Gabriella de Oliveira Nunes Carneiro As Mulheres Da República Democrática Do Congo No Combate A Violência E A Construção Da Igualdade De Gênero Num Cenário De Conflito Marília 2025 Gabriella de Oliveira Nunes Carneiro As Mulheres Da República Democrática Do Congo No Combate A Violência E A Construção Da Igualdade De Gênero Num Cenário De Conflito Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) apresentado ao Conselho de Curso de Relações Internacionais, da Faculdade de Filosofia e Ciências, da Universidade Estadual Paulista – UNESP - Câmpus de Marília, para obtenção do título de Bacharel em Relações Internacionais Orientador: Prof. Dr. Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos Marília 2025 Carneiro, Gabriella de Oliveira Nunes. As Mulheres Da República Democrática Do Congo No Combate A Violência E A Construção Da Igualdade De Gênero Num Cenário de Conflito / Gabriella de Oliveira Nunes Carneiro. -- Marília, 2025 69 p.: fotos, mapas Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado – Relações Internacionais) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Filosofia e Ciências, Marília. Orientador: Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos 1. Mulheres. República Democrática do Congo. 3. MONUC/MONUSCO. 4. Feminismo africano. 5. Direito das mulheres. I. Título. Gabriella de Oliveira Nunes Carneiro As Mulheres Da República Democrática Do Congo No Combate A Violência E A Construção Da Igualdade De Gênero Num Cenário De Conflito Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) apresentado ao Conselho de Curso de Relações Internacionais da Faculdade de Filosofia e Ciências, da Universidade Estadual Paulista – UNESP - Câmpus de Marília, para obtenção do título de Bacharel em Relações Internacionais. Banca Examinadora Profº. Drº. Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos UNESP – Câmpus de Marília Orientador Me. Danielle Gonçalves Passos do Nascimento UNESP – Câmpus de Marília Mestranda. Janaína de Oliveira Souza UFS – Sergipe Marília, 11 de fevereiro de 2025. AGRADECIMENTOS Presto meus agradecimentos aos meus pais que sempre trabalharam arduamente para que, tanto eu quanto meus irmãos, não fôssemos vítimas da violência do sistema que oprime e mata os jovens das periferias de São Paulo, onde crescemos. Obrigada por sempre acreditarem que através dos estudos nós poderíamos romper com essa lógica opressora e por terem nos auxiliado nessa trajetória pela busca de universidades de alto nível, mesmo com as complicações de um ensino defasado. E, se hoje eu escrevo essas palavras, é a representação que o trabalho de vocês deu frutos, apesar de ser a primeira a adentrar numa universidade pública, sou a terceira a se formar dos filhos e a quarta da família. Gostaria de, igualmente, agradecer às minhas irmãs e irmãos, que também prestaram todo apoio emocional, por sempre me ajudarem nos meus estudos e por terem amenizado a dor de estar longe da família. Por causa de todo nosso companheirismo, rompemos com as estatísticas da violência da periferia de onde nós nascemos e crescemos e, que se hoje eu estou numa das melhores universidades do país, também é fruto da ajuda que vocês me deram durante toda a fase escolar, do cursinho e na própria faculdade. E, obrigada por toda maluquice e diversão que vocês sempre me proporcionam, afinal “Só Tijolos” é a representação da nossa união e dos melhores e mais aleatórios desentendimentos, que gerou boas risadas mesmo longe de todos. Também gostaria de agradecer minhas colegas, as grandes “Senhoras por Marília”, por terem tornado essa trajetória mais amena, por proporcionarem os melhores rolês culinários nesta cidade e por terem arrancado boas risadas, fofocas e por todo apoio nas aulas e na faculdade como um todo, vocês são as melhores. Por fim, gostaria de agradecer ao meu orientador, por todo apoio acadêmico e emocional nas horas de inseguranças durante a elaboração desse trabalho. Obrigada por todo apoio técnico e pela compreensão nesse momento tão importante da minha formação. Além disso, gostaria de agradecer pelas aulas de Teoria das Relações Internacionais, pois foi através dessa matéria, que é ministrada pelo senhor, que conheci a perspectiva de feminismo e gênero e que me gerou insights para aquilo que me atrai nos estudos deste curso. Ademais, o senhor foi fundamental para me incentivar a escrever sobre um assunto que recebe pouca atenção na área, principalmente pelo seu teor crítico sobre as estruturas existentes. RESUMO Este trabalho realizou uma análise aprofundada e multifacetada da situação das mulheres e meninas na República Democrática do Congo - RDC, abordando o contexto histórico, os desafios contemporâneos e as lutas contínuas pela igualdade de gênero. A pesquisa revelou que a condição das mulheres congolesas é profundamente afetada por estruturas patriarcais enraizadas, agravadas por décadas de conflitos, instabilidade política e legados coloniais persistentes. A análise histórica demonstrou como o período colonial, marcado pela brutalidade e exploração, estabeleceu as bases para muitas das desigualdades de gênero observadas hoje. Buscando entender melhor a situação das mulheres e meninas congolesas no conflito, fez-se um exame detalhado da missão MONUC/MONUSCO, que revelou uma abordagem limitada e muitas vezes inadequada às questões de gênero. Apesar da existência da agenda “Mulheres Paz e Segurança”, a missão frequentemente falhou em abordar de maneira abrangente as necessidades e preocupações específicas das mulheres congolesas. Além disso, o trabalho enfatizou o papel crucial do movimento feminista africano na luta pelos direitos das mulheres no país, contrariando a narrativa comum de que o feminismo é uma importação ocidental. A pesquisa demonstrou que a resistência feminina na África, e especificamente na região, tem raízes profundas e históricas. Dessa forma, a pesquisa utiliza uma abordagem histórica e normativa, analisando documentos oficiais, resoluções da ONU, relatórios de organizações internacionais e estudos acadêmicos. A metodologia inclui a análise de dados sobre violência de gênero, participação política, saúde e educação das mulheres na RDC, além de entrevistas e relatos de vítimas e ativistas. O trabalho conclui que, embora haja avanços nas políticas de igualdade de gênero no país, a realidade das mulheres e meninas ainda é marcada por violência e discriminação. Assim, a luta das mulheres congolesas é contínua e essencial para a construção de uma sociedade mais justa e equitativa. Palavras–chave: Mulheres; República Democrática do Congo; MONUC/MONUSCO; Feminismo africano; Direitos das Mulheres. ABSTRACT This work conducted an in-depth and multifaceted analysis of the situation of women and girls in the Democratic Republic of Congo (DRC), addressing the historical context, contemporary challenges, and ongoing struggles for gender equality. The research revealed that the condition of Congolese women is deeply affected by entrenched patriarchal structures, exacerbated by decades of conflict, political instability, and persistent colonial legacies. The historical analysis demonstrated how the colonial period, marked by brutality and exploitation, laid the foundations for many of the gender inequalities observed today. Seeking to better understand the situation of Congolese women and girls in the conflict, a detailed examination of the MONUC/MONUSCO mission was conducted, revealing a limited and often inadequate approach to gender issues. Despite the existence of the WPS agenda, the mission frequently failed to comprehensively address the specific needs and concerns of Congolese women. Furthermore, the work emphasized the crucial role of the African feminist movement in the fight for women's rights in the DRC. Contrary to the common narrative that feminism is a Western import, the research demonstrated that female resistance in Africa, and specifically in the DRC, has deep and historical roots. Thus, the research employs a historical and normative approach, analyzing official documents, UN resolutions, reports from international organizations, and academic studies. The methodology includes the analysis of data on gender-based violence, political participation, health, and education of women in the DRC, as well as interviews and accounts from victims and activists. The work concludes that, although there have been advances in gender equality policies in the DRC, the reality for women and girls is still marked by violence and discrimination. Therefore, the struggle of Congolese women is ongoing and essential for building a more just and equitable society. Keywords: Women; Democratic Republic of Congo; MONUC/MONUSCO; African feminism; Women's rights. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1 – Mapa do território atual da República Democrática do Congo 17 Figura 2 – Índice de violência distribuídos no território da República Democrática do Congo de 1989-2023 Figura 3 – Imagem de Andrée Blouin Figura 4 – Imagem de Wassis Hortense Léonis Abo Figura 5 – Retrato da decapitação de membro dos nativos durante a colônia belga no território congolês. 31 41 42 43 Gráfico 1 – 5 Palavras da agenda Mulheres, Paz e Segurança por ano nas decisões do Conselho de Segurança relacionados a República Democrática do Congo 27 Gráfico 2 – Resoluções do Conselho de Segurança da MONUC/MONUSCO que fazem menção ao termo “mulheres” e “sexo/sexual” Gráfico 3 – IDH em comparação 1990 – 2022 – República Democrática do Congo 29 55 Gráfico 4 – GDI em comparação 1990 – 2022 – República Democrática do Congo Gráfico 5 – GII em comparação 1990 – 2022 – República Democrática do Congo 56 56 Quadro 1 – Artigos da Constituição da República Democrática do Congo (2006) que dizem respeito aos direitos das mulheres 48 Quadro 2 – Protocolo À Carta Africana Dos Direitos Do Homem E Dos Povos, Relativos Aos Direitos Das Mulheres Em África 51 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS AIDS Síndrome da Imunodeficiência Adquirida AFF Fórum Feminista Africano COFAS Comitê de Orientação da Cadeia Agrícola e de Segurança Alimentar CAFCO Quadro Permanente de Consulta da Mulher Congolesa CAFED Coletivo de Associações de Mulheres para o Desenvolvimento COFEMI Coletivo de Mulheres Ituri CCBKA Câmara de Comércio Brasil - Kinshasa e África CONAFED Conselho Nacional de Mulheres para o Desenvolvimento CS Conselho de Segurança ETC Etcetera FOFE Fórum Feminista FOMI Fórum de Mães Ituri GDI Índice de Desenvolvimento de Gênero GII Índice de Desigualdade de Gênero HIV Síndrome da Imunodeficiência Adquirida HRW Human Rights Watch IDH Índice de Desenvolvimento Humano ITPS Instituto Tricontinental de Pesquisa Social MGFC Ministério de Gênero, Família e Criança MONUC Missão das Nações Unidas na República Democrática do Congo (1999-2010) MONUSCO Missão das Nações Unidas na República Democrática do Congo (2010-2024) MPS Mulheres, Paz e Segurança ONU Organização das Nações Unidas OP Operações de Paz PIB Produto Interno Bruto PN Prática Nociva PNUD Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento R2CONGO Rede Congo 2 para o Género e o Desenvolvimento RAFEJE Rede de Associações de Mulheres Advogadas do Leste da RDC RDC República Democrática do Congo REFAM Rede de Mulheres Embaixadoras RENAFEM Rede Nacional de Mulheres nas Minas RENAFER Rede Nacional de Mulheres Rurais RFDP Rede de Mulheres para o Desenvolvimento e a Paz SG Secretário Geral SNVBG Estratégia Nacional de Combate à Violência de Gênero SSR&DR Saúde Sexual e Reprodutiva e Direitos Reprodutivos SUWE Synergie Ukingo Wetu TP Mediadoras de Territórios pela Paz UA União Africana UEFA União para a Emancipação das Mulheres Indígenas UFRGS Universidade Federal do Rio Grande do Sul VBG Violência Baseada no Gênero VCMR Violência Contra Mulheres e Raparigas VSBG Violência Sexual e Baseada no Género VSG Violência Sexual e de Género WILPF Women’s International League for Peace and Freedom WWPS Sinergia das Mulheres pela Paz e Segurança WWW World Wide Web SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 13 2 CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA 16 3 A AGENDA MPS NA MONUC/MONUSCO E A SITUAÇÃO DAS MULHERES NO CONFLITO 19 3.1 A agenda MPS 21 3.2 A agenda MPS na MONUC/MONUSCO 24 3.3 A situação das mulheres no conflito 30 4 A LUTA FEMINISTA E SEU PROTAGONISMO NA CONSTRUÇÃO DO DIREITO DAS MULHERES NA RDC 38 4.1 A luta feminista africana e o caso da RDC 38 4.2 Da colonização, independência e democracia: a luta das mulheres congolesas 42 4.3 Os direitos das mulheres na RDC 45 4.4 Os resultados 54 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 62 REFERÊNCIAS 64 13 1. INTRODUÇÃO A perspectiva de feminismo e gênero nas Relações Internacionais (RI) é um estudo, em sua maioria, crítico e que ainda permanece à margem da disciplina. Apesar de desde meados do século XX o movimento pelos direitos das mulheres terem engatilhado nas principais pautas, além do lançamento de diversas declarações de planos de ações (ONU Mulheres, s/d, s.p.). E, também no campo dos estudos da disciplina, ainda há diversas barreiras que precisam ser enfrentadas para entender as reais estruturas que impedem a igualdade de gênero no mundo. Um marco importante para a luta das mulheres no âmbito de segurança foi a implementação da agenda “Mulheres, Paz e Segurança” (MPS) pelo Conselho de Segurança (CS), através da Resolução 1325. O aspecto que faz a agenda ser tão relevante é sua capacidade de ser significante tanto para a segurança internacional quanto para a nacional. Um dos principais pontos que contribuem para isso, é a pressão nos países membros para a construção e aplicação de um Plano de Ação, a fim de incluir as mulheres em todos os âmbitos da segurança e em cargos de liderança tanto na política quanto na sociedade. Apesar disso, existe um abismo entre a formulação de políticas nesse âmbito e sua aplicação, principalmente porque a paridade de gênero não se trata somente da construção de políticas públicas no campo da segurança, trata-se na verdade de uma organização conjunta entre outras instâncias da sociedade. Tal perspectiva é importante para entender o posicionamento que adotamos neste trabalho, já que a luta pelas estruturas hegemônicas masculinas não se trata somente dos homens estarem presentes nos principais setores que compõem os mais altos cargos de prestígio políticos e sociais, mas de toda uma estrutura cultural, social e histórica sobre o que é ser homem, sobretudo no campo da segurança. Tais aspectos dizem muito dos próprios estudos de Relações Internacionais, o qual os principais atores e estruturas possuem a imagem do homem associada a elas. Quando pensamos em guerra, política, economia, entre outros, sempre a imagem masculina está associada a elas. Além disso, quando estudamos as principais escolas teóricas de RI, a grande maioria dos formuladores dos estudos são, sobretudo, homens brancos e héteros, como Hans Morgenthau, Carl V. Clausewitz, Kenneth Waltz, Robert Keohane, Joseph Nye, Robert Cox ou Immanuel Wallerstein, sendo todos exemplos concretos dessa dinâmica. Dessa forma, a construção da história, do conhecimento e das estruturas socioculturais estão associadas à imagem masculina. O que evidencia isso são os grandes “heróis”, 14 guerreiros, revolucionários, políticos, líderes. Entretanto, em um mesmo cenário pouco se fala sobre mulheres guerreiras, revolucionárias, políticas e líderes nas histórias e movimentos sociais importantes. Apesar desse fato ser bastante discutido pelos estudos de feminismo e gênero, nossa proposta não é reforçar as evidências dessas estruturas especificamente, mas mostrar as mulheres como protagonistas em busca da igualdade de gênero tanto no âmbito formal das instituições estatais e sociais, quanto no informal. O presente trabalho, portanto, busca elucidar a luta das mulheres congolesas pela igualdade de gênero num cenário de conflito, sobretudo no período da missão MONUC/MONUSCO. O nosso objetivo geral é entender a situação que as mulheres e meninas foram inseridas na República Democrática do Congo, dando enfoque no período da missão da MONUC/MONUSCO (1999-2024). Entretanto, para entendermos as estruturas históricas que cercam a construção do “sistema de sexo/gênero”, proposto por Rubin (2017) e que será apresentado mais adiante, fez-se necessário voltar ao período da colonização até chegar o período da missão do CS. Analisar essas estruturas é indispensável para compreender a situação que as mulheres e meninas na RDC foram inseridas e porque a desigualdade e a violência sobre elas são persistentes. Nesse mesmo sentido, é importante evidenciar que um dos posicionamentos que assumimos é que, apesar das mulheres e meninas serem vítimas dessas estruturas, principalmente do aumento da violência que elas sofrem durante o conflito, não se busca estabelecer a imagem de vítimas sobre elas. Mesmo que esse ponto seja colocado em evidência, porque faz parte da situação que elas estão inseridas, uma das contribuições deste estudo é associar a imagem das mulheres como protagonistas da luta pela construção de seus direitos e de ações sociais que visam a igualdade de gênero não se tratando apenas do caso da RDC, mas das mulheres da África como um todo. Ainda nessa perspectiva é necessário apresentar a posição basilar de nossos argumentos, que é o feminismo africano e as mulheres como atuantes diretas da busca pela igualdade de gênero. Com isso, o movimento feminista africano, possui diversas vertentes e posicionamentos a respeito desse movimento, mas o que é relevante para o nosso estudo é evidenciar as mulheres como protagonistas de suas lutas e história. Dessa forma, as estruturas que as mulheres africanas foram inseridas são complexas e devem ser analisadas de maneira diferente, já que em cada cultura, local e sociedade, as estruturas que favorecem e mantêm os homens no poder são diferentes. Apesar disso, o movimento no continente expõe diversas estruturas que contribuem para a manutenção e opressão das mulheres africanas, na qual, 15 conforme o que é proposto por Minna Salami, elas lutam pelo fim da estrutura patriarcal que “usa a lei, a tradição, a força, o ritual, os costumes, a educação, a linguagem, o trabalho (etc.) para manter as mulheres governadas por homens na vida pública e privada” (Salami, 2012, s.p.). Contudo, há outras estruturas que as mulheres precisam superar para se alcançar a igualdade de gênero, tais como o sentido que a colonização e o imperialismo deram a raça e da dependência dos países a estes e, tais questões, também estão relacionadas ao subdesenvolvimento do continente, que foi explorado por esses atores (Salami, 2012, s.p.). Dessarte, é defendido que a injustiça contínua do Ocidente em relação à África por meio de intervenção militar, exploração de recursos, propaganda de ONGs, dívidas injustificáveis e práticas comerciais e outras práticas neocoloniais dos famintos por poder tem efeitos devastadores na capacidade dos estados africanos de lidar com fatores como HIV/Aids, saúde sexual e materna das mulheres e desenvolvimento de infraestrutura. Talvez o pior de tudo seja que o subdesenvolvimento da África impediu o desenvolvimento da consciência por meio de sistemas educacionais adequados (Salami, 2012, s.p.). Portanto, essas informações são essenciais, sobretudo para entender como o domínio masculino ocorre na região, e as ferramentas que são utilizadas para a manutenção dessas estruturas tradicionais. Entretanto, o objetivo do movimento feminista expõe que o objetivo substancial é permitir que a tradição se adapte as novas necessidades da sociedade. Ou seja, Minna Salami apresenta que as mulheres africanas foram silenciadas por muito tempo sobre os crimes do patriarcado tradicional, como a instituição abusiva e desumanizante da poligamia patriarcal, abuso de viúvas, mutilação genital, caça às bruxas e a falta de acesso das mulheres à propriedade e ao poder na sociedade tradicional. Dito isso, o pensamento feminista africano não busca abandonar a tradição, pois a tradição também abriga uma preciosa memória cultural e um rico legado de conhecimento e espiritualidade. Em vez disso, o objetivo é permitir que a tradição se adapte aos seus tempos para que, em vez de estagnar, possa enriquecer a sociedade, como os costumes e a cultura devem fazer (Salami, 2012, s.p.). Estabelecer esse entendimento de alguns aspectos da luta das mulheres na África é indispensável para esse estudo, pois a partir dele foi possível compreender algumas dinâmicas tanto das estruturas sociais da RDC, bem como a maneira limitada pela qual a missão do CS deu a agenda MPS e a luta das mulheres congolesas. Dessa maneira, o presente trabalho busca contribuir para a condensação de informações sobre a temática de gênero e conflito em âmbito geral, já que ela é pulverizada e pouco debatida nas RI. Ademais, o estudo contribui para o debate sobre as estruturas que continuam a oprimir as mulheres, sobretudo através das ações rasas de organizações internacionais, como o CS, e instituições locais que, apesar de 16 proporem mudanças, limitam suas ações práticas para se alcançar a igualdade de gênero e, da mesma forma, restringem-se em análises superficiais e incompletas dessas estruturas. Como metodologia, adotou-se a análise documental, como resoluções da ONU, relatórios de organizações internacionais e documentos governamentais da RDC. Esses documentos fornecem dados sobre a situação das mulheres e meninas na RDC, as políticas implementadas e os resultados dessas políticas. A pesquisa inclui uma revisão de literatura sobre feminismo, gênero e os impactos dos conflitos armados nas mulheres. Por fim, esse estudo se trata da análise de caso da RDC, na qual, o objetivo é evidenciar a luta das mulheres congolesas para se alcançar a igualdade de gênero num cenário de conflito. Portanto, para isso, será apresentada uma breve contextualização histórica, posteriormente, abordou-se a agenda MPS na MONUC/MONUSCO e a situação das mulheres no conflito, logo após evidenciamos a luta das feministas e seu protagonismo na construção do direito das mulheres na RDC e, por fim, fazemos algumas considerações finais. 2. CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA A República Democrática do Congo, localizada no centro do continente africano e, atualmente, faz fronteira com nove países, possui uma história conturbada, na qual, os atuais desafios advêm de um passado cheio de violência e de predação tanto da terra quanto do povo. Dessa forma, para entendermos os aspectos gerais do cenário atual da RDC, faz-se necessário compreender os processos históricos da região. Sendo assim, neste capítulo abordaremos, sumariamente, sobre alguns períodos importantes, como o período colonial, o movimento de independência, a era Mobutu e a Primeira e Segunda Guerra do Congo. 