Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Instituto de Artes Programa de Pós Graduação em Música A prática coral juvenil transitando em ambientes formais e não formais: Perspectivas aplicadas à Educação Musical Aluno: Irandi Fernando Daroz Orientadora: Profa. Dra. Marisa Trench de Oliveira Fonterrada Área da concentração: Musicologia / Etnomusicologia / Educação Musical Linha de pesquisa: Música, Epistemologia e Cultura São Paulo, Abril de 2014. Agradecimentos À Profa. Dra. Marisa Trench de Oliveira Fonterrada que não deixou de confiar em mim. À Profa. Dra. Dorotea Kerr e ao Prof. Dr. Fábio Miguel pelos ensinamentos. Ao maestro Samuel Kerr, pelo reencantamento. À Profa. Martha Herr, pela grata lembrança de um processo. Aos regentes Agnes Schmeling, Ana Cecília Santos, Ana Paula Guimarães, Cristiane Ferronato, Daniel Reginato, Gisele Cruz, Hirlândia Milon Neves, Jorge Miguel Cisneros, José Luiz Fernandez, Leandro Dantas, Lucy Maurício Schimiti, Pablo Lanzoni, Patrícia Costa,Priscilla Battini Prueter, Regina Damiati, pela parceria na composição deste estudo. Aos participantes dos corais visitados pela paciência e disponibilidade: “Coral da Academia Libre Cantare” (Itabirito/MG): Arthur Carlos, Beatriz Malta, Bernardo Gurgel, Cláudia Pedrosa, Daniel Assis, Daniel Nascimento, Débora Carolina, Eduardo Souza, Filipe Silva, Flávio Bastos, Joana Toledo, João Fernandes, Julia Mariana, Miriã Isabela, Paulo Guilherme, Tainara Pimenta, Tamiris Bonfioli, Tayane Maria, Thaís de Fátima. “Coral Juvenil da Casa da Música de Diadema” (Diadema/SP): Amanda Arruda, Ana Paula Guimarães (Regente), Andreza Gama, Antônio Junior, Asafe Soares, Bárbara Estevanin, Bianca Paschoal, Brayan Oliveira, Bruna Paschoal, Carlos Nascimento, Daniel Gonzaga, Darty Lacerda, Érick Dias, Erika Cristine, Flávia Alessandra, Franciely Massariol, Gabriela Souza, Guilherme Bispo, Jeferson Oliveira, Júlia Luiza, Lucas Alves, Lucas Lessa, Luciana Andrade, Maurício Gonçalves, Nicole Nascimento, Osiris Rietman, Otávio Naves, Paulo Gonçalves, Paulo Pires, Sara Antolini, Thamires Oliveira, Vinícius Norberto, Vitória Góes. “Coral da Escola de Música do Auditório do Ibirapuera” (São Paulo/SP): Ana Paula Bevilacqua, Ana Paula Vieira Ferrini, Beatriz Margarida, Bruna Maurilio dos Santos, Bruna Nicole O. Salomão, Camila Martinez, Cleiciane Souza, Damares Souza, Everton Dantas Felipe Lima, Felipe Telles, Flávia da Silva Conceição , Guilherme Coelho, Karina Pereira do Carmo, Karol Aline Bida Leandro, Laila Pereira, Marcela Martinez (técnica vocal), Michele Cristina de Magalhães, Monica Sampaio, Patrícia Camacho (expressão corporal), Paula Cristina, Rafael Malateaux, Raquel Santos Bernardes, Rodrigo Silva, Suzana Soares, Thais Ferreira V. da Silva, Vinicius Matheus Correia da Silva, Wilson Barbosa, Wilson Lopes. “Coral da Fundação NOKIA de Ensino” (Manaus/AM): Ahmed da Silva Assi (pianista), Hirlândia Milon Neves (regente) e participantes (não informado) “Coral das Meninas Cantoras de Nova Petrópolis” (Nova Petrópolis/RS): Agnes Schmeling (técnica vocal); Alexandre Fritzen da Rocha (banda), Andréia Zilles Weber, Anna Petry Morselli, Bianca Nienow, Camila Mayara Noer, Caroline Pintos da Silva, Cristiane Ferronato (regente), Cristine Seefeld, Débora Elení Voltz, Emilie Ritter Wissmann, Fabiane Lais Raimann, Fernanda Seefeld, Gabriela Dilkin Tomazi, Hannah Artemis Neumann Wolmeister, Isabele Jung Scariot, Jéssica Luana Zang, Joceline Taís Seefeld, Júlia Bohn, Leandro Josué Kiekow (banda), Letícia de Freitas, Lilian Birk Knorst, Luana Taís Pellenz, Luísa Schünke Mondini, Lydia Lawrenz, Marcelo Ricardo Bueno (banda), Maura Helena Braun Dalla Zen, Milena Lange, Milena Sofia dos Santos, Morgana Neumann, Natiéle Vitória Rauch, Poliana Moreira da Silva, Taciana Franck Ullmann, Taís Cristiane Bastian, Taís da Silva Teixeira. “Coral do Instituto Federal de educação, Ciência e Tecnologia de Cuiabá” (Cuiabá/MT): Alan de Souza Vieira, Aline dos Santos Tanaka, Brenda de Azevedo Santana, Camila Helena de Oliveira Silva, Dandara Andersen de Oliveira, Danilo Gonçalves de Campos, Dayanne Letícia Canavarros da Cruz, Edgar Lucas Souza, Ely Cleverson Siqueira Lira, Emannuella Batista de Castro, Gabriel Rodriges de Moura, Guilherme Ubirajara Canavarros da Cruz, Helton Matos Fernandes, Julia Melo de Carvalho, Julia Muxfeldt André, Letícia Rossi Duarte, Lorena Peron, Maryna Romani Alvarenga, Mateus Hemerson da Silva Matos, Matheus Moraes Oliveira, Matheus Felipe Arruda Silveira Natália Lopes Rodrigues dos Santos, Renata Cáceres de Souza, Robson Emanuel Pinheiro Leão, Rodrigo Carvalho Elizeu, Rodrigo Paulino da Cruz, Thayna Cristina Do Espirito Santo, Ully Adnny Campos Rodrigues, Vitor Ribeiro Martini, Willian Jorge Couto Alves. “Coral Juvenil da Casa de Cultura da UEL” (Londrina/PR): Adriely Mary David do Carmo, Amanda de Fátima Canedo da Silva, Ana Carolina Bordinassi, Andressa Cristina Stéfano, Cibele D’Angelo, Clara Striquer Lima, Daniel Lima Soto, Darla Tozatti, Débora de Souza Carvalho, Edno Garcia Junior, Flavia Regina Michels Luppi, Flávia Strinquer Lima, Heloisa Bezerra Trida, Heloisa Cristina Oliveira, Igor Mateus Gomes dos Santos, Isaac Pires Gonçalves, Isabella Cristina Teixeira, João Marcos Brandet, Kharina Teixeira, Lara Menck Toginho, Larissa Floripes de Souza Meretica, Laura Tavares Castilho, Letícia Ohana da Silva, Letícia Renata Pianoreski, Lucas Ramazotti, Lucas Schimith, Lucas Vinícius Cardoso Cordeiro, Lucy Maurício Schimiti (regente), Luís Fernando Tibúrcio Gomes, Luiza Teodoro Leite, Maitê Motta, Maria Carolina Pauli, Maria Emanuela Monarim Ramos, Mariana Antunes Amaral, Mariana Sanches Sella, Mariany Figueiredo de Souza, Mateus Ferreira da Silva, Matheus Ribeiro dos Santos, Mauro Lopes da Silva Júnior, Natalia Caroline Teixeira Rocha, Nycolas Reis, Otávio de Roma Barreto, Paula Mancebo Fernandes, Rebeca Menck Toginho, Renan Encarnação Vicente, René Menck Toginho, Tháis Giovana Ramos Mendes, Thiago Leme Marconato, Thiago Ribeiro Barcelos, Vitória Liberatti Marchesini,Vivian Bette Motta. “Coral do Ensino Médio da Escola Waldorf Aitiara” (Botucatu/SP): Anaíde Thomassian, Beatriz Medina Pôrto, Clara dos Santos Bastos Rocha, Clarice Palace Martins, Gabriel Vieira Ferreira, Gabriela Cristina de Santi Sodré, Geovany Mendes de Oliveira, Giovana Diez, Isabela Cristina Rocha Stamponi, Jorge Miguel Cisneros (regente), Juliana Akemi Hiruma Lima, Karime Bicudo Volante, Laila Irene Feste Blaich, Laís Renófio de Rosa Santos, Laura Fleury de Oliveira Gentil Croce, Laura Teresa Von Schnitzler Cabrera, Lucas Moreira Gomes, Luciana Maíra Erismann Canepa, Luciana Starzynski de Sousa, Marcos Paulo Moraes Lima, Maria Luiza Schorn, Maria Olivia Buzato de Carvalho, Maria Reisewitz, Noemi Moira Jakob, Pedro Henrique Lucas dos Santos, Sarah Paola Leite de Andrade, Tamara Sandberg (assistente), Tobias Nahuel Carvalho Cisneros, Túlio Butignoli Segala, Valentina Balsalobre Athias, Vinícius Vigliazzi Peghinelli, Vitória Zardo Martins. “Coral da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (Grupo Timbra)” (Curitiba/PR): Alexandre Felipe Martim, André A. D. Carvalho, Brenno Candido de Lima, Bruna Krause da Silva, Bruna Prochmann Riekes, Bruna Riekes Prochmann, Cindy Carvalho Feijó, Daniel de Castro, Edmar A. L. Junior, Elisama Cristine Virginio, Elisama Cristine Viriginio, Evelin Ribeiro de Souza Balbo, Gabriel Bin, Gregory Henrique Guimarães, Gustavo Batista Machado, Jade Farah Gih, Jean Alisson da Silva, Jesyca Fernanda Perin Soares, Juliana Alves Starosta, Juliana da Costa Silveira, Juliana O. Araki, Juliano Trevisan, Luanna Abreu Soares, Luisa Teles Wagner, Maria Augusta Alves Sousa, Maria da Graça Melo, Maria Joana do Nascimento, Mauro Dias Junior, Ozires de Mello, Paulo Renan Priolo da Silva, Piatan Sfair Palar, Priscila Defune Gonçalves de Oliveira, Priscilla Battini Prueter (regente), Raquel Purin de Sousa, Renan Marcelo dos Santos, Renato Sbardeloto Felix dos Santos, Scheila Ramos da Silva Amorim, Tainá Siqueira Thies, Waline Piper. “Coral Juvenil da ONG Instituto Baccarelli” (São Paulo/SP): Gisele Cruz (regente) e participantes (não informado) “Coral Juvenil São Vicente a cappella” (Rio de Janeiro/RJ): Amanda Appel, Ana Clara Pellegrino, Anna Clara Coelho, Antonio Autuori, Antonio Teicher, Artur Malecha Teixeira, Bárbara Campos, Beatriz Macedo, Bernardo Arruda Lamarca, Danilo de Souza Frederico (técnica vocal), Dora M. Morelenbaum, Felipe Lins, Felipe Nobre Bianchi, Felipe Rezende de Almeida, Gabriel Farah, Giovanna Bilotta Campos, Giulio Forgiarini, Isabel Corção, João Barcellos Costa, João Paulo Gonçalves, Katarina Mattos Assef, Lara Coutinho, Letícia Leão, Letícia Peçanha Castro, Maiara Lima da Silvia, Nina Calvente, Olívia Barcellos R. P. Costa, Paloma Leon, Paula Rosa, Patrícia Costa (Regente), Sofia Castro Schwandt, Tomáz Andrade, Valentina Prestes Fittipaldi, Victor Ferrari, Victoria Vayda Aragão, William John Hester. “Coral Juvenil UNICANTO” da UNIMED (Bauru/SP): Amanda Barreto, Amanda Severino, Ana Laura, Andresa Cardoso, Antônio de Jesus, Bruno Missias, Danilo Andrade (pianista), Danilo Aguiar, Débora Morais Lopes, Douglas Vilela Farias, Fabiane Alves, Gabriela Shaultz, Geisla Pinheiro, Guilherme Santos, Isabela Cristinelli, Isabela de Lima, Isabela Neto, Jéssica Rayanne, Júnior, Karina Barreto, Laryssa de Paula, Letícia Bessa, Letícia Severino, Letícia YuriLuiz Augusto, Luiz Augusto, Luiz Henrique, Marcus Vinícius, Mariana Boico, Mayara de Melo Castro, Miliane M. Murarotto, Natan Frezatto, Raphaela de Lima, Rebeca Machado, Regina Damiati (regente), Rodrigo, Sara de Lucas Flores, Stéfanie Silva, Tamires Pedro Martins, Washington Pereira. “Coral infanto-juvenil do município de Goianinha (Corangelis)”, (Goianinha/RN): Alane Carla, Alane Vicente, Alene Grasielle, Bruno Nascimento, Camila Mascena, Cláudio da Costa, Dayana Freitas, Diego Siqueira, Geysse Soares, Gleidson Moreira, Heryka Kathyanny, Ingrid Araújo, Jakson Sandro, Janaína Silva, Jaqueline Barbosa,José Maria dos Santos, Julian Carlos, Laís Pitanga, Larissa Ribeiro, Liliane Santana, Marcelo Bezerra, Maria Aparecida, Maria Alene Vicente, Mariana Ribeiro, Mirela Fernanda, Monique Nayara, Ocilene Marques, Priscila de Moura, Redja Lima, Rodrigo Feliciano, Rosângela Pontes, Rose Rios, Rosiane Figueiredo, Tais Nissi, Valdenize Nascimento. “Coro Juvenil do ‘Projeto Prelúdio’ do Instituto de Tecnologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul” (Porto Alegre/RS): Adriano da Silva dos Reis, Alice Gross Reinehr, Amanda de Oliveira Hoffmann, Amanda Gabriela Rosa da Silva, Ana Paula Pedroso Junges, Ângelo Gomes, Ben-Hur Hammes Ferreira Daniel Baptista Gonçalves, Fernanda Gorski da Rocha, Filipe Gomes dos Santos, Hildor Faber Junior, João Paulo de Boer Fraga, Laion Soares da Rosa, Laura Canani da Rosa, Luíza de Paula Alves, Mariana Ramos Fauth, Mateus Zelmanowicz, Melissa Lemos de Mattos, Nícolas Kneip Araújo, Pablo Alberto Lanzoni (regente), Petra Conte Schertel, Stefania Johson Colombo, Thais Lima Pereira, Vitor Chagas, Sandoval, Vittória Termann de Santana, Yuri Bandeira. Aos alunos do Curso de Educação Musical da Universidade Sagrado Coração Andrea Thieme Senaha, Ariane Francielle Vieira Cherobino, Helder Augusto Gomes, Henrique Oliveira Cirino, Isis Samira Casavechia Lopes da Silva, Tiago Lopes Barreta pela dedicação junto ao “Projeto Fazendo Arte” Aos alunos participantes do “Projeto Fazendo Arte” e aos diretores das escolas pela empreitada: Aelesab. Programa de integração e assistência à criança e adolescente, Casa da Criança “Madre Maria Teodora Voiron”, Centro socioeducativo Irmã Adelaide Centro Sócioeducativo “Octávio Rasi”, EE “Stella Machado”, EMEF Nacilda de Campos, Legião Mirim de Bauru, EMEF “Cônego Aníbal Difrancia”, Projeto Caná, EMEF “Santa Maria”, Centro “Santo Antônio” Às minhas amigas (assistentes) Danielle Fernandes da Silva e Flávia Hiroki, pela terapia e ajuda nas análises estatísticas, transcrições e traduções. Ao Claudemir Zucareli, pela permanência. Aos meus familiares que entenderam minhas ausências e meu processo. À minha mãezinha Anna Lourdes Suman Daroz (in memoriam). “viver é morrer e rejuvenescer incessantemente” (MORIN, 1990:92) SUMÁRIO Resumo ...................................................................................................................... i Abstract ..................................................................................................................... ii Lista de gráficos e figuras .............................................................................................. iii Introdução ................................................................................................................... 