UNESP UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “Júlio de Mesquita Filho” Instituto de Artes Programa de Pós-Graduação em Artes Mestrado Autocrítica de Arte ou a última camada de verniz Flávio Fernandes de Almeida São Paulo – 2008 UNESP UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “Júlio de Mesquita Filho” Instituto de Artes Programa de Pós-Graduação em Artes Mestrado AUTOCRÍTICA DE ARTE OU A ÚLTIMA CAMADA DE VERNIZ Flávio Fernandes de Almeida Dissertação submetida à UNESP como requisito parcial exigido pelo Programa de Pós-Graduação em Artes, área de concentração em Artes Visuais, linha de pesquisa Processos e Procedimentos Artísticos, sob a orientação do Professor Livre-Docente Omar Khouri, para obtenção do título de Mestre em Artes. São Paulo – 2008 Almeida, Flávio Fernandes de A447a Autocrítica de arte ou a última camada de verniz / Flávio Fernandes de Almeida. - São Paulo : [ s.n.], 2008. f. 149: il. + CD-ROM anexo. Bibliografia. Orientador: Prof. Livre-Docente Omar Khouri Dissertação (Mestrado em Artes ) – Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. 1. Arte – Teoria e crítica. 2. Arte - História. 3. Pintura. I. Khouri, Omar. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III Titulo. CDD – 701 709 Flávio Fernandes de Almeida AUTOCRÍTICA DE ARTE OU A ÚLTIMA CAMADA DE VERNIZ Dissertação apresentada ao Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista – UNESP, como requisito para obtenção do título de Mestre em Artes. Área de concentração: Artes Visuais Aprovado em: 22/04/2008 Banca Examinadora _____________________________________ Prof. Livre-Docente Omar Khouri Universidade Estadual Paulista – UNESP Orientador _____________________________________ Profª. Dra. Loris Graldi Rampazzo Universidade Estadual Paulista – UNESP Examinadora _____________________________________ Profª. Dra. Neiva Pitta Kadota Fundação Armando Álvares Penteado - FAAP Examinadora Dedico aos meus pais, Maria Zeneide de Almeida e Francisco Fernandes de Almeida. AGRADECIMENTOS Aos professores que tive, desde o pré até a pós, pelo Norte; e, em especial, ao Professor Livre-Docente Omar Khouri, meu orientador nesta empreitada, pelo Oriente. Às pessoas que, pelos livros emprestados, textos revisados, espaços cedidos ou bons conselhos, contribuíram para a realização deste trabalho: Adriane Bertini, Ana Cristina Micelli; Débora Aversan; Edson Machado; Juliana Brecht; Marcel Esperante; Marcos Nepomuceno; Mariana Eller; Maurício Fernandes; Mayra Baptista; Mírian Okida; Rose Cougo, Tami Kobayashi e Vânia Postigo. RESUMO O artista, consciente do seu papel na sociedade – na qual vive e produz – pode e deve ser o primeiro crítico de suas obras. A análise de sua práxis, inserida no panorama artístico contemporâneo e, ao mesmo tempo, dialogando com o legado da visualidade na pintura, contribui para a elaboração desta reflexão: as técnicas e os temas, os materiais e suportes adotados, refletem as suas escolhas; os processos e os procedimentos, a sua poética. A reflexão, resultante da compilação de teorias da arte pertinentes ao objeto, também buscou nos discursos dos artistas – correspondência, notas, depoimentos e escritos em geral – as bases para a sua elaboração. Escolhidos por afinidade de gosto ou estilo, artistas como Cézanne, Van Gogh, Gauguin e Matisse – além dos brasileiros Rubens Gerchman e João Câmara – têm seus escritos e reflexões sustentando e elucidando suas poéticas. A crítica – neste caso, a autocrítica – é apresentada como uma parte integrante da obra de arte, comparada numa metáfora ao toque final dado pelo artista numa pintura: a demão de verniz. Palavras-chave: 1. Fundamentos e Crítica das Artes – 2. Teoria da Arte – 3. História da Arte – 4. Pintura. Grande Área: Letras, Lingüística e Artes. Área: Artes. ABSTRACT The artist, conscious of his role in the society – in which he lives and produces – can and must be the first critic of his artistic works. The analysis of the praxis, that is inserted in the contemporary artistic scene and, at the same time, dialoguing with the legacy of the visuality in the painting, contributes to the elaboration from this reflexion: the techniques and the themes, the materials and adopted supports, reflect their choices, the processes and procedures; its poetic. The reflection, resulting from the theories compilation of the art pertinent at the object, also looked for in the artists discourse – correspondences, notes, depositions and writings in general – the bases for its elaboration. Chosen by afinity or style artists like Cézanne, Van Gogh, Gauguin and Matisse – beyond the Brazilians Rubens Gerchman and João Câmara – have their writings and reflections sustaining and elucidating their poetics. The critic – in this case, the self-criticism – is presented as an integral part of the art work, compared in a metaphor to the final touch given by the artist in a painting the varnish coating. Key words: 1. Foundations and critic of the Arts – 2. Theory of the Art – 3. History of the Art – 4. Painting. Great area: Languages, Linguistics and Arts. Area: Arts. SUMÁRIO INTRODUÇÃO 08 Capítulo 1 ALGUM SUPORTE TEÓRICO 17 Capítulo 2 O PROCESSO DA ARTE DO PONTO DE VISTA DAQUELE QUE A EXECUTA 42 Capítulo 3 A DEMÃO DE VERNIZ 107 CONSIDERAÇÕES FINAIS 142 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 145 8 Introdução Senhoras e Senhores: Ao tomar a palavra diante de meus trabalhos, que na verdade deveriam se expressar em sua própria linguagem, fico apreensivo, por não saber se os motivos que me levam a isso são suficientes, ou se vou falar de maneira apropriada. (Paul Klee) 9 Como o artista se vê e como a obra se mostra, as sensações que causa e a verbalização dos aspectos formais, das alegorias e do sentido, para além dos sentidos: o discurso sobre a obra de arte, além do próprio discurso da obra de arte. A elaboração de uma reflexão mais sistematizada e embasada sobre a produção artística, para além das meras impressões iniciais e das análises intuitivas e evasivas, tão comuns no mundo lúdico da arte e do entretenimento. O artista pode e deve ser o primeiro crítico das suas obras. A crítica – neste caso, a autocrítica – é comparada metaforicamente à demão de verniz, ou seja, ao toque final dado pelo pintor à sua obra, antes de submetê-la à apreciação alheia. Os significados e as implicações da camada de verniz na pintura, num sentido figurado e quase poético, têm sido, portanto, o objeto desta reflexão. O pensamento crítico já existe e atua – ou ao menos deveria atuar – durante a produção de uma obra de arte, quando o artista faz suas escolhas, enquanto a inspiração e o manuseio dos materiais utilizados interagem, dando forma ao artefato. A necessidade de uma reflexão mais sistematizada sobre a poética do artista, sobre a dinâmica da sua práxis e o sentido do que ele faz deve ser, portanto, inerente à produção artística. Embora a obra de arte possua os meios para falar por si mesma, a importância da crítica, elaborada pela análise e pela síntese, como instrumento de auxílio para a mediação, pode proporcionar também – em relação ao fruidor – os meios para a decodificação da obra e a ampliação do repertório, além da impressão inicial, meramente sensorial. No caso específico desta reflexão, a 10 autocrítica de arte visa proporcionar também ao pintor a possibilidade de apreender o sentido e o percurso da sua poética: O artista, em geral, que escreve sobre o seu trabalho, obrigatoriamente não faz pesquisa, pode fazer uma simples reflexão sobre a sua forma de trabalhar, de expressar seus conceitos, dúvidas, inquietações, métodos de trabalho, preferências e opiniões, sem no entanto realizar pesquisa. (ZAMBONI, 2001, p. 62) Além da elaboração, através de um exercício de metalinguagem, de um ensaio crítico sobre a minha produção em pintura, o trabalho visa também relatar, de forma analítica e cronológica, o percurso desta produção, com seus escassos êxitos e incontáveis percalços. Alguns anos atrás, em conseqüência de um certo inconformismo juvenil, a minha práxis artística se apresentava com mais viço, repleta de pastiches e alegorias. A história da visualidade na pintura se fazia presente em pormenores e fragmentos, num exercício de colagem de citações que dialogavam, buscando novas significações relevantes. As metáforas nada sutis sobre algumas de nossas mazelas sociais eram representadas com uma dose de humor agridoce, num artifício recomendável aos artistas que fingem zombar da sua própria poética. A produção das obras teve início durante a época da graduação, no Instituto de Artes da Unesp, em meados dos anos 1990, como conseqüência das pesquisas e exercícios praticados durante as aulas de ateliê. As pinturas consistiam, quase sempre, na justaposição de duas cenas distintas, como planos que dialogam em busca de uma unidade compositiva e de uma variedade de significados. A relativa importância dada aos títulos das obras tinha por objetivo contribuir para torná-las mais instigantes; o uso de cores em contrastes, às vezes berrantes, de aguçar até os olhares mais distraídos. 11 As pinturas mais recentes, se por um lado relegaram aquelas aspirações narrativas e alegóricas de outrora, por outro, como conseqüência de algum amadurecimento e, talvez, um aprimoramento técnico discutível, apresentam algumas diferenças em relação às obras produzidas anteriormente: há uma visível ênfase na forma, além de uma repetição ostensiva e quase obsessiva do motivo. Em geral, as pinturas denotam também um caráter de obra inacabada, como um mero exercício de estilo, arremedo ou diluição da poética de outrora. Aquele humor que se fazia presente através de paródias e pastiches, nas obras mais antigas, apresenta-se agora mais complacente, trazendo à tona na análise desta produção artística mais recente a busca de um rótulo, mais compatível para denominá-las: as Pinturas sobre o nada – pois quase nada acontece – como num poema do Manoel de Barros ou num episódio do seriado de televisão Seinfeld. A consistência das musas, assim como a consistência das tintas, tornou- se agora mais densa e encorpada. As figuras de outrora, de uma aparente serenidade, dão lugar a outras, nitidamente mais perturbadas e/ ou perturbadoras, como numa das pinturas avulsas da produção mais recente do pintor João Câmara ou como numa personagem de um filme do cineasta David Lynch. Todavia, ainda há algo em comum entre as minhas pinturas iniciais e as mais recentes: uma aparente teimosia, inerente àqueles pintores de cavalete que ainda insistem na produção de telas com moldura e aura1, apesar da proliferação dos meios e das ferramentas disponíveis, hoje em dia. As etapas do desenvolvimento desta reflexão têm início com o resgate do percurso: as obras já produzidas e aquelas em andamento, os esboços, as 1 A aura, na definição de Walter Benjamin, é “uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja” (BENJAMIN, 1994, p. 170). 12 anotações e as referências utilizadas (foram escolhidas dezenove obras, das quais seis pertencem à minha produção inicial e treze, à produção mais recente). Há o olhar do artista, as suas intenções, o manuseio dos materiais utilizados, os resultados plasmados, o olhar dos outros e a coleta a esmo de algumas impressões alheias, numa exposição. Todavia, antecedendo estas etapas – relacionadas aos processos e aos procedimentos em arte – há também a busca de um suporte teórico que visa proporcionar uma sistematização e um embasamento da argumentação utilizada na elaboração da reflexão e do discurso. Inicialmente, minhas leituras se basearam naqueles autores clássicos da teoria e da filosofia da arte, já conhecidos de outras tantas leituras e pesquisas: Umberto Eco, Luigi Pareyson, Omar Calabrese e Giulio Carlo Argan, entre outros, não poderiam de fato permanecer à margem desta reflexão. No entanto, após o ingresso no Mestrado, as referências bibliográficas se expandiram de modo assustador. Durante as aulas e as orientações, inúmeros autores foram apresentados ou reapresentados, ampliando as possibilidades outrora mais modestas do projeto inicial. Um livro atrai outro que, por sua vez, atrai outro e mais outro, numa sucessão aparentemente interminável. Além dos teóricos anteriormente citados, houve a retomada de Ernest Gombrich, Erwin Panofsky e Heinrich Wölfflin e Fredric Jameson, entre outros, além dos filósofos Ortega y Gasset, Arthur Danto e Walter Benjamin. As bifurcações no caminho – nada suave – tornam o processo mais árduo e inquietante, porém instigador. Há, porém, a necessidade de tornar os procedimentos mais objetivos e promover os devidos recortes. 