295 CAMINHOS da CARDIOLOGIA Coordenador - Luiz V. Décourt O artigo atual sobre Starling nos informa, com pormenores, acerca da vida e da atuação de um fisiologista cujos trabalhos experimentais exerceram grande influência no próprio campo do manu- seio de cardiopatas. Homem convicto do papel fundamental da pesquisa básica para o avanço da atividade clínica, exerceu constante pressão para que aquela busca se desenvolvesse. E isto em época na qual a fisio- logia ainda era superficialmente exercida na Inglaterra. Ao lado de conquistas em outros territórios orgânicos, interessam-nos, evidentemente, as obti- das no campo da cardiologia, com o estabelecimento de princípio morfofuncional básico do miocárdio. Quando, sintetizando o amplo conjunto de verificações anteriores, ele nos informou, há 70 anos, que this relation between the lenght of the heart fibre and its power of contraction I called �the law of the heart� estava, com razão, expressando um grande princípio fisiológico que atuava como lei. E um volumoso grupo de ilações nasceu do conhecimento dessa capacidade de auto-regulação heterométrica da fibra muscular. Implicações hemodinâmicas e clínicas que se mantiveram e que, até hoje, constituem aspectos fundamentais em cardiologia, mesmo que algo modificadas com o avanço de conhecimentos. Deve ser lembrado que uma das primeiras revistas especializadas sobre o aparelho circulató- rio, a chamada HEART, foi fundada pelo grande cardiologista Thomas Lewis, em 1909, em ato, sem dúvida, relacionado a seu estágio no Laboratório de Starling nos dois anos anteriores. No decorrer do tempo, características complementares foram sendo reconhecidas, abrangendo propriedades físicas do miocárdio, histometria ultramicroscópica do tecido e, mesmo, certas interações bioquímicas. Todos esses aspectos básicos e ulteriores vão expostos, com lógica e lucidez, pelo Professor Tucci, com a real autoridade de quem possui também experiência pessoal sobre o assunto. Luiz V. Décourt Coordenador Arq Bras Cardiol 58 (4): 295-302, 1992 296 Tucci PJF Ernest Henry Starling In the cardiovascular area, the busy clinician... wil probably remember something about Osler... If any of the world�s cardiovas- cular physiologists come to mind, it will probably be Ernest H. Starling, and the reasons are not far to seek. Starling, more than any of the others, was a clinician�s physialo- gist and had a considerable appreciation of the complexity of clinical problems. But, far more important, he supplied the theoretical framework for a practical understanding of cardiovascular function, compensated and decompensated6. ERNEST HENRY STARLING O CIENTISTA, O EDUCADOR, E A LEI FUNDAMENTAL DO CORAÇÃO PAULO J. F. TUCCI Botucatu, SP Faculdade de Medicina de Botucatu � UNESP. Pesquisador IA do CNPq. Correspondência: Paulo Tucci � Caixa Postal 527 � 18610 Botucatu, SP. Recebido para publicação 10/1/92 Aceito em 3/2/92 Mais velho dos sete filhos de uma famí- lia com recursos financeiro limitados, de fé re- ligiosa fundamentalista, ERNEST HENRY STARLING nasceu a 17 de abril de 1866. O pai, um advogado, era funcionário da Coroa na Ín- dia, e, embora tivesse contactos esporádicos com o filho, influenciou sua opção pela medici- na. Considera-se que as características de per- sonalidade de Starling se assemelhavam às da mãe, que o criou em Londres, com uma governanta canadense. As circunstancias que prevaleciam no sis- tema de educação da Inglaterra, na época da formação intelectual de Starling, tiveram forte influencia na sua postura posterior. Segundo Matthew Arnold 2: �It was a dangerous time for the nation... with a working class not educated at all, a middle class educated on the second plane, and the idea of science absent from the whole course and design of our education�. Tendo negligenciado suas institui- ções de ensino e de pesquisa por cerca de um século, a Gra-Bretanha estava, somente, ini- ciando o processo de repensar o ensino, e a edução vivia uma fase confusa. As