01 Capítulo 1 - Culturas juvenis: apropriações, transgressões e intersecções musicais 1.1 Apropriações..................................................................................................................... 15 1.2 Trangressões..................................................................................................................... 20 1.3 Intersecções musicais........................................................................................................ 27 1.3.1 Enquete: “O que ouvem os jovens”....................................................................... 39 Capítulo 2 – Elementos de estética, lazer e fruição musical ........................................... 46 Capítulo 3 - Estudos de casos: descrição de campo e análise de dados 3.1 Campo 3.1.1 “Coral da Academia Libre Cantare” (Itabirito - MG)................................................. 66 3.1.2 “Coral Juvenil da Casa da Música de Diadema” (Diadema-SP)................................ 67 3.1.3 “Coral da Escola de Música do Auditório do Ibirapuera” (São Paulo-SP)................ 68 3.1.4 “Coral da Fundação NOKIA de Ensino” (Manaus-AM)............................................ 69 3.1.5 “Coral das Meninas Cantoras de Nova Petrópolis” (Nova Petrópolis-RS)................ 71 3.1.6 “Coral do Instituto Federal de educação, Ciência e Tecnologia de Cuiabá” (Cuiabá-MT)........................................................................................................................... 74 3.1.7 “Coral Juvenil da Casa de Cultura da Universidade Estadual de Londrina” (Londrina-PR)......................................................................................................................... 71 3.1.8 “Coral do Ensino Médio da Escola Waldorf Aitiara” (Botucatu-SP)......................... 75 3.1.9 “Coral da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (Grupo Timbra)” (Curitiba-PR).......................................................................................................................... 77 3.1.10 “Coral Juvenil da ONG Instituto Baccarelli” (São Paulo-SP).................................. 78 3.1.11 “Coral Juvenil São Vicente a cappella” (Rio de Janeiro-RJ)................................... 79 3.1.12“Coral jovem UNICANTO da UNIMED Federação Regional Centro-Oeste Paulista” (Bauru-SP).............................................................................................................. 81 3.1.13 “Coral infanto-juvenil do município de Goianinha (Corangelis)” (Goianinha – RN).......................................................................................................................................... 82 3.1.14 “Coro Juvenil do ‘Projeto Prelúdio’ do Instituto de Tecnologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul” (Porto Alegre-RS).............................................................. 83 3.2 Análise de dados 3.2.1 A importância do canto coral para o público juvenil....................................................... 85 3.2.2 Estratégias de divulgação................................................................................................. 90 3.2.3 Dificuldades encontradas................................................................................................. 93 3.2.4. A prática coral na escola................................................................................................. 94 3.2.5 Elementos de fruição musical.......................................................................................... 98 3.2.6 Considerações técnicas a) Gesto.............................................................................................................................. b) Classificação vocal........................................................................................................ c) Técnica vocal................................................................................................................. d) Dinâmica de ensaio....................................................................................................... e) Repertório...................................................................................................................... 103 106 110 112 116 3.3. Projeto “Fazendo Arte”............................................................................................ 125 Capítulo 4 – A prática do canto coral na escola: em busca do som envolvente ............... 131 Considerações Finais ...................................................................................................... 171 Referências bibliográficas ............................................................................................ 177 i RESUMO Das práticas artísticas coletivas, a música ocupa um papel de destaque, pois ela está presente entre os jovens em termos autobiográficos constituindo-se um poderoso instrumento de comunicação. Este estudo parte da necessidade de entender as culturas juvenis e seus modos de representação, principalmente no que se refere à escuta musical, de modo que esta preocupação possa indicar formas mais atrativas da prática do canto coral com jovens. Destacamos a importância desta prática como possibilidade de resgatar valores humanos quanto à sensibilidade, subjetividade e afetividade em contraposição aos problemas enfrentados atualmente pela sociedade quanto à alienação promovida pela mídia e pela indústria cultural, que muitas vezes ressaltam o que é superficial e passageiro em detrimento de relações mais profundas e permanentes da música como lazer ativo, capaz de promover experiências estéticas importantes, desencadear processos criativos e estimular aspectos de fruição. Para tanto nos reportamos à “Sociosofia” do cotidiano, desvelada nas teorias de José Machado Pais, Michel Maffesoli, Giles Deleuze, Félix Guattari e Mihaly Csikszentmihalyi. Destacamos ainda a prática coral juvenil como instrumento eficaz e acessível à Educação Musical na perspectiva de entender como dar-se-ia a inserção desta atividade em ambiente escolar. Consideramos a importância de centralizar o processo de aprendizagem no conhecimento musical do aluno/cantor para que sejam delineadas estratégias de intervenção que possam expandir essas referências por um processo de ressignificação da memória musical, promovendo diálogo entre as culturas popular e erudita. Nesta perspectiva foi imprescindível caracterizar o trabalho do regente coral transitando em ambientes formais (na escola), não formais ou informais (fora da escola) para identificar particularidades e condutas profissionais ajustadas à realidade brasileira, destacando que, na maior parte das vezes, o canto coral é a única possibilidade de acesso à alfabetização musical. Palavras-chave: Educação musical; regência coral; canto coral; coral juvenil; fruição musical. ii ABSTRACT Among the collective artistic practices, music plays an important role because it is present among youth in autobiographical terms constituting a powerful communication tool. This study stems from the need to understand youth cultures and their modes of representation, especially in regard to music listening, so this concern may indicate more attractive forms of the choral singing practice with young people. We stress the importance of this activity as a mean to retrieve human values in what regards the sensibility, subjectivity and affectivity in contrast to the current problems faced by society such as the alienation promoted by media and the cultural industry, which often emphasize what is superficial and the fleeting rather than the deeper and permanent relations of music as a active leisure able to promote relevant ethic-aesthetic experiences, start creative processes and stimulating aspects of fruition. Therefore, we refer to the everyday "Sociosophy" unveiled in the theories of José Machado Pais, Michel Maffesoli, Giles Deleuze, Félix Guattari e Mihaly Csikszentmihalyi. We also highlight the youth choir practice as an effective and accessible tool to music education from the perspective of understanding how to include this activity in the school environment. We consider the importance of centralizing the learning process in the student/singer's musical knowledge in order to outline strategies for intervention that can expand these references by a process of re-signification of the musical memory, promoting a dialogue between the scholarly and popular cultures. In this perspective it was essential to characterize the work of the choir conductor both in formal settings (in school), non-formal or informal (outside of school) to identify characteristics and professional behaviors adjusted to the Brazilian reality, noting that, in most cases, the choir is the only possible access to music literacy. Key-words: Music education; choir conducting; choir; youth choir; musical fruition (flow) iii Lista de gráficos, tabelas e figuras Gráfico 1 – Gêneros musicais mais ouvidos pela juventude (Enquete: “O que ouvem os jovens?”).......... 42 Tabela 1 - Gêneros musicais mais ouvidos por região (Enquete: “O que ouvem os jovens?”)..................... 42 Gráfico 2 – Distribuição dos gêneros musicais por sexo (Enquete: “O que ouvem os jovens?”)................ 44 Gráfico 3 – Relação entre a escolha de gêneros e estilos musical e etnia (Enquete: “O que ouvem os jovens?”)............................................................................................................................................... 46 Gráfico 4 – Relação entre a escolha de gêneros e estilos musical e religião (Enquete: “O que ouvem os jovens?”)......................................................................................................................................................... 47 Figura 1 – “Coral da Academia Libre Cantare” (Itabirito - MG)................................................. 68 Figura 2 – “Coral Juvenil da Casa da Música de Diadema” (Diadema-SP)................................ 70 Figura 3 – “Coral da Escola de Música do Auditório do Ibirapuera” (São Paulo-SP)................ 71 Figura 4 – “Coral da Fundação NOKIA de Ensino” (Manaus-AM)............................................ 72 Figura 5 – “Coral das Meninas Cantoras de Nova Petrópolis” (Nova Petrópolis-RS)................ 74 Figura 6 – “Coral do Instituto Federal de educação, Ciência e Tecnologia de Cuiabá” (Cuiabá-MT).................................................................................................................................... 76 Figura 7 – “Coral Juvenil da Casa de Cultura da Universidade Estadual de Londrina” (Londrina-PR)................................................................................................................................. 77 Figura 8 – “Coral do Ensino Médio da Escola Waldorf Aitiara” (Botucatu-SP)........................ 78 Figura 9 – “Coral da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (Grupo Timbra)” (Curitiba-PR).................................................................................................................................. 