17 Figura 1 – Território atual da República Democrática do Congo. Fonte: Google Maps, 2024. Com a Conferência de Berlim (1885), que tinha por objetivo a partilha da África e a “regulamentação” da livre circulação comercial na região da Bacia do Congo, deu-se início a colonização e exploração massiva do local. Com isso, a região do Congo é reconhecida como soberania do rei belga Leopoldo II e passa a se chamar “Estado Livre do Congo”. Durante o período de 1885 a 1908, a região era intitulada como uma propriedade do rei Leopoldo II, que foi responsável pela exploração massiva de borracha e marfim, além da crueldade sofrida pelos nativos, onde muitos deles foram mortos e tiveram membros decepados (ITPS, 2024). Conforme o dossiê apresentado pelo instituto Instituto Tricontinental de Pesquisa Social (ITPS): Com seu modo de vida anterior sendo atacado, milhões de africanos no Congo, em um amplo espectro de grupos étnicos, suportaram um estado de violência contínuo, impulsionado pelas demandas por borracha e outras commodities necessárias para abastecer a Revolução Industrial (ITPS, 2024, p. 9). Como consequência das ações truculentas do rei Leopoldo II, a fim de esconder a barbárie que ocorria na região, o Estado Livre do Congo passa para a posse do Estado belga (1908-1960) e se torna uma colônia intitulada de “Congo Belga”. Apesar disso, nada mudou, o que se conclui é que os belgas foram responsáveis por “um dos maiores massacres da história, realizado sobre a população nativa que se opunha à dominação europeia e pelos brutais métodos de trabalho” (Vicentini, 2010, p. 7). Com o crescimento das revoltas internas no século XX e a criação do partido nacionalista chefiado por Patrice Lumumba, o país se 18 torna independente em 1960 (Vicentini, 2010, p. 7). Com isso, “Joseph Kasavubu [se torna] presidente e Lumumba primeiro-ministro, mas as tendências regionalistas e conservadoras do primeiro e centralistas e progressistas do segundo levaram à guerra civil” (Vicentini, 2010, p. 7). Nesse mesmo período, o mundo estava vivenciando a Guerra Fria (1947-1991), na qual, muitos países eram importantes para as questões estratégicas das ideologias políticas e econômicas de ambos os lados. Com o aumento instabilidade que a RDC vinha passando, principalmente após o assassinato de Lumumba (1961), e com a conjuntura internacional da época, em 1965 o Coronel Mobutu Sese Seko tomou o poder. Diante disso, conforme Víctor Daltoé dos Anjos e Elaine Senise Barbosa (2000), Mobutu se manteve no poder por muitos anos, na qual, governava a partir da “ideologia nacionalista baseada no culto à sua liderança - o mobutismo - e, contraditóriamente, o culto a rivalidade entre regiões e etnias para impedir a organização de uma força nacional de oposição” (Anjos; Barbosa, 2020, s.p.). Isso ficou tão evidente que em 1971 Mobutu renomeou a RDC para Zaire e, sua principal base de apoio para manter a estabilidade interna advinha do Ocidente. De acordo com Anjos e Barbosa, durante a Guerra Fria os atores externos selecionaram governos africanos aliados, não importando em dar sustentação a tiranos de todo o calibre, desde que a ‘estabilidade’ e a ‘paz’ fossem mantidas nas áreas consideradas estratégicas por razões econômicas e políticas. É sobre esse pano de fundo que se desenrola o drama congolês, com o governo cleptocrático de Mobutu Sese Seko passando da fase fantasia da união mubutista para a repressão explícita e brutal a qualquer forma de oposição política. O regime do Zaire logo entraria para a lista de sistemáticos violadores dos direitos humanos (Anjos; Barbosa, 2020, s.p.). Com o fim da Guerra Fria, Mobutu, que “garantiu ao Ocidente um aliado no governo do maior país da África Central” (Anjos; Barbosa, 2020, s.p.), perdeu sua principal base de apoio, que culminou no aumento da instabilidade interna. Além disso, parte das vulnerabilidades foram agravadas pelos países ao entorno, e, a exemplo disso, temos a Primeira e a Segunda Guerra do Congo. Conforme Vicentini, o principal opositor político ao Coronel Mobutu era Laurent Kabila que recebia apoio dos ruandeses. Dessa forma, em 1994, em Ruanda e Burundi, ocorreu o genocídio durante os confrontos entre hutus e tutsis, o que acabou sendo o estopim para a eclosão de um conflito no Congo. Isto porque quando os assassinatos contra os tutsis acabaram, milhares de hutus fugiram para o país vizinho – principalmente na região de Kivu -, incluindo aqueles pertencentes à antiga milícia popular interahamwe, que participaram do massacre. Assim, quando os tutsis voltaram ao poder em Ruanda, entendia-se que era necessário mobilizar-se contra seus inimigos, e foi deflagrada a Primeira Guerra 19 do Congo, que envolveu todos os países que tinham populações tutsis e hutus (Vicentini, 2010, p. 8). O principal objetivo da Primeira Guerra do Congo era retirar Mobutu do poder, uma ditadura que perdurava desde 1965. Então, em 19971, Lauriete Kabil, ascende ao poder, mas embora tenha havido entusiasmo com a sua chegada, alguns erros estratégicos e promessas não-cumpridas aos tutsis minaram as bases de seu governo. Então, para demonstrar poder, Kabila expulsou as tropas ruandesas e ugandenses que se encontravam na região para proteger os tutsis. Assim, teve início a Segunda Guerra do Congo, confronto que envolveu os participantes do anterior (que lutavam ao lado dos rebeldes), e mais o Zimbábue, Chade, Sudão, Líbia e Namíbia (Vicentini, 2010, p. 8). É a partir da conjuntura da Segunda Guerra do Congo (1998-2003) que iniciamos nossa análise. Isso porque, nosso recorte é sobre a última missão de paz da ONU no país, MONUC (1999-2010) /MONUSCO (2010-2024). Com isso, podemos citar duas fases da operação de paz na região, na primeira (1999-2010), o objetivo era a retirada das tropas estrangeiras da RDC, a recuperação da integridade territorial, o estabelecimento da ajuda humanitária e a proteção dos direitos humanos e o processo de democratização do país (Resolução 1234, 1999). Na segunda fase (2010-2024), mediante a um aumento da instabilidade interna, a missão é autorizada a utilizar o uso da força para alcançar o objetivo do mandato. Dessa forma, as principais metas seriam assegurar a integridade territorial e a independência política, além da proteção civil e ações para diminuir a violação dos direitos humanos (Resolução 1952, 2010). A partir disso, é válido ressaltar que nosso objetivo aqui não é entender como os conflitos internos aconteceram e quais são as dinâmicas encontradas, mas sim, como eles afetaram as mulheres e meninas da região. Portanto, no próximo tópico será apresentada uma análise sobre as resoluções do CS da MONUC/MONUSCO, para compreendermos a luta das mulheres na construção de seus direitos e na busca de sua seguridade. 3 A AGENDA MPS NA MONUC/MONUSCO E A SITUAÇÃO DAS MULHERES NO CONFLITO Após essa breve exposição sobre o contexto histórico da região, neste capítulo, continuaremos a falar sobre o conflito na RDC, no entanto, o foco a partir de agora é sobre como a guerra afetou as mulheres e as meninas na região. Sabe-se que desde a independência o país não presenciou um longo período de estabilidade e que as questões que envolvem as 1 Neste mesmo ano o país voltou a se chamar República Democrática do Congo. 20 mulheres e meninas da região é muito mais complexa e mais antiga do que o escopo delimitado neste trabalho. Apesar disso, a dinâmica em que elas estão inseridas nos dias de hoje é um reflexo da própria construção social, histórica e cultural dessa sociedade. Essas construções são importantes à medida que, conforme Gayle Rubin (2017), “toda sociedade tem formas sistemáticas de tratar do sexo, do gênero e dos bebês, ou podem ser ‘estratificadas de acordo com o gênero’” (Rubin, 2017, p. 20). Nesse aspecto, a perspectiva de feminismo e gênero é uma ferramenta basilar na análise, pois através dela é possível perceber alguns pontos que estão envoltos nos dados examinados. Além disso, tal argumento é indispensável, já que ao observar como o conflito vem atingindo as mulheres e meninas da região, pode-se entender como a sociedade traduz o que Rubin chama de “sistema de sexo/gênero” (Rubin, 2017). O “sistema de sexo/gênero” é determinante para esse trabalho pois, conforme Gayle Rubin, há conceitos que ajudam a descrever, por exemplo, a opressão das mulheres, e essa opressão é uma parte específica da vida social (Rubin, 2017, p. 10). Portanto, o “sistema de sexo/gênero” é a maneira como a sociedade se organiza e transforma a biologia sexual em papéis e comportamentos sociais, o que pode levar à opressão de mulheres e minorias sexuais (Rubin, 1975, p. 10). Esses arranjos sociais, por sua vez, determinam como as pessoas devem se comportar e se identificar com base em seu sexo biológico (Rubin, 2017, p. 10). Dessa forma, levando em consideração que a perspectiva de feminismo e gênero não separa a teoria da prática, e que a prática implica na própria teoria e vice-versa, ao analisarmos o que está ocorrendo com as mulheres da RDC, temos uma dimensão sobre como o “sistema de sexo/gênero” funciona no local. Isso porque, assume-se o mesmo posicionamento apresentado por Rubin (2017), que se em qualquer lugar “a fome é a fome, mas o que conta como alimento é algo culturalmente definido” (Rubin, 2017, p. 18), logo, o “sistema de sexo/ gênero” também se enquadra nisso. Ou seja, O sexo é o sexo, mas o que conta como sexo é algo culturalmente definido e adquirido. Toda sociedade também tem um sistema sexo/gênero – um conjunto de disposições pelas quais a matéria prima biológica do sexo e da procriação humana é moldada pela intervenção humana, social, e satisfeita de uma maneira convencional, por mais bizarras que sejam algumas dessas convenções (Rubin, 2017, p. 18). Nesse aspecto, para compreender essas dinâmicas e sobre como o conflito está impactando as mulheres e meninas da região, seguiremos os seguintes passos: primeiro, será apresentada a agenda MPS, como ela se formou, qual a sua importância e como ela afeta na 21 elaboração de políticas voltadas para o direito das mulheres e meninas na RDC; segundo, entender e expor uma das principais críticas sobre a agenda MPS; e por fim, mostrar como a missão lidou com a agenda e como a situação das mulheres na região foi abordada. 3.1 A agenda MPS A agenda MPS foi lançada oficialmente pela Resolução 1325 do CS no ano de 2000, no entanto, a discussão sobre o direito das mulheres, e dos direitos humanos como um todo, já vinham sendo estudadas e debatidas desde meados do século XX. Além disso, os estudos sobre feminismo e gênero também são datados do mesmo período. Conforme Tamya Rabelo (2015), essa época trazia o “conceito de ‘segurança humana’ [que] emerge como um elemento chave das organizações internacionais, a exemplo da ONU” (Rabelo, 2015, p. 7). É a partir dessa conjuntura que a agenda MPS é formada e que, posteriormente, irá guiar a formulação de princípios e a construção dos direitos das mulheres, sobretudo na área de segurança, pelos países membros da ONU e do CS. A agenda, atualmente, possui dez principais resoluções que a compõem, na qual, elas também são responsáveis por estabelecerem os pilares essenciais para o seu funcionamento. Portanto, a agenda busca a promoção e inclusão da perspectiva de gênero em todas as fases dos processos de pacificação e possui quatro pilares para a sua instauração, bem como garantir a participação plena e igualitária das mulheres em todas as etapas do processo de paz e proteger os direitos das mulheres em situação de conflito. Com isso, os principais objetivos são aumentar a participação delas nos processos de paz e na segurança, protegê-las das violências generalizadas no conflito, promover a igualdade de gênero e empoderamento feminino (ONU Mulheres, s/d, s.p.; Brasil, 2021, s.p.). Um dos pontos de extrema relevância sobre a agenda MPS é sua capacidade de influenciar a produção de políticas de estado sobre o direito das mulheres, na qual, os Estados membros são pressionados para integrar as perspectivas sensíveis ao gênero nas políticas de segurança e defesa e, sobretudo, a criação de programas voltados para a proteção das mulheres e meninas em situação de conflito. A título de exemplo geral, tem-se a elaboração do Plano de Ações dos Estados membros, que se trata do estabelecimento de medidas a serem tomadas e pontos para serem trabalhados/discutidos para que o país alcance as pautas estabelecidas pela agenda MPS. Sobre o caso da RDC, iremos expor isso mais à frente. Ademais, uma das políticas que devem ser trabalhadas é sobre a participação mais ativa das 22 mulheres nos processos de pacificação e no empoderamento econômico e social, objetivando a construção de estruturas sólidas para uma paz duradoura. Tais medidas, têm que ser desenvolvidas tanto pelos países que não estão envolvidos em um conflito quanto aqueles que estão. Entretanto, nos casos em que há um conflito ocorrendo e que o CS esteja envolvido, as missões estabelecidas são agentes importantes para uma pressão direta sobre o Estado em questão para a promoção da agenda MPS juntamente com o governo local, como é o caso da RDC. Portanto, são esses pontos que tentaremos identificar nas resoluções da missão da MONUC/MONUSCO e, no próximo capítulo, entender como a RDC vem formulando essas políticas e como elas têm impactado as mulheres e meninas da região. A