13 Além da busca pelo embasamento, obtido nas teorias formuladas a posteriori, há também as teorias e reflexões elaboradas pelo próprio artista, em geral, indissociáveis de sua vida e obra. As verbalizações sobre a sua práxis, teorizadas em escritos diversos – manifestos, cartas, depoimentos, notas e entrevistas – são uma fonte legítima, pois o artista é, ao mesmo tempo, criador e testemunha do ato da criação, imerso em seu ateliê. Refletir sobre as idas e vindas, entre tintas e pincéis, esboços espalhados pelos cantos, tentativas e erros, hesitações e acertos, possibilitam ao artista se expressar por outros meios, além da sua arte. Conforme afirma Silvio Zamboni: “para se fazer arte de forma consciente é necessário, ou pelo menos desejável, que se tenha presente o transcurso já realizado por outros artistas e outras escolas em épocas diversas” (ZAMBONI, 2001, p. 37). Inicialmente, as escolhas recaíram sobre Henri Matisse e os pintores pós-impressionistas (Cézanne, Van Gogh e Gauguin), devido às afinidades de gosto, além das aproximações temáticas e formais com a minha própria produção. Todavia, houve a demanda pela inclusão de artistas contemporâneos brasileiros (Rubens Gerchman e João Câmara), mais próximos do meu cotidiano e, portanto, das obras que faço. Os textos dos artistas são acompanhados de uma contextualização: dados sobre a vida e a obra, para a apreensão de seus percursos e poéticas. Em geral, os dados sobre os artistas foram compilados dos livros de Argan e Gombrich, sobre a arte moderna e a história da arte, respectivamente. Além destes autores, alguns trechos foram parafraseados do livro – uma coletânea de escritos de artistas – de Herschel Chipp, sobre as teorias da arte moderna. 14 Obviamente, o uso destes autores não se aplica aos artistas brasileiros. No caso de Rubens Gerchman, as obras aqui reproduzidas e os dados biográficos foram obtidos no livro que Fábio Magalhães escreveu sobre o artista, para a Coleção Arte de Bolso (editada pela Lazuli Editora, em 2006). O percurso de João Câmara foi compilado da edição, em três volumes, sobre as séries temáticas do pintor: Cenas da vida brasileira, Dez casos de amor e Duas cidades (editado pela Takano Editora, em 2003). Também foram utilizados os livros de Frederico Morais: Dez casos de amor e uma pintura de Câmara (editado pela JBS - Murad Propaganda, em 1983), e de Almerinda Silva Lopes: João Câmara; o revelador de paradoxos políticos-sociais (editado pela EDUSP, em 1995). As obras reproduzidas foram obtidas, respectivamente, no site do pintor (O Enigma de Patrícia – 1995) e no livro de Frederico Morais (Um Instante fugaz – 1977). Os dados sobre a vida e a obra de Paul Cézanne, além das obras já citadas (Argan, Gombrich e Chipp), foram obtidos no livro que reúne a sua correspondência – cujo prefácio foi escrito por John Rewald – e num livro de reminiscências do marchand Ambroise Vollard. No caso de Vincent van Gogh, além das obras já citadas, também foram parafraseados trechos do texto introdutório das Cartas a Théo, intitulado Amargura e solidão nas cartas do pintor maldito, de autoria de Charles Terasse (a edição utilizada, de 1986, é da L&PM). Os dados sobre Paul Gauguin, além dos livros de Argan, Gombrich e Chipp, foram compilados de um livro sobre o pintor (editado pela Taschen, em 1993), de autoria de Ingo Walther. Houve também as histórias narradas em Noa-Noa – um relato de sua primeira viagem ao Taiti – cuja apresentação, na 15 edição brasileira, foi feita por Eduardo Francisco Alves. As ilustrações – Vahine no te tiare (1891); Manao Tupapau (1892) e De onde viemos? O que somos? Para onde vamos? (1897) – foram obtidas no livro editado pela Taschen. Por fim, as informações sobre o percurso de Henri Matisse foram colhidas dos seguintes livros: a coletânea de Escritos e reflexões sobre arte do pintor (editada pela Cosac Naify, em 2007); a correspondência entre Matisse e Pierre Bonnard (edição bilíngüe, em francês e inglês, publicada pela Harry N. Abrams, Incorporated, em 1992); uma edição em língua espanhola, do livro de Gilles Néret sobre a vida e a obra do pintor (publicado pela Taschen em 2002); e outro livro, também sobre sua vida e obra, de autoria de Jean Selz, editado em língua inglesa (publicado pela Crown Publishers, Inc., em 1990). As reproduções das obras de Matisse, em geral, foram obtidas no livro editado pela Cosac Naify, com exceção das ilustrações La Leçon de piano (1916), La Desserte rouge (1908), Deux odalisques (1928), Nu rose (1935) e Nu agenouillé devant un miroir (1937), obtidas no livro de Gilles Néret (Taschen, 2002). Há ainda um CD-ROM anexo, com reproduções de algumas das obras por mim produzidas, cuja visualização prévia é recomendável. Embora o tema aponte e praticamente conclua, de antemão, que a produção artística e a reflexão sobre esta produção são indissociáveis, a pesquisa irá buscar justificativas para a sua relevância. As abordagens e as ferramentas, utilizadas para moldar a reflexão aos paradigmas da linha de pesquisa na qual ela está inserida, vão se delineando, em meio às questões relacionadas à busca por uma objetividade, na medida do possível numa 16 pesquisa em arte, considerando os obstáculos naturais relacionados às tentações do viés subjetivo, devido ao tema abordado: As questões artísticas não se apresentam de forma tão clara; além das funções da arte [...] não terem aplicabilidade prática, o universo da arte exige para seu tratamento um grau intuitivo maior e, por isso, é mais difícil formular conceitos, atender necessidades e resolver problemas através de uma linguagem lógica. (ZAMBONI, 2001, p. 51) Em suma, entre as crises e rupturas, a busca pela superação dos discursos e reflexões sobre a arte, para além daqueles baseados meramente no senso comum, ou seja, a busca de paradigmas, para além dos dogmas, num processo de autocrítica sobre o percurso do meu fazer artístico. 17 Capítulo 1 Algum suporte teórico Se olhar as imagens proporciona deleite, é porque a quem contempla sucede aprender e identificar cada uma delas. (Aristóteles) 18 Neste primeiro capítulo, há a busca de uma fundamentação teórica que possa proporcionar um embasamento à reflexão sobre a minha poética, além da tentativa de responder às dúvidas e inquietações que permeiam a pesquisa. A reflexão está atrelada ao percurso da minha produção, desde a sua gênese, através da análise da práxis artística, dos diálogos estabelecidos com o legado da visualidade na pintura e da articulação entre as formulações teóricas compiladas. As obras produzidas, desde a fase inicial, na qual as telas eram inundadas de referências, citações e pastiches, até as telas mais recentes, nas quais as alusões outrora presentes tornam-se mais sutis, sempre estimularam indagações. Instigado pelos diálogos com meus pares, pela razoável apreensão das teorias disponíveis nos livros lidos e, inclusive, pelas dúvidas trazidas à tona, através dos questionamentos formulados pelo público em geral, presente nas exposições realizadas, sempre almejei buscar algum embasamento para responder às indagações. Inicialmente, através de um procedimento inusitado, as telas eram concebidas a partir de roteiros prévios, que descreviam os elementos que iriam compor a cena, como num filme. Os roteiros, que antecediam e, às vezes, até ocupavam o lugar destinado aos esboços das obras, denotam a ênfase dada aos aspectos narrativos do quadro. O pensamento visual era traduzido num discurso verbal que, por sua vez, era novamente traduzido, posteriormente, em imagens. A ação ou a eventual ausência dela, ou seja, o que a figura estaria fazendo ou deixando de fazer, imersa numa cena que aludia, em seus pormenores, às obras dos pintores do passado, norteavam a inspiração e a busca pelo estilo. As poses ou trejeitos da musa, os objetos quaisquer 19 utilizados para compor a cena – a janela, a poltrona, a cadeira, o vaso, a cômoda, a geladeira e o pingüim – e, inclusive, as cores que seriam predominantes na composição, eram descritos verbalmente, em anotações que antecipavam os esboços. Atualmente, após uma mudança de foco gradual, detectada ao longo dos anos, as obras surgem como uma seqüência de estudos produzidos que, sob o aspecto quantitativo, caracterizam uma série. Quase não há variação do motivo e quase nada acontece. Tal fato, ou seja, a transformação de algo, que inicialmente havia sido concebido como mero exercício, em obra, não é tão incomum, como poderia parecer: O exercício é parte integrante do processo artístico, pois é o momento de espera do insight, não inerte e passiva, mas fecunda e estimulante. É ao mesmo tempo provocação da matéria e evocação do insight, que pode durar muito tempo sem resultados ou então produzir muitas virtualidades, entre as quais o artista escolherá a semente que lhe parecer mais vital [...]. Além disso, é bem verdade que por vezes da simples tentativa de fazer um ‘estudo’ ou então um ‘exercício’ saiu uma obra artística. (PAREYSON, 1993, p. 84, grifo do autor) Desde o princípio, foram incontáveis os questionamentos, dúvidas que nutrem e dialogam com a reflexão, articulada à produção artística. A tentativa de compreender e justificar o que se produz, no âmbito do atual panorama das artes, sem, no entanto, deixar de levar em conta o legado da pintura e a posição que ela ainda ocupa neste cenário, repleto de múltiplas possibilidades e interfaces: a pintura de cavalete e a sua genealogia; a representação e a ilusão, mesmo após as rupturas com os paradigmas propostos pelos ismos da Arte Moderna; a relação entre o autor e a obra e, posteriormente, entre a obra 20 e quem a contempla; os programas de arte em oposição às especulações filosóficas, ou seja, a poética e a estética etc. Uma das primeiras dúvidas que permeou esta reflexão sobre a minha práxis artística, no início, foi o enfoque na estética ou na poética, na abordagem do objeto das análises, ou seja, as obras por mim produzidas. Embora tal inquietação já tenha se esvaecido, após tantas leituras realizadas, cabe ressaltar que tais dúvidas demonstravam, na verdade, uma ausência de foco, pois cogitar uma abordagem estética na análise das obras resultaria, no mínimo, num equívoco ou numa deturpação. A poética é a “intencionalidade artística”, na definição de Argan (1995), e que pode ser compreendida “como programa operacional que o artista se propõe de cada vez, o projeto de obra a realizar tal como é entendido, explícita ou implicitamente, pelo artista” (ECO, 1991, p. 24), e que, segundo Pareyson: Poderá estar implícita no estilo do autor ou no gosto do leitor, ou então desdobrar-se em um concreto e determinado programa artístico, expresso em manifestos ou tratados ou códigos normativos, traçado a partir do modelo de obras exemplares ou esboçado como propósito de obras a fazer. (PAREYSON, 1993, p. 298) A estética – a ciência do sensível, vista por Alexander Baumgarten (que cunhou o termo, que deriva do grego aisthesis, em meados do século XVIII) “como a equivalente sensual da lógica, quer dizer, a estética estava para a sensorialidade, conhecimento inferior, do mesmo modo que a lógica estava para o pensamento, conhecimento superior” (SANTAELLA, 2000, p. 45) – ao contrário da poética, possui um caráter especulativo, papel que se amolda de uma maneira mais apropriada à práxis do filósofo. Luigi Pareyson afirma: 21 Do ponto de vista