxistas como Theodor W. Adorno e Walter Benjamin.11 Cabe ainda mencionar os esforços de Alfredo Bosi de pensar a literatura brasileira valendo-se de algumas 11 A discussão sobre a importante obra de Roberto Schwarz será matéria de um outro estudo que pretendemos realizar (que se encontra ainda em estágio inicial). RAFAEL DA ROCHA MASSUIA 25 ideias de Lukács e do discípulo francês desse, Lucien Goldmann, como se atesta em História concisa da literatura brasileira. No entanto, é inegável que a inserção posterior das concepções estético-literárias de Lukács significou um grande avanço, tanto para as discussões locais quanto para o cenário mais geral.12 O qua- dro de referências teóricas do debate internacional era basicamente o mesmo, de modo que a recepção de Lukács fez surtir grande im- pacto nas discussões sobre a cultura e a arte. Porém, assim como em outros países, a recepção das ideias de Lukács esteve imediatamen- te inserida em amplas discussões, de cunho mais político do que teórico, tendo por vezes descido ao nível de acusações pessoais.13 É nesse contexto que surgem as ideias de Lukács no Brasil, que serviram de base para a fundamentação, por parte de um grupo de jovens pensadores, de uma política cultural socialista plural: A recepção das ideias de Lukács foi também marcada pelas inú- meras polêmicas em que se envolveu durante sua produtiva vida intelectual. Sob este ponto de vista, não há muita novidade: sua recepção no Brasil reproduz em linhas gerais a diversidade de posi- ções existentes na Europa frente a sua obra. O que há de específico na recepção brasileira é o contexto histórico-político em que se deu, bem como as utilizações de suas ideias para a formação de um pro- jeto de política cultural desenvolvido por um grupo de intelectuais ligados ao Partido Comunista Brasileiro (Frederico, 1995, p.197). 12 Não é, portanto, por acaso que Candido afirme que, “[…] com Lukács ela [a análise literária] assume matizes novos, que abrem para outras perspectivas, sobretudo porque ele se interessava não apenas pela transposição do fato em tema, mas pela função deste processo na estruturação da obra. Neste caso, o elemento social se torna fator de constituição da estrutura, não modelo do conteúdo, e o paralelismo se atenua até eventualmente desaparecer” (Candido, 2002, p.53). 13 O tom dogmático das críticas de pensadores como Lichtheim (1970), não chega a chocar o leitor. É, no entanto, lastimável que um teórico do quilate de Adorno (2002) tenha se envolvido em uma discussão de tal nível, que constantemente abandona completamente a análise da obra lukacsiana para simplesmente realizar ataques de ordem pessoal. 26 MARXISMO E LITERATURA Lukács no Brasil A função da apropriação do referencial teórico lukasciano pelos comunistas era bastante clara: a proposta de criação de uma política cultural democrática com vista ao rompimento, de uma vez por todas, com o sectarismo jdanovista.14 A ligação entre marxismo e estreitamento artístico era inevitável, principalmente em fun- ção da intensidade policialesca com que se dava a política cultural “oficial”. Seria uma das principais tarefas do grupo liquidar com esse passado recente, desanimador para aqueles que se inseriam no campo da cultura e da arte e buscavam refletir essas questões a partir da ótica de um marxismo não empobrecedor. A peculiaridade e a importância da obra de Lukács foram acen- tuadas não só pelo sectarismo dos seus predecessores, mas também pelo caráter revolucionário e polemista que ela assumiu naquele contexto. No cenário internacional, Lukács apareceu como um dos principais representantes de uma tentativa de “renovação” do marxismo, propondo um retorno aos escritos de Marx e Engels. Com isso não queremos dizer que não haja elementos novos na obra do pensador húngaro – muito pelo contrário, tendo em vista que seus predecessores afirmavam a impossibilidade de erigir uma teoria da arte a partir dos escritos marx-engelsianos –, mas somente sublinhar que a sua proposta de retomar os escritos originais dos pensadores alemães, naquele momento, coincidiu perfeitamente com a tentativa de apagar as influências stalinistas do pensamento marxista, sinalizando um recomeço. Em Lukács, como nos teóricos influenciados por uma abor- dagem marxista não vulgar da literatura, a análise teórica não se 14 Frederico, ilustrando essa faceta da abordagem lukasciana, fornece o seguinte exemplo: “A polêmica de Lênin contra a proletkult, retomada e desenvolvida por Lukács na década de 1930, em seus comentários aos ‘romances proletá- rios’ de E. Ottwualt e W. Bredel, forneceu uma sólida referência teórica para os comunistas contrastarem sua inspiração a uma literatura verdadeiramente realista com o velho naturalismo travestido com roupagens operárias” (Frede- rico, 2007, p.358-359). RAFAEL DA ROCHA MASSUIA 27 esgota nos aspectos sócio-históricos da obra de arte; buscando uma compreensão mais ampla da literatura, a investigação estética tam- bém se faz necessária. A novidade da posição lukacsiana, porém, reside na proposta de uma necessária vinculação entre os dois polos,15 não como uma exigência de caráter externo, mas como proveniente da natureza específica da obra de arte, que por si demanda uma cor- reta análise levar em conta esses dois fatores concomitantemente. Na esteira dos pensadores alemães, Lukács tenta fundamentar, em bases materialistas, uma teoria estética marxista autônoma. Já em 1931, Lukács escreve o texto “O debate sobre o ‘Sickingen’ de Lassalle”, publicado somente em 1933 (Lukács, 1979), no qual o filósofo húngaro indica a existência de uma estética in nuce nos escritos de Marx e Engels. Nesse artigo, Lukács reconstrói a dis- cussão sobre a tragédia Franz von Sickingen de Ferdinand Lassalle, sublinhando as críticas marx-engelsianas à obra lassalleana, sempre ancoradas em uma perspectiva histórico-estética, preocupada com a dimensão sócio-histórica dos indivíduos figurados e, simultanea- mente, com as características artísticas da própria figuração. Na arte, é sabido que determinadas épocas de florescimento não guardam nenhuma relação com o desenvolvimento geral da sociedade, nem, portanto, com o da base material, que é, por assim dizer, a ossatura de sua organização. […] Se esse é o caso na relação dos diferentes gêneros artísticos no domínio da arte, não surpreende que seja também o caso na relação do domínio da arte como um todo com o desenvolvimento geral da sociedade. A dificuldade consiste simplesmente na compreensão geral dessas contradições. Tão logo são especificadas, são explicadas (Marx, 2011, p.62). 15 Nesse sentido que Costa Lima afirma: “[…] [O] ideal será conjugar a informa- ção sociológica sobre o contexto histórico com um conhecimento preciso do esta- tuto do discurso analisado, para que assim se escape quer da tendência de ver a obra como ‘ilustração’ de certa força social, quer da tendência estetizante oposta, na qual vigora um hiato hierarquizante entre o contexto, elemento de ambiência da obra, e o texto, a ser imanentemente indagado” (Lima, 2002, p.662). 28 MARXISMO E LITERATURA Dito isso, Marx constrói uma importante questão que norteará toda formulação lukacsiana sobre a arte. O pensador alemão ela- bora uma falsa questão ao sugerir que a resposta para o enigma artístico está na compreensão da formação social sob a qual surgem as expressões artísticas correspondentes; se encerrasse aqui, a busca pelo “equivalente sociológico” de cada obra de arte coincidiria com sua análise artística ou crítica, mas Marx vai além, indagando-nos sobre a causa da perdurabilidade do deleite e da fruição que as gran- des obras nos suscitam: Mas a dificuldade não está em compreender que a arte e o epos gregos estão ligados a certas formas de desenvolvimento social. A dificuldade é que ainda nos proporcionam prazer artístico e, em certo sentido, valem como norma e modelo inalcançável (Marx, 2011, p.64). Esses importantes escritos de Marx – um dos mais expressivos dentre aqueles que tratam diretamente sobre arte e literatura – de- fendem que a abordagem histórica não deve escamotear os aspectos estéticos, o que endossou em Lukács a compreensão da autonomia relativa da arte em relação à sociedade. A partir das indicações de Marx, torna-se fundamentada, por um lado, a crítica às concep- ções da arte como produto mecânico da sociedade, por outro, das concepções idealistas da arte que a veem como produto de uma dialética própria, sem relação com as demais esferas.16 Outras indicações de extremo valor foram as deixadas por En- gels, sobretudo em sua correspondência, sobre a questão do realis- mo – usando o exemplo de Honoré de Balzac, que Marx confessaria 16 Como Lukács formulou posteriormente: “É imprescindível determinar o lugar do comportamento estética na totalidade das atividades humanas, das relações humanas ao mundo externo, assim como a relação entre as formações estéticas que daí surgem, sua estrutura categorial (forma etc.) e outros modos de reação à realidade objetiva” (Lukács, 1982, p.11). RAFAEL DA ROCHA MASSUIA 29 ser o seu romancista favorito. Em carta endereçada à miss Hark- ness, diz Engels sobre o escritor francês: O fato de Balzac ter sido forçado a ir contra as próprias simpa- tias de classe e contra seus preconceitos políticos, o fato de ter visto o fim inelutável de seus tão estimados aristocratas e de os ter des- crito como não merecendo melhor sorte, o fato de ter visto os ver- dadeiros homens do futuro no único local onde, na época, podiam ser encontrados – tudo isso eu considero como um dos maiores triunfos do realismo e uma das características mais notáveis do velho Balzac (Engels apud Lukács, 2009, p.119). A evolução da concepção do fenômeno literário e a dialética entre o literário e suas implicações histórico-sociais iniciam-se nos textos lukacsianos de juventude. Passando pela modificação de perspectiva, resultantes da adoção do marxismo como fonte teórica, elas começam nos anos de 1930 e têm um de seus pontos mais ele- vados na redação do livro O romance histórico, em 1937. A obra tardia do pensador húngaro terá como maior marco a publicação de A especificidade do estético,17 em 1963 – ainda que outros textos importantes, como os dedicados ao escritor russo Alexander Solje- nítsin, tenham sido escritos posteriormente. Em relação a O romance histórico, Tertulian (2008, p.178) chega a afirmar, para situar-nos em relação ao trato lukacsiano da estética, que na época de sua redação: [...] seus conhecimentos literários e suas experiências estética já eram imensos. O que o marxismo traz de novo em sua concepção se manifesta pelo rigor que preside à elucidação das relações entre a gênese sócio-histórica das obras literárias e sua substância estética. 17 Um excelente texto, em que se realiza um resumo ao mesmo tempo didático e rigoroso da Estética de Lukács, que possui tradução para o português, é aquele escrito por sua ex-discípula Agnes Heller (1986). 30 MARXISMO E LITERATURA O julgamento do valor estético e o julgamento da existência sócio- -histórica se comunicam de modo orgânico. No prólogo da sua magnum opus estética, podemos observar um forte traço de continuidade em relação à obra de 1937. Lukács resume como deve ser realizada a análise estética: Se trata, antes de mais nada, de estudar o problema do desen- volvimento desigual na gênese, no ser estético, nas obras e no seu efeito nas artes. Mas isso significa, ao mesmo tempo, uma ruptura com toda vulgarização “sociológica” acerca da origem e da ação das artes […], uma análise sócio-histórica que não simplifique as coisas é impossível se ela não se valer dos resultados das investigações sobre a construção categorial, a estrutura e a natureza específica de cada obra de arte; resultados que devem ser aplicados constantemente para se conhecer o caráter histórico das obras (Lukács, 1982, p.14).18 O caráter social da obra de arte, como já se pode afirmar a essa altura, provém da necessidade de ela ser entendida como “reflexo” da sociedade na qual está inserida.19 Nesse sentido, Lukács retoma o conceito aristotélico de mimesis [μίμησις] e retoma, igualmente, a repulsa do filósofo grego à identificação do procedimento mimético com a noção de cópia mecânica do real. Aristóteles deu ao desenvolvimento da estética um impulso duradouramente salutar, na medida em que, por um lado, colocou 18 Nesse sentido, segundo Nicolas Tertulian (2008, p.229), Lukács recusa “[...] as tendências “genetistas” do gênero da teoria de Plekhanov: a missão do crítico é descobrir “o equivalente sociológico” na obra literária. Estigmatiza essas ten- dências – desde os anos 1930-1940 – como pertencentes à “sociologia vulgar”. 19 “O imenso poder social da literatura consiste precisamente em que nela o homem surge sem mediação, em toda riqueza de sua vida interior e exterior; e isto num nível de concretude que não pode ser encontrado em nenhuma outra modalidade do reflexo da realidade objetiva” (Lukács, 2010, p.80). É nesse sentido que Edward Said afirmaria: “Em outras palavras, Lukács foi capaz de sistematizar os processos pelos quais a realidade entra na arte e é refletida por ela” (Said, 2003, p.17). RAFAEL DA ROCHA MASSUIA 31 no centro da estética o reflexo da realidade objetiva e não o reflexo das ideias, como no neoplatonismo; por outro lado, porém, e ao mesmo tempo, este reflexo foi por ele energicamente diferenciado da cópia puramente mecânica da realidade (Lukács, 1968, p.127). Outro pensador que ganha centralidade na sistematização lukacsiana é Hegel. Lukács vale-se de alguns dos importantes avan- ços teóricos obtidos pelo esforço intelectual do filósofo alemão. O pensador húngaro sublinha repetidas vezes a importância da descoberta hegeliana do caráter histórico-concreto da obra literária, utilizado em suas análises das obras individuais, possibilitando-o a compreensão da literatura em sua especificidade, um notável avan- ço em relação aos seus predecessores. Lukács resume a influência hegeliana da seguinte forma: Contudo, para Hegel, a concreção histórica do conteúdo não equivale nunca a um relativismo histórico. Ao contrário: de acordo com a estética hegeliana, somente uma tal concreção do conteúdo pode dar lugar a uma determinação dos critérios estéticos. Isto se aplica, antes de mais nada, à avaliação estética das obras de arte, à definição do critério da grande obra, na medida em que esta expressa com amplitude, profundidade e de modo intuitivo […] toda a inesgotável riqueza de cada conteúdo particular. É o con- teúdo, ademais, que oferece o critério para avaliar em que medida o artista se expressa em uma forma viva ou morta (ou seja, neste caso, de modo formalista, como epígono) em cada gênero artístico: isto é, o critério para avaliar a correção da escolha do gênero é também o conteúdo histórico de cada caso. As formas dos gêneros artísticos não são arbitrárias. Surgem, ao contrário, da concreta determinação de cada estado social e histórico (estado do mundo). Seu caráter e peculiaridade são determinados pela sua capacidade de expressar os traços essenciais da fase histórico-social dada (Lukács, 2009, p.55). Hegel não só consegue romper com a falsa dicotomia entre his- toricismo e esteticismo, como oferece um referencial que dá conta 32 MARXISMO E LITERATURA de precisar a natureza específica do fenômeno artístico. Avança, ainda, no sentido de estabelecer as peculiaridades de cada gênero e obra singular, sempre vinculando-as ao processo histórico mais geral. Processando em suas análises a dialética entre conteúdo so- cial e forma estética, Hegel possibilita uma compreensão do proces- so dialético existente também no interior da obra literária. Em sua estética, Hegel progride mais do que nas determinações abstratas da lógica; com frequência, vê claramente que, em todo fenômeno estético, o conteúdo concreto determina a forma estética concreta – e aplica esta visão em suas análises. Na história da esté- tica, esta é uma conquista cuja importância é ainda maior na medida em que Hegel concebe o conteúdo sempre de modo histórico, ou seja, como conteúdo necessário de um determinado período histórico ou de uma determinada fase de desenvolvimento. Aliás, Hegel oferece mais de uma exposição na qual o caráter social dessa historicidade aparece mais ou menos nitidamente, de modo que, em numerosas análises da sua estética, podemos encontrar a dialética concreta entre conteúdo social e forma estética (Lukács, 2009, p.60). Lukács retoma esses avanços teóricos realizados por Hegel, so- bretudo a questão do conteúdo histórico-social, que as obras de arte necessariamente expressam (quando realmente grandiosas), vinculando-o às constelações estéticas que emergem do solo social – ainda que essa questão não possa ser resumida de maneira simplista e esquemática, tratando-se de complicado processo analítico. A obra de arte, agora pensada em uma dimensão mais ampla, encerra em si uma substância humana latente, conformada historicamente. Para Lukács (2010, p.16) […] o que há de humano na base de uma obra de arte, a atitude que ela plasma como possível, como típica ou exemplar, é o que decide em última instância – se bem que somente em última ins- tância – sobre como se apresentam o conteúdo e a forma da obra em questão, sobre o que ela representa na história da arte e na história da humanidade. No método da crítica, isto tem como consequência RAFAEL DA ROCHA MASSUIA 33 o seguinte dilema: esta