exemplo de como a agenda MPS influenciou a construção das políticas relacionadas às mulheres na RDC, temos os documentos sobre a “Estratégia Nacional de Combate à Violência de Gênero” (RDC, 2009b). Nele, há citações diretas sobre a agenda MPS como base de argumento para as ações de mitigação sobre os aspectos negativos do impacto da guerra sobre as mulheres. As resoluções da agenda MPS, que são expressas no texto como algo que diz respeito a RDC, são as 1325 (2000), 1820 (2008) e a 1888 (2009), na qual são usadas como fundamentos para a elaboração de uma estratégia nacional na produção de normas sobre a matéria. Em resposta ao desejo de ter mais em conta as necessidades e aspirações específicas das mulheres afetadas por conflitos e no período pós-conflito, foram adotadas duas resoluções do Conselho de Segurança desde 2000 que dizem respeito à RDC: a Resolução 1325, que visa a proteção das mulheres e a sua participação nos esforços de paz durante e após os conflitos, A Resolução 1820, adotada em junho de 2008, exige medidas eficazes para prevenir e punir atos de violência sexual, a fim de contribuir para a manutenção da paz e da segurança na RDC, e a Resolução 1888, adotada em 30 de setembro de 2009, que protege mulheres e crianças da violência sexual durante conflitos (RDC, 2009b, p. 5-6, tradução nossa).2 É certo que a citação da agenda MPS ocorre, sobretudo, nos documentos sobre o planejamento estratégico do país, mas, verificou-se que o Decreto nº 09/38, sobre a “criação, organização e funcionamento da Agência Nacional de Luta contra a Violência Contra as 2 No original: Pour répondre au souci de mieux prendre en compte les besoins et aspirations spécifiques des femmes affectées par les conflits et en période post-conflit, deux résolutions du Conseil de sécurité ont été adoptées depuis l’an 2000 et concerne la RDC : La résolution 1325 qui vise la protection des femmes et leur implication dans les efforts de paix pendant et après les conflits, la Résolution 1820 adoptée en Juin 2008 exige des mesures efficaces pour prévenir et réprimer les actes de violences sexuelles en vue de contribuer au maintien de la paix et de la 6 sécurité en RDC, et la Résolution 1888 adoptée le 30 Septembre 2009, protégeant les femmes et enfants des violences sexuelles durant les conflits (RDC, 2009b, p. 5-6). 23 Mulheres e as Jovens e meninas” (RDC, 2009a), apresentou o termo “Nações Unidas” duas vezes: Tendo em conta a Portaria Lei nº 85-040, de 6 de outubro de 1985, que ratifica a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, adotada em 18 de dezembro de 1979 pela Assembleia Geral das Nações Unidas; Tendo em conta a Lei n.º 87-010, de 1 de Agosto de 1987, relativa ao Código da Família; Tendo em conta a Portaria-Lei n.º 90/048, de 22 de Agosto de 1990, que ratifica a Convenção sobre os Direitos da Criança, adoptada em 20 de Novembro de 1989 pela Assembleia Geral das Nações Unidas (RDC, 2009a, p. 1, tradução nossa).3 É importante pontuar que não é só a agenda MPS que impacta a formulação dos direitos das mulheres na RDC, mas também a União Africana (UA). A UA, desde o estabelecimento do “Protocolo à Carta dos Direito do Homem e dos Povos Relativos aos Direitos da Mulher em África” e da “Agenda 2063”, que também leva a agenda MPS como base para a elaboração do direito das mulheres em África, tem influenciado a construção e o estabelecimento do direito das mulheres na RDC. Isso ocorre, porque desde 2002 a RDC se tornou membro da UA e em 2009 passou a ser signatária da carta dos direitos das mulheres. Uma informação relevante sobre isso, é que a RDC não fez nenhuma reserva sobre as normas apresentadas, ou seja, acordando com todos os termos propostos (UA, 2023). Com isso, a RDC comprometeu-se a seguir as normas elaboradas sem nenhum tipo de resistência, e, no capítulo IV elas serão abordadas. Assim, o trecho acima, que será retomado no próximo capítulo, mostra-nos como a agenda MPS e a agenda 2063 influenciaram na elaboração dos direitos das mulheres e meninas na RDC. Entretanto, sabe-se que a própria agenda MPS é criticada, principalmente sobre a relevância e a abordagem que, no caso em questão, o CS e a própria ONU dão a ela. Os desencontros entre o que é proposto e o que é construído (a teoria e a prática) são evidentes, principalmente, sobre a prioridade que é dada aos pilares anteriormente citados e com a construção da imagem das mulheres, tanto nas resoluções da própria agenda quanto aquelas que estão relacionadas às missões do CS, foram estabelecidas em relação a temática da defesa e da segurança. Sobre o primeiro aspecto, uma autora que contribui para o debate é a já citada Tamya Rabelo (2015), na qual, ela apresenta que 3 No original: Vu l'Ordonnance Loi n° 85-040 du 06 octobre 1985 portant ratification de la convention relative à l'élimination de toutes les formes de discrimination à l'égard des femmes adoptée le 18 décembre 1979 par l'Assemble Générale des Nations Unies; Vu la Loi n° 87-010 du l er août 1987 portant Code de la famille; Vu l'Ordonnance-loi n° 90/048 du 22 août 1990 portant ratification de la convention relative aux droits de l'enfant adoptée le 20 novembre 1989 par l'Assemblée Générale des Nations Unies (RDC, 2009a, p. 1). 24 há uma instrumentalização dos conceitos ‘gênero’ e ‘mulheres’ de tal modo que as resoluções [da agenda MPS] abordam com mais intensidade os aspectos que estão relacionados às pressões feitas à Organização, dentre os quais: a vulnerabilidade das mulheres e meninas e a necessidade de garantir sua proteção. Argumenta-se que há o uso instrumental dos conceitos para impor limites à discussão sobre gênero e mulher na agenda de segurança internacional. Assim, uma lógica discursiva é construída a partir das Resoluções, que direciona entidades e pessoas a focar no aspecto de vitimização em detrimento de outros aspectos da agenda, como a sensibilização e participação (Rabelo, 2015, p. 4) Nessa perspectiva, é notório o erro estrutural de como a temática da própria agenda é trabalhada principalmente na área da segurança internacional e como ela é tratada pelo próprio CS dentro das missões de paz, que será apresentada quando abordarmos a análise feita sobre a missão MONUC/MONUSCO. A imagem predominante das mulheres como vítimas dos conflitos e o discurso de que elas precisam ser salvas dos males da guerra é amplamente divulgado. Apesar da proposta da agenda MPS ser ampliar a concepção da importância da articulação das mulheres nos processos de pacificação e no campus da defesa e da segurança, isso não está sendo feito como deveria. Segundo Rabelo, a predominância da definição clássica de segurança nos estudos da área, em grande medida, obscureceu o papel nas mulheres. De fato, a mulher sempre participou do sistema de segurança, porém na maior parte das vezes às margens das funções tidas como principais. [...] A relação entre masculinidade e guerra implicam que os homens tenham seus feitos registrados e a participação feminina seja negligenciada (Rabelo, 2015, p. 5) Levando em consideração a argumentação de Rabelo, quando analisamos as resoluções da MONUC/MONUSCO (1999-2024), percebeu-se como essa dinâmica é evidente e, além disso, como o próprio CS delimitou o espaço de debate sobre a situação das mulheres e da implementação da agenda MPS. O governo da RDC, desde o início da missão, vem trabalhando em conjunto com a operação para findar o conflito e estabilizar a região, que advém de um processo histórico e social bastante conturbado. Atualmente, o principal desafio visto na região é o estabelecimento da democracia e do fortalecimento das instituições estatais. Na primeira década da missão, como já mencionado, buscava-se estabelecer o cessar-fogo, a desmobilização dos atores envolvidos, estabelecimento de um acordo de paz e a proteção dos civis. Apesar disso, nosso objetivo não será mostrar como a missão foi trabalhando cada ponto desses, mas evidenciar como as mulheres e meninas foram afetadas pelos conflitos. Contudo, antes de expormos essas informações, faz-se necessário trazer à tona como a missão trabalhou a agenda MPS e a situação das mulheres nesse período. 3.2 A agenda MPS na MONUC/MONUSCO 25 Ao explorar as resoluções que fazem parte da operação MONUC (1999-2010), constatou-se que as mulheres e meninas só começaram a ser citadas a partir da resolução 1291 (2000). Pode-se justificar tal ação a partir de duas conclusões, a primeira seria que somente no início do século XXI o CS passa a voltar sua atenção para como a guerra impacta as mulheres e meninas, expressa pela resolução 1325 (2000). E, nesse quesito, destaca-se dois pontos, o primeiro é que as resoluções que antecederam a 1291 (2000) não fazem menção ao temor “mulheres” nem “meninas”, a única questão que pode estar relacionada a elas, indiretamente, são as denúncias das constantes violações dos direitos humanos. E, o segundo, é que a resolução 1291 (2000) não apresenta as reais condições que as mulheres e meninas estavam vivenciando, já que a citação delas no documento ocorreu em breves linhas. Conforme a resolução, o objetivo era “facilitar a assistência humanitária e o monitoramento dos direitos humanos, com atenção especial aos grupos vulneráveis, incluindo mulheres, crianças e crianças-soldados desmobilizadas [...]”4 (Resolução 1291, 2000, p. 4, tradução nossa). A segunda conclusão, que está associada a falta da perspectiva de como a guerra estava afetando as mulheres e meninas na RDC, e a que mais se adequa ao nosso argumento, é que o CS, e ONU como um todo, não dá a devida atenção para a situação das mulheres e das meninas no conflito. Isso pode ser evidenciado a partir da interpretação que a resolução 1291 (2000) foi produzida antes mesmo da resolução 1325 (2000) e, como já mencionado, ela não sonda o real contexto que as mulheres foram introduzidas no conflito e os efeitos dessas ações. Com isso, antes do estabelecimento da agenda MPS, conclui-se que desde o início da missão na RDC, as mulheres e meninas não eram vistas, muito menos consultadas e incluídas no processo de pacificação da região, nem mesmo postas como ponto de pauta na resolução do conflito. Isso se torna preocupante, porque elas, bem como as crianças, são as mais afetadas no conflito, principalmente, porque são utilizadas como armas de guerra. Nessa perspectiva, e levando em consideração os princípios da agenda MPS, essa conjuntura de descaso poderia ser superada a partir da fundação da Resolução 1325 (2000), porém, não foi o que ocorreu. Mesmo após o estabelecimento da agenda, ao pesquisar o termo “mulher/mulheres” nas resoluções da MONUC, não foi perceptível a real condição que as mulheres e meninas vivenciavam durante o conflito, seguindo o padrão da primeira resolução que citou elas. Com isso, notou-se que durante a primeira década as resoluções produzidas 4 No original: to facilitate humanitarian assistance and human rights monitoring, with particular attention to vulnerable groups including women, children and demobilized child soldiers [...] (Resolução 1291, 2000, p. 4). 26 pelo CS sobre a missão pouco enfatizavam esse debate, bem como não abria margem para questionar a própria efetividade da implementação da agenda. Ademais, o descaso do CS sobre o assunto é evidente, porém pouco problematizado e, muitas das vezes, ignorado. Nesse quesito, a agenda é tratada como uma pauta simplista, na qual, durante as resoluções a situação das mulheres são tratadas em poucas linhas, sem dados e, muito menos, sem debate de como elas estão sendo afetadas. Esse posicionamento é um problema estrutural não só ligado ao CS, mas daquilo que já é perceptível em diversas áreas masculinizadas, como na política, na área de segurança e defesa, no setor social e privado. A questão das mulheres, em quase toda sua totalidade, é tratada como um assunto privado, que não pode ser trazido a público. E, essa perspectiva é reproduzida pelo próprio CS, já que eles evitam ao máximo trazer o termo “mulher/mulheres” nas resoluções analisadas. É imperativo pontuar que essa questão está tão enraizada que a própria agenda MPS é pouco citada nas resoluções e, conforme as dinâmicas apresentadas por Tamya Rabelo (2015), os pilares dela são trabalhados de forma desigual, onde se sobressaiu os aspectos de “proteção”, já que a maioria das ações estavam relacionadas com a condenação a violência sexual sobre as mulheres e meninas. Logo, para lidarmos com o défice construído pelo próprio CS, fez-se necessário recorrer a outras fontes para entender como o conflito afetou as mulheres da região. Assim, no gráfico 1 serão apresentados os dados fornecidos pelo Painel MPS do CS, mostrando-nos como as resoluções do CS sobre a RDC fazem menções aos principais termos relacionados com a agenda MPS e com o termo “mulher/mulheres”. 