centenári- as universidades inglesas, timidamente, come- çavam a implantar as diretrizes que hoje pre- valecem 8, e as deficiências eram muito gran- des. As mais expressivas (Oxford e Cambridge) dedicavam pouco interesse para a atividade científica em geral, em particular para ciên- cias biológicas e medicina, e exigiam confor- midade religiosa como um dos pré-requisitos. A London Uníversity, em 1859, havia sido a primeira a oficializar, sob oposição de Oxford e Cambridge, uma faculdade de ciências. Décadas mais tarde, as diretrizes educa- cionais inglesas ainda estavam se estabelecendo, e Starling, movido pela convicção que fundamen- tou a sua formação, e em coerência com seu pró- prio perfil profissional, engajou-se, fortemente, no esforço de implantar um novo direcionamento para a escola médica da Inglaterra. Depois de terminada a escola básica, es- tudou no King�s College, onde recebeu forma- ção clássica, que dedicava ênfase ao grego e latim, pouca atenção às línguas contemporâ- neas e nenhuma preocupação à ciência. Em 1882, com dezessete anos incompletos, Starling matriculou-se na London University, optando pelo Guy�s Hospital por influência de um tio professor. Diplomou-se em 1889. Ain- da estudante, durante as férias de verão de 1886, consciente da necessidade de melhorar seu alemão, fez estágio na Alemanha, Heidelberg, no laboratório de Kühne, presumivelmente, trabalhando em algum as- pecto da química da digestão. É considerado que o estágio na Alemanha exerceu influência marcada sobre Starling9, já que voltou entusi- Arq Bras Cardiol 58 (4): 295-302, 1992 297 Tucci PJF Ernest Henry Starling asmado com os fisiologistas alemães e, quando terminou seu treinamento clínico, estava deter- minado a se tornar um fisiologista, fato que, na época, estava longe de ser simples. Parece se- guro que um dos aspectos do pioneirismo ale- mão que mais sensibilizou Starling foi o fato que o sistema produzia clínicos com orientação fisiológica, ao contrário do sistema inglês, que tendia para a produção de clínicos empíricos. No obituário de Starling, seu companheiro de trabalho Charles Lovatt Evans9 deixou regis- trado: �His natural craving for exact knowledge on the one hand, and his early and growing bellef in the power with which physiological knowledge might be applied to the control and conquest of suffering on the other, attracted him to physiology while he was still a medical student. The idea that the fruits of mere observation had been gathered centuries ago, and that only experiment, properly controlled, could at once provide the key to the fascinating problems of physiology and the urgent ones of medicine, dawned early upon him.� Starling iniciou sua carreira acadêmica em 1887, como demonstrador de Fisiologia do Guy�s, e foi indicado para ser professor em 1890, ocupando a vaga que se criou com a morte pre- coce de Leonard Charles Wooldridge. Em fun- ção das deficiências do laboratório, iniciou tra- balho no University College em associação com William Maddock Bayliss, que se tornou seu cunhado e parceiro mais forte de trabalho, du- rante trinta anos. A dupla se completava, e o entendimento entre eles transcendia a parceria profissional3,9. Bayliss era metódico, gentil, ex- tremamente cuidadoso e deliberado; Starling era visionário, cheio de idéias, determinado, impaciente, em constante alerta mental. Em 1892 voltou para a Alemanha (Breslau), para trabalhar durante alguns meses com Heidenhain, e esteve no Instituto Pasteur, com Metchnikoff. No regresso, impressionado com o trabalho de Metchnikoff sobre fagocitose, tra- duziu suas conferências, para possibilitar o acesso a elas dos estudantes ingleses. Em 1897 Starling terminou a montagem do melhor la- boratório de fisiologia de Londres no Guy�s, mas em 1899 foi atraído para o University College; no mesmo ano, foi eleito Fellow da Royal Society. No University College idealizou e ba- talhou pela criação de um Instituto de Ciênci- as Médicas, que incluía