estético [...] não importa que a arte seja compromissada ou de evasão, realista ou idealista, naturalista ou lírica, figurativa ou abstrata, pura ou carregada de pensamento, douta ou popular, espontânea ou refinada, e assim por diante; o essencial é que seja arte. (PAREYSON, 1997, pp. 16-17) A estética aborda assuntos ou questões relacionadas à arte, que transcendem aos caprichos do gosto pessoal ou de uma época e almejam definir, conceituar a arte. Noutro livro, já mencionado anteriormente, o autor apresenta alguns dos diferentes valores e significados assumidos pela arte, ao longo dos séculos, em ideais artísticos ou programas de arte, através de especulações filosóficas ou manifestações de intencionalidade artística: Ora ela foi vista como inseparável das manifestações da vida política e religiosa, ora como valor absoluto e autônomo, independente de preocupações de outro gênero [...]; vista ora como testemunha da verdade última, do bem absoluto, do belo ideal, dos supremos valores do cosmo, e ora como fim em si mesma [...]; ora como algo puramente lúdico e mero deleite, contente consigo mesma e com a própria vaga leviandade; vista ora como intérprete do real, fiel representante da natureza, impiedosa e impassível representação dos fatos, ora como delírio onírico, vôo da fantasia, luta contra o real, criação de realidade inédita e nova, pura abstração que subsiste por si mesma; ora vista como expressão do sentimento [...], ora como simples decoração, indiferente ao que narra ou diz ou relata, ciosa do puro valor dos próprios elementos formais; vista ora como militante na vida, encarnada na situação histórica, convicta da própria responsabilidade diante das exigências morais, políticas e religiosas, [...] ora como evasão da vida, almejado abrigo das intempéries do mundo e das paixões humanas, seguro refúgio da alma na pura contemplação de figuras fantásticas de mundos oníricos [...]; vista ora como manifestação necessária da vida pública e associada, ora como algo que só visa o prazer privado e individual, na pompa das cortes ou na intimidade do lar ou no recolhimento dos museus; ora vista como deletéria em seus efeitos, perigosa em sua eficácia desastrosa em sua influência e digna de ser banida da sociedade perfeita, ora como [...] alimento indispensável do espírito, nutrição vital da alma, e principio de toda formação e educação espiritual; ora também vista como própria de espíritos frívolos e levianos, e obra de gênios debochados e imorais [...]. (PAREYSON, 1993, pp. 297-298) 22 As especulações filosóficas e os programas de arte, nas diferentes acepções acima apresentadas – a arte ora submetida aos caprichos dos mecenas; ora como visibilidade pura; ora como expressão da realidade interior, em oposição à impressão da realidade exterior; ora como mera tentativa de apreensão da aparência sensível da idéia ou imitação imperfeita do mundo sensível, que, por sua vez, imita o ideal; ora como parte de uma superestrutura que repousa enquanto reflete as relações de produção da base econômica; ora como ornamento sem outro propósito, senão ornamentar; ora como instrumento para a evasão, a fuga da realidade ao invés da tentativa de transformá-la; ora vista como síntese entre a práxis e a imaginação; ora como objeto provido de aura; ora como janela para o mundo ou algo equivalente a uma boa poltrona, confortável e aconchegante etc. – possibilitam um embasamento à reflexão sobre a produção artística que é objeto desta análise e conduzem o foco para o rumo nitidamente mais apropriado, ou seja, a poética. Outra dúvida que também entremeou esta reflexão, sobre a minha práxis artística, dizia respeito à tentativa de se estabelecer uma, digamos, linhagem. Talvez seja uma dúvida de pouca relevância, mas, ao considerar o legado da pintura, outrora inserido de modo mais incisivo nas composições - citações, apropriações, pastiches, diluições e exercícios de tradução intertextual e/ ou intratextual2 – e que, hoje em dia, na produção mais recente, ocorre de um modo mais tênue, tal dúvida se mostrou pertinente, ao menos como proposta e exercício de reflexão teórica. Sobre tais inquietações, Luigi Pareyson afirma: 2 Segundo Lucrecia Ferrara, a "intertextualidade” ocorre “no diálogo de um texto com outro texto”, enquanto “o dialogo que se produz entre os signos no interior de um mesmo texto” é denominado: “intratextualidade” (FERRARA, 1981, p. 87). O “pastiche”, na definição de Fredric Jameson: “é o imitar de um estilo único, peculiar ou idiossincrático, é o colocar de uma máscara lingüística, é falar em uma linguagem morta. [...] Desse modo, o pastiche é uma paródia branca, uma estátua sem olhos” (JAMESON, 1996, pp. 44, 45). 23 O problema da imitação, embora certamente diga respeito à formação do artista, não se pode no entanto restringir ao momento da disciplina e do estudo com que o noviço tenta encontrar-se a si mesmo. Nem se reduz aos casos em que o artista, pressionado pela ‘necessidade de afinar-se com a tradição’, compõe sua poesia de sorte a conter ‘traços’, ‘ressonâncias’ ou ‘reminiscências’ da arte antiga. Mas o que importa explicar é aquela verdadeira e própria continuidade estilística, a visível dependência e filiação que, embora determine uma comunidade entre artistas diferentes, não lhes compromete em nada a originalidade, ou seja, os casos em que por um lado a obra anterior é considerada não como uma simples ocasião, mas verdadeiramente modelo a seguir, e pelo outro lado, o imitador não se limita a copiar servilmente a obra exemplar, mas a fecunda no próprio ato de se fazer o seu herdeiro. (PAREYSON, 1993, p.142, grifo do autor) A tentativa de se estabelecer esta árvore genealógica se baseia nas “categorias visuais”, apresentadas e desenvolvidas pelo teórico alemão Heinrich Wölfflin (2000), em sua obra Conceitos Fundamentais da História da Arte. A partir da análise proposta pelo autor, com uma ênfase dada aos aspectos formais das obras, são apontados os conceitos que denotam as características antagônicas que predominam nos estilos clássico e barroco, que por sua vez, permeiam a história da evolução no percurso da visualidade na representação pictórica, de uma maneira visivelmente cíclica. Em resumo, tal análise se baseia, portanto, na forma, e como ela se manifesta nos estilos, cuja determinação se dá principalmente devido “aos princípios decorativos e às convicções do gosto” (WÖLFFLIN, 2000, pg, 69). A primeira ‘categoria visual’ se refere à transformação ocorrida na representação, da evolução de uma visão linear para uma visão pictórica, ou seja, de uma ilusão na representação obtida mediante o predomínio de elementos ‘plásticos, tácteis’, no estilo clássico, até uma outra forma de ilusão, obtida através do uso e da aplicação de ‘massas de cores’, no estilo barroco. 24 A aplicação destas ‘categorias visuais’ às pinturas que compõem as séries por mim produzidas, e que são objeto desta análise, denota um predomínio nítido do linear sobre o pictórico, ou seja, as linhas surgem em contornos quase explícitos, tangíveis, em decorrência de uma necessidade de delinear as figuras, aliada a uma ausência de virtuosismo no ofício de pintar, o que dificultaria a percepção das formas através apenas de contrastes, nuances e modulações de luz e sombra. Todavia, em minha produção mais recente é possível notar um tratamento mais pictórico, dado a algumas obras, nas quais a forma se apresenta em contrastes de cores nada amenos e luzes difusas. As pinceladas, cuja aplicação se mostra mais evidente, inacabada, e que são obtidas através do uso de tintas mais consistentes e encorpadas, se opõem às pinturas ‘lisas’ iniciais, demasiadamente diluídas em óleo de linhaça. No entanto, apesar dos contrastes intensos de cores vivas, que remetem à tradição colorista - desde os pintores da Escola de Veneza, no Renascimento e, posteriormente, passando por Eugène Delacroix, Paul Gauguin e os pintores nabis e fauves, até as cores que se assemelham àquelas utilizadas em cartazes publicitários, como na arte Pop - nas obras que são objeto desta análise a cor permanece subordinada ao desenho e, conseqüentemente, as massas de cores ainda não se emanciparam, em relação aos contornos que delineiam as formas. A segunda ‘categoria visual’ diz respeito ao plano e à profundidade, ou seja, a oposição entre a sobreposição/ justaposição de planos que se sucedem, com relativa autonomia, na composição, em relação à profundidade sugerida por eixos diagonais que relacionam os planos nos quais estão 25 inseridas as figuras e o fundo, além dos contrastes mais bruscos entre as luzes e as sombras, que evidenciam a ilusão de tridimensionalidade no plano. As minhas pinturas, tanto as mais recentes quanto as mais antigas, embora possuam, às vezes, linhas diagonais que sugerem alguma profundidade, obtida através de uma perspectiva enviesada, são nitidamente planas. As figuras não se relacionam diretamente entre si, através de um envolvimento que poderia ser obtido em nuances de cores e correções na forma. As moças, a mobília, as cortinas e as janelas meramente se sobrepõem, enquanto se destacam, autônomas, através dos contrastes de tons e matizes. Outro aspecto, que caracteriza a condição plana das obras, diz respeito à tênue modulação de luz e sombra, ou seja, as cores em tons chapados predominam e, quando muito, apresentam alguma sugestão de proximidade ou distanciamento, mediante a vibração ótica obtida através dos contrastes entre as temperaturas das cores usadas nas composições. Porém, tais efeitos são insuficientes para caracterizar uma predominância da profundidade, em relação à planura quase assumida, das figuras nas telas. Em relação à oposição entre a ‘forma fechada’, predominante no Classicismo, e a ‘forma aberta’, predominante no Barroco, há, no entanto, uma leve aproximação com a categoria relacionada ao estilo de Caravaggio, Rubens e Rembrandt, ao contrário das categorias utilizadas como instrumento de análise, nos parágrafos anteriores. Embora haja eixos verticais e horizontais visíveis na estrutura das obras, prevalece a assimetria no posicionamento das figuras na composição, gerando uma ambigüidade evidente através de um desequilíbrio quase sempre intencional e calculado, compensado, às vezes, 26 pelo modo como as cores estão distribuídas e, noutras vezes, opondo a figura ao vazio propriamente, em áreas planas e extensas de cor. As figuras sentadas em sofás até remetem à estrutura triangular de uma composição clássica. Porém, o triângulo, quando não é escaleno, finda sendo relegado pelas curvas exageradas e poses com afetação, das moças na composição. A ‘forma aberta’ – que devido ao predomínio de eixos diagonais que reforçam a ilusão espacial e o movimento sugerido, além do percurso visual em espirais, que parece querer se expandir para além dos limites da moldura – mostra-se mais adequado à análise das obras, objeto desta reflexão. Há um predomínio de linhas sinuosas que delineiam as figuras, além de enquadramentos cuja influência dos meios de reprodução mecânica de imagens (a fotografia e o cinema) se faz presente. Os cortes, nas figuras, ora remetem aos planos da linguagem cinematográfica, com o intuito de reforçar os aspectos narrativos, ora parecem fotografias mal feitas, como o registro de um instante realizado por um amador em processos mecânicos de captação da realidade. Os ângulos inusitados e as poses flagrantes também dialogam, como não poderia deixar de ser, com aquelas primeiras pinturas que, após o advento da fotografia, incorporaram à composição pictórica os elementos da então nova linguagem, como se pode notar nas obras que retratam banhistas enquanto se enxugam ou bailarinas enquanto ensaiam, de Edgard Degas, além das cenas de interiores em cabarés, nas obras de Toulouse-Lautrec, por exemplo. A análise dos conceitos de ‘pluralidade’ e ‘unidade’ apontam, de antemão, para uma analogia entre o percurso da ilusão na representação, do 27 Classicismo ao Barroco, com as séries de obras que produzi. Quer dizer, assim como a visualidade evoluiu de uma representação plural – na qual diversos elementos, embora relacionados harmonicamente, coexistiam de uma maneira relativamente autônoma na composição – para outra forma de representação, característica do Barroco, na qual os elementos estão visivelmente subordinados a um motivo principal, as obras por mim produzidas também apresentam uma evolução análoga. As pinturas da fase inicial, conforme já foi mencionado, além de apresentarem inúmeros elementos espalhados pela tela, como se houvesse acontecimentos simultâneos tentando prender, enquanto dispersam, o olhar de quem os observa, também apresentam, ocasionalmente, algo como duas composições distintas, justapostas de um modo implícito ou mesmo explicitamente, no campo pictórico. As obras hodiernas, devido a uma escassez de inspiração ou, quiçá, pouco apreço hoje em dia pelos aspectos narrativos, denotam uma ausência intencional daqueles elementos dispersos, acontecimentos distintos e justapostos de outrora. Há uma unidade, obtida através da articulação entre os elementos coadjuvantes da composição, que giram em torno da figura que protagoniza a cena. Em torno dela, como quase nada acontece, não há quase nada que possa comprometer ou desviar o foco. Em relação à oposição entre a ‘clareza’ e a ‘obscuridade’, ou seja, a claridade absoluta ou relativa das formas na composição, nas obras que são objeto desta reflexão e análise comparativa, é possível concluir, pela mera observação das obras ou de suas reproduções, uma ambigüidade que dificulta o estabelecimento da categoria predominante. Embora as obras sejam quase sempre excessivamente claras, no que se refere à luminosidade proveniente das luzes difusas, não há uma clareza das formas. 