27 Gráfico 1 – 5 Palavras da agenda Mulheres, Paz e Segurança por ano nas decisões do Conselho de Segurança relacionados a República Democrática do Congo Fonte: Painel women, peace and securyti, 2024. O gráfico apresenta 5 palavras principais (“mulher/mulheres”, sexo/sexual, gênero, menina/menino e resolução 1325) das decisões do CS por ano sobre a agenda MPS, e, no caso em questão, aquelas relacionadas às resoluções da missão na RDC. Através dos dados podemos concluir que as palavras menos encontradas nas resoluções são “menina/menino”, “resolução 1325” e “gênero”, e as mais citadas são “sexo/sexual” e “mulher/mulheres”. É importante não só ver o gráfico com uma simples fonte de dados, mas como uma fonte de informações que dizem muito sobre a própria ação do CS sobre as pautas da agenda MPS. Dessa maneira, ao mencionar poucas vezes a agenda MPS e as questões de gênero, mostra-nos a pouca relevância que o CS vem dando para essa temática na hora de reportar a missão. Foi inferido que quando a agenda MPS é mencionada nas resoluções, ela é colocada como uma forma vaga e simplista. Levando em consideração que uma das funções das resoluções do CS é definir tarefas específicas das missões de paz, ao ter tal atitude, eles estão, na verdade, demonstrando para a própria missão e para o governo local, a pouca relevância que a temática possui no próprio órgão. Assim, isso implica diretamente na própria percepção 28 do que é substancial para o estabelecimento da paz na região e as mulheres e meninas não fazem parte do que é indispensável. Como já mencionado anteriormente, as mulheres são, em sua maioria, apresentadas apenas como vítimas dos conflitos, na qual, a imagem delas são vinculadas a esse “status” a fim de gerar uma comoção pública sobre os conflitos, além de reforçar o “sistema de sexo/gênero”. Parte dessa associação é criada pelos próprios veículos oficiais que reportam as missões de paz, reforçando o estereótipo das mulheres como seres frágeis que devem ser protegidas. Essa questão pode ser discutida a partir de dois pontos principais: o primeiro, de que elas são de fato vítimas das maiores barbaridades e violações de seus direitos, e, o segundo, é que mediante a essa imagem de fragilidade associada a elas, acabam por descredibilizar sua capacidade de ser uma atuante nas diversas instâncias da construção da paz, sobretudo, em cargos de liderança. O artigo “A Participação das Mulheres nas Operações de Paz da ONU: uma análise da MONUC/MONUSCO a partir da perspectiva de gênero” (Aguilar et al., 2023), expõe que apesar das mulheres serem vítimas dos conflitos, inclusive na RDC, elas também são atuantes na operação, mesmo que isso não seja amplamente divulgado, nem mesmo associado a imagem delas. Conforme a análise, o papel das mulheres nas Operações de Paz (OPs) ocorre, majoritariamente, a nível comunitário e raramente são conhecidos. Ou seja, eles destacam que Os estereótipos que cercam as mulheres acabam por esconder sua verdadeira contribuição para a sociedade internacional e, na temática em questão, para as OPs. Quando nós falamos de mulheres nos conflitos, intrinsecamente, a imagem de vítima está associada. Apesar de sofrerem e serem alvos de agressão e violência, o papel delas não se restringe a este (Aguilar et al., 2023, p. 121). Dessa forma, ao relacionarmos os dados do gráfico acima com os argumentos de Rabelo (2015) e Aguilar (et al., 2023), chega-se à dedução de uma lógica implícita que será discutida a seguir. Assim como os dados do Painel sobre MPS do CS, percebeu-se que os dois termos mais citados nas resoluções são “sexo/sexual” e “mulheres”, onde raramente o primeiro estava desvinculado das mulheres e crianças. E, o gráfico 2 evidencia essa informação. 29 Gráfico 2 – Resoluções do Conselho de Segurança da MONUC/MONUSCO que fazem menção ao termo “mulheres” e “sexo/sexual” Fonte: elaboração própria. Através do gráfico 2, foi observado que o termo “sexo/sexual” era acompanhado, principalmente, com as palavras “violência”, “exploração” e “abuso” e, direcionavam-se, essencialmente, as mulheres e crianças. Conforme Rabelo, isso está relacionado com a associação do termo “mulheres” aos aspectos de proteção, na qual, “uma lógica discursiva é construída a partir das Resoluções, que direcionam entidades e pessoas a focar no aspecto de vitimização em detrimento de outros aspectos da agenda [MPS]” (2015, p. 4). Tal perspectiva, como demonstrou Aguilar (et al., 2023), acaba atrapalhando a implementação da imagem das mulheres como agentes essenciais para a resolução dos conflitos. Apesar de existir dentro da operação pessoas que são competentes para implementar a perspectiva de gênero e dos objetivos da agenda MPS, isso não basta para superar a maneira que o conflito afeta as mulheres e meninas da região, que será discutido posteriormente. Isso porque, a principal hipótese é que a maior parte desses obstáculos são reforçados pelo próprio CS, que trata a agenda como um tópico simplista e, indiretamente, acaba por transmitir que a temática possui pouca relevância para se alcançar o objetivo da missão. Um argumento que 30 pode comprovar tal hipótese, é a falta de informações sobre a situação das mulheres nas próprias resoluções tanto do CS quanto dos relatórios da operação. Dessa forma, um dos empecilhos que surge durante a análise é encontrar informações sobre como as mulheres foram afetadas pela guerra durante 1999-2024, já que as resoluções são superficiais quanto a esse ponto. O que é perceptível nas resoluções, são os discursos feitos pelo CS sobre alguns pontos relacionados às mulheres, mas não expõem, efetivamente, como elas foram afetadas. Com isso, as citações do termo “mulher/mulheres” estão relacionadas, majoritariamente, a quatro pontos nas resoluções da MONUC/MONUSCO: 1. Participação eleitoral: enfatizam a necessidade de garantir a participação plena e efetiva das mulheres nos processos eleitorais e na consolidação da democracia; 2. Violência e proteção: a maior parte das resoluções destacam a preocupação com a violência sexual e de gênero contra mulheres e crianças, exigindo que grupos armados cessem essas práticas; 3. Diálogo político: algumas citam a promoção de diálogo político inclusivo, envolvendo grupo de mulheres para garantir uma representação equitativa; 4. Reformas e Justiça: mencionam a necessidade de investigar e julgar crimes contra mulheres, incluindo violência sexual e de implementar programas de reformas que incluam a proteção das mulheres. Apesar disso, as resoluções não dispõem de dados sobre as violências sofridas tanto pelas mulheres quanto pelas crianças, bem como, sobre nenhum outro aspecto ligado a elas. Dessa maneira, ao recorrer a outras fontes, a fim de compreender a situação das mulheres no período do conflito, percebeu-se que havia diversos outros aspectos que não foram tratados pelas resoluções da MONUC/MONUSCO (1999-2024). Como já citado, as resoluções não expunham nenhum tipo de dado referente às questões que envolviam as mulheres, no entanto, ao recorrer a fontes alternativas, algumas delas da própria ONU, encontramos dados sobre questões econômicas, sociais e políticas relacionadas a elas. Com isso, a partir de agora será apresentada, sumariamente, a situação que as mulheres se encontravam durante o período do conflito e, no próximo capítulo, será evidenciado como ocorreu a evolução e construção dos direitos delas por meio de políticas implantadas ao longo dos anos. 3.3 A situação das mulheres no conflito 31 O Programa de Dados de Conflito de Uppsala apresenta os índices de violência distribuídos pela RDC de 1989-2023: Figura 2 – Índice de violência distribuídos no território da República Democrática do Congo de 1989-2023 Fonte: Programa de Dados de Conflito de Uppsala, 2023. A imagem acima nos mostra a distribuição da violência generalizada na região, mas ela não faz distinção sobre quais tipos de violência se trata, muito menos como elas afetam a população civil e, ainda menos, as mulheres. A produção de dados gerais sobre a violência do Estado e dos grupos conflitantes são colocados como dados substanciais para os estudos sobre segurança internacional. Essa perspectiva segue, na verdade, com a lógica de centrar tanto o conflito quanto a resolução dele apenas no Estado e nos grupos conflitantes, onde todo o resto é colocado em segundo plano e como dispensáveis para a paz. A grande maioria das resoluções produzidas, dos processos e acordos de paz sempre colocam em evidência esses atores, ignorando aqueles que são os mais afetados pela guerra e, até mesmo, aqueles que trabalham no âmbito informal para acabar com o conflito. E, um dos grupos que são submetidos a essas condições são as mulheres. A falta de atenção que as mulheres recebem, assim como a agenda MPS, pelo próprio CS nos mostra o que é considerado importante numa missão: aqueles que produzem a violência generalizada durante um conflito e a própria violência. Sendo assim, para 32 conseguirmos dar voz às mulheres e denunciar a falta de ações efetivas pelo CS para implementar a perspectiva de gênero no conflito na RDC, buscou-se fontes alternativas para isso. Para compreender as diversas camadas do impacto do conflito sobre as mulheres, filtramos nossas buscas em cinco pontos importantes: social, econômico, político, sobre a saúde e o direito. Nesse aspecto, alguns desses pontos só foram expostos de forma indireta pelas resoluções da MONUC/MONUSCO, tais como vulnerabilidade das mulheres e crianças na guerra, demonstrado pelo vago trecho já citado da resolução 1291 (2000), e sobre o dano da saúde delas com o aumento da taxa de infecção pelo HIV/AIDS, como no caso das breves citação nas resoluções 1332 (2000), 1341 (2001) e 1355 (2001). Contudo, há diversos pontos que não foram trabalhados, principalmente sobre como todos esses cinco aspectos estão relacionados entre si, pertencendo a uma dinâmica causal das estruturas da guerra e das condições sociais. Com isso, o principal ponto de debate, inclusive aqueles citados nas resoluções, é sobre a violência sexual que as mulheres e meninas estavam e estão inseridas, no entanto, esse ponto está entrelaçado com todos os outros aspectos mencionados. Com isso, assim como Rabelo (2015) expõe que o tema que recebe mais enfoque na agenda MPS é o da proteção, ao se verificar as ações do CS, notou-se que as mulheres são tratadas apenas como vítimas da violência sexual, reforçando a visão rasa que eles têm sobre como o conflito as atinge, ignorando todos os outros aspectos que acentuam a violência sexual. É sabido que a violência sexual existe também em tempos de paz, e isso está relacionado com aquilo que Rubin (2017) chamou de “sistema de sexo/gênero”, no entanto, na guerra, a violência sexual, que também está ligada a essa estrutura social e cultural, é mais acentuada. Mas o que leva a acentuação da violência sexual e por que o CS da tanta importância nesse aspecto que envolve sobretudo as mulheres? A posição que assumimos é que a violência sexual é ampliada pela dinâmica de diversas estruturas que também foram afetadas pelo conflito, como o setor econômico, social, de saúde, do direito e da segurança. Apesar da violência sexual ser utilizada como uma tática, essa não é a única forma de violação que ocorre na guerra. Essa colocação é importante à medida que entendemos que o