80 Figura 10 – “Coral Juvenil da ONG Instituto Baccarelli” (São Paulo-SP)................................ 81 Figura 11 – “Coral Juvenil São Vicente a cappella” (Rio de Janeiro-RJ)................................... 82 Figura 12 – “Coral jovem UNICANTO da UNIMED Federação Regional Centro-Oeste Paulista (Bauru/SP)........................................................................................................................ 84 Figura 13 – “Coral infanto-juvenil do município de Goianinha (Corangelis)” (Goianinha – RN)................................................................................................................................................. 85 Figura 14 – “Coro Juvenil do ‘Projeto Prelúdio’ do Instituto de Tecnologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul” (Porto Alegre-RS)...................................................................... 86 iv “Canções e Momentos” (Milton Nascimento/ Fernando Brant) Há canções e há momentos Eu não sei como explicar Em que a voz é um instrumento Que eu não posso controlar Ela vai ao infinito Ela amarra todos nós E é um só sentimento Na platéia e na voz Há canções e há momentos Em que a voz vem da raiz Eu não sei se quando triste Ou se quando sou feliz Eu só sei que há momentos Que se casa com canção De fazer tal casamento Vive a minha profissão 1 INTRODUÇÃO “A música é a grande sacada da humanidade!” (um jovem na multidão...) “Iniciei mil vezes o diálogo”. No ato de dizer, diz-se apenas uma pequena fração do que se pensa, pois o dizer se manifesta e se apoia em inúmeras coisas que silenciam. A linguagem existe graças à possibilidade da reticência e do subentendido (aquilo não se entende bem). “O deficientemente entendido é o que se torna necessário entender”. (PAIS, 2003:94) Há muitas maneiras de contextualizar os fatos e de modelar as leituras de mundo, pois a percepção é dinâmica e capaz de articular realidades múltiplas. A construção do coletivo se dá em parceria, na aproximação de pensamentos que identificam uma época premente em significados e na parecença de condutas que regem o desvelar do cotidiano. Assim: Não é possível, nem necessário, que o mesmo homem conheça por experiência todas as verdades de que fala. Basta que tenha, algumas vezes e bem longamente, aprendido a deixar-se ensinar por outra cultura, pois, doravante, possui um novo órgão de conhecimento, voltou a se apoderar da região selvagem de si mesmo, que não é investida por sua própria cultura e por onde se comunica com as outras. (MERLEAU-PONTY apud MAGNANI, 2009:134). Diante disso, qualquer método é movediço, quando se reporta ao futuro, assim, longe da precisão da prescrição, optamos neste estudo em levantar algumas possibilidades que pudessem servir de perspectivas à prática do canto coral nas escolas e, supostamente, ao trabalho do regente coral, que serão expostas oportunamente no decorrer deste estudo. Para tanto, contamos com participação de muitos sujeitos para encadear este diálogo que, por protagonizar um interlocutor - o pesquisador, que se dispõe, ao mesmo tempo, delimitado e irreproduzível. Kellner (2001:40) observa que os mapeamentos de cada teoria propiciam alguma nova compreensão, mas em geral são limitados de algum modo. Na transferência de dados para o papel ocorreram, necessariamente, descodificações e rupturas de linguagem, próprias da interpretação, pela impossibilidade de sintetizar a amplitude do conhecimento e por lidar com verdades provisórias. No entanto, pelo intercâmbio de experiências ocorrido por ocasião da pesquisa de campo, entendemos o sentido proeminente desta pesquisa e seu efeito ressonante em nosso trabalho profissional. 2 Como regente coral desde 1990, tenho atuado junto a corais amadores1, em ambientes diversos - formais, não-formais ou informais2, portanto, deparo-me constantemente com questões relativas a essa realidade, apoiado no compromisso de que o coral é, na maior parte das vezes, a única chance de acesso à prática musical de seus integrantes. Como docente do Curso de Educação Musical da Universidade Sagrado Coração (Bauru-SP), desde 1998, observo que essa responsabilidade aumenta com o compromisso de estimular a formação de novos profissionais, vislumbrando a possibilidade de um trabalho continuado que atenda também a uma necessidade da própria escola e do sistema educacional brasileiro. Neste sentido, a busca em “proceder de forma acertada”, tem acompanhado minha prática pedagógica na procura de possibilidades que possam amparar os discentes na utilização de recursos metodológicos para o trabalho de canto coral. Não resta dúvida da importância do tema aqui tratado, pois o mesmo não foi suficientemente abordado na área de pedagogia musical e toda contribuição neste sentido é bem vinda, no entanto, muitas vezes nos vimos inseguros, como se defendêssemos nossa própria percepção das coisas, como “quem olha para o próprio umbigo”. Ainda assim, me proponho com esta contribuição parcial esmiuçar questões da prática coral na atualidade testemunhando aspectos da história do coral no Brasil. Quando iniciei esta pesquisa, em 2010, já tinha uma razoável experiência docente. Via de regra, vivemos a contemporaneidade e há uma distância enorme do conceito instituído “do que deveria ser” e “o que é”, de fato, instituinte, o que cria um contraponto entre os conteúdos vistos na Universidade e aqueles aplicados na comunidade, de modo que se torna imprescindível ao professor trabalhar de forma consonante a partir da realidade cultural do aluno. A partir desse pressuposto, considero que comecei minha pesquisa muito antes, na disciplina de Repertório Coral Infanto-Juvenil, quando solicitei aos meus alunos que enviassem um arquivo das músicas que eles ouviam habitualmente, foi aí me vi dinossauro pela primeira vez, pois achava “o máximo” poder transitar no ambiente da música erudita; no 1 Entendemos como “coral amador”, aquelas propostas musicais que utilizam da manifestação vocal como potência estética expressiva, realizada em contextos culturais diversificados, de forma alternativa, onde os participantes realizam estudo musical informal e voluntário. Desse modo, o conceito de “coral amador” se contrapõe ao conceito de “coral profissional”. 2 Gohn (2006:28) demarca diferenças entre estes conceitos. Observa que a educação formal é aquela desenvolvida nas escolas, com conteúdos previamente demarcados; a informal como aquela que os indivíduos aprendem durante seu processo de socialização - na família, bairro, clube, amigos etc., carregada de valores e culturas próprias, de pertencimento e sentimentos herdados: e a educação não-formal é aquela que se aprende “no mundo da vida”, via os processos de compartilhamento de experiências, principalmente em espaços e ações coletivos cotidianas. No entanto, a autora indica que o termo não-formal também é comumente utilizado por alguns investigadores como sinônimo de informal. Para efeito deste estudo consideraremos esta última hipótese tratando dos conceitos: formal e não-formal, com significado de “dentro” e “fora” da escola, respectivamente. 3 entanto, aquela discordância também identificava certo desconhecimento de ambos e o desvelar de uma imensa gama de possibilidades quanto ao usufruto do repertório, definindo assim o início de um percurso. Depois disso, me aproximei do trabalho profissional do maestro Samuel Kerr, por ocasião do Mestrado, e então descobri um tipo de condução prática do canto coral que diferia substancialmente de tudo aquilo que eu havia aprendido na graduação, visto que o estudo que propomos agora é extensão daquele, que passou a servir de referência num contínuo processo de reencantamento. Sem delongas, dei início a este trabalho identificando aspectos de escuta musical me perguntando: O que os jovens ouvem? Como ouvem? Quando ouvem? de modo a conhecê-los para melhor trabalhar com eles na atividade coral. Reconhecemos aí nossa problemática. O foco do meu trabalho está na importância da prática coral na escola, especificamente no Ensino Médio, delimitação justificada pela proximidade com o público de alunos com o qual trabalho atualmente, de modo a entender como se dá a transposição Universidade-Escola. É de nosso conhecimento que a legislação vigente não prevê aulas específicas de Educação Musical para este público em ambiente escolar, caberia então à própria escola adotar este recurso, pela importância do que será exposto. A sociedade está em constante mudança. A juventude talvez seja um termômetro a respeito deste fenômeno, pois está em evidência em todos os âmbitos de discussão, a exemplo do concurso “Prêmio Jovens Inspiradores”3 promovido pela revista VEJA 2012; da Campanha da Fraternidade 2013: “Fraternidade e Juventude”, promovida pela CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil)4; da Jornada Mundial da Juventude Rio 2013 (Congresso de Jovens Shalon)5 e do “Manifesto à diversão” (Fanta 2013) divulgado na mídia pela Coca-Cola do Brasil6, entre tantos outros. Parece que a sociedade, na atualidade, se reporta aos jovens referencialmente, embora o “conflito de gerações”; é evidente uma suposta apropriação dos conteúdos próprios das culturas juvenis pelos adultos, aspecto que será tratado posteriormente. O regente coral trabalha na construção do coletivo, mediante o trabalho colaborativo junto aos seus cantores. No âmbito de suas competências, são concomitantes os processos humanos e culturais, de agremiação, convivência, sensibilização e fruição artística, e os 3 Disponível em Acesso em Mai.2013 4 Disponível em Acesso em Acesso em Mai.2013 5 Disponível em Acesso em Mai.2013 6 Disponível em < http://www.cocacolabrasil.com.br/imprensa/release/fanta-lanca-manifesto-a-diversao-nestas- ferias/>Acesso em: Mai.2013 4 processos de alfabetização musical, do desvelar da voz, da decifração dos códigos inerentes a esta prática e na divulgação de repertório. Consideramos inicialmente que a aquisição de conhecimento musical desperta a curiosidade intelectual, estimula o senso crítico e desperta possibilidades inatas do sujeito em dialogar com o ambiente em que vive, mantendo, ao mesmo tempo, índices de autonomia e responsabilidade. O canto ocupa um grande espaço na expressão cultural de um povo, ativando processos afetivos e de memória musical; é notória sua importância antropológica e etnomusicológica, constituindo-se “a primeira vivência do fazer musical; difundido nas mais diferentes etnias e culturas, é aprendido e transmitido oralmente e toma proporções do inconsciente”, observam Behlau & Rehder (1997:30). Dessa maneira, a prática coletiva do canto coral pode contribuir efetivamente para a educação musical dos jovens, ampliando as possibilidades de descoberta, criatividade, realização pessoal, auto-expressão e comunicação. Pela importância que ocupa na cena cotidiana, amplamente difundida em ambientes não formais, discutimos sua presença na escola, amparados pela legislação vigente7. Observamos inicialmente um grande interesse dos jovens pelo canto, muitas vezes veiculado pela mídia, na imagem protagonizada pelos artistas, estabelecida uma correspondência direta com o sucesso, a fama e o dinheiro - uma espécie de acesso ilusório democratizado. As séries musicais norte-americanas Glee8 (Fox) e High School Musical (Disney Channel) podem ter, aparentemente, contribuído para a divulgação da atividade coral, estratégia transplantada pela Rede Globo, em 2011, na realização do concurso de corais da TV Xuxa9. Também podemos considerar que a “febre dos musicais” no formato Broadway, no Brasil, estimulou nos jovens um interesse súbito e preferencial pelo belting10, em contraposição à tradicional técnica belcantista, imprimindo novas possibilidades expressivas à produção vocal. 