Anatomia, Fisiologia, Farmacologia e uma biblioteca central. Aparen- temente, a proposta, como um todo, era muito precoce para a época, mas, em 1909, como re- sultado do prestígio e da tenacidade de Starling, foi inaugurado o Instituto de Fisiologia e, mais tarde, com fundos providos pela Fundação Rockefeller, foi implantado o Institute of Basic and Medical Sciences. Durante a primeira década dos anos 90, a atividade acadêmica de Starling foi, em parte, desviada do laboratório. Inicialmente, foi inten- samente envolvido por forte campanha antiviveccionista desenvolvida por uma corren- te liderada por Stephen W. B. Coleridge. O ob- jetivo dos antiviveccionistas era tornar mais rí- gidas as restrições de uma lei inglesa de 1876, que regulamentava o uso de animais em labo- ratórios. Starling e Bayliss foram acusados de terem procedido à dissecção de um cão em vi- gília, e, em 1903, Bayllis acabou sendo proces- sado. À inocentação de Bayliss seguiu-se acir- rada disputa, que culminou, em dezembro de 1906, com a composição de um comitê compos- to por 70 cientistas liderados por Starling, para se reunir com a Royal Comission on Vivisection, nomeada pela Coroa para estudar o assunto. Durante três dias Starling debateu a matéria no Parlamento, e a experimentação em animais continuou a ser permitida nos mes- mos termos anteriores. O testemunho de William Osler7 dimensionou a participação de Starling: �Starling�s evidence is A-1. He�s a crackerjack�. Nos três anos subseqüentes, Starling envolveu-se, intensamente, em políti- ca universitária, além de dedicar-se a viagens ao exterior, especialmente aos Estados Unidos, ministrando conferências sobre a produção de linfa e sobre mecanismos de controle químico. Logo após, as atribulações da política in- ternacional do início do século motivaram seu afastamento da universidade. Seu vigor e obs- tinação foram canalizados para a causa mun- dial. A admiração que dedicava à cultura germânica rapidamente reverteu, e engajou-se no exército, como capitão, durante a Primeira Guerra Mundial. Serviu durante algum tempo no Herbert Hospital, porém, logo em seguida, a Gra-Bretanha iniciou seus esforços em pesqui- sas de guerra e Starling foi indicado como Di- retor de Pesquisa em Millbank, dedicando-se aos estudos experimentais dos gases ofensivos. Seu convívio com os militares foi atribulado6,9. Esforçou-se, tenazmente, para a adoção pelos aliados do gás mostarda, que, posteriormente, foi utilizado pelos alemães. Sua impaciência e pouca ortodoxia criaram embaraços para a sua ação. Em 1916, a estratégia dos aliados con- feria um destaque especial à Grécia, e lá con- solidaram sua posição com a transferência de grande contingente francês e inglês 8. Starling foi promovido a tenente-coronel e transferido para Salonika. Sentindo o Arq Bras Cardiol 58 (4): 295-302, 1992 298 Tucci PJF Ernest Henry Starling pouco proveito de sua atividade nesta posição, e considerando sua maior contribuição como civil, solicitou dispensa em 1917. No mesmo ano, deu continuidade à sua participação pú- blica, tornando-se Chairman of the Special Commitee on Surgical Shock and Allied Conditions of the Medical Research Commitee (antecessor do Medical Research Council). Em 1918, tornou-se Chairman of the Royal Society�s Food Commitee e conselheiro do Ministry of Food. Durante este período, foi vi- gorosa sua participação no esforço de denun- ciar a fragilidade do ensino secundário inglês e de consolidar as ciências básicas, especial- mente a fisiologia. Em 1923 Starling aposentou-se, e foi indi- cado para a posição de Fourleton Research Pro- fessor of the Royal Society. Continuou a traba- lhar na University College com seu grupo de discípulos em pesquisa, desobrigado de encar- gos administrativos e didáticos. A situação de saúde de Starling, precocemen- te, foi fator de preocupação9. Em 1910, durante prática de alpinismo nas Dolomitas, manifestaram-se, pela primeira vez, sintomas que foram considerados como dependentes