CS trata a violência sexual como um problema gerado pelo conflito, contudo, ele não surge com a guerra, mas é acentuado por ela. Ao analisarmos a situação econômica e social que essas mulheres foram inseridas, percebeu-se que suas ações giram em torno de sua sobrevivência pessoal e de sua família. As milhares de morte causadas pelo conflito são mais do que mortes 33 em campo de batalha, são mortes por desnutrição, falta de medicamentos, disseminação de doenças e violência sexual. Conforme as ONU (s/d), estima-se que desde 1996 o conflito na RDC tenha provocado a morte de aproximadamente 6 milhões de pessoas e 5,7 milhões de deslocados. Além disso, 26,4 milhões de pessoas não conseguem “satisfazer as suas necessidades alimentares e 6,4 milhões destes são afetados por subnutrição aguda” (ONU, s/d, s.p.). Com isso, para entendermos os ostros aspectos que levam a acentuação da violência sexual, será apresentado a seguir a situação das mulheres a partir de casos relevantes que retratam a situação que elas foram submetidas para garantirem a sua sobrevivência e de sua família. Um ponto importante que foi encontrado em todas as análises, é que as mulheres tinham um objetivo em comum: garantir a sobrevivência de sua família. Dessa forma, os dados apresentados foram produzidos pelo Human Rights Watch (HRW, 2002) e pelo Women’s International League for Peace and Freedom (WILPF, 2016). Apesar de ambos falarem da situação informal que as mulheres estão inseridas no mercado de trabalho, cada um deles irá expor atividades diferentes que as mulheres realizam para a sua sobrevivência, onde ambos acabam evidenciando a violência sexual como uma consequência das atividades, no entanto, em dois contextos diferentes. Apesar de evidenciarmos a violência sexual, nosso objetivo é mostrar como as questões econômicas, sociais e de falta de segurança acabam por inseri-las nessa situação. Segundo o Blog Banque Mondiale, [...] as mulheres enfrentam uma situação paradoxal. Por um lado, na ausência dos homens, elas são forçadas a desempenhar um papel econômico mais importante dentro do agregado familiar. No entanto, as suas vulnerabilidades também são amplificadas à medida que as condições de segurança se deterioram (Heller; Rachel, 2013, s.p., tradução nossa).5 Dessa forma, o relatório do Human Rights Watch (HRW, 2002) mostra que a vulnerabilidade das mulheres e meninas da região estão relacionadas, sobretudo, com a falta de seguridade do Estado, a crise econômica, sanitária e social causadas pelo conflito. O HRW apresenta que Cinco anos de guerra praticamente eliminaram o que restava das infraestruturas do Congo – serviços de saúde, justiça, educação, redes rodoviárias e de comunicação – após trinta anos de má gestão e deterioração sob Mobutu. Os funcionários públicos, 5 No original: les femmes sont confrontées à une situation paradoxale. D'un côté, en l'absence des hommes, elles sont amenées à jouer un rôle économique plus important au sein du foyer. Cependant, leurs vulnérabilités se trouvent également amplifiées à mesure que les conditions de sécurité se dégradent (Heller; Rachel, 2013, s.p.). 34 incluindo o pessoal médico e judicial, não são remunerados e estão desmoralizados. O desemprego é generalizado, a corrupção tornou-se uma necessidade para a sobrevivência da maioria das pessoas (HRW, 2002, p. 13, tradução nossa).6 Sendo assim, a migração forçada, a falta de estrutura econômica e da proteção do Estado, coloca não só as mulheres, mas também as crianças em situações de vulnerabilidade e, consequentemente, a desnutrição generalizada. Essas questões são importantes para entender como as mulheres e meninas acabam sendo vítimas de diversas situações, como morte precoce, violência sexual e contaminação por doenças sexuais (HRW, 2002, p. 13 e 14). Conforme o HRW, a guerra esgotou as reservas dos habitantes do leste do Congo. O fardo de lutar pela sobrevivência e de tentar garantir que outros membros da família também sobrevivam é em grande parte suportado pelas mulheres. À medida que a situação socioeconómica piora, mais mulheres e meninas trocam sexo por comida, abrigo ou dinheiro para garantir a sua própria subsistência e a das suas famílias. O sexo de sobrevivência é diferente dos crimes de violência sexual cometidos por soldados e combatentes. Mas o sexo de sobrevivência cria um contexto em que as relações sexuais abusivas são mais aceitas e em que muitos homens – sejam civis ou combatentes – vêem o sexo como um “serviço” facilmente obtido sob pressão (HRW, 2002, p. 15, tradução nossa).7 Dessa maneira, podemos perceber que as mulheres acabam se submetendo a essas situações como uma forma de sobrevivência e de garantir a vida de seus familiares. Além disso, o relatório também expõe que muitas famílias colocam meninas nessa situação para tentar garantir algum pagamento para ajudar no sustento do lar. Em entrevista, uma vítima dessa situação relata ao HRW: “‘Tenho que continuar fazendo coisas ruins, como dormir com homens, para continuar viva. Você tem que se submeter a tudo o que eles fazem, levar pancadas e, ainda por cima, ser mal paga’” (HRW, 2002, p. 15, tradução nossa). Outro ponto importante, é que grande parte das violações dessas mulheres e meninas não ocorrem somente por parte dos grupos armados, mas também pelos próprios militares da RDC (Resolução 2098, 2013) e daqueles que compõem o exército da ONU na região (G1, 2016). 7 No original: La guerre a épuisé les réserves des habitants de l’est du Congo. Le fardeau que représentent la lutte pour sa survie et les tentatives pour assurer que d’autres, dans la famille, survivent aussi est largement porté par les femmes. Alors que la situation socio-économique s’aggrave, davantage de femmes et de filles en viennent à échanger relations sexuelles contre nourriture, abri ou argent afin d’assurer leur propre subsistance et celle de leur famille.42 Le sexe de survie est différent des crimes de violence sexuelle commis par les soldats et les combattants. Mais le sexe de survie crée un contexte dans lequel les relations sexuelles abusives sont plus acceptées et dans lequel, de nombreux hommes – qu’ils soient civils ou combattants – considèrent le sexe comme un “service” facile à obtenir, moyennant pressions (HRW, 2002, p. 15). 6 No original: Cinq années de guerre ont pratiquement éliminé ce qui restait des infrastructures du Congo - services de santé, de justice, d’enseignement, réseaux de routes et de communication - après trente années de mauvaise gestion et de détérioration sous Mobutu. Les fonctionnaires, y compris le personnel médical et judiciaire, ne sont pas payés et sont démoralisés. Le chômage est très répandu, la corruption est devenue une nécessité pour la plupart des gens afin d’assurer leur survie (HRW, 2002, p. 13). 35 A questão econômica é uma parte importante na vida das pessoas, principalmente por causa do modelo vigente do capitalismo, já que só através de uma fonte de renda, é possível que você tenha acesso aos recursos necessários para a sobrevivência. Conforme a Câmara de Comércio Brasil - Kinshasa e África (CCBKA, 2024), 60% da população na RDC vive em áreas rurais, na qual a agricultura é responsável por 38,5% e o setor de serviços por 35,7% do PIB do país. Ademais, a região "conta com inúmeros recursos naturais, com destaque para diamante, cobalto, cobre, ouro, nióbio. A participação de produtos minerais na pauta exportável atinge cerca de 70%. A agricultura, praticada intensivamente, ocupa a maior parte da mão-de-obra local" (CCBKA, 2024). A vista disso, podemos ver que o setor agrícola e de mineração são importantes fontes de renda de parte da população local. Dessa maneira, além do caso mencionado anteriormente, também há as mulheres que estão em outras condições de trabalho, como mostra a análise feita pelo Women’s International League for Peace and Freedom (WILPF), sobre “A vida na base da cadeia: mulheres nas minas artesanais na RDC”8 (WILPF, 2016, tradução nossa). As duas principais fontes de renda, sejam elas pelo trabalho formal ou informal, advém, sobretudo, do setor de minério ou do agrícola. A análise do WILPF, mostra-nos que parte das extrações que ocorrem nas minas são ilegais e a maioria dos trabalhadores se encontram na informalidade. Tal informação é importante à medida que boa parte do que ocorre nesses locais estão fora do controle do Estado, principalmente pela crise de segurança que o país enfrenta, e, assim, o estudo expõe que o estado de direito nesses locais não existe e diversos tipos de violações dos direitos humanos ocorrem (WILPF, 2016). É relatado que os trabalhadores das minas, sejam eles homens, mulheres ou crianças, habitam em cabanas próximas aos locais de exploração, não possuindo saneamento básico, muito menos um local adequado para cuidar da saúde. Muitos são contaminados tanto pelo contato com matérias tóxicas ou através da água que também foi contaminada por dejetos da exploração. Essas condições afetam significativamente as mulheres e crianças que trabalham nas minas, pois elas são responsáveis pela lavagem dos minerais, ficando expostas diretamente às águas contaminadas. No relatório foi exposto que elas são acometidas por diversas doenças, mas por não terem acesso fácil ao tratamento, muitas delas morrem ou, até mesmo, quando engravidam perdem o bebê ou eles nascem com deformações decorrente da contaminação por minérios. 8 Título no original: Life at the bottom of the chain: women in artisanal mines in DRC (WILPF, 2016). 36 As atividades específicas para as mulheres se resumem a "droumage"; Isso envolve esmagar os minerais, separá-los e lavá-los, peneirar os minerais triturados, processar os resíduos e/ou vender os minerais. Essas atividades são realizadas dependendo da demanda no local; Em outras palavras, a mesma mulher pode lavar um dia e separar ou vender em outros dias. As atividades de droumage, em particular, são as mais tóxicas. Muitas poucas mulheres possuem um poço de mina ou têm uma licença de mineração. Entre as mulheres questionadas, apenas uma era comerciante. Sua decisão de trabalhar nas minas parece ser impulsionada principalmente por receitas mais altas do que as derivadas da agricultura, que podem cair após colheitas ruins como resultado da seca ou da falta de trabalho (WILPF, 2016, p. 11, tradução nossa).9 Outro ponto que contribuem para as péssimas condições são as horas excessivas de trabalho, podendo variar de 10 a 15 horas por dia, além disso, essas condições são agravadas pela subnutrição, onde a alimentação no local é pouco nutritiva e isso é reforçado pelo baixo salário que eles recebem, que mal dá para sobreviver (WILPF, 2016). A denúncia que a WILPF também faz é sobre algumas situações que as mulheres são expostas nesse local. Através de relatos, pode-se notar que muitas mulheres eram casadas com homens que também trabalhavam nas minas, mas muitas delas foram abandonadas por seus maridos que foram à procura de melhores condições de emprego e que prometeram que iriam voltar, mas elas foram abandonadas por eles, deixando-as à mercê daquela situação e, com isso, tornaram-se as únicas responsáveis por trazer o sustento para seus filhos e família (WILPF, 2016). Tais condições, conforme o estudo, impactam diretamente na segurança das mulheres nesse local, já que ter um marido seria uma forma de assegurar que a mulher não seja ameaçada ou tenha que se submeter a prostituição por troca de dinheiro. Dessa forma, é apresentado que De fato, 73,75% das mulheres que encontramos disseram que as mulheres são submetidas a violência sexual, em comparação com 15% que disseram o contrário, com 11,25% não expressando opinião. Ao visitarmos os locais, notamos uma alta taxa de prostituição, às vezes envolvendo meninas menores de idade. Algumas mulheres são recrutadas pelos proprietários e operadores do site, que as fazem vender seus corpos para ganhar dinheiro. Isso explicaria a alta prevalência do HIV nas zonas de mineração: 4,5% em comparação com uma prevalência nacional de 1,1%.5 Os outros tipos de violência observados incluíram gravidez de menores de 13 a 15 anos, doenças sexualmente transmissíveis, estupro como parte de ritos tradicionais para permitir que as mulheres "dêem seus corpos sem resistir" e chantagem em caso de recusa em dar seus corpos a homens que desejam se tornar seus cafetões nos sites. As mulheres reclamaram do fato de que os homens confiscam suas ferramentas e às vezes as maltratam. Em geral, as mulheres são 9 No original: The specific activities for women come down to “droumage”; this involves crushing the minerals, sorting and washing them, sifting the crushed minerals, processing the waste, and/or selling the minerals. These activities are carried out depending on the demand on-site; in other words, the same woman may do washing one day, and sorting or selling on other days. Droumage activities in particular are the most toxic. Very few women own a mine shaft or have a mining permit. Among the women questioned, only one was a trader. Their decision to work in the mines seems to be driven mainly by higher revenues than those derived from farming, which can fall following poor harvests as a result of drought, or a lack of work (WILPF, 2016, p. 11). 