28 A obscuridade pressupõe um olhar que é capaz de deduzir o que está faltando na figura, encoberto pela sobreposição das formas ou pela ausência da luz. Um olhar que é resultante da evolução na visualidade, no que se refere à apreensão das formas plasmadas no quadro. Nas obras aqui analisadas, há os cortes outrora mencionados, que, diferentemente de um enquadramento, digamos, clássico, amputam as figuras. Além disso, as moças fazem poses e gestos que escondem enquanto mostram, ou vice-versa, deixando partes relevantes de seus corpos ocultas, à mercê do olho e da imaginação do observador que, na articulação entre a apreciação e o repertório, poderá completar o que foi meramente insinuado. Embora possa resultar num exercício de reflexão teórica pertinente para uma interpretação da forma, nas obras que produzi e que são objeto de análise desta dissertação, não se trata propriamente de contabilizar, após este exercício, quais categorias são predominantes para se estabelecer uma analogia, com o intuito de determinar uma possível linhagem à qual pertencem as obras produzidas. A aplicação das ‘categorias visuais’ na análise da forma, nas obras que estão sendo aqui abordadas, e que são, portanto, exemplares da pintura contemporânea, beira a leviandade. Tais categorias foram elaboradas e se destinam à análise de obras que pertencem a períodos e estilos bastante específicos, ou seja, a arte dos pintores do Quattrocento, da Alta Renascença, do Maneirismo e do Barroco. Entretanto, por um outro viés, presente nas entrelinhas do texto de Wölfflin (2000), talvez seja possível determinar de uma forma mais categórica o veredicto sobre as dúvidas e inquietações, alusivas à linhagem a qual pertencem as obras. Houve, por vezes, a tentativa de situar os estilos 29 geograficamente, além do uso das ‘categorias visuais’. Quando o autor compara a arte italiana com a produção artística dos alemães e holandeses, por exemplo, fica clara a predisposição para o Classicismo na Itália, por razões não apenas geográficas, mas, sobretudo históricas. Tal relação remonta ao arremedo do Classicismo grego, realizado pelos romanos e ainda presente, em ruínas e vestígios, pelas ruas, praças e edificações na ‘Cidade Eterna’. Posteriormente, após as invasões bárbaras e o declínio da Roma antiga, como se sabe, o estilo clássico permaneceria latente durante séculos, até a retomada ocorrida no período denominado sintomaticamente de Renascimento. Os povos da Europa setentrional, em contrapartida, não demonstram a mesma predisposição para a arte do mundo greco-romano e apresentam, quase como uma antítese à arte que teve a sua origem no berço da nossa civilização, uma outra arte que, por sua vez, mostra-se mais suscetível aos sentimentos e às emoções. Argan (1992), ao expor a relação dialética entre o Classicismo e o Romantismo, noutro contexto, ou seja, na arte que se desenvolveu desde o final do século XVIII, até a primeira metade do século XIX, menciona a tese de W. Worringer sobre as categorias das formas artísticas que se manifestam nas atitudes dos artistas perante o ambiente no qual vivem e produzem, ou seja, numa distinção dos estilos por áreas geográficas: “clássico seria o mundo mediterrâneo, onde a relação dos homens com a natureza é clara e positiva; romântico, o mundo nórdico, onde a natureza é uma força misteriosa, freqüentemente hostil” (ARGAN, 1992, p.11). Noutro livro, Arte e crítica de arte, Argan analisa um pouco mais detalhadamente a tese sobre a influência ambiental nos estilos: 30 Os povos mediterrânicos, para os quais a natureza é clara, acolhedora, não apresenta problemas, assumem-na como modelo universal, imitam-na, representam-na no equilíbrio perfeito, na harmonia de seus aspectos visíveis; os povos nórdicos, para os quais a natureza é misteriosa e ameaçadora, e se revela apenas por signos ou indícios, partem destas vagas intuições para se orientarem na incerta dimensão do mundo. Toda a arte parece, portanto, dividir-se nas duas esferas antitéticas do clássico e do não-clássico, do equilíbrio e da tensão ou, retomando o binômio de Schopenhauer, da representação e da vontade. (ARGAN, 1995, p.147) Retornando ao livro anterior, mais adiante, ao analisar as correntes expressionistas – a francesa e a alemã – do início do século XX, Argan retorna à discussão em torno da antítese entre a arte clássica e a arte romântica, que permearam a história da arte: A exigência fundamental, tanto do expressionismo dos fauves quanto do da Brücke, é a solução dialética e conclusiva da contradição histórica entre o clássico e romântico, entendidos como ‘constantes’, respectivamente, de uma cultura latino- mediterrânica e de uma cultura germânico-nórdica. Para Matisse, a personalidade de destaque do grupo fauves, a solução é uma classicidade originária e mítica, universal, mas por isso mesmo privada dos conteúdos históricos de Classicismo. (ARGAN, 1992, p.228) Apesar da superação destas contradições históricas, pela sucessão de ismos na Arte Moderna, a tentativa de reatar o fio da meada, que remete à tradição e ao legado da visualidade, onipresente, ora de forma mais contundente, ora nem tanto, nas pinturas aqui analisadas, se faz necessária. A menção feita ao Classicismo, quer dizer, à classicidade, como define Argan, em relação à obra de Henri Matisse, torna-se emblemática, pois o pintor francês sempre foi, desde o início, a principal referência, entre tantas outras dispersas, para a minha práxis artística. Havia, inicialmente, uma nítida intenção de estabelecer semelhanças, forçar um parentesco com a obra de 31 Matisse, cuja maestria no uso da cor, na aplicação de estampas e na simplificação das formas, foi largamente imitada. Através da tentativa de conciliar a classicidade com o expressionismo, na análise da obra La Joie de vivre, de 1906, Argan argumenta que: A expressão da alegria é tão expressão quanto a expressão da dor de viver, e pode-se expressar a alegria de viver sem representar a vida. Matisse não traz ao quadro o equilíbrio, a simetria da natureza. Seu procedimento é inteiramente aditivo: cada cor sustenta, impulsiona, acentua as outras num interminável crescendo. Cada cor, no contexto, é muito mais do que seria isoladamente, como puro matiz, e o quadro só se completa quando todas as cores alcançaram o limite do espectro e concordam entre si em seus valores máximos. São zonas lisas, luminosas, expandidas; a fronteira entre as zonas não é limite, e sim arremesso, de forma que todas as cores colorem por si todo o espaço, somando-se uma às outras; as linhas não são contornos, mas arabescos coloridos que asseguram a circulação, a irradiação cromática de todo o tecido pictórico. É um discurso sem verbos nem substantivos, apenas adjetivos; todavia, não é retórico, porque os adjetivos não são elogio às coisas (que não existem), e sim efusão da alma. Se existem músicas sem palavras, por que não haveria de existir uma pintura sem coisas? (ARGAN, 1992, pp.235, 236, grifo do autor) Ilustração 01 – Henri Matisse, La Joie de vivre, 1905-06, Óleo sobre tela, The Bames Foundation, Pensilvânia. (http://www.artofcolour.com/artistofmonth/matisse/matisse-works-files/large-size-image/matisse- joylife.jpg). 32 Como se sabe, logo em seguida, o pintor Pablo Picasso apresentaria sua obra Les Demoiselles d’Avignon, que superaria as pesquisas dos pintores fauves, e, como se não bastasse, romperia definitivamente com os paradigmas que haviam norteado a arte ocidental, desde a época de Giotto. Entretanto, esta é outra história. Retomando a análise da obra de Matisse, no texto de Argan, no qual é possível reforçar as proximidades entre os êxitos obtidos pelo artista francês e as minhas aspirações e os procedimentos por mim adotados, cabe destacar que as comparações sempre ocorreram, com ou sem ironia, nas mais diversas esferas: colegas, professores etc. Partindo desta premissa, torna-se possível estabelecer, enfim, uma linhagem à qual pertencem as obras produzidas, ou seja, à classicidade de Henri Matisse, a uma tradição da pintura produzida às margens do Mediterrâneo, a um delineamento das formas através de linhas sinuosas, apesar do apelo sensorial ocasionado pelas cores vivas, em contrastes intensos na composição. Uma pintura ensolarada – na qual as zonas de penumbras são escassas – só poderia estar, ainda que por vias tortuosas, atrelada desde o berço à herança clássica. Paradoxalmente, no entanto, as obras que, ao seu modo, relêem enquanto dialogam com os diversos Classicismos, são plasmadas por um pintor que vive e produz numa cena mais ampla, de dúvidas, indeterminações, crises e experimentações que tangenciam praticamente toda a arte contemporânea, em sua diversidade e instabilidade. Tal cenário poderia ser denominado, sintomaticamente, de neobarroco. O conceito de neobarroco, proposto como slogan ou etiqueta por Omar Calabrese, no lugar do “abusadíssimo ‘pós-moderno’, de que se desnaturou o 33 significado original e que se tornou na palavra de ordem ou em marca de operações criativas muitíssimo diferentes entre si” (CALABRESE, 1988, p. 24), traduz, em parte, algumas tantas indeterminações que contribuem para um hermetismo que permeia as produções artísticas contemporâneas, contribuindo para um impasse na relação entre o artista e o seu público. Tal conceito, percebido em manifestações das mais diversas, através de exemplos enumerados e analisados por Calabrese, que os retira da literatura (Umberto Eco, Ítalo Calvino), das artes plásticas (o Neo-expressionismo alemão, a Transvanguarda italiana, o grafite nova-iorquino), do cinema (Blade Runner – O caçador de andróides, de Ridley Scott; Blow Up – Depois daquele beijo, de Michelangelo Antonioni) e seriados de televisão (Colombo, Dallas) abrange, portanto, uma gama de fenômenos que orientam, enquanto desnorteiam, os rumos da arte, desde o esgotamento das vanguardas. Entre pormenores e fragmentos, limites e excessos, nós e labirintos apontados por Calabrese, torna-se possível estabelecer algumas situações, neste cenário, com as quais as obras aqui analisadas estão relacionadas. As citações ou pastiches, exaltados em “muitas realizações apelidadas de ‘pós- modernas’” (CALABRESE, 1988, p. 42), se fazem presentes em algumas