questão última do conteúdo – do conteúdo humano e, secundariamente, portanto, do conteúdo histórico- -social e estético – constitui o elemento preponderante da análise e do julgamento, ou, pelo contrário, esta preponderância cabe à inovação técnica em questão? Somente por uma harmoniosa relação entre conteúdo e forma que se torna possível ao artista atingir a essência universal da processualidade histórica do seu tempo, figurada por meio de in- divíduos concretos interagindo concretamente entre si e o meio, plasmados na e através da particularidade, que é a zona de domínio da arte.20 Na literatura esse recurso se expressa através do típico (Lukács, 1968, p.235).21 A realidade mesma é histórica em função de sua essência obje- tiva; das determinações históricas, conteudísticas e formais, que 20 Um importante livro de Lukács (1968), escrito e publicado nos anos 1950, foi traduzido para o português sob o título Introdução a uma estética mar- xista, que segue a lógica da edição italiana, cujo título saiu como Prolegomini a un’estetica marxista. Na verdade, o título original Über die Besonderheit als Kategorie der Ästhetik, traduz-se mais proximamente a Sobre a particularidade como categoria estética, assinalando a importância desse conceito no edifício teórico lukacsiano. Diz-nos Lukács (1968, p.161) na referida obra: “[…] [O] reflexo estético quer compreender, descobrir e reproduzir, com seus meios específicos, a totalidade da realidade em sua explicitada riqueza de conteúdos e formas. Modificando decisivamente […] o processo subjetivo, ele provoca modificações qualitativas na imagem reflexa do mundo. A particularidade é sob tal forma fixada que não pode mais ser superada: sobre ela se funda o mundo formal da obra de arte”. 21 O que não exclui, em nenhum momento, a questão da objetividade da forma artística: “A estética marxista não pode partir senão do conceito da objeti- vidade dialética da forma artística em sua concreção histórica. Isso significa que tem que rechaçar toda tentativa de se relativizar sociologicamente as for- mas artísticas, de transformar a dialética em sofisma […] No entanto, com a mesma resolução deve-se rechaçar a tentativa de dar às formas artística uma pseudo-objetividade abstrata, construindo a forma artística, a diferença das configurações formais, de um modo abstrato, independente do processo his- tórico” (Lukács, 1977, p.225). 34 MARXISMO E LITERATURA aparecem nos diferentes reflexos são, como que, aproximações mais ou menos adequadas a esse aspecto da realidade objetiva. Mas uma autêntica historicidade não pode consistir em uma mera alteração de conteúdos em formas imutáveis […] Justamente o devir dos conteúdos tem que influir, necessariamente, nas formas, modificando-as […] (Lukács,1982, p.23). Com isso, o filósofo húngaro equaciona a relação entre literatura e sociedade em um nível superior e mais complexo. Reforçando a sua relativa autonomia, Lukács lembra-nos que nem “[…] a ciên- cia, nem os seus diversos ramos, nem a arte, possuem uma história autônoma, imanente, que resulte exclusivamente de sua dialética interior.” (Lukács, 2009, p.88). Portanto, ainda que não reduzindo a arte ao solo social no qual insere-se, estipula-o como condicionan- te ineliminável, integrando dialeticamente, fundindo os elementos artísticos aos sociais, o que nos traz novamente à afirmação do cará- ter social da literatura.22 Nas palavras de Lukács: Portanto, a existência e a essência, a gênese e a eficácia da litera- tura só podem ser compreendidas e explicadas no quadro histórico geral de todo o sistema. A gênese e o desenvolvimento da literatura são parte do processo histórico geral da sociedade. A essência e o valor estético das obras litrárias, bem como a influência exercida por elas, constituem parte daquele processo social geral e unitário mediante o qual o homem se apropria do mundo por meio de sua consciência (Lukács, 2009, p.89).23 22 Ideia que é reforçada na afirmação de Roberto Schwarz: “No âmbito do mar- xismo, a ligação entre literatura e sociedade não é uma audácia, é uma obriga- ção” (Schwarz, 2006, p.146). 23 Nessa mesma direção, afirma Ianni: “Em razão da relação evidente ou implí- cita, real ou imaginária, transparente ou esquizofrênica, com a ‘realidade’, a sociologia e a literatura revelam-se formas de autoconsciência” (Ianni, 1999, p.39). E prossegue: “Nesse sentido é que algumas obras de literatura, assim como de sociologia, podem ser e têm sido tomadas como síntese de visões do mundo prevalecentes na época” (ibidem, p.41). RAFAEL DA ROCHA MASSUIA 35 Calcado no “concreto”, na vida cotidiana, é que se funda o edi- fício teórico lukacsiano. É a partir do cotidiano que Lukács propõe pensarmos os problemas do fenômeno artístico e os eventuais des- dobramentos dele decorrentes.24 Porém, ainda que as formas de reflexo da realidade ofereçam-nos possibilidades de conhecimento diferenciadas – da ciência e seu conhecimento desantropomorfiza- dor à arte e sua ineliminável antropomorfização –, devemos conce- ber a realidade em sua unidade indissolúvel. Como afirma Lukács (1982, p.21): “Uma das ideias, básicas mas decisivas dessa obra é a tese de que toda as formas de reflexo – das que observamos antes de tudo na vida cotidiana, da ciência e da arte – reproduzem sempre a mesma realidade objetiva”. E isso não significa a redução ou o empobrecimento da comple- xidade da vida social. Ao contrário, somente concebendo a tota- lidade da vida social como um complexo de complexos, totalidades intensivas constituintes da totalidade extensiva (porque dinâmi- ca, em eterno devir) que é o real, que se torna possível conceber a real dimensão da riqueza humana. O reflexo artístico, diante dessa gama de possibilidades, seleciona aspectos do real que pretende realçar para uma finalidade artística específica. Nas palavras de Lukács (1982, p.21-22): “A infinitude intensiva e extensiva do mundo objetivo impõe, a todos os seres vivos, e antes de mais nada ao homem, uma adaptação, uma seleção inconsciente no reflexo”.25 24 Lukács, em uma entrevista, propõe essa questão da seguinte maneira: “Existe aqui uma tendência unificadora que relaciona a realidade total com o desen- volvimento do homem ou, como digo na Estética, com a autoconsciência do homem. Por isso direi que a arte, no sentido ontológico, é que a reprodução do processo mediante o qual o homem compreende a própria vida, na sociedade e na natureza, como vida que se refere a ele mesmo, com todos os problemas e com todos os princípios vantajosos e todos os obstáculos, etc., que a determinam. Por isso, a arte – e isso é de extraordinária importância para a ontologia – não está separada da sua gênese em sentido desantropomorfizador” (Abendroth, 1969, p.29). 25 E ainda afirma que: “[…] o que para nós no mundo é, por assim dizer, ina- preensível na sua trama infinita, na obra de arte aparece compreendido e trazido a nós numa estreita ligação sintética” (Abendroth, 1969, p.25). 36 MARXISMO E LITERATURA O realismo, longe de ser uma exigência de adequação direta da arte à sociedade, é, na verdade, o critério para a constatação dos mais valiosos frutos artísticos surgidos ao longo da rica e complexa história humana. A arte, entendida como reprodução (artística), ou refiguração da realidade, gera um “mundo próprio”, que extrapola a mera subjetividade criadora alcançando, nas grandes obras, uma objetividade latente – a particularidade. É justamente a profun- didade do tua res agitur, operada na síntese do individual com o universal, que confere caráter único a cada obra artística. Dessa forma, a grande obra de arte fornece-nos um quadro geral e dinâmico da essência histórica do período em que foi concebi- da, se nos apresentando como “autoconsciência da humanidade” (Lukács, 1968, p.287). O conhecimento profundo que a arte for- nece é o conhecimento do próprio homem, tanto na sua dimensão subjetiva como na objetiva. Ao contrário do que muitos afirmam, a teoria da arte não pressupõe uma necessária vinculação ao trans- cendente, mas explica-se pela sua própria riqueza imanente. Nesse sentido, afirma Lukács (2010, p.80) que: O imenso poder social da literatura consiste precisamente em que, nela o homem surge sem mediação, em toda riqueza de sua vida interior e exterior; e isto num nível de concretude que não pode ser encontrado em nenhuma outra modalidade do reflexo da realidade objetiva. […] Na medida em que for verdadeiramente profunda e realista, ela pode fornecer, mesmo ao mais profundo conhecedor das relações sociais, experiências vividas e noções intei- ramente novas, inesperadas e importantíssimas. Sobre essa pos- sibilidade, Marx insistiu repetidamente a propósito de Balzac e Shakespeare, e