37 submetidas diariamente a violência e chantagem, incluindo assédio policial; Não podem recorrer às forças de segurança, que não se preocupam com a sua segurança e não têm qualquer acesso ao sistema judicial, que está demasiado afastado das minas. O trabalho em si também é uma forma de violência, porque é realizado de forma implacável e às vezes desumana nos locais. Consequentemente, a grande maioria (71%) das mulheres atendidas nas minas artesanais não se sente segura nos locais (WILPF, 2016, p. 17, tradução nossa).10 Além disso, a análise evidencia que as crianças também se encontram nessas condições, onde diversas delas são submetidas ao trabalho infantil e a violência do local. Portanto, ao tratar a violência sexual como uma causa do conflito, o CS está fechando seus olhos para a real estrutura que coloca as mulheres nessa situação, que se fortalece ainda mais ao ser tratada como um problema apenas de segurança/proteção. Sendo assim, entende-se a dificuldade da própria missão de diminuir o índice de violência sexual na região, já que eles não focam na raiz do problema. Além disso, o Estado e a própria missão da ONU foram incapazes de proteger as mulheres das vulnerabilidades que foram inseridas, reforçando a ineficiência de suas ações. Mediante a isso, percebe-se que as mulheres não são apenas vítimas da violência sexual, mas também das questões econômicas e sociais que as cercam. Ademais, essas estruturas não estão relacionadas apenas com o conflito, mas também com a construção histórica e cultural da região, e, isso será perceptível no próximo capítulo, que exporemos através de uma análise histórica normativa dos direitos das mulheres desde a era Mobutu até os dias atuais. Portanto, a pergunta que nos guiará, a partir de agora, é: quais são os direitos que são garantidos às mulheres e meninas? Para responder essa pergunta, não basta expor as normas que existiam e a reformulação e/ou ampliação delas, mas também exprimir a luta das mulheres para o estabelecimento e o cumprimento desses direitos. Com isso, no próximo tópico será apresentado como essas questões foram desenvolvidas, além de elucidar o debate em torno da ampliação do direito feminino na RDC. 10 No original: Indeed, 73.75% of the women we met said that the women are subjected to sexual violence, compared to 15% who said the opposite, with 11.25% not expressing an opinion. As we visited the sites, we noted a high rate of prostitution, sometimes involving under-age girls. Some women are recruited by the site owners and operators, who make them sell their bodies to earn money. This would explain the high prevalence of HIV in the mining zones: 4.5% compared to a national prevalence of 1.1%.5 The other types of violence noted included under-age pregnancies in girls aged 13 to 15, sexually transmitted diseases, rape as part of traditional rites to enable women to “give their bodies without resisting”, and blackmail in the case of refusal to give their bodies to men wanting to become their pimps on the sites. The women complained about the fact that the men confiscate their tools and sometimes ill-treat them. In general, the women are subjected to violence and blackmail on a daily basis, including police harassment; they are unable to call on the security forces, who are unconcerned by their safety, and without any access to the justice system, which is much too remote from the mines. The work itself is also a form of violence, because it is carried out relentlessly and sometimes inhumanely on the sites. Consequently, the great majority (71%) of women met in the artisanal mines do not feel safe on the sites (WILPF, 2016, p. 17). 38 4 A LUTA FEMINISTA E SEU PROTAGONISMO NA CONSTRUÇÃO DO DIREITO DAS MULHERES NA RDC Neste capítulo, buscaremos mostrar que as mulheres da RDC são mais do que vítimas da violência da guerra, expor-se-á como elas também são protagonistas pela luta da independência da região e na construção de políticas voltadas para a igualdade de gênero e a construção dos direitos delas. Como mencionado anteriormente, o CS trata a violência sexual que atinge as mulheres como uma consequência da guerra e não como uma prática já existente que foi reforçada no conflito, não levando em consideração que isso se trata de uma estrutura social e econômica que acentuam essas ações. Por causa dessa perspectiva vaga, que é um reflexo da baixa relevância que a própria missão dá para a situação das mulheres na RDC, boa parte das ações são voltadas para o combate à violência de gênero e para o discurso de implementar as mulheres locais nos principais setores do Estado. Entretanto, a implementação de políticas voltadas para o direito das mulheres e da busca pela igualdade de gênero foram criadas pela missão MONUC/MONUSCO ou isso é um reflexo da luta das mulheres africanas que advém desde o período de resistência para o fim do colonialismo na região? No último capítulo, nós enfatizamos a rasa atenção que o CS deu para a agenda MPS, bem como, também mostramos como ela influencia na elaboração do direito das mulheres no continente africano. No entanto, nosso objetivo aqui é apresentar que a utilização da agenda MPS na construção da luta das mulheres na África, na verdade, é uma ferramenta que passa a ser utilizada pelos movimentos feministas africanos para alcançar seus objetivos, e não ao contrário. Sendo assim, exporemos, incialmente, como o movimento feminista contribuiu para o movimento de libertação da África e como ele vem se desenvolvendo ao longo das décadas. Isso é importante, para mostrarmos como a organização das mulheres na RDC contribuíram para o avanço das políticas internas e fizeram pressão para o estabelecimento de seus direitos. Esse segmento é importante para enfatizarmos que se hoje há uma norma que ampara as mulheres congolesas, isso não é fruto da missão do CS, mas sim, do protagonismo delas. 4.1 A luta feminista africana e o caso da RDC Colocar essas mulheres como protagonistas de sua própria história é um passo importante, já que elas vêm sendo subjugadas há muito tempo. Diversas feministas, nos estudos de Relações Internacionais, mostram-nos como os espaços públicos e da segurança, internacional ou nacional, estão relacionados com a imagem masculina, onde eles ocupam o 39 papel de heróis da nação e aqueles que são direcionados os mais altos cargos na vida pública (Perrot, 1975; Sylvester, 1994). Apesar de isso ser uma das principais teorias sobre feminismo e gênero ocidental, essa estrutura também é perceptível no continente africano, principalmente com a conclusão dos movimentos de independência na região, já que apesar das mulheres terem participado das lutas, elas são pouco conhecidas por tais atos. As feministas africanas enfatizam essas estruturas, mas antes de adentrarmos nesse tópico, faz-se necessário esclarecer alguns pontos. Como mencionado no capítulo II, os estudos de feminismo e gênero no ocidente, são datados da segunda metade do século XX e, tem-se a concepção que as pautas feministas se trata de uma luta ocidental; entretanto, isso não é o que se percebe quando nos aprofundamos nos estudos de feminismo em África. Conforme Minna Salami, existe toda uma construção de que o feminismo é “anti-africano”, mas ela defende que o feminismo sempre existiu na África (Salami, 2013). A autora enfatiza que embora o termo "feminismo" seja uma importação para a África (como todas as palavras em inglês são), o conceito de oposição ao patriarcado, a razão de ser do feminismo, se preferir, não é estrangeiro. A África tem algumas das civilizações mais antigas do mundo, então, embora nem sempre tenham chamado isso de feminismo (o substantivo), desde que podemos rastrear, sabemos que havia mulheres que eram feministas (o adjetivo) e que encontraram maneiras de se opor ao patriarcado. O feminismo é uma parte importante da "história" das mulheres africanas (Salami, 2013). A Minna Salami (2013), expõe que o feminismo na África, apesar de não ter essa nomenclatura, é datado do início do século XX, onde as mulheres passaram a contribuir para os objetivos pan-africanos e da luta contra o colonialismo. Para exemplificar, Minna cita algumas mulheres importantes, como Adelaide Casely Hayford, Charlotte Maxeke e Huda Sharaawi, além disso, Ícones feministas africanos desse período são mulheres como a rebelde Mau-Mau, Wambui Otieno, as lutadoras pela liberdade Lilian Ngoyi, Albertina Sisulu, Margaret Ekpo e Funmilayo Anikulapo-Kuti, entre muitas outras que lutaram contra o colonialismo e também contra o patriarcado (geralmente por meio de protestos) (Salami, 2013). Ademais, Salami nos mostra que O feminismo africano moderno foi solidificado durante a década histórica da ONU para as mulheres de 1975 a 1985, o que resultou em ativismo feminista e bolsa de estudos se espalhando amplamente pelo continente e pela diáspora. Desde então, o movimento feminista africano se expandiu em política, legislação, bolsa de estudos e também no reino cultural. Tem a ver com ativismo de base, bem como ativismo intelectual, questões básicas como redução da pobreza, prevenção da violência e direitos reprodutivos, bem como estilo de vida, cultura popular, mídia, arte e cultura. 