7 A Lei complementar No. 11.769/2008, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) No. 9.394/1996, introduziu a Educação Musical no currículo da Educação básica (Educação Infantil e Ensino Fundamental) 8 A série norte-americana Glee é uma comédia musical que fala a respeito de um grupo de jovens ambiciosos e talentosos que fogem de uma dura realidade do ensino médio através de um grupo musical onde eles encontram força, aceitação e por fim, suas vozes. A trama centra-se no Clube Glee, o coral da escola, chamado de "New Directions" que compete nos circuitos de show choirs, enquanto os seus membros lidam com situações de relacionamento e questões sociais. Disponível em Acesso em Mai.2013. 10 O belting pode ser definido como uma produção vocal com pitch agudo, ressonância metálica, alta projeção, energia e com predomínio de registro de peito. A técnica do belting propõem uma nova abordagem em relação à tradicional escola italiana belcantista. Disponível em: Acesso em Mar.2014. 5 Ao nos remetermos ao canto coral, propusemo-nos a discutir aspectos desta prática dirigindo o olhar à formação de corais juvenis em ambiente escolar, pois a voz, enquanto instrumento de expressão do nosso corpo, aproxima o emocional do cognitivo. Assim, o canto coletivo, construído a partir da emoção uníssona das capacidades, sensível, intuitiva e analítica, pode ser eficaz e ressonante no processo de ensino-aprendizagem, abrindo novos canais de percepção e assimilação de conteúdos transversais por sua inerente característica interdisciplinar, e também por ser modelado nas relações interpessoais de motivação e convívio social, com respeito à diversidade cultural, à inclusão social e à cidadania, contribuindo efetivamente no resgate do sujeito como um todo, considerados os aspectos de humanização, a partir de uma visão holística do mundo. Como preocupações centrais do educador musical estão: os procedimentos adotados, os conteúdos a serem desenvolvidos e os recursos disponíveis. Entendemos que a Educação Musical dispõe de um conjunto de materiais significativos, mas acreditamos que a prática do canto coral adquire um significado importante ao ser inserida na escola por três fatores: a) Por se tratar de uma prática coletiva e inclusiva, contribui para que o sujeito seja capaz de exprimir sua leitura de mundo nas dimensões estética, humana e social fortalecendo aspectos próprios de formação da personalidade, identidade e autoestima. b) Por reunir elementos da sintaxe musical e do discurso sonoro, ativa os sistemas de memória (percepção), ordenação espacial e sequencial, estimula a acuidade auditiva, desenvolve a imaginação, a criação e a improvisação pelo estímulo do regente. c) Por requerer recursos humanos e materiais acessíveis em grande parte já disponíveis em ambiente escolar, constituindo uma prática acessível e imediata. Ainda é importante observar que qualquer proposta de estudo de canto coral no Brasil deve se remeter a uma contínua reflexão acerca da formação de corais amadores. Por almejar este propósito, tal prática deve passar por uma série de modificações, tornando-a acessível e de alcance popular, numa perspectiva interdisciplinar e multicultural. Para tanto, recorremos às teorias de José Machado Pais, Michel Maffesoli, Giles Deleuze, Félix Guattari e Mihaly Csikszentmihalyi, que nos revelam a importância da experiência estética, do processo criativo, do lazer e da fruição pela discussão da dissociação corpo-mente. Para esses autores, a inteligência está no corpo, nas percepções, nos sentimentos e, também na mente, dessa forma opõem-se ao pensamento racional e dão maior atenção à sensibilidade fazendo valer nossas argumentações. As discussões deste assunto na atualidade são articuladas principalmente pela 6 Sociologia do Cotidiano e Filosofia. Neste sentido, Maffesoli (1998:176) propõe uma fusão destas duas áreas do conhecimento, qual denominou “Sociosofia”. Nossa pesquisa foi dividida em três etapas fundamentais. Primeiramente, nos detivemos em entender o universo das culturas juvenis, a partir do confronto direto da literatura com o público que pretendemos inferir, em seguida nos propusemos a verificar se o contato com a prática coral poderia modificar os processos de recepção e fruição musical constituindo-se um instrumento eficaz para a Educação Musical e finalmente passamos a delinear possibilidades de inserção desta prática em ambientes formais de aprendizagem. Assim, iniciamos esta pesquisa com a seguinte problemática: é possível observar em ambientes não formais ou informais a ocorrência de grupos corais juvenis e nos indagamos como esta prática poderia comparecer efetivamente em ambiente escolar como instrumento importante para a Educação Musical. Richardson (2008:16) indica que os objetivos de um trabalho científico devem resolver problemas específicos, gerar teorias e/ou reavaliar teorias existentes. A partir deste pressuposto, apresentamos em seguida nossos objetivos. a) Gerais • Avaliar a prática de canto coral realizada na microescala dos ambientes não-formais a fim de detectar possibilidades metodológicas de inseri-la na escola, como instrumento importante para a Educação Musical. b) Específicos • Reconhecer aspectos das culturas juvenis na eleição de comportamentos que possam guiar condutas relativas à atuação do regente coral. • Refletir a respeito do tipo de formação necessária ao aluno de Licenciatura em Educação Musical para que possa cumprir o papel de regente coral na escola; Para tanto fizemos uso dos recursos metodológico de observação participante e dos estudos de casos em uma abordagem qualitativa embora, em determinados momentos, tivéssemos recorrido também aos números, a fim de gerar dados estatísticos11, seguindo a tendência atual de muitos pesquisadores, de adotar métodos mistos, como informa Yin (2010:87). Segundo Carneiro (2006:24) a pesquisa qualitativa, diferentemente das abordagens estritamente quantitativas, exige uma presença mais vigilante e atenta do pesquisador, que faz 11 A triagem dos dados deu-se pela utilização dos testes disponíveis no programa estatístico SigmaStat discriminados nos gráficos no decorrer do trabalho. 7 uso da intuição e da percepção como atitudes primordiais de investigação, embora uma seja inerente à outra. Pais (2001:145) explica a importância da aplicação deste método em dar atenção ao fluxo da ação social nos respectivos contextos, evidenciando estruturas de significado subjetivo que regem as maneiras de ser, de pensar e de agir dos indivíduos. Bogdan e Biklen (apud LÜDKE 1986:13) ressaltam a importância da interpretação como mediadora da experiência humana, acentuando ao mesmo tempo um caráter autônomo e coletivo, pois os significados são construídos de forma interativa. Neste sentido entendemos a importância de um domínio técnico que possa nortear a conduta do pesquisador em relação ao sujeito pesquisado. Os autores ainda indicam cinco características básicas para a pesquisa qualitativa, adequadas à proposta desta pesquisa: 1) Contato direto e prolongado do pesquisador com o ambiente e a situação que está sendo investigada, via de regra através do trabalho intensivo de campo, a fim de detectar particularidades; 2) Coleta de dados mediante entrevista e depoimentos pessoais, descrição de situações e acontecimentos; 3) Importância do processo; 4) Foco na diversidade de elementos presentes no relato dos participantes; 5) Análise indutiva, da micro para a macro escala (sem a definição prévia de hipóteses). De modo que, neste último quesito, as hipóteses foram construídas a partir dos questionamentos, interrogações, dúvidas e incertezas clarificadas durante a pesquisa de campo, na composição teórica e na manipulação de dados e expressas no estudo do cotidiano. Comenta Pais: A lógica da descoberta que caracteriza a sociologia do cotidiano afasta-se da lógica do “preestabelecido”, que condena os percursos de pesquisa a uma viagem programada, guiada pela demonstração rígida de hipóteses de partida, a uma domesticação de itinerários que facultam ao pesquisador a possibilidade de apenas ver o que os seus quadros teóricos permitem ver. (PAIS, 2001:17 – grifo do autor) Pela observação participante nos tornamos membro do fato observado e essa experiência proporcionou algumas oportunidades importantes para a coleta de dados, também recorremos a documentos, registros de arquivos, partituras e entrevistas. Para Thiollent (1986:21) a observação participante permite um novo olhar que reconhece, na incerteza, na 8 ambiguidade e na relatividade, as possibilidades de criar ou revalidar teorias e gerar conhecimento, além de responder com maior eficiência aos problemas de um determinado contexto, em particular, na forma de “diretrizes de ação transformadora”. Notadamente, nossa participação permitiu, no contato direto com as realidades observadas, interpretar os diversos contextos de maneira diferenciada, evidenciando leituras particularizadas pelo exercício da imersão, modificando os referenciais e os modos de sentir. Estas experiências foram importantes na composição dos relatórios de campo (“diários de bordo”) entre a descrição objetiva do fato observado e os indicadores subjetivos do fazer musical na acepção própria do termo, “um olhar de perto e de dentro” (MAGNANI, 2002:18), capaz de captar no todo certas sutilezas e distinções. Chizzotti (2000, p.102) observa que estes registros de dados organizados de maneira crítica permitem analisar as experiências ou avaliá-las analiticamente tendo por objetivo a tomada de decisões. Por sua vez, os estudos de casos nos mostraram caminhos para a investigação empírica retratando diversas realidades em ação, estabelecido um contato in loco com outras visões de mundo, criando possibilidades de lidar com descobertas inesperadas e reorientando nosso estudo à luz de tais descobrimentos, conforme apontado por Thiollent (1986:21); de modo que a percepção dos “detalhes” que surgiram destes processos descritivos e interpretativos auxiliaram na decifração do real. Yin (2010:22-6) observa que, em geral, os estudos de casos são o método preferido quando as questões “como” ou “por que” são propostas de modo a elucidar um fenômeno contemporâneo pela possibilidade de detectar características holísticas e significativas dos eventos da vida real. Nesta perspectiva, a razão cede espaço a questões intimamente relacionadas com os achados empíricos. Yin (2010:36) observa que “os fatos científicos são raramente baseados em experimentos únicos; geralmente estão fundamentados em um conjunto múltiplo que replica os mesmos fenômenos sob condições diferentes”. A partir dos parâmetros descritos acima, determinaram-se os seguintes procedimentos para a pesquisa de campo: Etapa 1: • Realização da enquete intitulada: “O que os jovens ouvem?”, que pretendeu identificar traços da recepção musical na abordagem de 280 (duzentos e oitenta) sujeitos de 13 a 19 anos12 que não tinham contato com a prática de canto coral. Esses jovens foram abordados no momento da escuta musical, quando faziam amplo uso de celulares, 12 Quanto ao limite de idade, de 13 a 19 anos, consideramos o calendário escolar do Ensino Médio acrescido de um limite de defasagem de dois anos. Assim consideramos uma amplitude que vai da 8º. ano (antiga 7ª.série) do Ensino Fundamental ao 2º.ano do Ensino Superior. 