de in- suficiência cardíaca. Em 1920,em viagem com fi- nalidade acadêmica para a Índia, foi acometido de malária, e, logo após, foi submetido a hemicolectomia; supostamente, por obstrução neoplásica do colon. Após a cirurgia seu estado de saúde deteriorou lentamente e motivou, em 1927, sua decisão de fazer um cruzeiro pelas Índias Oci- dentais, na expectativa de se recuperar. A bordo do Ariguani aportou em Barbados, Trinidad, Port Limon e Cristobal. Próximo da Jamaica Starling faleceu subitamente. Foi sepultado em Kingston e no atestado de óbito ficou registrada Insuficiên- cia Cardíaca aguda como causa de morte. Atividade científica O interesse de Starling em Fisiologia era geral, mas o que o atraia, particularmente, era a busca dos fundamentos físicos e químicos dos processos de regulação. Sua participação no primeiro de seus trabalhos9 foi como colabo- rador de Frederick Gowland Hopkins, profes- sor de bioquímica de Cambridge, que mais tar- de receberia um Prêmio Nobel. Foi o relato de um caso de intoxicação por fósforo. A publica- ção de sua primeira produção efetiva data de 1891, em co-autoria com Bayliss, na qual ana- lisou a eletrofisiologia cardíaca4. No período inicial de sua atividade cien- tífica, Starling deu maior ênfase ao equilíbrio dos líquidos e às secreções digestivas. Heidenhain havia proposto um mecanismo de ativação linfática, que excluía a filtração na formação da linfa. No retorno de seu estágio com Heidenhain Starling retomou a análise da cinética tissular dos líquidos. Durante cinco anos dedicou-se a este assunto e, progressivamente, foi verificando 5, 17, 18, 25-31 que: 1) a formação da linfa depende da permeabilidade da parede dos vasos e da pressão intracapilar; 2) a pressão osmótica das soluções colóides, às quais os capilares são re- lativamente impermeáveis, é um fator determinante do deslocamento dos líquidos; 3) a pressão osmótica das proteínas plasmáticas e a pressão hidrostática reinante nos capilares cons- tituem as forças que regulam o sentido do deslo- camento dos líquidos. Este conjunto de princípi- os permite entender o denominado �princípio de Starling�**, que rege o equilíbrio dos líquidos. Não passou desapercebido à Starling que, nos rins, o equilíbrio dos líquidos resultava em função de filtração específica. Ele foi o primei- ro a conferir aos rins a função filtradora. Mais tarde, caracterizou que a maioria dos solutos plasmáticos era, simplesmente, filtrada nos glomérulos; boa parte dos componentes do fil- trado era reabsorvida (água, cloro, bicarbona- to, glicose), enquanto outras substâncias (uréia e sulfatos) eram secretadas. Deveria existir algum fator (pituitrina) capaz de con- trolar a eliminação de água. Em fase intermediária de sua atividade de investigação Starling dedicou-se ao estu- do das funções motora e de secreção do apa- relho digestivo. Sua participação no estudo da função hormonal foi notável. Na época, prevalecia o conceito de Pavlov de que a ati- vidade de secreção era subordinada ao contro- le nervoso. Contrariando o saber estabele- cido, Starling e Bayliss descreveram a exis- tência, e as vias de ativação humoral, da secretina pancreática.Formularam o concei- to de �chemical messengers� e, pela primeira vez, utilizaram a expressão hormônio. Depois de intenso descrédito a respeito da nova pro- posta, Pavlov admitiu a sua validade, aparen- ** Os fatores determinantes das correntes de água e das subs- tâncias hidrossolúveis nos tecidos podem ser considerados se- gundo a equaçãp: R = Pi + ¶t - (Pt + ¶i), onde,: R = força re- sultante da ação dos diversos componentes, determinante do sentido e da intensidade do movimento da água e soluto; Pi = pressão hidrostática no intravascular; ¶ t = pressão coloidosmótica no líquido do insterstício tissular; P t = pressão tissular; ¶i = pressão coloidosmótica do intravascular. Arq Bras Cardiol 58 (4): 295-302, 1992 299 Tucci PJF Ernest Henry Starling temente9, nos seguintes termos: �Of course they are right. It