Lenin, de Tolstoi e Gorki. Nessa altura, fica evidente a incompatibilidade das ideias estético-literárias de Lukács, tanto com finalidades partidárias meramente propagandísticas, não raro desconsiderando quase completamente o valor estético das obras, quanto com as teorias, prioritariamente acadêmicas – mas não exclusivamente – que tendem a inflar o fenômeno estético (chegando em alguns casos a RAFAEL DA ROCHA MASSUIA 37 desconsiderar o caráter social da literatura) e pensar o fenômeno ar- tístico e literário como possuidor de legalidade autotélica (idealista). Nesse sentido, solidificou-se entre nós uma tradição essencial- mente lukacsiana, voltada principalmente à análise da literatura brasileira. Esse grupo, vinculado ao PCB, é representado por Car- los Nelson Coutinho e Leandro Konder. Suas posições teóricas exerceram grande influência também no campo da política cultu- ral, em função do peso das posições teóricas do Partido – que se intensificou com a articulação do mencionado front antiditatorial.26 A atividade desse grupo de intelectuais, com o notável prota- gonismo de Konder e Coutinho, resultou também na tradução de diversos livros de Lukács e outros pensadores, a partir dos anos 1960. Cabe mencionar a importância que tiveram as traduções das obras do pensador húngaro para idiomas mais acessíveis ao público brasileiro (sobretudo as traduções espanholas, francesas e italianas).27 Netto, sublinhando a importância da atividade crítica de Konder e de Coutinho, lamenta-se ainda do obscurecimento que as obras desse período sofreram, assim como do seu esquecimento no debate contemporâneo – o que, esperamos, esta pesquisa possa ajudar a remediar. Nas palavras de Netto (2010, p.237, grifo nosso): De um ponto de vista histórico, parece inteiramente consen- sual que devemos a Leandro Konder e Carlos Nelson o trabalho 26 “Em consequência com o ânimo daqueles anos, em que, nas palavras de Schwarz, ‘o país estava irreconhecivelmente inteligente’, eram alguns críticos jovens que tentariam impulsionar a crítica dialética e a discussão da arte, inspirando-se no marxismo. No mesmo ano de 1965 em que Antonio Candido publicava Literatura e sociedade, saíram A sereia e o desconfiado, de Roberto Schwarz; Razão do poema, de José Guilherme Merquior; e a segunda edição (a primeira fora destruída pelos militares) de Cultura posta em questão, de Ferreira Gullar. Pouco depois, em 1967, apareceriam Literatura e humanismo, de Carlos Nelson Coutinho; e Os marxistas e a arte de Leandro Konder” (Otsuka, 2009, p.110). 27 Que à época constituíam a gama de idiomas conhecidos por Konder e Cou- tinho. Posteriormente Konder adquire conhecimento do idioma alemão, que ganhara maior refinamento na circunstância de sua estadia na Alemanha, somente no início da década de 1970. 38 MARXISMO E LITERATURA sistemático, nos anos 1960, de trazer a referência lukasciana à cul- tura brasileira – na verdade é impossível estudar a recepção das ideias de Lukács em nosso país sem levar em conta o protagonismo de Leandro Konder e Carlos Nelson. No entanto, não tem a mesma evidência o trabalho crítico – literário e filosófico – realizado por Carlos Nelson, de meados dos anos 1960 à primeira metade da década de 1970, sob a direta influência de Lukács. Na contracorrente do sectarismo artístico instaurado no período stalinista, hegemônico no movimento comunista internacional, esses jovens queriam sobretudo expurgar as influências retrógradas (ligadas às correntes de extração stalinista) do PCB e para isso se valeram das ideias lukascianas de maneira inteligente e agregadora. De tal forma que, nas palavras de Frederico (1995, p.193): O destino de Lukács esteve inicialmente vinculado, como vimos, ao projeto de um pequeno grupo de intelectuais comunis- tas não ligados profissionalmente à vida acadêmica. Os ventos da renovação do movimento comunista internacional e a situação específica da esquerda brasileira, derrotada, frustrada e inquieta com os rumos do regime militar, favoreceram a aproximação e a adesão às ideias lukascianas, que haviam […] começado a ser dige- ridas ainda no pré-64. Com isso, a recepção de Lukács recebeu uma verdadeira impul- são. Setores do PCB, sobretudo entre os jovens comunistas, viam no filósofo húngaro a possibilidade da edificação de uma política cultural abrangente que serviria para a articulação do referido front antiditatorial. Mas, em uma outra chave, ainda tinha a função estra- tégica de manter um combate em outras duas frentes: tanto ao stali- nismo quanto ao existencialismo, cada um em suas peculiaridades, mas ambos significando um retrocesso ao pensamento marxista. Para a esquerda brasileira […] Lukács surgiu como um pensa- dor capaz de impulsionar a renovação do marxismo, exigência que entrou na ordem do dia após o XX Congresso do PCUS. […] [Essa] RAFAEL DA ROCHA MASSUIA 39 tarefa foi levada à frente por uma jovem intelectualidade comu- nista que concentrou sua atuação no encaminhamento da política cultural do PCB. O encontro com o pensamento de Lukács servia tanto para superar o catecismo stalinista quanto para fazer frente ao enorme prestígio então desfrutado pela filosofia existencialista (Frederico, 1995, p.223). No entanto – e essa é a hipótese que queremos aqui colocar à prova –, as obras e ideias levadas a cabo por Konder e Coutinho construíram um panorama de complexidade teórico-crítica que, como procuraremos demonstrar, não só extrapolaram os limites de uma reprodução das ideias de Lukács no Brasil, mas também pro- jetaram-se para além da mera utilização politicista desse arcabouço teórico para fazer oposição ao regime autoritário que se instaurava ou mesmo para fundamentar e fortalecer um movimento que pro- punha a mudança de eixos da orientação política mais geral do PCB. A reflexão sobre a arte e a cultura no Brasil balizada por uma perspectiva marxista, como se sabe, sempre deixou a desejar. Ex- cetuando-se nomes como Antonio Candido, Roberto Schwarz e Alfredo Bosi, poucas vezes em nossa história das ideias o casamento entre marxismo e literatura produziu resultados positivos (como se percebe, apesar do esforço que não deve ser desconsiderado, na obra de Astrojildo Pereira e Nelson Werneck Sodré). Cremos que a produção teórica de Coutinho e Konder, que se inicia nos anos 1960, marca um novo ciclo desse fundamental diálogo entre teoria marxista e fenômeno literário, superando e elevando a outro pata- mar (em sentido hegeliano), a herança estabelecida anteriormente no campo do marxismo. A obra dos pensadores, como pretendemos mostrar ao longo do presente estudo, avultam como importantes tentativas de (re)pen- sarem o marxismo, nas duas múltiplas manifestações teóricas, as questões da cultura e da arte e mesmo as questões e implicações do pensamento social brasileiro; questões essas que orientaram, desde o início do século XX, grande parte das mais importantes discussões no âmbito da esquerda, em uma perspectiva mundial. 2 LeAndro konder Sete anos mais velho que Carlos Nelson Coutinho, Leandro Konder foi o primeiro dos dois a aventurar-se pelo mundo científi- co. No entanto, foram os livros Marxismo e alienação e Os marxistas e a arte, de 1965 e 1967, respectivamente, que adquiriram maior nível de sistematização dentro da temática e, consequentemente, ocupam papel central em nossa pesquisa. Apesar das ressalvas fei- tas por Konder aos seus próprios escritos do final dos anos 1950 e, mesmo aqueles do início dos anos 1960, Coutinho (2002, p.19) aponta a existência de inegáveis méritos nos textos em tela, cujo maior deles seria a identificação prematura dos interesses temáticos que norteariam a produção do filósofo carioca, ao “[...] longo de sua atividade intelectual sucessiva, nos quase quarenta anos que nos separam do início dos anos 60”. Dos textos de Konder dos anos 1950, podemos mencionar, sem- pre dentro da temática proposta pela pesquisa, aqueles não citados por Coutinho: “Um médico chamado Tchecov” (196-), “Lição de Mário de Andrade” (196-), “Paul Éluard” (19-). Apesar de indica- rem o interesse de Konder no tema, eles pouco contribuem para a construção de uma análise sólida, enquadrando-se na categoria de textos jornalísticos pontuais, motivo pelo qual optamos por somen- te indicá-los. 42 MARXISMO E LITERATURA Desde cedo Konder demonstrou grande versatilidade, tratando de temas variados como filosofia, teoria política e literatura (área em que estaremos mais interessados). Como já destacamos, esses textos inaugurais de Konder possuem o potencial de revelarem um dos meios de abordagem favoritos do pensador carioca: a produção monográfica, focada na obra de algum teórico ou artista de ex- pressão. Os textos mais sistemáticos, de inspiração