9 laptops, iPhones, iPods, aparelhos de mp3, mp4, etc. Os dados foram coletados evidenciando-se critérios quanto à eleição de repertório musical, discriminadas as características de escolha (título, autor, assunto), categoria (tipo, modalidade, gênero ou estilo), particularidades da obra musical (aspectos técnicos: melodia, harmonia, ritmo, arranjo) entre outros aspectos mais subjetivos relacionados à preferência musical, de modo a reconhecer e categorizar estas escolhas. A coleta de amostras deu- se nas cidades de: Manaus-AM, Natal-RN, Goianinha-RN, São Paulo-SP, Bauru-SP*, Botucatu-SP*13, Diadema-SP, Rio de Janeiro-RJ, Itabirito-MG, Cuiabá-MT, Curitiba- PR, Londrina-PR, Porto Alegre-RS e Nova Petrópolis-RS, que são as mesmas cidades dos corais juvenis pesquisados. Para a realização desta enquete, propusemo-nos a recolher amostras em ambientes diversificados, buscar variantes quanto à etnia (branco, pardo, negro, amarelo e indígena), manter certo equilíbrio em relação ao gênero (masculino e feminino) e restringir a participação ao limite de idade determinado (13-19 anos). Os primeiros dias de campo foram de angústia, indecisão e incerteza, na preocupação de gerenciar uma “imagem pessoal” que fosse adequada ao perfil dos jovens que pretendíamos entrevistar ou, ainda, algum tipo de disponibilidade física ou empatia, como requisito necessário ao aval das informações. Aos poucos as relações se tornaram amigáveis e envolventes e entrevistar os jovens tornou-se uma atividade obstinada de interposição: o regente, entre a audição e o fone de ouvido, curioso pelos aspectos de recepção musical. A partir deste momento entendemos que os jovens falam com eloquência daqueles temas que caracterizam seus cotidianos, principalmente quando destacados num grupo ou tribo nos quais se identificam. Não nos coube julgar se essas narrativas foram reais ou fantasiosas – “ilusões biográficas” (PAIS, 2003:95), no entanto, podemos considerar que, embora alguns aspectos idiomáticos sejam comuns à juventude, muito há de diferenciação. Fizemos a escolha de utilizar a Wikipédia e a Desciclopedia14, pelo acesso à reunião de dados relacionados aos termos próprios das “culturas juvenis” e pela natureza coletiva dos 13 *A coleta de amostras realizada nas cidades de Bauru-SP e Botucatu-SP para realização da enquete contou com a ajuda dos alunos das Disciplinas de Expressão Vocal e Canto Coral e Regência do Curso de Licenciatura em Educação Musical da Universidade Sagrado Coração (Bauru/SP). 14 Wikipédia. Trata-se de uma enciclopédia on line de conteúdo livre escrita com a colaboração dos leitores. A versão em língua portuguesa (2001) foi disponibilizada a partir da tradução dos conteúdos já disponíveis na versão original, em inglês, e desde então tem sido alimentada com a produção de novos verbetes (Disponível em Acesso em Abr. 2013). Já a Desciclopédia é uma espécie de paródia da Wikipédia onde são apresentados muitos conteúdos próprios da cultura juvenil, de maneira “satírica, desinformativa e grotesca” de tratar os mesmos conteúdos. O site é utilizado propositadamente como canal aberto e livre de preconceitos, conforme informado (Disponível em Acesso em Abr. 2013). 10 sites, o que caracteriza uma espécie de tribalismo, no entanto, convém informar que os conceitos utilizados referenciam o pensamento dos autores prioritariamente pelo uso da bibliografia. Também foram utilizados os sites: ,,e como acesso ao repertório ouvido pelos jovens desta enquete, analisado quanto à estrutura musical e às letras, a fim de detectar recorrências temáticas em ambos os casos. Etapa 2: • Observação direta e participante da atuação de 6 (seis) alunos graduandos do curso de Licenciatura em Educação Musical da Universidade Sagrado Coração (USC) (Bauru/SP), monitores bolsistas do Projeto “Fazendo Arte: Piano e Voz” (PRONAC 095329) no exercício da regência coral por um período de dois anos. O trabalho se concretizou efetivamente na mescla de corais infantis, infanto-juvenis e juvenis. Embora os trabalhos realizados em ambiente escolar tenham sido considerados como um todo, dirigimos nosso olhar prioritariamente ao grupo juvenil formado na E.E. “Stella Machado”. Torna-se necessário observar que os alunos foram inseridos no Projeto manifestado desejo o particular de trabalhar com a regência coral. • Realização de entrevista estruturada (ANEXOS: III/3 - Modelo C, p.186) - com questões pré-definidas, aplicada aos 6 (seis) monitores regentes, utilizando-se o recurso de transcrição direta de dados. A entrevista foi realizada via e-mail e as perguntas versaram acerca do trabalho técnico desenvolvido nos grupos, aspectos de fruição musical e a evidência da importância da prática coral como instrumento de musicalização, em termos de acessibilidade, recursos humanos e materiais, acrescida de reflexão a respeito de formação universitária. • Aplicação de questionário do tipo recordatório15 (ANEXOS: III/2 - Modelo B, p.185), adaptado aos propósitos desta pesquisa, aos integrantes dos corais do Projeto “Fazendo Arte: Piano e Voz”16, dentro do limite de idade estabelecido (13-19 anos), 15 O questionário recordatório, também chamado de inquérito alimentar é muito utilizado na área das Ciências Biológicas (principalmente: Biologia, Nutrição, Educação Física) para medir a frequência de ingestão dos alimentos utilizando a técnica da anamnese (memória, recordação, lembrança). 16 O “Projeto Fazendo Arte: Piano e Voz” da Universidade Sagrado Coração, Bauru/SP, patrocinado pelo Programa Nacional de Apoio à Cultura (Plano Nacional de Cultura - PRONAC 095329), visou a atividade musical (piano, musicalização e canto-coral) em ambiente escolar no período de dois anos (2011- 2012) propiciando como prática social inclusiva e cultural para 320 crianças e jovens (8 a18 anos). O núcleo de canto coral contou com a participação de alunos do Curso de Licenciatura em Educação Musical da USC e atendeu cerca de 240 alunos, distribuídos em 6 (seis) grupos corais. 11 no intuito de medir a eficácia da atividade coral, estabelecendo-se referenciais que pudessem descrever trajetórias e, supostamente, reconhecer mudanças na orientação da escuta musical, estabelecendo índices qualitativos. Para tanto, é necessário observar que a aplicação deste questionário deu-se no final dos trabalhos. Os entrevistados têm contato com a atividade coral em fase preliminar. Etapa 3: • (Estudos de casos) Observação direta e participante17 de 14 (quatorze) grupos corais juvenis já existentes, em ambientes formais e não-formais, mapeados nas cinco regiões brasileiras (Norte, Nordeste, Sudeste, Centro-Oeste e Sul) e selecionados pela natureza do trabalho que realizam no meio musical e pela representatividade de seus regentes, que têm por denominador comum a propriedade e o esmero em captar a atenção desses jovens na produção musical, demonstrando competência, mérito e renome nesta área. Desse modo, cada grupo coral juvenil selecionado não foi considerado meramente um “objeto de estudo”, pela investigação exaustiva de suas características intrínsecas, mas como amostragem de trabalho com vertentes distintas identificando relações culturais locais, significados e públicos diferenciados. Tampouco a abordagem deu-se de forma invasiva, mas pela relação amistosa de um “bate-papo”, intenção primeira em criar uma cumplicidade maior intensificada pelo canto. Seguem abaixo relacionados os grupos visitados: 1. “Coral da Academia Libre Cantare” (Itabirito - MG). Regente: Leandro Dantas; 2. “Coral Juvenil da Casa da Música de Diadema” (Diadema-SP). Regente: Ana Paula Guimarães; 3. “Coral da Escola de Música do Auditório do Ibirapuera” (São Paulo-SP). Regente: Daniel Reginato; 4. “Coral da Fundação NOKIA de Ensino” (Manaus-AM). Regente: Hirlândia Milon Neves & Ahmed da Silva Assi (pianista); 5. “Coral das Meninas Cantoras de Nova Petrópolis” (Nova Petrópolis-RS). Regente: Cristiane Ferronato & Agnes Schmeling (Técnica vocal); 17 Nossa participação nesta etapa deu-se de forma diversificada em cada caso: aplicação de exercícios em técnica vocal, ensaios de naipes, pianista acompanhador, arranjo e regência. 12 6. “Coral do Instituto Federal de educação, Ciência e Tecnologia de Cuiabá” (Cuiabá-MT). Regente: Ana Cecília Santos; 7. “Coral Juvenil da Casa de Cultura da Universidade Estadual de Londrina” (Londrina-PR). Regente: Lucy Maurício Schimiti; 8. “Coral do Ensino Médio da Escola Waldorf Aitiara” (Botucatu-SP). Regente: Jorge Miguel Cisneros; 9. “Coral da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (Grupo Timbra)” (Curitiba-PR). Regente: Priscilla Baltini Prueter; 10. “Coral Juvenil da ONG Instituto Baccarelli” (São Paulo-SP). Regente: Gisele Cruz; 11. “Coral Juvenil São Vicente a cappella” (Rio de Janeiro-RJ). Regente: Patrícia Costa; 12. “Coral jovem UNICANTO da UNIMED Federação Regional Centro- Oeste Paulista” (Bauru-SP). Regente: Regina Damiati; 13. “Coral infanto-juvenil do município de Goianinha (Corangelis)” (Goianinha – RN). Regente: José Luiz Fernandez; 14. “Coro Juvenil do ‘Projeto Prelúdio’ do Instituto de Tecnologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul” (Porto Alegre-RS). Regente: Pablo Alberto Lanzoni & Agnes Schmeling (Técnica vocal). • Realização de entrevista semi-estruturada (ANEXOS: III/4 - Modelo D, p.188) - com questões abertas, passíveis da intervenção do pesquisador, aplicadas in loco aos 14 (quatorze) regentes profissionais dos grupos selecionados. Para tanto, foram utilizados os recursos de gravação direta em áudio (mp3) e transcrição de dados. As entrevistas transcritas foram submetidas à análise posterior dos regentes. As perguntas versaram a respeito o trabalho técnico desenvolvido nos grupos18, aspectos de fruição musical e a evidência da importância da prática coral como um instrumento eficaz de musicalização em termos de acessibilidade, recursos humanos e materiais. Tais entrevistas, por sua natureza “informal”, abriram possibilidades de partilha de informações e relato de experiências comuns de ambas as partes, portanto, foram duplamente proveitosas o que demonstra nosso interesse em desvelar uma práxis compartilhada em saberes musicais. Assim, tomamos a perspectiva das histórias da 18 O trabalho técnico realizado pelos regentes corais foram abordados mediante a eleição de 5 (cinco) parâmetros da regência coral eleitos para análise: gesto, classificação vocal, técnica vocal, dinâmica de ensaio, repertório (arranjo e programa). Esta problemática já foi discutida por ocasião de nossa dissertação de mestrado (DAROZ, 2003), cujos resultados foram submetidos a novas variantes. 13 vida musical dos regentes participantes desta pesquisa e suas experiências profissionais como instrumento de análise. As entrevistas dos regentes profissionais, os “informantes-chave” (YIN, 2010:133) foram fundamentais para o sucesso dos estudos de casos proporcionando ao pesquisador insights importantes pelos assuntos tratados e por indicarem acesso a fontes corroborantes às evidências: “artefatos físicos” (Idem:140). Neste aspecto, tivemos acesso a partituras, CDs e DVDs, programas de concerto e outros materiais impressos dos grupos pesquisados, bem como materiais pessoais: artigos, textos, dissertações, etc., de modo a fornecer uma perspectiva mais ampla, muito além do que poderia ser observado no tempo limitado de uma visita de campo. • Aplicação de questionário do tipo recordatório19 (Anamnese musical) (ANEXOS: III/5 - Modelo E, p.189) in loco, adaptado aos propósitos desta pesquisa, aos integrantes dos corais juvenis selecionados, dentro do limite de idade estabelecido (13-19 anos), no intuito de identificar mudanças decorrentes da participação coral estabelecendo referenciais que pudessem descrever trajetórias de memória musical e supostamente reconhecer mudanças na orientação da escuta, estabelecendo índices qualitativos de uma experiência coral em fase avançada. Foram realizadas uma série de filmagens contendo depoimentos dos coralistas a respeito da importância da atividade coral em suas vidas. A partir desses materiais, pretende- se elaborar um vídeo ilustrativo dos corais visitados como material complementar à pesquisa. Adendo Enquete: “O professor inesquecível” (ANEXOS: III/6 - Modelo F, p.193) Especialmente para tratar das questões de fruição musical, utilizando o recurso do facebook, pretendemos resgatar na memória escolar de 100 (cem) entrevistados a figura do “professor inesquecível” de modo a estabelecer um contraponto com o regente coral. O levantamento bibliográfico permeou todas das etapas da pesquisa, acrescido da análise sistemática a respeito do material recolhido. Torna-se necessário ainda observar o cumprimento dos trâmites necessários à pesquisa. Todos os regentes dos corais juvenis foram contatados antecipadamente e a visita formalizada mediante expedição de “ Carta de interesse 19 O questionário recordatório, também chamado de inquérito alimentar é muito utilizado na área das Ciências Biológicas (principalmente: Biologia, Nutrição, Educação Física) para medir a freqüência de ingestão dos alimentos utilizando a técnica da anamnese (memória, recordação, lembrança). 