das obras que produzi, ao longo do meu percurso – outrora de uma maneira mais contundente, agora nem tanto – e indicam uma constante em minhas proposições de pintor. Há uma repescagem de fragmentos e pormenores da arte do passado, como nostalgia ou fetiche, ainda que banalizados em sua reutilização, e que, recombinados numa composição, proporcionam novas significações. Trata-se de uma das possibilidades que ainda restaram à pintura, um diálogo com o seu legado, diante das incontáveis tentativas promovidas 34 pelos adeptos das novidades que tentaram, diante das possibilidades abertas pelos novos meios, relegá-la tão-somente às paredes dos museus, e não mais às vivências que dão forma, num ateliê. Sobre tal procedimento, que consiste em recombinar ludicamente formas e elementos isolados de seus ambientes originais, citados ou diluídos em novas obras, Calabrese diz que “o prazer [...] consiste na extracção dos fragmentos dos contextos de pertence e na eventual recomposição dentro de uma moldura de ‘variedade’ ou multiplicidade” (CALABRESE, 1988, p. 103, grifo do autor). Outra característica da cena neobarroca, “que brota da difusão das culturas de massa” (CALABRESE, 1988, p. 208), que por sua vez, se esparramam e contaminam as demais formas artísticas, rompendo fronteiras aparentemente intransponíveis, diz respeito aos regressos do nada, “que só parcialmente se pode referir a uma matriz filosófica niilista, porque o outro fundamento seu é o exercício de estilo, a retórica lúdica, a invenção sobre o tema zero” (CALABRESE, 1988, p. 183). Adiante, o autor comenta sobre pintores neo-expressionistas alemães, como Anselm Kiefer, por exemplo, “que nos seus quadros [...] praticam amplamente ‘a redução ao nada’ das figuras” e que: Não se trata propriamente da eliminação da figura em favor do abstracto, como noutros momentos do experimentalismo europeu, mas de um verdadeiro e genuíno trabalho de aniquilamento: as figuras são desfiguradas. (CALABRESE, 1988, p. 183, grifo do autor) Adiante, Calabrese aponta outras situações nas quais as buscas pelo nada, pelo aniquilamento ou pela redução ao mínimo se fazem presentes, como o uso do silêncio, assim descrito por outro teórico dos fenômenos e manifestações da contemporaneidade, Fredric Jameson. Em seu livro sobre o 35 pós-modernismo, analisado como reflexo da sociedade pós-industrial e do capitalismo tardio, Jameson afirma que: Na experiência da música de John Cage, na qual um conjunto de sons materiais (por exemplo, piano preparado) é seguido por um silêncio tão intolerável que é impossível imaginar o aparecimento de um outro acorde sonoro, assim como é impossível imaginar a lembrança do acorde precedente, a fim de estabelecer qualquer conexão com ele, se é que existe tal conexão.(JAMESON, 1996, p.54) Ainda sobre o silêncio, ou as ‘provocações silenciosas’ que preenchem o vazio, no qual quase nada acontece, no intervalo entre os sons, cujo encadeamento ou conexões praticamente se perdem, ou melhor, se abrem às possibilidade múltiplas de fruição, nas composições musicais de Cage, há ainda o comentário de Calabrese: Outra manifestação do aniquilamento pode talvez ser a ‘produção’ de silêncio. Muitos músicos, a partir dos anos 70 [...] levaram a cabo provocações silenciosas. Mas também neste caso se tratava de um conceito talvez diferente. Tratava- se aí de valorizar a crise da linguagem musical. Não era uma verdadeira e genuína exaltação do Nada. O que, pelo contrário, parece caracterizar hoje a produção musical (por exemplo, ligeira) é antes o Nada como som. O indistinto, o ruidoso sem harmonia. O que equivale, não a produzir graduações, mas justamente não-distinção. (CALABRESE, 1988, p. 184, grifo do autor) Se o nada ou quase nada não se dá propriamente, nas obras aqui analisadas, pelo aniquilamento da figura, como em Alselm Kiefer, ou ainda, como nas figuras do pintor Francis Bacon, é possível estabelecer uma analogia entre o silêncio ou a sucessão de ruídos indistintos, manifestados na música contemporânea, e o vazio em torno das figuras, que se faz presente nas obras, pinturas sobre o nada, enfatizando a ausência quase total da narrativa. 36 Enfim, o clássico e o barroco, analisados em suas oposições e contradições, se inter-relacionam, pois “um não existe sem o outro e, mais ainda, um põe necessariamente o outro de modo implícito (ou até mesmo explícito)” (CALABRESE, 1988, p. 206). Como o clássico agrada a qualquer um, torna-se possível constatar o quanto as suas formas motivaram a minha poética quase barroca, ou como na acepção de Omar Calabrese, neobarroca. Se as manifestações oriundas de uma tradição clássica aspiram agradar a qualquer um, outros questionamentos podem ser aqui apontados. A apreciação, contemplação quiçá desinteressada, que justifica e dá sentido à obra em sua plenitude, também é motivo de reflexão. A obra, como se sabe, só se completa em sua execução, através da relação com o público, com o espectador que a frui e interpreta, abrindo incontáveis possibilidades novas, num processo de “oscilação contínua”, conforme afirma Umberto Eco (1974). A partir do repertório acumulado através de experiências vividas e das afinidades de gosto, o leitor da obra amplia e possibilita novas significações à mensagem original. Em relação à execução da obra pelo leitor, Luigi Pareyson afirma o seguinte: Se a interpretação tem como intuito ser a obra e se para o intérprete a sua interpretação é a própria obra, pode-se dizer então que a obra vive somente nas próprias execuções. A execução não acrescenta à obra nada que não lhe pertença. Antes, pelo contrário, aquilo que ela realiza é tão essencial à obra que de modo algum pode parecer acessório e secundário. Se executar significa dar vida à obra como ela mesma quer, a execução vive da mesma vida da obra, e esta por sua vez tem nela o seu próprio e natural modo de viver. (PAREYSON, 1993, p.224, grifo do autor) E, relacionando a interpretação ao repertório de quem a executa, Pareyson afirma também que: 37 Na interpretação é sempre uma pessoa que vê e observa. E observa e vê do particular ponto de vista em que atualmente se acha ou se coloca e com o singular modo de ver que se formou ao longo da vida ou que intenciona, cada vez, adotar, de sorte que toda a pessoa, na íntegra, passa a constituí-los, a partir de dentro, a gerá-los, a direcioná-los, dirigi-los e determiná-los, tanto no particular modo de ver como no singular ponto de vista. [...] Daí resultam infinitas interpretações possíveis, e o conhecimento é necessariamente marcado por esse caráter de multiplicidade inexaurível que constitui a interpretação como tal. (PAREYSON, 1993, p. 180) Esta reflexão, sobre as possíveis interpretações que não se esgotam e, pelo contrário, ampliam e renovam as possibilidades de sentido, a cada nova apreciação e leitura da obra, remetem ao conceito de obra aberta, formulado por Umberto Eco. Ainda sobre estas relações, entre o produtor, a obra e o leitor que a frui, é possível destacar outro trecho elucidativo, desta vez compilado do próprio texto de Eco: Tem-se discutido, de fato, em estética, sobre a ‘definitude’ e a ‘abertura’ de uma obra de arte: e esses dois termos referem-se a uma situação fruitiva que todos nós experimentamos e que freqüentemente somos levados a definir: isto é, uma obra de arte é um objeto produzido por um autor que organiza uma seção de efeitos comunicativos de modo que cada possível fruidor possa recompreender (através do jogo de respostas à configuração de efeitos sentida como estímulo pela sensibilidade e pela inteligência) a mencionada obra, a forma originária imaginada pelo autor. Nesse sentido, o autor produz uma forma acabada em si, desejando que a forma em questão seja compreendida e fruída tal como a produziu; todavia, no ato de reação à teia dos estímulos e de compreensão de suas relações, cada fruidor traz uma situação existencial concreta, uma sensibilidade particularmente condicionada, uma determinada cultura, gostos, tendências, preconceitos pessoais, de modo que a compreensão da forma originária se verifica segundo uma determinada perspectiva individual. No fundo, a forma torna-se esteticamente válida na medida em que pode ser vista e compreendida segundo multíplices perspectivas, manifestando riqueza de aspectos e ressonâncias, sem jamais deixar de ser ela própria [...]. Neste sentido, portanto, uma obra de arte, forma acabada e fechada em sua perfeição de organismo perfeitamente calibrado, é também aberta, isto é, passível de mil interpretações diferentes, sem que isso redunde em alteração de sua irreproduzível singularidade. Cada fruição é, assim, uma interpretação e uma execução, pois em cada fruição a obra revive dentro de uma perspectiva original. (ECO, 1991, p. 40, grifo do autor) 38 A obra é aberta, portanto, às possibilidades interpretativas, através de estímulos ao leitor que, entre as convenções artísticas e o repertório, completa enquanto decodifica a obra, proporcionando sentidos múltiplos, em relação àqueles formados originariamente pelo artista. É claro que tal conceito torna-se mais adequado e pertinente, no âmbito das artes plásticas, àquelas manifestações da arte informal3. Por se tratar de obras nas quais os processos e procedimentos são colocados em evidência, até mais do que o produto final, a abertura é bem mais explícita, até óbvia e natural. No entanto, há níveis de abertura, e qualquer obra em qualquer época possibilita uma multiplicidade de leituras. Noutro livro, A Estrutura Ausente, Eco analisa as novas figurações, surgidas mais ou menos por volta de 1960, sob o prisma das aberturas possíveis da obra: As várias tendências pós-informais, da nova figuração ao assemblage, a ‘pop art’ e suas expressões afins, trabalham de novo baseadas em códigos precisos e convencionais. A provocação, a reconstituição da estrutura artística, age com base em estruturas comunicacionais que o artista já encontra pré-formadas: o objeto, a estória em quadrinhos, o cartaz, o acolchoado florido, a Vênus de Botticelli, a placa de Coca Cola, a ‘Criação’ da Sistina, a moda feminina, o tubinho de dentifrício são elementos de uma linguagem que ‘fala’ aos usuários habituais daqueles signos.[...] Também aqui, o artista que os utiliza transforma-os em signos de outra linguagem, e no fim das contas institui, na obra, um novo código que caberá ao intérprete descobrir; a invenção de um código inédito de obra para obra (quando muito, de uma série de obras para outra série de obras do mesmo autor) permanece uma das constantes da arte contemporânea: mas a instituição desse novo código age dialeticamente em relação a um sistema de códigos preexistente e reconhecível. (ECO, 1974, p. 154, grifo do autor) 3 Obras de artistas como Jackson Pollock, Mark Rothko, Franz Kline, Willem de Kooning, Antoni Tàpies e Yves Klein, entre outros, cujas propostas estavam em voga, em meados do século passado, quando Eco ensaiava tais conceitos. 39 Até a abertura ocasionada pela dinâmica da arte barroca, percebida na forma que parece querer se expandir, dilatando-se para além dos limites da moldura é, grosso modo, analisada sob a ótica atual, uma forma de obra aberta. Quanto ao estilo clássico, “no fundo visa a reconfirmar as estruturas aceitas pela sensibilidade comum à qual se dirige, opondo-se a determinadas leis de redundância apenas para reconfirmá-las de novo” (ECO, 1991, p. 163), pois: Toda forma de arte, ainda que adote convenções da linguagem comum ou símbolos figurativos aceitos pela tradição, fundamenta seu valor justamente numa novidade de organização do material disponível, que para o fruidor constitui sempre um acréscimo de informação. (ECO, 1991, p.163) O conceito de abertura vem à tona, principalmente, em ocasiões nas quais as obras são submetidas à apreciação, mediante reproduções ou, como aconteceu recentemente, através de uma exposição. As pessoas que lá estiveram emitiram opiniões das mais diversas, nas quais inúmeras indagações vieram se somar àquelas que permeavam as minhas reflexões: a insistência no uso do suporte tela, diante de tantas possibilidades à disposição hoje em dia; a pintura ainda figurativa, após tantas experiências realizadas com o intuito de romper com os paradigmas da mimese e da verossimilhança, desde o Modernismo; as moças e as suas formas generosas roubando todas as cenas possíveis; as alusões às obras do passado, diluídas em citações e pastiches, ora mais evidentes, ora implícitas nas ‘entrelinhas’ do quadro; as cores vivas, em contrastes vibrantes; a repetição do motivo à exaustão; a decoração kitsch dos cômodos claustrofóbicos etc. Luigi Pareyson aponta uma resposta possível para estas indagações: 40 Ora, tanto faz que o artista represente ou transfigure, o essencial é que ele ‘represente’; tanto faz que deforme ou transforme, o importante é que ‘forme’ [...]