is clear that we did not take out an exclusive patent for the discovery of truth�. Em outra seqüência de trabalhos, condu- zidos juntamente com Knowlton, Starling an- tecipou, em anos, a existência da insulina6: �So far our results go, they seem to indicate that the pancreas normally produces a hormone which circulates in the blood, and the presence of which is necessary in order that the tissue cells may be able to assimilate and utilize the sugar of the blood�. Em 1912, Starling iniciou seu segundo período de grande produtividade em pesquisa. Foi durante esta última fase que ele se dedi- cou, prioritariamente, à função cardíaca e ar- ticulou sua concepção sobre o desempenho car- díaco em condições normais e patológicas. O conjunto de suas publicações representa, ain- da hoje, a maior contribuição pessoal para o entendimento da função mecânica do coração. Contribuição para a fisiologia cardíaca - a lei fundamental do coração Os trabalhos sobre o equilíbrio dos líqui- dos deram renome internacional a Starling, possibilitando-lhe desfrutar de convívio com a comunidade científica de vanguarda. Duran- te conferências (Arris and Gales Lectures) pro- feridas neste intercâmbio, abordou aspectos da função cardíaca não relacionados, propriamen- te, com o equilíbrio dos líquidos. Delas resul- taram, em 1897, a publicação de três textos32. É surpreendente como o primeiro deles (On the Compensatory Mechanisms of the Heart) antecipa as �leis do coração� de 12 anos, em re- lação à época que Starling começou a padro- nizar a preparação coração-pulmão: �... we can increase the resistance to be overcome by the heart to three or four times the normal amount, without altering in any way the quantity of blood expelled in each beat, ... within very wide limits the output of the heart is independent of the resistance to output... increase diastolic distension exercises a strong augmenting effect on the ventricular con- traction�. Mais tarde ele verificaria que estas características eram preservadas no coração denervado e, portanto, eram expressões de uma propriedade intrínseca. Considerando as informações existentes so- bre as influências do estiramento diastólico sobre a capacidade de contração sistólica ventricular, Guz13 propôs que as �relações de Frank-Starling� passassem a ser chamadas �relações de Hales-Haller-Müller-Ludwig-Roy- Howell- Donaldson-Frank-Starling�. Hales, em 1740, es- tudando a influência da musculatura abdominal sobre a pressão arterial de éguas, teria sido o primeiro a fazer referência à associação entre retorno venoso e força de contração. Posterior- mente, de alguma forma, os autores subseqüen- tes fizeram menção às relações entre enchimento diastólico-desempenho sistólico. O trabalho de Otto Frank10, desenvolvido em coração de sapo e publicado em 1895, inquestionavelmente, in- fluenciou a decisão de Starling de voltar a ana- lisar a questão uma década depois. Em 1912, em associação com Franklin P. Knowlton, Starling divulgou seu primeiro tra- balho resultante do estudo da preparação coraçaopulmão16. Este texto sobre as leis do coração confirmou as proposições antecipadas por Starling: a) o débito cardíaco, em larga margem, independe da resistência ao esvazi- amento ventricular e b) dentro de limites, o débito cardíaco é proporcional ao retorno ve- noso. Foi analisado que, se o retorno venoso fosse aumentado em excesso, ocorria edema pulmonar, e a preparação deteriorava rapida- mente. Trabalho publicado em 1914, em colabo- ração com Sydney W. Patterson23, divulgava pela primeira vez as conhecidas curvas de Starling (fig 1), mostrando que a pressão de en- chimento e o débito cardíaco se elevam, em con- junção, até um limite, além do qual uma eleva- ção adicional do retorno venoso reduz a ejeção Fig. 1 - Reprodução de �Curvas de Starling� obtidas na preparação coração-pulmão. Diversamente da norma atual, a variável independente (a pressão do átrio direito, expressa em mmH 2 O) é projetada no eixo das