14 em estágio de observação” (ANEXOS: III/8 - Modelo H, p.196) e “Carta de apresentação do aluno” emitida pelo Programa de Pós-Graduação em Música da “Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. O projeto de pesquisa foi analisado e aprovado sob CAAE (Certificado de Apresentação para Apreciação Ética) sob no. 09748312.8.0000.5398, junto à Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP)20. Todos participantes desta pesquisa declararam estar cientes dos procedimentos metodológicos desta pesquisa, mediante assinatura do “Termo de consentimento livre e esclarecido” (ANEXOS: III/7 - Modelo G, 194). Posto isto, o Capítulo 1 resgata aspectos da literatura existente a respeito das “culturas juvenis”, no âmbito do reconhecimento de determinadas temáticas. Neste âmbito, fez-se imprescindível uma pesquisa a partir dos estudos da adolescência e da juventude na atualidade, nas dimensões individual e social dos jovens (Apropriações); em seguida, enumeramos aspectos do universo idiomático próprio dos agrupamentos juvenis (Transgressões) e ressaltamos possibilidades de relacionar a música ao cotidiano dos jovens, identificando aspectos da recepção musical (Intersecções). O Capítulo 2 dá ênfase ao pensamento dos atores supracitados destacando primeiramente a importância da arte para o ser humano, do lazer ativo que se contrapondo à ociosidade, viabiliza a experiência sensível pela aquisição de um conhecimento autêntico que tem como reflexo a própria constituição do sujeito, nos traços de personalidade, realização pessoal e inserção social, situando a importância da prática musical do canto coral no âmbito do coletivo no limiar do ético e do estético. O Capítulo 3 se atém ao relato do trabalho de campo realizado de modo a apresentar os 14 (quatorze) grupos corais juvenis brasileiros escolhidos para a pesquisa e discutir aspectos do impacto da prática do canto coral nas comunidades entrevistadas bem como averiguar estratégias e delinear percursos a partir da experiência dos regentes profissionais à frente dos grupos e análise da experiência adquirida no Projeto “Fazendo Arte” (PRONAC 095329), da Universidade Sagrado Coração. O capítulo 4 situa perspectivas da prática coral em ambiente escolar, particularmente no Ensino Médio, enfocando questões da educação, interdisciplinaridade e transversalidade na contemporaneidade. 20 www.saude.gov.br/plataformabrasil 15 Capítulo 1 Culturas juvenis: apropriações, transgressões e intersecções musicais. 1.1 Apropriações “escrever sobre a vida cotidiana só pode resultar numa mostragem-mosaico cuja forma expositiva metacomunica com a complexidade do que se pretende representar” (PAIS, 2001:11) Falar sobre as culturas juvenis, de antemão, torna-se um desafio, pela defasagem inerente ao desenvolvimento dos grupos sociais em constante processo de mutação. Talvez o mérito deste estudo esteja em abarcar questões pontuais a respeito deste assunto, que passarão necessariamente por um processo contínuo de reorganização. As culturas juvenis se manifestam de forma acelerada em relação aos padrões de conduta, participação e gosto estético, descrevendo situações provisórias no âmbito de um contexto social tecnológico e globalizado que, quase sempre, ilumina aquilo que é superficial e passageiro. Nesta via de mão dupla, a discussão de temas como o aprofundamento das relações humanas e da experiência sensível são oportunos. Dilatada na audição dos jovens, a música ocupa um lugar especial no século XXI, de modo que projetou seu status quo em relação às demais manifestações artísticas, estabelecida uma relação de permanência. Podemos dizer que toda atitude de escolha em Arte exige uma espécie de consentimento; o sujeito chama para si uma série de “objetos” que o acompanharão por toda vida e projeta-se no mundo descrevendo um trajeto autêntico, matizado por uma relação de coexistência junto a outros sujeitos; neste processo muito há de incompreendido e desterritorializado. As questões relativas à fruição como forma de conhecimento real de mundo são instigantes e pouco conhecidas; esse é um assunto que pretendemos articular no decorrer deste trabalho. Assim tudo aquilo que, de forma particular ou coletiva, nos causa arrebatamento: a paixão, os sons, os perfumes, as roupas, os piercings, as tatuagens... se torna símbolo de nossas histórias de vida. Em relação à música esses aspectos são ainda mais pujantes, pois, de fato, as escolhas musicais dos jovens compõem uma poderosa trilha sonora de suas vidas (SIMON FRITH apud HARGREAVES, 2005:4), de modo a expressar variações recorrentes de tensão e contentamento e assim expandir-se variavelmente em termos autobiográficos. 16 A revisão destes conteúdos apresentados ao regente coral, por sua vez, incita possibilidades de rearticular ideias, estimular vivências, rever trajetórias, documentar e enumerar situações e provocar questionamentos. A música expressa um estado interior que irrompe o limite próprio da fala e a dificuldade de manifestar sentimentos íntimos criando possibilidades de expressão e abrindo expectativas de realização pessoal; vista desta maneira, auxilia o sujeito a definir os contornos próprios de seu entendimento de mundo. Nas letras das canções o jovem se reconhece, manifestando-se melodicamente em termos de subjetividade e por meio do efeito dinamogênico do ritmo - expresso em variações pulsantes, catárticas, hipnóticas e ritualísticas (ANDRADE, 1977:16), aspectos que harmonizam novos horizontes sociais. Maffesoli (2010:133) formula o conceito de neotribalismo para designar relações grupais instituídas que ganharam projeção na atualidade, referindo-se principalmente à fluidez das sociabilidades juvenis, pelos ajuntamentos pontuais e pela dispersão; resgatando o conceito de tribo21. Uma tribo se constitui por similaridade, no reconhecimento de características comuns entre seus membros. Ainda que a música, por tais fatores, ocupe um lugar de destaque, devemos inserir nesta dinâmica um terceiro elemento: a imagem, de modo que os três pareçam caminhar em simultâneo para configurar uma espécie de “programa”22 (áudio-visual). Essas articulações tribais permitem observar, a partir da escuta musical, aspectos internos das culturas juvenis que contracenam no cotidiano. Para prosseguir, torna-se necessário introduzir dois conceitos: adolescência e juventude. A Organização Mundial de Saúde (OMS) define que o período denominado adolescência abrange indivíduos de 10 a 19 anos, divididos em duas fases distintas: a pré- adolescência (10-14) e a adolescência (15-19) propriamente dita; já a denominação juventude indica o processo social de preparação para a vida adulta nos planos profissional e familiar, que se estende dos 15 aos 24 anos. O termo adolescência deriva do latim, com duplo sentido – ad + olescer = apto a crescer & adolescere = adoecer – e é utilizada para situar “um período evolutivo do indivíduo aonde acontecem transformações biopsicossociais, determinando um momento de “passagem 21 O termo tribo se remete etmologicamente a tribé (grego) significando atrito, isto é, demonstrando a resistência de corpos que se confrontam. Tal designação atribuída às sociabilidades juvenis indica vivências consideradas “desestruturadas”, contestáveis e subversivas. Maffesoli (apud PAIS & BLASS, 2004:12) 22 Música programática é aquela que se presta a um estilo narrativo ou descritivo. A expressão foi criada por Liszt (1811-1886), que definiu programa como um “prefácio aposto a uma obra instrumental para dirigir a atenção [do ouvinte] para a idéia poética do todo, no entanto, Sadie (1994:636) observa que, historicamente, o termo parece remeter-se de longa data à idéia de que a música instrumental esteve na maior parte do tempo vinculada a uma imagem sugerida pelo texto; já na música vocal, a imagem do texto é recorrente. 17 do conhecido mundo da infância ao tão desejado e temido mundo adulto” (OUTEIRAL, 2003:4, 102). Já o termo juventude, derivado do latim juventus = novo, recente, jovem. Vamos propor, em comum acordo com Pais (2003:42) e para efeito deste estudo, que a juventude seja olhada em torno de dois aspectos, enquanto unidade e diversidade. Num primeiro momento, situamos a adolescência como uma fase unitária da vida durante a qual ocorre o desenvolvimento biológico – transformações físicas e psico-sociais, por decorrência de um processo natural e comum a todos os jovens. Quanto às transformações físicas típicas desta fase, Oliveira (1996:12-19) enumera as seguintes transformações físicas típicas do adolescente: desenvolvimento dos caracteres sexuais primários e secundários, a modificação da composição corpórea, as alterações metabólicas e as acelerações do crescimento estatural desordenado, bem como mudanças endocrinológicas. Neste último aspecto, as alterações hormonais, masculina (testosterona) e feminina (progesterona), incidirão na definição da capacidade reprodutiva. Em relação à voz, ocorrerão alterações anatômicas na laringe caracterizando um período denominado na literatura de “mudança de voz”, para ambos os sexos; no entanto, essas mudanças estão mais nitidamente presentes no sexo masculino, entre 13 e 18 anos (MICHELSON apud OLIVEIRA, 1996:23). Neste processo, as pregas vocais se tornarão mais longas e espessas e, por conseqüência, a voz resultará mais grave, em uma oitava, para os meninos, e uma terça maior, para as meninas. Tais mudanças vocais imprimem fragilidade e instabilidade às vozes juvenis. Quanto às transformações psico-sociais, a adolescência se constitui numa série de mudanças comportamentais caracterizadas pelas seguintes manifestações de conduta23: busca de si mesmo e da identidade/personalidade; tendência grupal; necessidade de intelectualizar-se e fantasiar; crises religiosas (que oscilam do ateísmo mais absoluto ao misticismo mais fervoroso); deslocalização temporal (dualidade infância x vida adulta); evolução sexual manifesta (do auto-erotismo à sexualidade adulta); atitude social reivindicatória (anti-social); contradições sucessivas em todas as manifestações da conduta (volubilidade e instabilidade emocional e crise de identidade); separação progressiva dos pais; constantes flutuações do humor e do estado de ânimo (KNOBEL, 1992:29). Num segundo momento, situamos a juventude como diversidade, indicando os diferentes atributos sociais que distinguem os jovens uns dos outros, ou seja, enquanto categoria social que requer um espaço próprio, do ponto de vista social, cultural, econômico e 23 Outeiral (1993 & 2003), para caracterizar as manifestações de conduta peculiares à adolescência utiliza a terminologia “síndrome borderline” (limite normal/anormal) enquanto Knobel (1992) se refere à “síndrome normal da adolescência”. 