marxista, com demarcado interesse pela reflexão estética, anteciparam outra seara que Konder explorou de forma fecunda. O[s] ensaios sobre Sartre, Rousseau e Fernando Pessoa ante- cipavam um dos eixos da produção teórica de Leandro, ou seja, a abordagem monográfica de alguns importantes pensadores (como Hegel, Fourier, Lukács e Benjamin) e também de significativos artistas (como Kafka e Brecht). O texto sobre a estética marxista – transcrição de uma conferência pronunciada no ISEB, na qual, de resto, podemos encontrar uma das primeiras menções a Gramsci feitas no Brasil – antecipa, por sua vez, outra linha da atividade de Leandro, ou seja a reflexão sobre a teoria marxista, sobre a filosofia e a estética marxistas […] (Coutinho, 2002, p.19). No ano de 1965, as coisas tomaram um grande impulso. Nesse ano é publicada a primeira coletânea de escritos de Lukács em língua portuguesa, preparada por Konder e com tradução coleti- va, mas também é o ano de publicação do primeiro livro do nosso autor, Marxismo e alienação. Seria incorreto se reduzíssemos a obra de Konder à introdução do pensamento de autores estrangeiros ao Brasil, como pretendemos demonstrar ao longo do capítulo. Pensa- dor original, desde os primeiros escritos soube valer-se das teorias dos mais importantes teóricos, com atenção especial a Lukács, sem com isso se ver preso aos seus alegados problemas internos (como, igualmente, trataremos ao longo da exposição). RAFAEL DA ROCHA MASSUIA 43 Arte e alienação No seu livro inaugural – Marxismo e alienação, de 1965 –, Kon- der dedica um capítulo para desenvolver uma reflexão sobre os impactos da alienação no campo da arte. Partindo do eixo central do livro, a reflexão sobre a alienação, Konder postula a existência de um espaço de relativa espontaneidade que teria persistido na esfera artística, em função de seu distanciamento – o que se torna cada vez mais forçoso dizer, em função do desenvolvimento ulterior da chamada indústria cultural, cada vez mais submetendo a cultura e a arte aos ditames do lucro – da dimensão utilitarista da vida social. Tanto o baixo nível de desenvolvimento das forças sociais pro- dutivas como as condições de divisão do trabalho e de exploração do homem pelo homem deram ao trabalho humano uma feição áspera, um caráter doloroso, coercitivo. Um aspecto do trabalho e da atividade humana, entretanto, por ser menos importante do ponto de vista da economia da sociedade, por ser menos dire- tamente útil à produção de riquezas materiais, pôde resguardar certa espontaneidade: a atividade de criação artística (Konder, 2009a, p.157). Antes, no entanto, de se ver refém do sistema capitalista, a arte debateu-se por séculos contra um outro inimigo: a religião. Não é de maneira causal que grande parte das importantes pinturas medievais sejam dedicadas direta ou indiretamente à temas reli- giosos e, em alguns casos, encomendadas diretamente pelos emis- sários de Roma (pensemos, por exemplo, nas importantes obras de Michelangelo e Rafael). A dimensão mítico-religiosa do objeto artístico perdurou por séculos a fio. Somente com a superação dessa influência é que pudemos alcançar a real significação da arte, como Lukács defende nos primeiros capítulos da Estética. Nas palavras de Konder (2009a, p.159), a “[…] fetichização da arte […] tem tido como resultado a subestimação de um dos aspectos mais importan- tes e mais desvirtuados da atividade de criação artística”, e prosse- 44 MARXISMO E LITERATURA gue afirmando: “[…] que é o aspecto relativo ao papel da arte como face e dimensão do conhecimento humano”. Contra as tendências que consideram a arte um simples jogo, que teria evoluído a partir do tempo de ócio, Lukács mostra como ela teria surgido antes no seio da vida social, vinculada de início à atividade mágica, mas ativa em uma longa luta para fazer prevale- cer sua peculiaridade. Também diferencia e demarca as caracterís- ticas do tipo específico de conhecimento proporcionado pela arte, rechaçando as visões que tendem a concebê-la como uma entidade pura, que não toma partido nas questões sociais e políticas. Konder resume essas concepções equivocadas: Por um lado, imaginou-se que a arte seria uma forma de conhe- cimento puro, da qual estivessem sempre banidas quaisquer defor- mações ideológicas: fez-se abstração do uso social da produção artística (considerando-se este uso algo inteiramente exterior ao fenômeno artístico), ignorou-se o papel desempenhado pela arte na história como participante de lutas políticas e não se levou em conta a influência exercida pela arte no desenvolvimento e na derrubada dos mitos (o que implicaria em admitir uma natureza política da arte). Por outro lado, negou-se à criação artística qualquer vincula- ção estrutural com a questões relativas ao conhecimento humano: a arte foi figurada como um mero jogo gratuito, como uma função destinada a atender às necessidades lúdicas inerentes a um eterno espírito humano, isto é, à essência do Homem. […] Em qualquer dos dois caminhos, chegou-se a separar, de fato, completamente, a história da arte da história da humanidade, fazendo com que as relações entre o processo de uma e o processo da outra aparecessem apenas como relações contingenciais (Konder, 2009a, p.159). O resultado prático dessas duas posições sobre os indivíduos criadores são os mais diversos. Seja submetido a uma visão ou a outra, o sujeito criador pode sempre, a despeito de uma visão redu- cionista da arte, criar obras-primas capazes de marcar a humanidade por séculos. O sucesso de determinada obra depende menos – RAFAEL DA ROCHA MASSUIA 45 argumenta Konder (2009a, p.160) – de sua disposição subjetiva do que das “condições objetivas da criação e do consumo”; o resultado objetivo, a obra acabada, que determinará a sua grandeza, e não as predisposições subjetivas, que podem variar desde a concepção da arte como “um jogo gratuito e sem compromisso” até ao ponto de estarem “desempenhando uma missão sagrada”, crendo que “no belo está sempre o divino”. Mas o que, então, indaga Konder, explica o fato de algumas obras de arte serem grandes obras e outras, formas de menor ex- pressão? Qual a determinante por trás da criação artística? Na criação artística, manifestam-se íntima e indestrutivelmente mesclados elementos de raízes psicológicas e elementos de raízes sociais, mesmo porque não existe uma psicologia individual em que não estejam presentes fatores sociais e não existe um status social ao qual não corresponda um estado de espírito, um determinado qua- dro psicológico próprio. Impossível, portanto, cogitar seriamente uma abordagem do fenômeno artístico que ignorasse qualquer das suas espécies de elementos (Konder, 2009a, p.161). A solução para o aparente dilema está na dimensão dialética, tanto da realidade quanto da teoria, que busca apreender o real em toda sua complexidade. Uma abordagem teórica da questão implica que se leve em conta as duas dimensões da criação artística, a psiquê criadora e as condições sociais que influenciam, direta ou indiretamente, o artista, assim como as efetivas interações que se condensam e resultam na forma objetiva do objeto artístico. Sem se esgotar no passado ou no presente, a arte, sensível às modificações do tempo, comporta em si projetos e visões em rela- ção a possibilidades. Não há um compromisso apriorístico do es- critor com a verdade documental (ou científica). Como nos ensina Aristóteles (2008, p.115): Pelas precedentes considerações se manifesta que não é ofício de poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia 46 MARXISMO E LITERATURA acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verossimilhança e a necessidade. Com efeito, não diferem o historiador e o poeta, por escreverem verso ou prosa […] – diferem, sim, em que diz um as coisas que sucederam, e outro as que poderiam suceder. Nesse espírito prossegue Konder em seu texto, apontando o caráter de autoconhecimento da arte, que revela, sempre de um prisma ineliminavelmente humano, a realidade social, dando ao homem a possibilidade de melhor conhecer tanto sua realidade exterior quanto a interior, pois não há nenhuma ponte inalcançável, entre indivíduo e mundo, que a arte não possa contornar. Prossegue Konder: A arte, como autoconhecimento da humanidade, não poderia, por conseguinte, se limitar ao inventário do que já existe de fato: cabe-lhe iluminar o que está por existir, isto é, cabe-lhe iluminar os sonhos do homem e ajudar a concretizar tais sonhos. […] Por isso, a arte nos aparece como uma atividade ao mesmo tempo autorrevela- dora e autoplasmadora do homem. O trabalho de criação artística dá ao homem uma visão das suas potencialidades. A arte educa a sen- sibilidade do homem, desenvolve-lhe