ordenadas e a variável dependente (débito cardíaco, expresso em cm3 x 10) é apresentada no eixo das abcissas. Notar que em quatro das oito preparações a ejeção ventricular se reduz quando a pressão do átrio direito se leeva acima de 100 mmH 2 O. Arq Bras Cardiol 58 (4): 295-302, 1992 300 Tucci PJF Ernest Henry Starling ventricular. Este foi o início da controvertida proposição de Insuficiência Cardíaca credita- da a Starling, embora ele nunca a tenha for- malizado como tal. Entre os textos que tratam das leis do co- ração, o de maior repercussão (The Regulation of the Heart Beat)23 resultou de trabalho colaborativo anglo-germanico (Piper era ale- mão) e incluiu, pela primeira vez, uma hipóte- se que foi possível de ser confirmada mais tar- de, com o advento da microscopia eletrônica: �... the mechanical energy set free on passage from the resting to the contracted state depends on the area of chemically active surface, i.e., on the lenght of the muscle fibers�. Em meados da dé- cada de 1960, valendo-se da microscopia eletrô- nica, Gordon, Huxley e Julian11 elaboraram a �teoria dos miofilamentos deslizantes�, que per- mitiu compor a conceituarão atual da contra- ção miocárdica. As avaliações histométricas possibilitaram analisar o comprimento do sarcômero, dos filamentos grossos e dos filamentos finos. Com base nas medidas ultramicroscópicas, Gordon, Huxley e Julian puderam considerar que o desempenho sistólico do miocárdio depende do estiramento diastólico porque o comprimento em repouso regula a dis- posição espacial dos filamentos de actina e de miosina, e determina o número possível de pon- tos de interação química entre estas proteínas (fig 2). Fica caracterizado que, em termos do sa- ber do momento, estes conceitos eqüivalem à interpretação proposta pelo grupo de Starling 50 anos antes. A concepção morfofuncional de Gordon, Huxley e Julian a respeito da contração miocárdica abrange as fases ascendente e des- cendente da �curva de Frank-Starling�: estira- mentos do sarcômero até 2,1, µµµµµ são acompanha- dos de elevação da capacidade em gerar força; estando os sarcômeros estirados entre 2,1 2,3, µµµµµ não ocorre modificação na capacidade em gerar força; e estiramentos superiores a 2,3, µµµµµ resul- tam em deterioração da capacidade contrátil. A fase descendente das �relações de FrankStarling� já havia sido objeto de controvér- sias antes mesmo da publicação de Gordon, Huxley e Julian. Kats15, embasado em deduções exclusivamente teóricas, havia se manifestado em oposição explícita à possibilidade de a fase descendente ser compatível com a vida. Demons- trações posteriores19,21, 35 indicaram que, no cora- ção �in situ�, não há a fase descendente da ca- pacidade cardíaca em gerar força. Esta circunstancia é conseqüência do fato de, no miocárdio contrátil, �in vitro�12 e �in vivo�33, os sarcômeros não serem estirados além de 2,3 µµµµµ. Dilatações ventriculares subseqüentes ao estiramento ótimo dos sarcômeros se devem a estiramentos do tecido conjuntivo e não mais dos sarcômeros. Não obstante esta verificação, que desvincula a fase descendente de estiramentos dos sarcômeros, foi reafirmado 19 que dilatações ventriculares excessivas resultam em compro- metimento da capacidade de ejeção ventricular. A fase descendente do desempenho cardí- aco, provavelmente, se enquadra nas circuns- tâncias recentemente designadas como desa- justes da pós-carga20, 24. As expansões ventri- culares que se estabelecem após estiramentos ótimos dos sarcômeros são desprovidas de efei- to aprimorador da contração; não obstante, em função da lei de Laplace (força = pressão x raio/espessura da parede), as dilatações da câ- mara implicam em inevitável acréscimo na força parietal a ser desenvolvida durante a contração e, portanto, em redução do encurta- mento. No final da década de 70, a concepção morfofuncional proposta por Gordon, Huxley e Julian passou a ser contestada 14 como o mecanis- mo subcelular único das relações de Frank-Starling. Fig. 