40 Trata-se de confrontar a criação de mitos patriarcais por um lado e, por outro, somos igualmente desafiados a lidar com estereótipos racistas (Salami, 2013). Com isso, podemos perceber que a luta feminista no continente vai muito além da luta contra o patriarcado, mas também contra a colonização e a exploração descabida realizada pelos europeus e, pela brutalidade de como a guerra fria se utilizou daquela região para o interesse próprio das potências envolvidas. Portanto, a história do continente em si é repleta de lutas, na qual as mulheres estavam e estão diretamente envolvidas e, no caso da RDC, isso não foi diferente. Logo, percebe-se que a luta pelo direito das mulheres africanas não foi algo estabelecido pela ONU e muitos menos pela implementação da agenda MPS através do CS, na realidade essas foram ferramentas utilizadas para concretizar um movimento que já advinha desde o início do século XX. Dessa maneira, em 2006, o Fórum Feminista Africano (AFF) lançou a “Carta de Princípios Feministas para as Feministas Africanas”, apresentam que Enquanto afirmamos o nosso espaço como feministas africanas, também nos inspiramos nas nossas ancestrais feministas que abriram caminho e tornaram possível a afirmação dos direitos das mulheres africanas. Ao invocarmos a memória destas mulheres cujos nomes raramente são registrados nos livros de história, insistimos que a alegação de que o feminismo foi importado do Ocidente para a África é um profundo insulto. Nós reivindicamos e afirmamos a longa e rica tradição de resistência das mulheres africanas ao patriarcado em África. Doravante reivindicamos o direito à teorizar, por nós mesmas, escrever para nós mesmas, formular estratégias para nós mesmas e falar por nós mesmas como feministas africanas (AAF, 2006, p. 5). Trazer à tona esse posicionamento das feministas africanas é importante para traçarmos como a organização do movimento está ocorrendo na região e como isso está influenciando diversas comunidades de mulheres locais para a luta de seus direitos e se posicionarem como líderes do movimento em seus países. O caso da RDC é um exemplo claro disso, na qual, desde a colonização belga as mulheres da região vêm trabalhando para a ampliação e reformulação dos direitos das mulheres e meninas da região, bem como para garantir os espaços de luta e representatividade na política. Nesse aspecto, o dossiê apresentado pelo ITPS, traz que durante as primeiras décadas do século XX no Congo Belga, houve diversos movimentos pelos nativos, a fim de contestar as práticas exploratórias da colônia. Assim, chamamos atenção para uma curandeira chamada Maria N’koi, ela foi responsável pela insurgência terapêutica, na qual combinou a medicina tradicional com a revolta armada, opondo-se contra a tributação e o trabalho forçado no sul do Congo (ITPS, 2024; DBpedia, 2024). Além dela, podemos citar outras mulheres importantes 41 para o movimento de libertação do Congo e da ascensão do pan-africanismo, como a Andrée Blouin, militante do movimento pan-africano durante a descolonização. Apesar de ter nascido na região da atual República Centro Africana, ela participou do levante sob a liderança de Sékou Touré, que assumiu o poder como primeiro presidente do país [Guiné]. Ela se integrou ao movimento anticolonial e ajudou Touré nas decisões contra o plano de Charles De Gaulle de implementar o projeto da federação francesa. Andrée visitava vários líderes africanos incentivando-os a aderir ao processo revolucionário de libertação nacional (UFRGS, s/d a). Por causa disso, durante esse período ela teve contato com Antoine Gizenga e Patrick Lumumba, que a enviou “à campanha para mobilizar as mulheres e, em um mês, ela havia inscrito 45 mil integrantes no Movimento Feminino de Solidariedade Africana das regiões oeste e central do Congo” (ITPS, 2024, p. 17). Figura 3 – Imagem de Andrée Blouin Fonte: The New York Times, 2020. Também podemos citar Wassis Hortense Léonis Abo, mais conhecida como Léonie Abo, é uma ativista congolesa notável que se destacou na rebelião Kwilu na RDC. Em 1963, juntou-se à revolta armada liderada por Pierre Mulele. Nasceu em Malungu e enfrentou uma vida marcada por desafios, incluindo um casamento arranjado e violento. Após ser levada para um acampamento rebelde, Abo se tornou companheira de Mulele até sua morte em 1968. Após um período de prisão e exílio, ela retornou ao Congo em 1996, fundou organizações de apoio às mulheres e crianças, e se candidatou a cargos políticos. Defensora incansável dos 42 direitos das mulheres, ela contestou a dependência associada ao papel da esposa, vinculando a luta feminina ao combate ao capitalismo e imperialismo (UFRG, s/d b). Figura 4 – Imagem de Wassis Hortense Léonis Abo Fonte: UFRG s/d b, apud Injera and plantain mami. 20 de jun. de 2020. Apresentar essas mulheres é substancial para confirmar a nossa hipótese que o movimento e a luta das mulheres na RDC, e no continente, não foi algo implantado pela agenda MPS, muito menos por conta do CS, mas sim por causa delas mesmas. Ao associar a luta dessas mulheres como uma ação de terceiros, estaríamos somente escondendo a verdadeira luta delas e, mais uma vez, não dando voz e nem mesmo projetando a imagem delas como protagonistas de suas próprias vidas e da história de seus países. Através destes breves relatos, também podemos mostrar que elas não são apenas vítimas dos conflitos, mas são aquelas que lutam pela independência de seu país e pelo estabelecimento de seus direitos. 4.2 A colonização, a independência e a democracia: a luta das mulheres congolesas Como já mencionado, durante o período de 1885 a 1960 a região sofreu com a exploração compulsória tanto da terra quanto do povo e pode-se perceber o quanto a colonização belga foi responsável por disseminar tanto uma cultura sexista sobre as mulheres quanto a violação dos corpos. De acordo com Hassina Semah (2019), após o massacre realizado pelo rei Leopoldo II e após a colônia ser passada para o Estado belga, o local passa a 43 ser colonizado a partir de uma “‘missão civilizadora’ como outras potências internacionais, cuja missão se baseava na ideia racista de que a Europa era mais ‘civilizada’ do que a África e teve, como tal, de ‘educar’ as populações africanas, inclusive pela força” (Semah, 2019, s.p.). Dessa forma, a autora apresenta que a essência racista perdurou toda a trajetória colonial além da violência sexual e patriarcal contra as mulheres locais, que se tornou uma estrutura colonial (Semah, 2019, s.p.). Para expor essa estrutura sexual sobre as mulheres congolesas a autora apresenta que Na primeira fase da conquista da colonização do Congo [1885-1908], o corpo das mulheres simbolizava tanto os ‘despojos de guerra’ que os colonizadores belgas apreenderam, voluntariamente ou pela força, como uma mensagem de dominação masculinista dirigida aos homens. Na segunda fase da colonização destinada a cumprir a missão civilizadora, a administração colonial comprometeu-se a ‘civilizar’ a chamada ‘hipersexualidade’ dos congoleses: a família congolesa seria remodelada de acordo com os padrões belgas vigentes na época, da sexualidade, da conjugalidade e da parentalidade, estabelecendo a autoridade masculina como central e legítima, com exclusão de todas as outras. Contrastando radicalmente com as estruturas sociais pré-coloniais que concederam um certo poder às mulheres [...] (Semah, 2019, s.p.). Diante desses relatos, podemos perceber como a colonização tratou os corpos dos congoleses, bem como a estrutura social e cultural da região, impondo neles a cultura cristã, europeia e sexista. Além disso, é notória as diversas formas punitivas que os nativos sofriam como decepação, violência sexual e, até mesmo, a segregação entre brancos, pretos e mestiços. Ao expor a história do genocídio que ocorreu na primeira fase da colonização do Congo, Adriana Paula (2020), cita que “decepar as mãos dos trabalhadores se tornou uma prática de intimidação usada para aumentar a produção”, exemplificando uma das diversas violações sofridas pelos nativos. Figura 5 – Retrato da decapitação de membro dos nativos durante a colônia belga no território congolês. Fonte: Paula, 2020, Iconografia da história. 44 Com isso, a violência generalizada do conflito na RDC não foi algo que surgiu recentemente, mas advém de uma colonização brutal, onde os nativos não eram respeitados e tinham seus corpos violados. Além da violência sexual, os colonos também foram responsáveis pela segregação daquele povo. Recentemente, o Estado da Bélgica foi processado por cinco mulheres que foram retiradas de suas famílias durante o período colonial. Michael Schneider, relata que Noelle, Léa, Simone, Monique e Marie-José acusam o Estado belga de crimes contra a humanidade cometidos nos anos 1950 e 60 no antigo "Congo belga". As vítimas são mestiças, descendentes de mães congolesas e colonos belgas. "Éramos filhos do pecado, porque as relações entre negros e brancos eram proibidas. Por isso fomos mal vistas", Léa Taveres numa entrevista à emissora RTBF. A Bélgica via estas crianças como uma mancha que tinha de desaparecer das ruas. Como jovens meninas, as cinco foram, portanto, arrancadas de suas mães e colocadas aos cuidados do Estado sem muitas satisfações às famílias. Foram levadas para reformatórios para serem cuidadas por missionários, como milhares de outras crianças mestiças (Schneider, 2021, s.p.). Além disso, uma das vítimas relata que em 1960, após o clero ter retornado para a Europa, as crianças foram abandonadas e abusadas por soldados congoleses, “Ficamos lá para a sua diversão. Todas as noites obrigavam-nos a fazer um 'filme'. Despiam-nos, afastavam-nos as pernas e punham velas entre eles. Todas as noites. Já não aguentávamos mais", revela uma das vítimas Monique Bitu Bingi. Bingi considera a Bélgica parcialmente culpada por este abuso, porque abandonou as crianças. Hoje, as mulheres vivem na Europa, e foram a Bruxelas atrás de justiça (Schneider, 2021, s.p.). Com isso, é notória algumas dinâmicas que estão vigentes ainda na RDC. A violência generalizada e a violação, sobretudo, dos corpos das crianças e das mulheres são um reflexo dessas estruturas. Não podemos afirmar que toda a culpa é das estruturas coloniais implantadas, mas, apesar disso, existe uma causalidade ligada com as atrocidades cometidas pelos belgas. Bas’llele Malomalo, ao fazer um estudo sobre a violência nos corpos das mulheres na RDC, apresenta a teoria do matriarcado da antropóloga Ifi Amadiume, argumenta que a colonização árabe-muçulmana e europeia no continente, foram construídas a partir da violação dos corpos africanos, onde O corpo negro passa, então paulatinamente, desde a implementação da dominação do imperialismo árabo-mulçumano no continente africano a ser um corpo sem valor; uma simples mercadoria. A colonização europeia dos séculos XIX e XX, assente na ideologia do racismo, patriarcalismo e capitalismo e capitalismo extrativista, veio somente consagrar a prática da necropolítica [...] (Mamomalo, 2019, p. 34) Dessa forma, as primeiras formas de organização estatal foram baseadas na violência da terra e dos corpos africanos, portanto, 45 Com advento da colonização, o monopólio da violência contra os corpos de homens e mulheres negros/as e o meio ambiente ficou na mão dos Estados-genocidas-colonizadores europeus. Para exercer o seu poder soberano, o racismo, o sexismo e a apropriação de territórios dos/as dominadores/as foram acionados como dispositivos de dominação (Mamomalo, 2019, p. 34-35). E, a violência que vemos hoje é um reflexo das estruturas coloniais que construíram a imagem de que os detentores do poder são aqueles que depredam o outro para se alcançar seus objetivos. Além disso, a questão da marginalização das mulheres também faz parte dessas estruturas, já que elas foram colocadas como objetos e desejos sexuais (Mamomalo, 2019). À vista disso, a luta que as mulheres vêm realizando para deixarem de estar às margens da sociedade e estabelecerem seus direitos é muito mais ampla e complexa do que os debates que o CS propõe nas resoluções da missão. Assim, infere-se que o CS, ao atuar dessa maneira, está contribuindo para as estruturas de marginalização dessas mulheres, inclusive, ao não citá-las de maneira adequada, são responsáveis por manter a imagem de vítima associada a elas. Isso, consequentemente, influencia na luta delas para o estabelecimento de seus direitos e de quebrar com as estruturas patriarcais que elas foram inseridas. 4.3 Os direitos das mulheres na RDC Após apresentar as questões que estão por trás da luta das mulheres congolesas, podemos ver como isso influenciou na construção dos direitos dela na RDC, sobretudo durante o período da missão do CS. É importante ressaltarmos que iremos expor alguns pontos dos direitos das mulheres durante a era Mobutu, já que somente após a pacificação da região no início dos anos 2000, houve uma mudança na constituição, no código da família, a elaboração de planos de ações estratégicas sobre a condição das mulheres e meninas na RDC e, também, a ratificação do “Protocolo à Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos, Relativos aos Direitos da Mulher em África” e da “Agenda 2063”. Após apresentar as questões que estão por trás da luta das mulheres congolesas, podemos ver as barreiras que elas vêm enfrentando para se tornarem relevantes em sua sociedade e na construção de seus direitos na RDC, sobretudo durante o período da missão do CS. E, nesta sessão, será exposto a evolução dos direitos das mulheres na RDC, como elas vêm trabalhando para alcançá-los e como o estabelecimento dessas normas fortalecem o movimento na região. Ressaltamos, então, que será apresentado o antigo e novo Código da Família, a nova Constituiç