as riquezas especificamente humanas dos seus órgãos dos sentidos (Konder, 2009a, p.162). Como nos lembra Konder, invocando uma célebre frase de Marx, extraída dos Manuscritos econômico-filosóficos (2004): “A educação dos cinco sentidos é obra de toda a história universal até os nossos dias” (Marx apud Konder, 2009a, p.162). Nas artes plás- ticas e na música, por exemplo, esse movimento é mais aparente e óbvio, pela relação mais ou menos direta com o sentido a que essas formas – nos casos exemplificados, visão e audição, respectivamen- te – artísticas se endereçam; o que torna o caso da literatura um pouco mais complicado por conta da mescla de elementos sensí- veis e conceituais, pois, como aponta Konder (2009a, p.162), “[…] cada grande escritor, cada grande livro acrescenta alguma coisa ao RAFAEL DA ROCHA MASSUIA 47 autoconhecimento do homem e permite à humanidade avançar um pouco mais no sentido da humanização do mundo”. Konder retoma uma distinção essencial e repetida à exaustão por Lukács: aquela entre arte e ciência, em relação às suas especi- ficidades. Ambas as formas de conhecimento são mediadas pelo homem, mas, no caso da arte, o que está em jogo é a própria visão da realidade a que se pretende revelar a partir do olhar humano. Recorrendo a uma citação do Lukács da Introdução a uma estética marxista (1968), Konder (2009a, p.163) busca apoiar-se, de uma vez por todas, na teoria lukacsiana da arte. O conhecimento científico, ainda segundo Lukács, se realiza através de uma observação de coisas e fenômenos singulares e da formulação de leis e princípios universais: lida, portanto, com o singular e o universal. Sua categoria básica tem de ser a da univer- salidade. Já a categoria central do conhecimento artístico, para o filósofo húngaro, tem de ser a categoria da particularidade, isto é, a representação simbólica do singular e do universal organicamente unidos e sintetizados (Konder, 2009a, p.163). O filósofo carioca, uma vez tendo feito a diferenciação entre as características singulares das formas de conhecimento artístico e científico, aventura-se a desbravar o funcionamento da segun- da. Os grandes artistas, através de uma elevação da consciência individual a um nível de consciência artística ampla e abrangente, conseguem superar eventuais limitações ideológicas que, se não sanadas, criam empecilhos à sua realização positiva. Os teóricos marxistas do início do século XX que trataram teo- ricamente da arte tendiam a conceber a dimensão política como determinante da grandeza de dado autor. Essa posição, natural- mente, causava-lhes grandes dificuldades, pois como é possível dizer que o legitimista Balzac era um mau escritor? Como condenar Goethe por ser um homem de seu tempo? Buscando responder a essas e a outras questões, argumenta Konder: 48 MARXISMO E LITERATURA A consciência artística presente nas grandes obras da história da arte permite ao artista superar, no seu trabalho livre e criador, preconceitos e limitações ideológicas pessoais: permite-lhe saltar obstáculos opostos ao desenvolvimento do seu conhecimento por uma visão política mal formada, por uma perspectiva filosófica alienada (Konder, 2009a, p.170). O conservadorismo de Balzac já não havia impedido Marx de admirá-lo como escritor. Assim como é sabido que Engels disse ter compreendido mais da sociedade francesa da primeira metade do século XIX com Balzac do que com todos os historiadores, econo- mistas e estatísticos da época, juntos. Relatos indicam que Marx teria manifestado o desejo de dedicar um estudo à obra balzaquiana, fato que acabou não se concretizando. A admiração de Marx pelo es- critor francês, no entanto, é reforçada por esse fato, como fica claro no trecho de Paul Lafargue, genro de Marx, retomado por Konder: Balzac foi não só o historiador da sociedade do seu tempo, mas igualmente o criador profético de figuras que, sob Luís Felipe, ainda se achavam em estado embrionário, figuras que só alcança- ram a seu completo desenvolvimento após a morte do autor, sob Napoleão III (Lafargue apud Konder, 2009a, p.170). Na sequência, Konder aponta que esse mesmo potencial pro- fético visto por Marx em Balzac foi notado em Kafka por Brecht e Nathalie Sarraute. Dotado de grande percepção e sensibilidade, o escritor tcheco conseguiu captar no ar o estado geral de espírito europeu, com uma Europa arrasada pelo pós-guerra, e teria intuído algo muito próximo ao que viriam a ser os campos de concentração da Alemanha de Hitler. Essa capacidade de revelar elementos até então ocultos da reali- dade social, retraduzidos pelos meios de expressões artísticas, con- tribui mesmo em nossos dias para ampliar o conhecimento sobre determinado período. No entanto, se remontarmos à Antiguidade, ou mesmo à Idade Média, nos deparamos com uma escassez de RAFAEL DA ROCHA MASSUIA 49 teorias sobre a sociedade – para não mencionar a dificuldade de circulação de conhecimento, taxa elevada de analfabetismo etc. –, o que faz o conhecimento artístico ser ainda mais reconhecido, posto o contraste existente. Konder resume o fenômeno referido da seguinte forma: O mesmo dom da consciência artística se manifesta no fato de que muito antes do aparecimento da moderna economia política, da sociologia, do materialismo histórico e da teoria marxista da alienação, grandes artistas e escritores do passado tenham podido chegar a apreender e comunicar problemas que só posteriormente puderam vir a ser equacionados em termos científicos e abordados na esfera da clareza conceitual (Konder, 2009a, p.171). Para exemplificar esse fenômeno, Konder (2009a, p.171) faz uma referência a Menandro, citado originalmente por Aníbal Ponce, em que o poeta grego consegue intuir as consequências ne- gativas do comércio que ainda vivia um estágio ainda pouco desen- volvido, enxergando no ouro a raiz dos males da sociedade. Para Meandro, o comércio “toma servo os homens livres” e “abre as portas do inferno aos homens”. Com o desenvolvimento da sociedade e a expansão e generaliza- ção das relações mercantis, vai tornando-se cada vez mais visível a ação que esse movimento econômico passa a exercer na vida dos ho- mens, o que os escritores que se situam no marco da modernidade – ainda que alguns, como é o caso de Shakespeare, tenham vivido em um período anterior – passariam a ver com mais clareza e a tratar diretamente em suas obras. Posteriormente, na fase de implantação do capitalismo, a ação deformadora do ouro sobre as consciências e os efeitos da mercan- tilização social foram registrados por diversos escritores, entre os quais Shakespeare, Goethe, Cervantes, Balzac e Stendhal. Shakes- peare e Goethe, de resto, estão citados nos Manuscritos de 1844 pelo próprio Marx (Konder, 2009a, p.171). 50 MARXISMO E LITERATURA Konder prossegue, citando os trechos de Shakespeare e Goethe resgatados por Marx nos Manuscritos de 1844. O pensador alemão cita os dois mestres da literatura universal, mostrando como eles percebiam que, com o crescimento das relações mercantis, cada vez menos os homens eram considerados pelo que eram de fato, cada vez mais pelo que possuíam. Shakespeare, no Timon de Atenas, refere-se ao ouro com as seguintes palavras: “Com ele, o negro se torna branco, o feio se torna belo, o meu bom, o velho jovem […]. Oh, deidade visível que unes e irmanas o impossível, fazendo com que se abracem e se beijem os mais inconciliáveis inimigos!”. E Goethe, no Fausto, pela boca de Mefistóteles, glosa a usurpação dos domínios do ser pelos valores do ter: “Se tens seis cavalos, as forças deles não são acaso tuas? Tu os cavalgas e – homem comum – eis-te como se tivesse 24 pernas!”