2 - Relações estiramento-tensão interpretadas à luz de dados verificados com amicroscopia eletrônica. De A a E estão representados: 1) acima - a disposição espacial dos filamentos grossos e dos filamentos finos, conforme o sarcômero é estirado; 2) abaixo - os comprimentos dos sarcômeros (em micra, abscissa) e as respectivas capacidades contráteis (em percentagem da força máxima, ordenada). Durante a contração, cada filamento fino interage com o hemifilamento grosso homolateral. Em A a interposição dos miofilamentos contralaterais impede a interação das proteínas contráteis. Com o estiramento do sarcômero, a interposição dos miofilamentos é atenuada até C (2,1 micra) e se estabelece a interação máxima entre os filamentos finos e grossos. Estiramentos de C a D (2,3 micra) não interferem na interação entre os miofilamentos. A partir do comprimento alcançado em D, novos estiramentos do sarcômero implicam em redução progressiva do número de interaçõs entre os filamentos grossos e finos e, portanto, em redução da capacidade contrátil. Arq Bras Cardiol 58 (4): 295-302, 1992 301 Tucci PJF Ernest Henry Starling A �teoria dos miofilamentos deslizantes� tem forte implicação com o conceito de indivi- dualidade no mecanismo de Frank-Starling e da contratilidade miocárdica. O conceito de in- dividualidade destas propriedades já vigorava anteriormente; a teoria dos miofilamentos deslizantes apenas ofereceu elementos para sua consolidação. Segundo esta concepção, existem duas propriedades miocárdicas autô- nomas, reguladas por fundamentos indepen- dentes: 1) o mecanismo de Frank-Starling, que teria como fundamento fatores físicos (princi- palmente, a disposição espacial dos filamentos grossos e finos) e 2) a contratilidade miocárdica, que seria regulada por fatores quí- micos (teor intracelular de cálcio e capacida- de APTásica da miosina). Como integrante da proposta há, implícito, que o estiramento miocárdico não interefe nos fenômenos quími- cos subcelulares. Demonstrações posteriores, em amostras isoladas de miocárdio22 e em pre- parações de ventrículo intacto34 (fig 3), eviden- ciaram que as circunstancias são mais comple- xas. Os estiramentos miocárdicos interferem no teor de cálcio que se liga às proteínas contráteis1, isto é, o mecanismo de FrankStarling interfere na contratilidade miocárdica e, portanto, inclui componentes semelhantes às manobras inotrópicas tradicionalmente imputadas às catecolaminas ou à ministração de cálcio e de digitálicos. Estas últimas demonstrações abrem a perspectiva de ser necessário rever, em outras bases, os fundamentos de análise da função ventricular, tornando atual a matéria que foi suscitada por Otto Frank há um século atrás e que vinculou, com tanta ênfase, o nome de Ernest Henry Starling à Cardiologia. REFERÊNCIAS 1. Allen DG, Kurihara S – The effects of muscle lenght on intracellular cal- cium transients in mammalian cardiac muscle. J Physiol (Lond), 1982; 327: 79-94. 2. 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As setas indicam o momento em que o volume de líquido (4ml) foi introduzido (↓) ou retirado (↑) subitamente do ventrículo esquerdo (volume original: 2,5 ml). Notar que a capcidade contrátil varia em dois tempos: simultaneamente à modificação do volume ventricular e no trnacorrer dos minutos que se seguem. A modificação tempo-dependente da capacidade contrátil ocorre sem variação do volume ventricular, isto é, após a dilatação súbita há estímulo da contratilidade miocárdica e, inversamente, a retração do volume ventricular é seguida de depressão da contratilidade. Arq Bras Cardiol 58 (4): 295-302, 1992 302 Tucci PJF Ernest Henry Starling 29. Starling EH – On the asserted effect of ligature of the portal lymphathics on the result of intravascular injection of peptone. J Physiol, 1895; 19: 15-7. 30. Starling EH – On the absorption of fluids from the connective tissue spaces. J Physiol, 1896; l9: 312-26. 31. 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