18 político distanciando-se do rótulo de comportamento desviante dos padrões éticos e sociais vigentes. Comenta Pais: Resulta cada vez mais difícil a definição de uma idade a partir da qual um jovem se reconhece como adulto. (...) A juventude aparece cada vez menos associada a uma categoria de idade, e cada vez mais a um conjunto diversificado de modos de vida. (PAIS, 2003:378) O autor destaca concomitantemente um fenômeno ocorrente nos dias de hoje, o qual denominou juvenização, para situar a capacidade própria dos jovens em influenciar os adultos, aspecto que antagoniza o mote “socialização da juventude”, qual atribui ao jovem um papel passivo de assimilação de normas e valores. Outeiral (2003:107), por outro ângulo, antevê a problemática de que a adolescência tende a alongar-se cada vez mais, ocorrendo o que denominou de fenômeno da adultescência (o “ideal de ser adolescente para sempre”). Bourdieu (1983:112 - grifo do autor), a partir de um olhar sociológico, observa que a juventude é apenas uma palavra - “somos sempre o jovem e o velho de alguém”, detectando que as divisões entre as idades são arbitrárias e socialmente manipuladas, assim corrobora o pensamento dos demais, ao situar o jovem enquanto unidade e diversidade, como grupo constituído de características comuns, reiterando as diferenças existentes entre as juventudes, a partir da formulação de seu conceito de habitus - “um sistema de modificações adquiridas pela aprendizagem implícita ou explícita, gerador de estratégias que podem ser objetivamente afins aos interesses e objetivos de seus autores sem terem sido expressamente concebidas para este fim” (Idem:94). Em resumo, não há apenas uma juventude e uma cultura juvenil, mas várias, que diferem segundo condições sociais e históricas específicas (CATANI & GILIOLI, 2008:11) Ainda que os fatores de homogeneidade e diferenciação sejam mantidos, evidenciando a coexistência de contextos tradicionais e alternativos, numa dialética de linearidade e singularidade, é fato que a cultura juvenil ganhou status na atualidade, pressuposto que talvez justifique, por exemplo, o fluxo intenso de adultos nas academias em busca de boa forma física, aparência, disposição, agilidade e jovialidade, e, não menos evidente, um consumo musical característico. Assim, os adultos exibem atributos simbólicos próprios da juventude à medida que os comportamentos outrora tidos como “desviantes” passam a ser referenciados e incorporados: modos de vestir, de falar, de consumir, etc., dissolvendo fronteiras existentes entre as idades. Pais argumenta “os jovens são o que são, mas também são (sem que o sejam) o que deles se pensa, os mitos que sobre eles se criam. Esses mitos não refletem a realidade, embora a ajudem a criá-la” (PAIS & BLASS, 2004:77). 19 A visão homogênea, tradicional e linear - representada por certos setores sociais como a família, a igreja e a escola, cede espaço à visão heterogênea, alternativa e singular – representada pelas comunidades juvenis, de modo que, nesta última instância, as formas de socialização respondem diretamente aos desejos individuais de crença particular (busca da religiosidade), pois a igreja se multiplica em sincretismos desenraizados e discordantes (aspecto relatado por COSTA24); busca de interação, pois a vida familiar está restrita ao subterfúgio do quarto (revistas, fanzines, posters, roupas, som, instrumentos musicais, computador, internet, etc.) e busca de conhecimento de mundo, pois discurso da escola não dialoga com o cotidiano do jovem. Esses aspectos influenciam significativamente as culturas juvenis. Segue o comentário de Pais: Em ambos os sentidos (o macrossocial e o microssociológico), a cultura pode ser entendida como um conjunto de significados compartilhados, um conjunto de sinais específicos que simbolizam a pertença a um determinado grupo, uma linguagem com seus específicos usos, particulares rituais e eventos, através dos quais a vida adquire um sentido. Esses “significados compartilhados” fazem parte de um conhecimento comum, ordinário, cotidiano (PAIS, 2003:70). Dito de outra forma, os ambientes formais de socialização perderam o seu poder de influência em favor dos ambientes não formais, gerando formas alternativas de socialização juvenil; o mesmo tempo ocorreu alargamento das possibilidades de lazer e consumo, evidenciadas pelo fenômeno da globalização e da cultura de massa. Neste âmbito a mídia e a tecnologia têm papel relevante em termos de acesso, portabilidade e viabilidade. Souza (2008:8) nos fala da necessidade de compreender as condições de produção de sentidos que as novas tecnologias promovem nas experiências pedagógico-musicais. Todas essas oportunidades deixam os jovens conscientes de que podem construir sua identidade, bem como modificá-la, no entanto, isto os coloca à mercê de uma individualidade frágil desatenta em relação ao contexto em que vivem. Esse acesso permissivo da virtualidade alienante se opõe ao pertencimento, de forma que a identidade está cada vez mais vinculada à produção de uma imagem pessoal que advém de uma cultura de consumo da qual a indústria cultural é mediadora, erradicando o sujeito autônomo e auto-constituído, aspecto comentado por Kellner (2001:297). Essas condições colocadas ao jovem transformam significativamente os modos de ser e estar no mundo. Catani & Gilioli (2008:90) apontam para os problemas 24 Costa (In: PAIS & BLASS, 2004:46) em sua pesquisa etnográfica detectou que a maioria dos skinheads entrevistados consideram a religião doutrinária, alienante e exploratória. Neste caso o fato de pertencer a uma igreja implica em abandonar os ideais do grupo (deixar de pertencer à tribo), de usar roupas e cabelos diferenciados, adereços e abdicar do gosto de ouvir as bandas preferidas (o caso da banda underground “Os Carecas de Cristo”) 20 atuais em relação do consumo de drogas e a liberação extrema da sexualidade como uma suposta conseqüência dessas mudanças sociais. Ainda que, a identidade “se concretize” no ciberespaço, numa euforia intensa e descontínua, constituindo uma nova modalidade de escapismo e fuga, as relações humanas devem ser desveladas em termos de profundidade. Por outro lado, consciente desse processo de desintegração do ser humano, Maffesoli (2010) indica nos jovens uma espécie de tribalismo, como reação aos sistemas de manipulação cultural, demonstrando novas maneiras de transgredir. 1.2 Transgressões Pensar Viver é transgredir... (muita inquietação por baixo das águas do cotidiano) (Lya Luft) A transgressão em relação ao instituído é a constatação da diversidade cultural. O ato de transgredir, no sentido de um processo de transformação pode ser também ser considerado apenas como algo perturbador. Vieira (2008:131) observa que a transgressão permite ao sujeito “experienciar” uma racionalidade diferente, de forma consciente e enriquecedora, porque esta atitude é ensaiada comparativamente com a ordem da socialização primária. No hábito de estar com os amigos é que são construídas as identidades grupais, assim, expressões como “matar o tempo” ou “não fazer nada” representam uma das principais atividades no cotidiano das culturas juvenis. Essas práticas de sociabilidade são instituídas na coesão simbólica de uma série de elementos estabelecendo um compromisso de participação e manutenção do ideário do próprio grupo. Assim, Pais (2003:114) comenta que as imagens que os grupos de jovens formam de si mesmos e dos outros parecem orientar as relações de igualdade e diferença que se estabelecem entre eles no ambiente urbano, detectando uma espécie de tribalismo. As tribos urbanas25 assim organizadas surgem como proteção das identidades individuais compartilhando afinidades, desejos e interesses, expressos categoricamente em formas distintas de negociação e pertencimento social. Maffesoli comenta que: 25 O termo “tribo urbana”, difundido pela mídia parece ser utilizado preferencialmente aos termos “gangue” e “gueto”, que possuem um sentido pejorativo, embora as atitudes como roubo, violência, drogas, etc. possam estar presentes em todos os casos (MARTINS, 2004:13). 21 A busca ostensiva pela sensação de pertencimento, pela auto-afirmação da subjetividade e pelo afeto comunitário assinala a tribalização das sociedades contemporâneas. Em conseqüência da exacerbação do individualismo e da massificação no mundo contemporâneo ocorreu o desenvolvimento de microgrupos, que abriram espaço para comportamentos fortemente expressivos e auto-afirmativos. (MAFFESOLI apud PAIS, 2004:104) As tribos urbanas possuem estilos de vida bastante heterogêneos e se encontram em ação constante, muitas vezes transgredindo normas institucionalizadas. O espaço da rua (juntamente com o da escola) normalmente é tido como o lugar de convívio por excelência e também de disputa de território estabelecendo uma afronta marginal em relação ao espaço público. (CARNEIRO, 2006:106) Considerando que o espaço urbano para a juventude é um lugar transgressivo por excelência, há uma clara tendência de que as manifestações das culturas juvenis tendem a proliferar e se complexificar de modo a configurar um novo panorama cultural. O contato com outros jovens amplia a rede de relações sociais, permite novas formas de viver o tempo livre e aumenta a possibilidade de apropriação de alguns espaços do bairro e da cidade. Uma das manifestações mais conhecidas de transgressão no espaço urbano são o grafite e a pichação onde os jovens fazem novos usos do espaço público das cidades mediante inscrições em muros, casas, prédios e outros locais possíveis. A diferença fundamental entre grafiteiros e pichadores é que os primeiros fazem, em geral, desenhos e pinturas murais mais sofisticadas, enquanto os outros preferencialmente marcam seus nomes, apelidos e símbolos em muros, placas e locais quase inacessíveis. No segundo caso, trata-se de demarcações territoriais do espaço público, que muitas vezes não se mostra acolhedor aos jovens. A classificação generalizada entre os dois seguimentos associada normalmente à delinqüência, pode ser considerada um modo característico de apropriação artística e das formas de lazer. As expressões coloquiais “zoar” e “causar”, bem comuns entre os jovens, exprimem formas interativas baseadas na jocosidade e na ludicidade, destacando de um lado um caráter de competição e de outro um caráter performático. Embora o conceito de tribos urbanas permita reconhecer aspectos da diversidade cultural do cotidiano dos jovens, pouco informa a respeito da poética de mundo enunciada por eles. Pais (2003:159) nesta prerrogativa destaca que no domínio do lazer é que as culturas juvenis adquirem maior visibilidade, ressaltando neste âmbito a importância da música. O tempo livre, manifestado no domínio do lazer, pode ser expresso em atividades de permanência com os amigos e de escuta musical. Essas atividades coletivas de afirmação 22 social e convivência são valorizadas sobremaneira pelos jovens, porque reconhecem aí o desfrutar de certa autonomia, em contraste com outros domínios da família, igreja e escola. Em termos quantitativos, é possível observar, de acordo com esta pesquisa, que os jovens mantêm elevados índices de permanência de escuta musical. O celular prevalece em 92% em relação aos demais recursos: laptop, iPhone, iPod, iPad, mp3, mp4, etc, por reunir de forma condensada os dispositivos necessários para que o jovem possa relacionar-se com a música. Notadamente, para viabilizar essa audição concentrada, é criada uma parafernália de tipos e modelos de produtos, artefatos e acessórios de reprodução sonora, a exemplo dos fones de ouvido e dos headphones, com design sofisticado, ajuste ergonométrico e amplas capacidades acústicas. Em termos qualitativos, torna-se necessário observar como se dá o consumo do tempo destinado ao lazer, na perspectiva apontada por Dumazedier (1976; 1979), qual traz benefícios em termos de conhecimento e transformação da realidade, opondo-se à ociosidade; outro aspecto de fundamental importância é a discussão da experiência estética que o jovem mantém com o seu aparelho celular e a dimensão humana da música, no sentido próprio do termo, temas que serão desenvolvidos ao longo deste trabalho. Certamente a mídia exerce influência sobre as culturas juvenis a ponto de se constituir um instrumento de manipulação. No entanto, ao projetar-se em termos de individualidade e auto-expressão, os jovens têm driblado essa fala conceitual e chamando para si aquilo que os diferenciam do senso comum. No entanto, embora o fenômeno da globalização, o uso que os jovens fazem dessas escolhas também dependem dos contextos sociais em que estão inseridos e da forma como se dão os processos de assimilação e resistência às modas ditadas pela indústria cultural. Assim, os