. A arte consiste apenas no formar por formar, quer de fato represente ou crie, retrate ou abstraia, interprete ou invente, exprima ou idealize, reconstrua ou construa, penetre ou apenas aflore, se baseie no cálculo ou aja por instinto. O essencial é que haja arte [...]. A polêmica contra a arte figurativa, se tem algum sentido, apenas o tem em virtude do pressuposto, em parte bem fundado, de que ela, não correspondendo nem ao gosto moderno nem ao espírito contemporâneo, não pode mais tornar-se estilo eficaz e poética operante, mas é obediência acadêmica e obséquio extrínseco a uma tradição mais padecida que herdada, enquanto a abstração pode tornar-se mais operativa, artisticamente, por sua maior aderência à espiritualidade hodierna, que nela pode realizar a própria vocação formal e ser verdadeiramente capaz de formar. Isso evidentemente não diminuiria em nada o valor artístico eventualmente alcançado, hoje também, por uma arte figurativa, nem suprimiria o inegável fato de que também uma adesão ao programa abstratista poderia ser extrínseca, pois existe também uma academia da antiacademia. Esta é sem dúvida a pior de todas. (PAREYSON, 1993, pp. 302-303) Portanto, embora a obra dite as suas próprias leis, em seus processos de formação, na legitimidade concedida à poética, tais questionamentos estimulam a reflexão sobre as obras e a amplitude do seu alcance. Recorrendo novamente a Umberto Eco: A obra é a fundação das regras inéditas pelas quais se rege; mas, em contraposição, não pode comunicar se não houver quem já conheça essas regras. Daí, a abundância de explicações preliminares que o artista é obrigado a prodigalizar sobre seu trabalho (apresentações de catálogo, explicações da série musical empregada e dos princípios matemáticos pelos quais se rege, notas de rodapé de poesia). A tal ponto a obra aspira à sua própria autonomia em relação às convenções vigentes, que funda um sistema de comunicação inteiramente seu: mas só comunica plenamente se apoiada em sistemas complementares de comunicação lingüística (a enunciação da poética), usados como metalinguagem em relação à língua-código instaurada pela obra. (ECO, 1974, p. 153) 41 A obra, portanto, ao mesmo tempo em que funda suas regras, através de um “fazer tal que, ao fazer, ao mesmo tempo inventa o modo de fazer” (PAREYSON, 1993, p. 59, grifo do autor), requer do leitor ferramentas para sua apreensão, e tais ferramentas, para além dos olhares e dos pareceres emitidos pelo crítico de arte, quase sempre, podem e devem ser disponibilizadas pelo próprio artista, em exercícios metalingüísticos que consistem basicamente na elaboração do discurso sobre a obra, além do próprio discurso da obra. Adiante, após esta compilação de reflexões alheias que dialogam enquanto embasam a análise aqui proposta, resta buscar nos discursos dos próprios artistas a manifestação de suas respectivas poéticas, com o intuito de promover aproximações com os colegas de ofício, que outrora edificaram este legado, fonte inesgotável para quem ainda se dispõe a pintar, hoje em dia, em especial, pinturas sobre a pintura. 42 Capítulo 2 O processo da arte do ponto de vista daquele que a executa Não seja crítico de arte, faça pintura. Essa é a salvação. (Paul Cézanne) 43 Neste capítulo, pretendo estabelecer algumas analogias entre o discurso do artista e a sua práxis: o artista, através de tratados, manifestos, depoimentos e ensaios, também pode contribuir para que o público apreenda a sua poética e o sentido de suas obras? Tal papel cabe exclusivamente ao teórico, ao filósofo e à crítica de arte? A separação entre a práxis artística e a sua teorização faz sentido na arte? O sentido, conforme afirma Anne Cauquelin: “é produzido, ele não habita simplesmente a obra bruta, ele é constituído pelo trabalho de quem procura estabelecê-lo, tornando-o apreensível” (CAUQUELIN, 2005, p. 96). A autora, em seu compêndio sobre as teorias da arte, comenta sobre as ‘práticas teorizadas’ que, como alternativa ao que ela define como ‘teorias secundárias’, ou seja, aquelas teorias que “intervinham nas obras, e após elas, procurando elucidar seus enigmas, evidenciar suas estruturas ou acompanhar sua recepção com instrumentos conceituais já prontos” (CAUQUELIN, 2005, p. 129, grifo da autora) – em suma, uma formulação teórica que se debruça sobre a obra, a posteriori – em oposição a essas teorias, secundárias, as ‘práticas teorizadas’, por sua vez: Nascem ao mesmo tempo em que as obras que sustentam e estão tão ligadas ao objeto que as incita a existir que não poderiam ter qualquer pretensão de autonomia, nem sequer de alguma validade, sem esse suporte. (CAUQUELIN, 2005, p. 129) Anne Cauquelin subdivide as ‘práticas teorizadas’ em duas modalidades: uma delas, externa, é o exercício da crítica; a outra, uma prática interna, é aquela exercida pelo próprio artista, em seus escritos e reflexões, ou seja, conforme a definição dada por sir Herbert Read, “o processo da arte do ponto de vista daquele que a executa” (READ, 1976, p. 161). O que há em comum entre essas formas de teorização, externa ou interna, é a maior proximidade 44 com as obras de arte, se comparadas em relação às especulações filosóficas, por exemplo. À critica de arte, cabe emitir juízos de valor, avaliar e comparar obras e artistas, e não são poucas as ocasiões nas quais o artista e o público permanecem à mercê do gosto do crítico de arte, que enaltece os seus escolhidos, relegando os demais ao limbo: “silêncio ou descrédito espreitam o desafortunado que não soube agradar” (CAUQUELIN, 2005, p. 134). O papel da crítica de arte passou a ser definido, mais ou menos, entre o final do século XVIII e o início do século XIX, coincidindo com o processo pelo qual a arte e os artistas passaram a adquirir uma autonomia relativa. A partir da instituição dos Salons, um evento oficial no qual os artistas expunham suas realizações, a arte, ao menos em tese, se tornou gradualmente mais acessível ao público. Até então, como se sabe, as pinturas quase sempre permaneciam restritas aos cômodos dos palácios, disponíveis para poucos. As mostras abertas ao público demandavam uma mediação, em geral, realizada por alguém que julgasse, de acordo com o bom gosto vigente e os cânones da Academia, o que merecia ser contemplado e o que sequer valia uma olhada. Todavia, as avaliações sempre oscilaram entre a objetividade e a subjetividade, o sentimento e a razão, conduzindo o público e os artistas, de acordo com os caprichos, as modas, o humor e as leis do mercado. Como um intermediário entre a obra e o público, há ocasiões em que o crítico, ao enaltecer ou relegar os artistas, define os rumos da própria história da arte. Há o célebre caso dos pintores impressionistas, que foram assim rotulados pela crítica, pejorativamente, quando expunham suas obras aparentemente inacabadas, feitas com pinceladas rápidas, com o intuito de 45 captar as sensações luminosas. Tais obras eram tidas como meras impressões. Há também outro caso célebre, o enaltecimento da New York School, promovido pelo crítico Clement Greenberg, destronando a École de Paris, no período pós-guerra, em meados do século XX. Tal acontecimento da história da arte foi representado de uma maneira alegórica, cínica e bem-humorada, numa tela do pintor hiper-realista norte-americano Mark Tansey. Ilustração 02 – Mark Tansey, Triumph of the New York School, 1984, Óleo sobre tela, Whitney Museum of American Art, New York. (http://www.old.uni-bayreuth.de/departments/politische-soziologie/bilder/tansey.jpg). Ali, os pintores da Escola de Paris, vestidos com seus uniformes da Primeira Guerra Mundial, se rendem diante dos pintores da Escola de Nova York que, por sua vez, usam uniformes da Segunda Guerra Mundial. O general, Pablo Picasso, intermediado por André Breton, se prepara para assinar a rendição, diante de Clement Greenberg. Há, entre outros, Henri Matisse, Guilhaume Apollinaire, Juan Gris, Pierre Bonnard e Fernand Léger, 46 vistos do lado do exército derrotado. Do outro lado, podem ser vistos os pintores Jackson Pollock e Willem de Kooning, e o teórico Harold Rosenberg, entre outros: a pintura faz uma alusão à obra A Rendição de Breda – o quadro das ‘lanças’ – do pintor espanhol Diego Velázquez. A ascensão da Action-Painting e o declínio da Escola de Paris, com a conseqüente mudança no centro das artes – numa travessia de um lado para o outro do Oceano Atlântico – são exemplos do papel e da influência exercida pela crítica de arte hodierna. Todavia, sobre a necessidade da crítica e, enfim, as teorizações engendradas pelos artistas, como meios necessários à compreensão dos sentidos e das propostas presentes nas obras de arte, em especial, as mais recentes, Argan argumenta: É, efectivamente, impossível entender o sentido e o alcance dos factos e dos movimentos artísticos contemporâneos sem ter em conta a literatura crítica que a eles se refere. De resto, uma parte considerável dessa literatura deve-se aos próprios artistas, que freqüentemente sentiram a necessidade de acompanhar, justificar e sustentar a sua obra com declarações programáticas e intervenções polémicas. (ARGAN, 1995, p. 128) Portanto, para não me desviar do foco principal, que no caso não é a crítica, e sim a autocrítica, cabe retomar o viés pelo qual as ‘práticas teorizadas’ se apresentam através de escritos e reflexões efetuados pelos próprios artistas, ou seja, a prática interna. Desde os tratados sobre a pintura, no Renascimento, até os depoimentos dados pelos artistas contemporâneos, por ocasião de uma nova exposição, passando pelas cartas de Vincent van Gogh endereçadas ao seu irmão Théo; pelos registros dos cursos ministrados por Wassily Kandinsky e Paul Klee na Bauhaus, em Weimar e Dessau; além dos infindáveis manifestos 47 dos ismos da Arte Moderna, as teorizações elaboradas pelos artistas vêm adquirindo o status de uma fonte válida e legítima, para a apreensão das poéticas. Afinal, é o artista quem está imerso em suas atividades de ateliê, formando enquanto presencia a formação da obra de arte, diante de seus olhos. Conforme afirma Herschel Chipp, na introdução geral de sua coletânea de escritos de artistas modernos: Os artistas são considerados comentaristas legítimos de sua própria arte, mergulhados como estão nas idéias e atitudes de seu ambiente, e os únicos participantes e testemunhas do ato pelo qual a obra de arte é criada. (CHIPP, 1999, p. 1) Em seguida, Chipp enumera alguns procedimentos metodológicos necessários ao estudo mais aprofundado das reflexões e idéias dos artistas, assim resumidos: o contexto geral da época e o ambiente ideológico no qual as idéias foram desenvolvidas e apresentadas; além do meio pelo qual elas foram transmitidas (correspondência, notas, manifestos, ensaios) e as qualificações do artista enquanto teórico e/ ou literato. Todavia, muitos teóricos, críticos e até mesmo artistas, vêem com alguma desconfiança as reflexões elaboradas pelos próprios artistas. O sociólogo e historiador Pierre Francastel conclui que a “arte sofre, em nossos dias, uma tentação pelo gratuito e há de se reconhecer que em grande parte a culpa cabe aos artistas e aos