. Ao comentário destes dois textos, Marx dedica algumas das melhores páginas dos Manuscritos. Marx mostra que, dada a crescente força do dinheiro (tal como a observaram Shakespeare e Goethe), as qualidades naturais são substituídas por qualidades artificiais, isto é, por qualidades geradas pela propriedade particu- lar do outro, de modo que o feio, sendo rico, pode comprar a beleza e passar por bonito etc (Konder, 2009a, p.172). Em seguida, invoca ainda o imortal Cavaleiro da Triste Figura que, preso em suas ilusões nostálgicas, chega a evocar uma suposta idade de ouro, lamentando-se por nela não ter podido viver, fadado à mesquinhez da vida moderna, que ainda estava por desabrochar plenamente. Em Cervantes a alienação inerente ao sistema da propriedade privada faz com que D. Quixote sinta saudades de uma mítica idade de ouro: “Feliz época e felizes séculos aqueles a que os antigos chamaram de ouro, não porque neles o ouro (que nesta nossa idade de ferro tanto se estima) fosse obtido sem qualquer fadiga e sim porque os que viviam aqueles tempos venturosos ignoravam estas RAFAEL DA ROCHA MASSUIA 51 duas palavras teu e meu, sendo naquela santa idade todas as coisas comuns (D. Quixote) (Konder, 2009a, p.172). Em relação a Balzac, o filósofo carioca menciona a retratação do efeito negativo do ouro nas personagens Gobseck e Grandet, realizada por Vladimir Grib, em um estudo presente na edição da tradução brasileira d’A Comédia humana. Adiante, faz uma análise própria de um episódio correlato, passado no romance Ilusões per- didas, aludindo ao potencial destrutivo do dinheiro interferindo de forma direta em uma relação entre pai e filho, que chega a beirar o absurdo, como aponta Konder. Poderíamos lembrar igualmente a narração balzaquiana do encontro entre o velho Séchard e seu filho David Séchard, no prin- cípio das Ilusões perdidas. O velho Séchard é impressor, possui uma tipografia na província. Manda o filho estudar em Paris e justifica a cupidez com que dirige o negócio sob a alegação de que está traba- lhando, afinal, para garantir o futuro do filho. Quando David volta de Paris, entretanto, o velho Séchard muda de ideia e resolve ven- der-lhe a tipografia. Já que se trata de uma venda, por outro lado, não há por que deixar de tentar obter um bom preço. O pai lança- -se ao ataque: procura amolecer o filho-comprador com um bom almoço, generosamente regado a vinho. Por fim faz-lhe a proposta. David hesita, acha caro. E é então que a narração de Balzac atinge o grotesco: para conseguir impingir ao filho por preço elevado a tipo- grafia provinciana, o velho Séchard apela para o sentimentalismo e para a chantagem, lembrando ao ingrato David que aquele que lhe estava vendendo a oficina era o “seu velho pai”, que lhe havia “cus- teado os estudos em Paris” (Konder, 2009a, p.173). Observa como também em Stendhal o tema é recorrente. Em suas duas principais obras a questão do dinheiro é tematizada. Em O vermelho e o negro, o protagonista da obra chega a ver sua vida de forma negativa em função de não possuir uma renda que con- siderasse suficiente. Já em sua A cartuxa de Parma, a personagem 52 MARXISMO E LITERATURA duquesa Sanseverina coloca-se contra a ida de Fabrício à América, com quem envolve-se afetivamente, referindo-se com profunda ironia ao país, onde as pessoas praticariam uma espécie de culto ao dinheiro: Em Stendhal, encontramos Julien Sorel, filho de camponeses rústicos, possuído de uma forte ambição, ansioso por subir na escala social. Julien Sorel constata: “minha vida não passa de uma sequência de hipocrisias, porque não tenho mil francos de renda” (O vermelho e o negro). Numa outra obra estendhaliana, é a perspi- caz duquesa Sanseverina que se opõe à ida do seu amado Fabrício para a América – onde o espírito liberal deste poderia colaborar com as forças republicanas na luta pelo progresso – com base na alegação de que tal viagem resultaria em desilusão, uma vez que na América se praticava o culto do deus-dólar (A cartuxa de Parma) (Konder, 2009a, p.173-4). Realizados os comentários sobre a capacidade de descortinar os processos sociais, por parte dos grandes artistas, Konder ob- serva que, nesses casos, o que ocorre é a superação do imobilismo naturalista, de base cientificista e pouco profundo no trato com a realidade – contemporâneo de boa parte dos escritores menciona- dos, tendo como seu grande propulsor o francês Émile Zola, na segunda metade do século XIX –, promovendo assim um relato profundo e próximo da realidade concreta: A imaginação criadora, no caso dos artistas verdadeiramente geniais, implica em uma indiscutível capacidade de romper com a subserviência naturalista ante a realidade, mas não os afasta do real senão para que as suas obras possam se inserir mais profun- damente no movimento concreto da história dos homens (Konder, 2009a, p.174). O potencial positivo da imaginação criadora, no entanto, possui algumas limitações; o artista, enquanto indivíduo, socialmente e RAFAEL DA ROCHA MASSUIA 53 classisticamente localizado, está sujeito às deformações ideológicas alienantes. O que se observa aqui é uma relação conflituosa entre consciência artística e alienação, em que o lado que prevalecer de- terminará se a obra em questão resultará em uma realização bem- -sucedida ou não.1 A força da consciência artística reside precisamente no fato de que, superando as limitações impostas pela consciência filosófica e política do artista, superando a alienação do seu ponto de vista pessoal como cidadão, ela (a consciência artística) lhe permite, atra- vés de uma inventiva liberada pela honestidade artística, enxergar e captar na sua íntima significação humana (e histórica) fenômenos cuja essência não lhe é acessível por via da observação científica e da dedução. […] No entanto, a consciência artística não é, ela própria, imune à alienação. A consciência artística é, afinal, consciência de um indivíduo (o artista) que vive em uma determinada sociedade, sujeito a injunções de toda espécie, vinculado a uma determinada classe social, sujeito à pressão de condições econômicas e obrigado a trabalhar dentro de uma determinada linha de condições cultu- rais. De modo que, embora a consciência artística possa superar os limites de uma consciência filosófica e política alienada, ela muito frequentemente é atingida pelas consequências das deformações ideológicas do artista (Konder, 2009a, p.174-5). A relação entre consciência artística e política rendeu inúme- ras discussões no campo do marxismo. Pensadores como Georgi Plekhanov e Franz Mehring tendem a reduzir a primeira à segunda, determinando o valor de uma obra de arte a partir das concepções 1 “O ‘grande realismo’ da ‘grande arte’ (para empregar expressão caras ao nosso autor) fortalecia nas pessoas a consciência de que cada uma delas era uma espécie de representante da humanidade e deveria assumir suas responsabili- dades em relação aos problemas dos outros seres humanos, empenhando-se, por conseguinte, em atuar no plano político-cultural na busca de uma solução para tais problemas, tanto na esfera pública como no âmbito da vida privada” (Konder, 1996, p.32). 54 MARXISMO E LITERATURA políticas de seu criador. Konder, apoiado nas formulações de Lukács, rejeita essa posição; em sua visão, a alienação do artista pode ou não atingir a obra. Em caso afirmativo, o que se obtém é um malogro, mas em caso negativo, superando uma visão de mundo problemática (como no caso de Balzac), pode-se obter como resultado uma grande obra de arte. O que é preciso que se diga é que, nos casos em que as limita- ções inerentes à perspectiva alienada do pensamento filosófico e político de um artista chegam a se manifestar na obra, tornando- -se fatores de alienação específica da consciência artística, o nível estético da referida obra estará inevitavelmente prejudicado. No próprio campo dos valores estéticos, por conseguinte, se poderá constatar os efeitos da alienação. A obra, carecendo de verdade, ou de profundidade, carecendo de equilíbrio, terá fracasso, não terá conseguido alcançar a essência dos fenômenos abordados, ter-se- -á perdido no cipoal das aparências, ter-se-á alienado do destino humano que deveria conquistar. E, como obra de arte fracassada, que não chegou a adquirir a sua significação humana própria, muito mais do que por politicamente nociva, há de ser repelida por culturalmente insignificante (Konder, 2009a, p.175). A posição política ou filosófica do autor – sua visão de mundo – não prescinde de uma análise da obra. A análise deve ser focada com grande minúcia na obra e questão, que pode ou não expressar um conteúdo humano rico e difuso, que pode ou não se ver reduzi- da a mera finalidade propagandística. À crítica de orientação mar- xista, caberia, portanto, esse papel, o de mostrar “[…] os efeitos da alienação artística, prejudicando a qualidade estética tanto quanto a riqueza humana da obra” (Konder, 2009a, p.175). A seguir Konder retoma a importante distinção entre forma e conteúdo. Rebatendo as posições dualistas, que tendem a conceber ambos como extremos isolados, a posição hegeliana sobre a ques- tão, o pensador carioca defende que uma está indissoluvelmente ligada à outra. RAFAEL DA ROCHA MASSUIA 55 Em toda obra de arte como tal há forma e conteúdo. As catego- rias de forma e conteúdo, entretanto, precisam ser utilizadas com cautela, de vez que os problemas essenciais da forma implicam necessariamente, em certo momento, nos problemas essenciais do conteúdo, e vice-versa. Sem que se preconize o abandono sumá- rio das duas categorias – que, empregadas de maneira flexível, dialética, podem prestar ainda bons serviços – cumpre evitar o transformá-las em fórmulas rígidas, cumpre evitar o prender-se esquematicamente a elas (Konder, 2009a, p.175). É