jovens não podem ser vistos dentro de um padrão de homogeneização, pois, simultaneamente, participam da cultura de consumo, à medida que aperfeiçoam suas escolhas. Neste sentido, Featherstone (apud PAIS & BLASS, 2004:119) se refere aos dois fenômenos remetendo-nos às expressões efeito estético (engajamento) e distanciamento estetizante (contraposição). Podemos observar ainda que a própria natureza ativa dos agrupamentos tribais permite o rompimento das fronteiras da uniformidade, de modo que os jovens, ao se apossarem dos produtos ditados pela moda, produzindo seus próprios significados e resistências, acabam transformando-os de modo a inspirar a mídia a produzir formas diferentes de transformação cultural e social, num processo mútuo de codificação e descodificação - experiência e aspiração. (KELLNER, 2001:20) O propósito das narrativas de imagem e som veiculadas pela televisão e outros dispositivos da indústria cultural fornecem os símbolos e os recursos que ajudam a constituir 23 um modelo ideológico de comportamento para a maioria dos indivíduos em termos de acreditar, desejar, pensar, sentir. Esse fenômeno está ligado diretamente às relações estabelecidas pela moda que, na contemporaneidade, é um componente importante da identidade dos jovens ajudando a determinar de que modo cada pessoa é percebida e aceita. Quanto ao consumo dos produtos da moda, antes de ser uma tendência à “unissexualização da aparência” física, dos modos de usar o corpo e o do vestuário (MAFFESOLI, 1987:116), pode ser entendido com uma espécie de apelo ao pertencimento, de modo que os jovens sejam reconhecidos como membros de um grupo ou tribo. Para o autor a aparência estética é “vetor de agregação” – “um meio de experimentar, de sentir em comum e um meio de reconhecer- se” (Idem:134). Do mesmo modo, a música que é consumida pelos jovens transita entre aquilo que é divulgado e o que é verdadeiramente reconhecido como símbolo identitário. Kellner (2001:337) comenta que os astros do rock influenciaram nas mudanças de cortes de cabelo, nos modos de vestir e se comportar, ao mesmo tempo em que suas atitudes, às vezes rebeldes, serviam de sanção para a revolta social inspirando movimentos subseqüentes. Muito comum entre os jovens, estimulados pelos fatores de moda e consumo, é o uso de tatuagens e piercings. Trata-se de um conjunto de práticas ornamentais do corpo que suscitam algum tipo de transgressão e uma espécie de pânico moral entre os pais; ao mesmo tempo, são tidos como objeto de design estético, despertando o interesse do mercado profissional. Exibidos como artefatos de juvenização, como reapropriação de formas tribais primitivas e ancestrais, o uso de tatuagens e piercings está vinculado normalmente à música, à moda e ao esporte, trata-se de: Uma forma moderna, permanente e relativamente democratizada de body art, assumindo o corpo como potencial obra de arte itinerante, cuja “natureza” reivindicam (as tribos) como “cultura”. Na sua materialidade carnal, o corpo é apropriado como matéria-prima a ser esteticamente investida e produzida, como superfície a ser pintada, perfurada e criativamente ornamentada e nesse movimento de vai-e-vem característico das agulhas que penetram o corpo, a arte encarna-se e a carne estetiza-se. (FERREIRA, 2004:76). Entendemos que, por meio dessas mutações, os indivíduos podem produzir suas próprias identidades, resistindo aos códigos dominantes e criando sua própria moda ou usando os estilos dominantes à sua maneira. Featherstone (1995:121) atenta à necessidade de considerar a simbolização e o uso de bens materiais como “comunicadores”, não apenas como “utilidades” para enfatizar que “o mundo das mercadorias e seus princípios de estruturação são centrais para a compreensão da sociedade contemporânea”, ou seja, que a informação está contida no processo 24 formativo e que “vivemos uma permanente reinvenção de nós mesmos”. Neste sentido é que parafraseamos a máxima de Lya Luft: Viver é transgredir.26 Catani & Gilioli (2008:27) nos falam que o surgimento desses novos padrões de comportamento mais autônomo em relação às instituições tradicionais ressalta que há uma ampla cultura juvenil e não mais uma subcultura restrita a jovens socialmente marginalizados. O computador e a internet passaram a ser, de forma generalizada, ferramentas imprescindíveis ao homem contemporâneo em termos de produção (softwares) lazer/ entretenimento (jogos, música, filmes, etc.) e relacionamento (chats, messenger, orkut, facebook, twitter, etc.). Neste último quesito, as chamadas “redes sociais” atualmente têm ocupado papel predominante na vida das pessoas, principalmente em relação ao jovem; por mais espantosas que sejam mutações de identidade que a virtualidade permite realizar em termos de sexo, raça, classe, profissão, etc., ocorre uma defasagem muito grande entre dois espaços distintos, o interno – das fantasias e dos sonhos e o externo – da realidade, do conhecimento de mundo, do compartilhamento, das emoções, da interação, do convívio, do confronto, ambos flutuando entre a idealização do ser e o Ser. No limiar desses diagnósticos de transtorno, Kellner (2001:335) observa que estas práticas também podem funcionar como terapia, pois na dificuldade do exercício social presencial, o computador passa a simular descargas afetivas. Neste sentido, podemos interpretar que a internet possa permitir ao jovem um exercício de transgressão por excelência, pois aparentemente já não é mais possível encontrar limites instituídos. O problema das drogas, e de seus mecanismos de difusão entre os jovens, passou a ser mundialmente preocupante. As drogas, bem como a música - guardadas as devidas proporções, figuram entre as possibilidades de escapismo e fuga, são “paraísos artificiais”27, alteram as percepções de mundo multiplicando experiências sinestésicas na busca de uma realidade aparente e na descoberta de um mundo imaginário que pode sobrepor-se ao mundo real. Atualmente, dentro da perspectiva de multiculturalismo28, assuntos tais como a opressão e o preconceito, relativos à desigualdade social, passaram a ser evidenciados, ressaltando a diversidade cultural e aspectos da alteridade. 26 LUFT, Lia. Pensar é transgredir. Disponível em http://pensador.uol.com.br/frase/MjgzMzA0/>Acesso: Abr.2013. 27 “Paraísos artificiais”. Filme de Marcos Prado (Brasil, 2012) cuja trama se passa num enorme festival de arte e cultura alternativa, pano de fundo de experiências sensoriais intensas envolvendo juventude, drogas e música eletrônica. Disponível em: Acesso: Mar. 2013. 28 Por multiculturalismo entendemos a transformação da cultura de um grupo pela assimilação e permuta de elementos culturais externos. 25 A discussão de temas como classe, etnia, feminismo, sexualidade e nacionalidade deram abertura à explicação de fenômenos antes ignorados ou subestimados. O termo “bullying” passou a ser amplamente utilizado para flagrar atitudes de estranhamento, principalmente em ambiente escolar, no desejo deliberado de maltratar outrem (GOMES, 2010:1). A alteridade passou ser muito discutida na atualidade para evidenciar a problemática do individualismo. Como seres gregários, necessitamos do exercício pleno do viver coletivo e em comunidade e, supostamente, devemos criar formas de aproximação com o diferente. Pais & Blass (2004:9) ressaltam que não se trata propriamente do “outro”, mas, sobretudo, do modo como o “outro” é olhado, percebido, categorizado, construído, estigmatizado. Na modernidade, a identidade torna-se mais móvel, múltipla, pessoal, reflexiva e sujeita a mudanças e inovações. Apesar disso, aparece sempre relacionada com o outro. Essa relação de solidariedade nutre a dinâmica social permitindo uma série de experiências que são a própria constituição do sujeito. A sexualidade se converteu em uma necessidade pessoal que não deve ser necessariamente dirigida e institucionalizada dento da família. A socialização dos adolescentes neste novo modelo cultural permite um maior grau de liberdade sexual em comparação às gerações precedentes. Como observa Castells (1996:19): “Pelo fato de a família e a sexualidade serem determinantes fundamentais dos sistemas de personalidades, o questionamento das estruturas familiares conhecidas e a difusão da sexualidade aberta ocasionam a possibilidade de novos tipos de personalidade que somente agora começamos a perceber. O autor observa que a expressão aberta da sexualidade e sua, ainda débil, porém crescente, aceitação pela sociedade tem permitido a expressão da homossexualidade, promovida pelo movimento gay e lésbicas, que se têm convertido em agentes importantes da mudança cultural. Outerial (2003:120) também nos remete particularmente ao âmbito dos relacionamentos afetivos e destaca que, na atualidade, os encontros são marcados pelo exercício do descartável e do consumo compulsivo, aspectos que acabaram por permear as relações “humanas”, expressos em termos de banalização da sexualidade, a nova erótica do “ficar”. Define o termo como “a impressão de um enamoramento com prazo curto de validade”, destacando a autonomia de um desejo que está pronto e oferecido antes mesmo de ser desejado. As saídas aos finais de semana marcam uma ruptura no cotidiano dos jovens. As festas (“baladas”) são possibilidades reais do exercício social entre iguais. Nestes encontros temos a coincidência das falas cotidianas (gírias) e de todos os demais fatores que envolvem os contextos sociais e culturais juvenis, principalmente a música. 26 Pais (2003:140) comenta que os jovens compartilham com as gerações mais velhas uma série de valores e parecem rejeitar outros É comum encontrar na literatura o termo “conflito de gerações”, justamente porque a construção das identidades juvenis, de certa forma, está condicionada aos valores da família, tradicionalmente instituídos. Assim as transgressões são evidenciadas por uma série de regras punitivas constantemente evidenciadas e renegociadas, que poderão incidir em problemas de ordem diversa, dos quais a super- proteção dos pais e conseqüente dependência dos filhos parece ser o mais discutido na atualidade. Sobre a eminência de avanço e retrocesso, comenta Pais: O grau de consonância ou dissonância cognitiva que um jovem experimenta em relação a um dado contexto de normas ou valores depende, por um lado, da intensidade de harmonia existente entre essas normas ou valores e as práticas quotidianas delas decorrentes e, por outro lado, da importância que essas normas ou valores têm para um jovem, em termos de um dado sentido de vida. (PAIS, 2003:236) Da mesma forma, as culturas escolares resultam de um complexo processo de contestação e negociação, de resistência e acomodação. O autor (Ibdem: 256) ainda ressalta que embora a escola seja constituída socialmente enquanto forma de conhecimento também se traduz enquanto desconhecimento, com isso, ela se coloca de maneira a desconsiderar experiência de mundo dos próprios indivíduos. Também é possível observar na atualidade o problema do analfabetismo funcional29 que tem sido, de certo modo, reforçado pela tecnologia em prol de um suposto “letramento digital” e a conseqüente afirmação de um indivíduo com dificuldade em estabelecer relação com o mundo circundante. O vestibular incentiva uma padronização intelectual, pela qual o jovem é dirigido ao mercado profissional em busca de um “diploma”, muitas vezes seguindo os critérios determinados pela estrutura familiar - em termos de retorno financeiro, ou se mantém na completa indecisão do rumo a seguir. Neste sentido, Pais (2003:320-1) observa certas “estratégias de reconversão” que estão dando lugar à revivescência das carreiras artísticas, entendidas como a “verdadeira vocação”. Contudo, a escola parece ser a principal instituição que promove a transição para a condição adulta nas sociedades modernas, superando a própria família. Catani & Gilioli (2008:55) destacam a idéia de que a escola deveria