filósofos” (FRANCASTEL, 1993, p. 57). Adiante, ele aponta o fenômeno dos artistas escritores como um fruto das “últimas manifestações do simbolismo e afinal do romantismo [...], cujo representante último mais temível foi Gauguin” (FRANCASTEL, 1993, p. 58). Numa nota de rodapé, na mesma página, o autor afirma que: 48 É tão sensível quanto qualquer pessoa ao encanto de Noa- Noa, [...] o que julgo deplorável é transferir para os méritos abstratos e literários de Gauguin a admiração que deve se dirigir, acima de tudo, a sua obra de pintor. O que aqui ataco são as ‘panelinhas’ literárias: é a interpretação totalmente verbal de sua obra pintada e escrita no sentido de Maurice Denis, excelente escritor quanto ele e pintor medíocre ou mais. (FRANCASTEL, 1993, p. 58) Mas, hoje em dia, apesar de algumas raras ressalvas que ainda são feitas ao artista que elabora teorias sobre a sua práxis, é raro que não se recorra aos escritos dos artistas, muitas vezes até mais do que aos textos elaborados pelos teóricos, filósofos e historiadores da arte, além da própria crítica de arte, quando se tem por objetivo uma investigação da poética do artista e das obras por ele produzidas, desde a sua gênese. O filósofo mexicano Sanchez Vázquez tece um comentário sobre as teorizações elaboradas pelos artistas, ao longo da história: O artista, na verdade, não é por princípio um teórico, mas um pouco de teoria – quando esta finca suas raízes na prática – não lhe falta. Às vezes, insatisfeito e impaciente com o que os teóricos lhe dizem, pergunta-se inquieto por que hão de ser eles e não ele – que dispõe da rica e insubstituível bagagem de sua experiência criadora – a refletir sobre ela. E surge assim o artista-teórico, reflexivo, que encontramos no Renascimento com Leonardo e Alberti, [...] e em nossa época – que é, o que não deixa de ser sintomático, aquela em que mais proliferam – com criadores do porte de Kandinsky, Malevich e Siqueiros, [...] e tantos outros. Bastaria essa breve citação para reconhecer que a hostilidade do artista em relação à teoria não é absoluta, mas sim está mais bem direcionada às doutrinas que só oferecem suas normas asfixiantes ou sua especulação vazia. Isso não quer dizer que o artista que teoriza sobre a arte, pelo fato de contar com sua própria experiência, esteja a salvo de interpretá-la num sentido normativo, como faz Siqueiros ao proclamar que ‘não há outra rota que não a nossa’, ou que não se deixe arrastar por um impulso especulativo – como ocorre com Kandisnky, Malevich ou Mondrian – ao enredar-se em labirintos metafísicos. (SANCHEZ VÁZQUEZ, 1999, p.25) 49 A análise das reflexões e das teorizações, realizadas pelos próprios pintores, articuladas ao percurso e às obras por eles produzidas, enfim, se faz presente, expandindo as possibilidades duma decodificação, numa via alternativa à crítica e às especulações filosóficas, rumo à elucidação dos mecanismos e procedimentos da poética de cada artista. As escolhas que fiz, e que por sua vez recaíram, primeiramente, sobre os pintores pós- impressionistas (Cézanne, Van Gogh e Gauguin), mediante a análise de fragmentos de suas correspondências, e, posteriormente, sobre os escritos e as reflexões sobre arte de Henri Matisse – cujas tentativas de aproximação e de apropriação sempre estiveram mais ou menos presentes em minha práxis artística – são o foco deste capítulo. Todavia, antes de me debruçar sobre alguns trechos extraídos das cartas de Cézanne, Van Gogh e Gauguin, além das reflexões de Henri Matisse, cabe destacar algumas analogias possíveis, estabelecidas com artistas mais próximos, no tempo e no espaço, das obras que produzo. Há parentescos que se tornam mais claros, quando o olhar se volta para algumas pinturas contemporâneas produzidas em nosso país. Uma explicação sobre a ausência inicial da tentativa de aproximação das minhas obras com as pinturas de Rubens Gerchman e João Câmara Filho, por exemplo, pode ser obtida na relação de dependência que se estabelece entre a arte feita aqui no Brasil e aquela produzida no continente europeu. Numa análise da literatura produzida na América Latina, realizada por Nestor Garcia Canclini, em seu livro sobre as culturas que ele denomina híbridas, o autor, tomando como exemplo as obras de escritores latino-americanos, tece o seguinte comentário: 50 É próprio de um escritor dependente, formado na convicção de que a grande literatura está em outros países, a ansiedade em conhecer – além da sua – tantas outras; apenas um escritor que crê que tudo já foi escrito consagra sua obra a refletir sobre citações alheias, sobre a leitura, sobre a tradução e o plágio, cria personagens cuja vida se esgota em decifrar textos alheios. (CANCLINI, 2006, p.111) Talvez, por supor que todas as pinturas também já tenham sido feitas, o meu olhar se tenha voltado inicialmente para aquela arte produzida por artistas que, embora não estejam tão próximos do meu cotidiano, como Gauguin ou Matisse, representam um momento decisivo na história da pintura ocidental, quando os pintores se viram num impasse, diante das inovações que foram proporcionadas pela invenção dos meios de obtenção e reprodução mecânica de imagens. Dentre as possibilidades que restaram aos pintores, àquela altura, há algumas constatações sobre os caminhos possíveis, apontados por outros pintores contemporâneos daqueles aqui escolhidos. Há o célebre enunciado de Maurice Denis que, sob um ponto de vista formalista, afirma “que um quadro – antes de ser um cavalo de guerra, uma mulher nua ou uma anedota qualquer – é essencialmente uma superfície plana recoberta de cores numa dada ordem” (CHIPP, 1992, p.90). Há também nos escritos de Paul Klee, que afirmava – na introdução de um ensaio sobre a arte moderna – entre outras coisas, que “a arte não reproduz o visível, mas torna visível” (KLEE, 2001, p. 43). Em outras palavras, tal processo pelo qual a pintura deixou de apenas reproduzir – ora subordinada à literatura, ora à história e, em especial, à natureza – para então enfatizar os seus próprios meios e procedimentos, as suas técnicas e seus materiais – evoluiu da representação para a apresentação – pode ser assim resumido nas palavras do pintor João Câmara: 51 A prática da pintura passou da retórica demonstrativa para um adensamento de suas questões naturais – o suporte, as relações de sintaxe da figuração com a imaginação, a crítica da imagem e o ícone etc. – seja, questões de grau técnico, geralmente conectadas ao espaço criativo virtual e que passaram para o campo real na constituição do próprio ‘corpo’ da pintura. (CÂMARA, 2003, V. 2. p. 188) Tais afirmações, aliadas às indagações e às inquietações que permearam o fazer artístico, durante o século passado, ainda não estão plenamente superadas na pintura. A evolução no percurso da arte, rumo à abstração e, posteriormente, num refluxo que sucede a um esgotamento, um retorno à figuração – além da convivência entre ambas as tendências, tão díspares, hoje em dia – são parte inerente deste legado da pintura, presentes direta ou indiretamente nas produções hodiernas. Ao retomar a idéia de se estabelecer parentescos entre as minhas obras e, quiçá, as misses e professorinhas de Gerchman e as mulheres, casos de amor, de Câmara, faz-se necessária uma breve contextualização do percurso destes artistas brasileiros. O artista Rubens Gerchman, versátil, ao longo de sua carreira não se dedicou somente à pintura. Todavia, num recorte que se faz necessário, apenas a produção pictórica será abordada. Suas pinturas, com apropriações de figuras, surgem justamente numa época de retorno à figuração. Durante os anos 1960, a Pop Art norte-americana despontava como tendência, cuja supremacia viria a influenciar definitivamente a arte brasileira daquele período. Entretanto, por estas terras, os meios e os procedimentos Pop foram adaptados às circunstâncias e à realidade dura que o país atravessava naquele período. 52 Gerchman, com doses de humor e crítica social, aborda em suas telas uma temática tipicamente cotidiana, suburbana e carioca, portanto, brasileira: os operários diante duma placa, na qual se lê ‘não há vagas’; demais trabalhadores, espremidos, enquanto se deslocam num ônibus lotado; os rostos dos desaparecidos pelo regime de exceção que havia sido instaurado no país, numa inversão do procedimento adotado pelos meios da repressão, que estampava, em cartazes espalhados pelas cidades, fotos daqueles que combatiam a ditadura militar, rotulados como terroristas, uma ameaça à segurança nacional, ou seja, os procurados; as misses e as professorinhas, musas do arrabalde, lindas criaturas que povoam o imaginário do cidadão comum; o namoro dos casais no banco de trás de um automóvel espaçoso e os longos beijos em close-up, como numa cena de cinema; os jogadores de futebol posando para uma foto, o registro para a posteridade dos craques de outrora que promoviam a alegria do povo. O artista declara: “Essa coisa de desenhar o anônimo sempre me interessou, o ser humano perdido no meio da rua” (MAGALHÃES, 2006, p. 14). O olhar do artista estava voltado, portanto, para os assuntos populares, os dramas, melodramas e aspirações das massas, as tristezas e as alegrias que surgem em manchetes de jornais, nas telenovelas e em programas de auditório. Em suas telas, o rei do gosto duvidoso traz à tona a grandeza das coisas aparentemente vãs, os lugares comuns que povoam a existência, principalmente das classes mais simples. Sobre as obras e a poética de Gerchman, Fábio Magalhães afirma: 53 Sua pintura é sensual, luminosa, ensolarada e densamente povoada. Vê de modo crítico os conflitos sociais e procura, ao mesmo tempo, representá-lo de modo solidário, envolvendo-se ele mesmo nos dramas que representa, e nunca como alguém que comenta os conflitos à distância, para assistir confortavelmente da platéia. O artista faz parte do mundo que representa, isto é, ao abordar seus assuntos de forma reflexiva, se deixa ao mesmo tempo contaminar pelo gosto popular. Sua arte expressa um enorme fascínio pela vida tal como ela é, mesmo nos momentos em que a vida se revela de modo frívolo e sem grandiosidade. E quem disse que não pode haver grandeza na frivolidade? (MAGALHÃES, 2006, p. 08) Como se não bastassem as pinturas, numa profusão de cores, e uma temática popular que remete aos dramas e aos anseios das massas, conforme já foi mencionado, o artista também promoveu, enquanto esteve à frente na direção da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, uma gestão inovadora. Algum tempo após retornar de Nova York – cidade na qual o artista estivera morando durante alguns anos, após ter recebido um prêmio de uma viagem, no Salão de Arte Moderna de 1967 – Gerchman foi convidado para assumir a direção da Escola de Artes Visuais, então recém inaugurada. Lá, a promoção de um “espaço aberto, dinâmico e multidisciplinar”, conforme afirma o pintor, num depoimento a Fábio Magalhães, renderia frutos. A geração ’80, cuja base era composta em grande parte de alunos egressos da EAV, ocupou os espaços possíveis da escola, em 1984, numa exposição que celebrava, além do hedonismo, do prazer e de uma falta de compromisso com os hermetismos da arte conceitual, o retorno triunfal da pintura. Àquela altura, uma outra pintura, obviamente, mas ainda assim, essencialmente pintura. Retomando as obras de Rubens Gerchman, em especial as misses enfileiradas e as professorinhas emolduradas, torna-se possível estabelecer as analogias pretendidas com as minhas obras, pois, em comum, o que ali pode 54 ser observado é o coroamento de uma beleza. A miss, com seus trejeitos e frases feitas, enquanto representa um estado da federação com uma faixa que encobre parcialmente o seu maiô de miss, deixa transparecer o estado da alma em seu semblante. O maiô, por sua vez, permite a contemplação das formas, em medidas perfeitas. A miss, exposta aos olhares ávidos de um telespectador voyeur, como um pedaço de carne no açougue, recita trechos d’O Pequeno Príncipe enquanto sorri um sorriso de reclame de creme dental. A passarela na qual elas desfilam torna-se o lago do qual as musas emergem. As professorinhas, por sua vez, costumam esconder as suas curvas em aventais com bordados singelos e bolsos enormes, sempre repletos de giz. O pó desprendido pela lousa apagada encobre os anseios de Maria Tereza, Maria Helena, Maria Lucia e Maria Angélica. Em suma, as misses e as professorinhas, como uma Monalisa suburbana, são musas brasileiras, à espera de um pintor de retratos. Ilustração 03 – Rubens Gerchman, Concurso de Misse, 1965. (MAGALHÃES, Fábio. Rubens Gerchman. São Paulo: Lazuli, 2006. p. 16). 