o que busca afirmar Konder (2009a, p.175-6), apoiando-se no Lukács de Narrar ou descrever?, escrito em 1936. A alienação artística ou se dá concomitantemente nas duas dimensões, forma e conteúdo, ou não existe: A alienação na arte não atinge primeiro o conteúdo para depois atingir a forma; também não atinge primeiro a forma para de pois atin- gir o conteúdo. Uma compreensão de como a alienação da cons- ciência artística atinge tanto a forma quanto o conteúdo – atinge a organicidade que os une – pode ser obtida na leitura das observa- ções desenvolvidas por György Lukács no ensaio Narrar ou descre- ver? […]. Trazendo à tona o importante texto lukacsiano, Konder realiza algumas reflexões sobre a distinção, proposta por Lukács, entre método narrativo e método descritivo. É retomada também a dis- tinção, proveniente da predominância de um ou outro método, entre naturalismo e realismo, que ocuparam grande destaque nas discussões literárias no período dos anos 1930 e ganharam vivo interesse também quando de sua transposição ao debate no Brasil. Lukács, analisando as questões do romance, não se detém na con- sideração abstrata do conteúdo e nem no estudo limitado da forma: volta seus olhos argutos para o problema do método de composi- ção. Reconhecendo que em todo romance há narração e descrição, 56 MARXISMO E LITERATURA Lukács constata que, na estrutura de um dado romance, pode pre- dominar o método narrativo ou o método descritivo. O predomínio do método descritivo (evidenciando, da parte do autor, uma atitude objetiva, uma posição de neutralidade em face da vida, uma nivela- ção às coisas) acarreta o enfraquecimento da ação, a transformação da ação em um tênue fio que serve apenas para ligar os quadros ou situações descritas, as descrições interiores (psicológicas) ou exte- riores (sociológicas). O predomínio do método narrativo, ao contrá- rio, se não faculta por si mesma a elaboração de um bom romance, pelo menos é o verificado nos grandes mestres da literatura de fic- ção: a narração, englobando e incorporando todas as descrições ao desenvolvimento da ação, põe os leitores em contato com expe- riências humanas captadas ao vivo, dinamicamente; põe os leitores em contato com personagens reais, cuja evolução tem um sentido real. O leitor sente, através da narração, uma identificação com as experiências vividas pelos personagens, as vicissitudes em que a ação envolve os personagens; e partilha das aventuras e experiências que podiam (potencialmente) ser dele (Konder, 2009a, p.176). É interessante notar que, no seu primeiro livro, Konder mani- festa preocupação com algumas das formulações de Lukács, so- bretudo aquelas que visam desqualificar a vanguarda artística do século XX. Lukács, como se sabe, propunha a distinção entre arte realista (realismo crítico) e arte decadente (vanguarda artística). A existência de obras situadas entre um e outro extremo inquieta- va o filósofo carioca já em 1965. Como fazer com obras que estão parcialmente sujeitas aos efeitos da alienação, mas que, a despei- to disso, provocam-nos profundas reflexões, revelando aspectos essenciais da realidade social? Responde-nos Konder: O problema, contudo, está longe de ser simples. Excluídos os casos extremos, nos quais a alienação da consciência artística resulta em obras de arte abortadas ou de categoria claramente ínfima, defrontamo-nos com a situação (mais delicada) das obras em que chega a se manifestar uma alienação na consciência artística do RAFAEL DA ROCHA MASSUIA 57 autor, mas nas quais a validez não chega a ser completamente des- truída (Konder, 2009a, p.177). Exemplificando esse tipo de realismo parcial, Konder menciona Ulisses, do escritor irlandês James Joyce. Como se sabe, as críticas negativas de Lukács dirigidas à obra joyceana não foram poucas e, mesmo em um período posterior, em que buscou reavaliar pensa- dores vanguardistas, como Kafka e Proust, Lukács permaneceu firme em suas críticas a Joyce. Theodor W. Adorno (2002), em um texto bastante enfático contra a pessoa e a obra de Lukács, faz uma menção da necessidade de reavaliação da obra de Joyce, sem com isso obter sucesso. Cremos ser importante frisar que, mesmo situando-se no pe- ríodo inicial da recepção de Lukács no Brasil, Konder matinha algumas ressalvas quanto ao teor “conservador” do pensamento estético de Lukács. Essa seria, por exemplo, a situação do Ulisses. James Joyce, como a generalidade dos artistas do século 20, se coloca em opo- sição às tendências desumanizadoras cuja presença ativa ele sente bem viva no mundo capitalista (fundamentalmente anestético) em que vive. Sua rebeldia em face dessas tendências é a rebeldia individualista do intelectual isolado, de origem e formação bur- guesa: tanto pode levar-lhe a consciência artística a assumir posições socialmente progressistas (e até revolucionárias), quando podem os preconceitos confundir, diluir e descaracterizar o inconformismo original (Konder, 2009a, p.177). Avançando em uma análise de Ulisses, Konder fornece-nos al- guns momentos essenciais desse processo, visando com isso de- monstrar sua grandeza e importância, que Lukács erroneamente subestimou. Marcada por um tom crítico bastante áspero, a obra joyceana traz à superfície importantes questões e reabre velhas feri- das que o “politicamente correto” até então vinha se encarregando de manter no esquecimento. 58 MARXISMO E LITERATURA Os personagens de Ulisses nos quais mais se detém a atenção de Joyce ostentam agressivo desprezo pelas coisas e pelas instituições que a classe dirigente da sociedade em que vivem trata com apreço. Deus – o Jeová do Velho Testamento – lhes aparece como “um cole- cionador de prepúcios”. A rainha Vitória passa por ser “uma bruxa velha de dentes amarelos”; o único mérito que se lhe reconhece é o de se uma “boa parideira”, porque teve nove filhos. As forças armadas estão “apodrecidas pela sífilis”. Stephen Dédalus recusa- -se a atender ao último pedido de sua mãe moribunda, no sentido de ser ajoelhar e rezar por ela, porque não quer compactuar com o que considera “uma farsa”. Quando, depois do enterro de sua mãe, Dédalus aparece em casa de seu amigo Buck Mulligan, este anuncia à tia com quem vive que quem acaba de chegar “é apenas Stephen Dédalus, cuja mãe está bestialmente morta”. O Exército da Salva- ção não escapa ao sarcasmo: “Prostituta convertida falará hoje, em uma reunião, sobre o tema Como Encontrei o Senhor”. Buck Mulli- gan assevera a um bibliotecário que Shakespeare era “um belho que escrevia como Synge”. E Bloom, no enterro de um conhecido, pondo os olhos na imensa área do cemitério ocupada pelas sepul- turas com caixões mortuários, espanta-se: “quanto desperdício de madeira!” (Konder, 2009a, p.177-8). Apesar desse elemento crítico positivo, Konder ressalva a exis- tência de uma certa monotonia na obra, de uma entrega ao ritmo de um cotidiano entediante e descolorido. Ainda que o benefício da dúvida seja dado e Konder acredite que se trata de algo proposital, de mais um recurso para demonstrar a crueldade da monotonia burguesa, a impressão que fica é negativa, ainda que encarregue à História o julgamento ulterior do seu sucesso ou malogro. Em certo sentido, podemos dizer que o mérito do livro está justamente em pôr a nu a mesquinhez das vidas que descreve, o desperdício de potencialidades humanas inaproveitadas; terá sido mesmo para consegui-lo que o autor elaborou o roteiro da obra como uma paródia da Odisseia de Homero, acentuando o grotesco RAFAEL DA ROCHA MASSUIA 59 do seu Ulisses pelo contraste com o modelo épico antigo. Mas ver- dade é que a rotina parece dominar a própria obra. […] (Konder, 2009a, p.178-9). Findo o capítulo sobre a manifestação da alienação nas artes, é somente na conclusão que Konder retoma algumas reflexões sobre a arte. Aponta diversas outras obras literárias que poderiam ter sido mencionadas e discutidas. O romance moderno, na avaliação do pensador carioca, quase sempre traz, de forma mais ou menos intensa, referências ao fenômeno da alienação, principalmente em relação à vida privada e à família. Poderíamos, ainda, nos dois capítulos referentes à alienação na arte, ter estendido infindavelmente a nossa exposição, pois, mesmo sem sair da área específica da literatura, teríamos ao nosso alcance um incalculável número de romances ricos de ensinamentos a pro- pósito da alienação, já que, de um modo ou de outro, quase todo o romance moderno gira em torno de problemas inteiramente rela- cionados com a alienação e, especialmente, registra os efeitos da alienação no âmbito da vida privada e das relações de família. Basta lembrar aqui os romances de Kafka (América, A metamorfose, O cas- telo, O processo), os romances de Thomas