55 Sobre a Lindonéia, figura que, de certa forma, sintetiza as mulheres presentes nas obras de Gerchman, o artista diz: A Lindonéia é uma personagem inventada, mas um pouco autobiográfica. Eu tinha uma namorada que não se chamava Lindonéia, mas era uma Lindonéia. Era uma passista da Mangueira pela qual eu me apaixonei. Fiz um porta-retrato dela como se fosse uma notícia de jornal: ‘a bela Lindonéia de dezoito anos morreu instantaneamente’. (MAGALHÃES, 2006, p. 33) Ilustração 04 – Rubens Gerchman, Lindonéia amor impossível, 1966. (MAGALHÃES, Fábio. Rubens Gerchman. São Paulo: Lazuli, 2006. p. 09). A arte de Rubens Gerchman pode ser assim traduzida, segundo a análise de Nestor Canclini, sobre os pintores latino-americanos que se apropriam das imagens, sejam da história da arte, da cultura de massas, do artesanato e, paradoxalmente, também dos novos meios, em suma, “da extravagância cromática da cidade”: 56 O expressionismo de Gerchman [...] brota também da aglomeração, mas do universo urbano. A pintura não quer ser arte, no sentido de representação estetizada; compete com as notícias dos jornais, os quadrinhos, as paisagens da cidade, aplica a ironia a seu ‘mau gosto’ tanto quanto ao gosto consagrado no mercado de arte. Tem relação com isso a sua vocação pelo estereótipo: ‘misses’ posando em fila, jogadores de futebol, aglomerações nos ônibus, séries de fotos de identificação policial. (CANCLINI, 2006, p. 128, grifo do autor) No dia vinte e nove de janeiro, enquanto este capítulo estava sendo escrito, soube, pelo noticiário, da triste notícia: o artista Rubens Gerchman, nascido em 1942, havia falecido, aos sessenta e seis anos, em decorrência de um câncer. O pintor João Câmara Filho, pernambucano devido às contingências, embora tenha nascido em João Pessoa, é um artista alheio aos modismos. Sua figuração obedece a um rigor na representação, embora muitas vezes as figuras, sadicamente contorcidas, se aproximem das imagens surreais. As alegorias, sempre presentes, expõem as aspirações narrativas e o gosto pelos aspectos literários na poética do pintor. João Câmara, num depoimento dado em janeiro de 1983, ao crítico Frederico de Morais, define assim as suas escolhas e preferências: Sou um provinciano visual, a realidade continua me cativando. Eu me deslumbro com a pintura bem feira. Em certos aspectos sou primitivo, carrego comigo um caráter popularesco. Uma certa pintura de imitação me encanta. É comum em minha obra opor à pintura de resposta instintiva certos elementos intencionalmente realistas. Agrada-me mais uma bela maçã bem pintada do que vários cestos de maçã mal pintados. (CÂMARA, 2003, V. 2. p. 86) As aproximações possíveis com as obras por mim produzidas não são tantas, principalmente em relação às séries temáticas mais antigas realizadas pelo pintor, como as Cenas da Vida Brasileira e Os Dez Casos de Amor, além de uma série um pouco mais recente, intitulada Duas Cidades. Todavia, 57 algumas pinturas ‘avulsas’, ou seja, que aparentemente não estão vinculadas a uma série, e que foram produzidas mais ou menos no último decênio, apresentam algumas sutis analogias. Antes, porém, de apontar tais analogias, cabe um breve resumo da trajetória do pintor, através das séries de pinturas por ele produzidas anteriormente. Em Cenas da Vida Brasileira (1930-1954), produzida entre os anos de 1974 e 1980, o que vemos é um registro, de uma maneira ambígua e sarcástica, dos fatos e acontecimentos históricos da era Vargas, como o atentado na rua Toneleros e o ‘mar de lama’, por exemplo, e que culminaram, em agosto de 1954, no suicídio do ex-presidente, no Palácio do Catete. Em Dez Casos de Amor, série produzida entre 1977 e 1983, o pintor evidencia, segundo Tadeu Chiarelli, num artigo intitulado A Estranheza de João Câmara: “os delírios e as pequenas torturas que envolvem a relação amorosa entre um homem e uma mulher” (CÂMARA, 2003, V. 1. p. 21). Ali, o pintor expõe, ao mesmo tempo, o amor pelas mulheres e a tortura latente nas idas e vindas duma relação amorosa. A anatomia feminina, quase sempre contorcida e mutilada, torna-se a vítima predileta de um olhar perverso. As pinturas, em sua maioria de interiores, representam cenas de alcova nas quais a mulher é onipresente, mediante fragmentos do corpo, peças de seu vestuário e seus adornos mais comuns. Os brincos, os anéis, as meias, os sapatos e os sutiãs, mostrados como fetiches, confluem para o enaltecimento dos atos de amor e perversão ali representados. Uma fusão entre a sensualidade e uma quase violência. Pinturas carnais, como assim define o pintor, num depoimento: “É uma pintura carnal, porque é mais substancialmente carnal do que episodicamente erótica” (CÂMARA, 2003, V. 2. p. 83). 58 A série intitulada Duas Cidades nos mostra paisagens ora reais, ora oníricas de Olinda e Recife: o rio Capibaribe; o zepelim no céu; os peixes e os reflexos nas águas; os ornatos nas cumeeiras; as topografias aéreas e as pontes: a nova e a velha. Em suma, o olhar do pintor sobre as cidades que ele escolheu. João Câmara, ao expor suas idéias e reflexões, deixa clara a preocupação com a posição ocupada pela pintura na arte produzida hoje em dia: Não sei se erro, mas creio que a pintura agora se impõe diversamente da anterior porque talvez se tenha tornado desnecessária. Daí, possível a [...] estratégia silenciosa de sua liberdade, sua marginalidade e seu paradoxo em face aos descalabros mundanos de seu mercado. (CÂMARA, 2003, V. 2. p.187) O pintor também expõe suas reflexões sobre a necessidade e o relativo fascínio ainda exercido pelo ofício, principalmente para aqueles que estão diretamente envolvidos com a sua práxis. Embora tal práxis seja considerada meramente artesanal e, portanto anacrônica, por alguns segmentos mais ávidos por inovações: Pintar um quadro (ou melhor, fazer um quadro, o que implica uma confecção de um objeto pintado com minha técnica que é o meu tema) é o meu trabalho. Precisamente por isso serei um representante da já antiga profissão de pintor e desabarão sobre mim essas generalidades e esses cenários gastos. É curioso, e de certo modo fascinante, fazer pintura quando o mais fácil, e, portanto mais correto, seria fazer qualquer outra coisa. [...] ‘Fazer um quadro’, desde sua madeira à sua tinta final, é [...] a estruturação de algo sólido, dependente de sua materialidade. [...] Fazer tal quadro é para mim uma coisa natural, independente de conceituações prévias sobre a sua necessidade ou sobre a existência de parede para ele. [...] Alguns quadros [...], são feitos porque têm que ser feitos. (CÂMARA, 2003, V. 1. p.260) Dentre as pinturas mais recentes de Câmara, há uma em especial cuja análise possibilita tanto uma articulação entre o discurso do pintor sobre a sua 59 própria arte e a sua práxis artística, quanto uma aproximação com a temática das minhas pinturas, ou seja, a figura feminina em interiores indefinidos, alheia ao tempo enquanto o espaço parece girar em torno dela. Uma pintura na qual a convivência entre o popular, que beira o populista, e o legado da própria história da pintura, que por vezes emerge das entrelinhas, convida o espectador a mergulhar com ela nas infindáveis referências e alusões. Trata-se da tela intitulada Enigma para Patrícia, produzida em 1995. Ilustração 05 – João Câmara Filho, Enigma para Patrícia, 1995, Óleo sobre tela em madeira, 140cm x 159cm. (http://www.joaocamara.com/index2.php). A tela acima, com seu realismo perturbador, uma pintura ‘bem feita’ à maneira de João Câmara, está repleta de ambigüidades e referências: há o 60 relógio na parede que congela o instante para a eternidade; há um mancebo em primeiro plano, sem nenhuma peça do vestuário pendurada, dividindo a esmo o campo visual; há a figura nua e reclinada, um tema recorrente da pintura, usualmente utilizado para representar uma Vênus em repouso ou odaliscas indolentes. Todavia, a moça, num escorço em diagonal apresenta um dinamismo que não condiz com a idéia de repouso, no qual a figura, em geral, costuma estar posicionada num eixo horizontal. O corpo num escorço, apesar do ângulo enviesado e incômodo, por sua vez, se assemelha mais a uma cena como a da Lamentação pelo Cristo Morto (obra do Quatrocentto de autoria de Andrea Mantegna), do que propriamente uma deusa do amor ou uma odalisca. A partir destas analogias, surgem os questionamentos: qual seria o enigma? A Patrícia está convidando, com um olhar lascivo, o seu amante para compartilhar com ela a cama apertada? A morte surpreendeu-a enquanto ela esboçava um leve sorriso? Seria o braço do pintor (que costumava se auto- retratar na representação de seus casos de amor, reais ou imaginários) despontando na penumbra, no canto inferior da tela? Ela está sendo examinada num quarto de hotel ou num leito de hospital? A monotonia do cenário se dá em decorrência da frieza das cores, presentes nas paredes e no lençol que cobre o leito, cores tão insípidas como num consultório. Ao fundo há uma passagem aberta para um corredor ou ante-sala de espera, com uma possível janela esboçada, subentendida como metáfora da pintura, da qual emana a luz que ilumina o quarto no qual a personagem jaz ou ama. Trata-se da representação de um instante fugaz, como no título duma litografia da série temática dos Dez Casos de Amor, na qual uma aparente sessão de fisioterapia parece resumir, enquanto evidencia, a relação do pintor 61 com a anatomia feminina. As inquietações, a perversão, a carne, os interiores, as luzes, os eixos diagonais, a angústia, a sutileza, a violência implícita, as carícias preliminares, o mancebo vazio, o tempo parado, a pintura bem acabada, a leitura aberta, a realidade e o pesadelo: o enigma. Ilustração 06 – João Câmara Filho, Um Instante fugaz, 1977. Litografia, 55,8cm x 72,1cm. (MORAIS, Frederico. Dez casos de amor e uma pintura de Câmara. São Paulo: JBS – Murad Propaganda, 1983. p. 62). As figuras e os demais elementos que compõem as cenas (brasileiras, urbanas, nordestinas e/ ou de alcova), em geral, com suas poses contorcidas, alegorias em demasia, relações intrínsecas, ambíguas e conturbadas, além da temática social, ainda que implícita, são uma constante nas pinturas de João Câmara. Após esta tentativa de aproximação – ora temática, ora formal – entre as minhas obras e “a 'bad painting de Rubens Gerchman” e “a figuração 62 carregada de conotações metafóricas” de João Câmara – conforme a definição de Aracy Amaral (2006) – cabe retomar as escolhas iniciais, ou seja, estabelecer elos entre a vida e a obra de Cézanne, Van Gogh, Gauguin e, principalmente, Matisse. No caso de Paul Cézanne, suas opiniões sobre a pintura estão contidas basicamente em sua correspondência, principalmente naquelas cartas dirigidas aos discípulos, aqueles que o procuraram em ocasiões distintas, quando o mestre, já no final da vida, se encontrava recolhido em Aix: o poeta Joachin Gasquet, filho de um amigo de infância do pintor; o estudante de arte Charles Camoin, que prestou serviço militar em Aix, e enquanto lá estava, procurou Cézanne, em busca de orientação e companhia; e, principalmente o pintor Émile Bernard, que já havia inclusive publicado um artigo, tecendo elogios às obras do mestre. Nas inúmeras cartas de Cézanne enviadas aos seus amigos e confrades, dentre os quais o escritor Émile Zola (que era seu amigo desde a época da escola), e o pintor imp