unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP FÁBIO DO ESPÍRITO SANTO MARTINS PERCURSOS MBYÁ GUARANI NA MATA ATLÂNTICA: a TI Tekoá Mirim como estudo de caso ARARAQUARA – S.P. 2021 FÁBIO DO ESPÍRITO SANTO MARTINS PERCURSOS MBYÁ GUARANI NA MATA ATLÂNTICA: a TI Tekoá Mirim como estudo de caso Tese de Doutorado, apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais. Linha de pesquisa: Diversidade, Identidades e Direitos. Orientador: Prof. Dr. Paulo José Brando Santilli. Bolsa: CAPES/CNPq ARARAQUARA – SP 2021 Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca da Faculdade de Ciências e Letras, Araraquara. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. M386p MARTINS, Fábio do Espírito Santo Percursos Mbyá Guarani na Mata Atlântica: a TI Tekoá Mirim como estudo de caso / Fábio do Espírito Santo MARTINS -- Araraquara, 2021 122 fs.: 1 mapa. Tese (doutorado) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Ciências e Letras, Araraquara Orientador: Prof. Dr. Paulo José Brando SANTILLI 1. Etnologia Indígena. 2. Antropologia. 3. Protagonismo Político. I. Título. FÁBIO DO ESPÍRITO SANTO MARTINS PPEERRCCUURRSSOOSS MMBBYYÁÁ GGUUAARRAANNII NNAA MMAATTAA AATTLLÂÂNNTTIICCAA:: AA TTII TTEEKKOOÁÁ MMIIRRIIMM CCOOMMOO EESSTTUUDDOO DDEE CCAASSOO Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Ciências e Letras – UNESP/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais. Linha de pesquisa: Diversidade, Identidades e Direitos. Orientador: Prof. Dr. Paulo José Brando Santilli. Bolsa: CAPES/CNPq Data da defesa:01/04/2021 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientador: Prof. Dr. Paulo José Brando Santilli Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - FCLAr. Membro Titular: Prof.ª Dr.ª Renata Medeiros Paoliello Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - FCLAr. Membro Titular: Prof. Dr. Edmundo Antônio Peggion Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - FCLAr. Membro Titular: Prof. Dr. Levi Marques Pereira Universidade Federal da Grande Dourados. Membro Titular: Prof.ª Dr.ª Niminon Suzel Pinheiro Centro Universitário de Rio Preto – UNIRP. Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara Para Andreia, companheira de vida e força incessante que me faz prosseguir. AGRADECIMENTOS À minha mãe, Ruth; meus avós, Linhardt e Leontina, metas constantes de aproximação, mas quase nunca atingidas... Ao meu orientador, Prof. Dr. Paulo J. B. Santilli, pela sua incomensurável generosidade e profunda capacidade para indicar caminhos, quando estes parecem não existir... A todos os demais professores que participaram do processo de materialização desta pesquisa, fato, que com certeza, fez diminuir as muitas limitações ainda presentes neste trabalho. Aos companheiros do PPGCS da Unesp/FCLAr, pelas angústias e felicitações divididas no processo de fazer ciência e produzir conhecimentos. Aos Mbyá Guarani, “que me propiciaram a percepção e a experiência, de fato, para vivenciar outro mundo”... "O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001” RESUMO Inserido no processo de autodemarcação da Terra Indígena Tekoá Mirim localizada no interior da Unidade de Conservação do Parque Estadual da Serra do Mar no município de Praia Grande no litoral paulista, este trabalho pretende evidenciar a luta pela permanência indígena em seu território. Já, que diferentes instâncias do Estado passaram a considerá-los como invasores. Desconsiderando, portanto, que esta permanência remonta a uma posse secular, assegurada pela concretização sócioespacial de seu modo de vida próprio, culturalmente peculiar, ou seja, de seu Nhanderekó. Diante de tal contexto, pretende-se neste trabalho dar visibilidade às motivações sociocosmológicas que justificam a dinâmica de deslocamento e ocupação espacial realizados pelos Mbyá, tanto quanto, à interlocução dialógica que se materializa diante da circunstância de que a percepção ambiental que eles manifestam na definição nada aleatória de sua Tekoá, assim como os usos que fazem dela, necessariamente, são circunscritos e circunscrevem simultaneamente, a elaboração epistêmica e ontológica que executam sobre a sua TI e sobre si mesmos. Palavras–chave: Mbyá Guarani, territorialidades, conhecimentos tradicionais, protagonismo. ABSTRACT Inserted in the process of self-demarcation of the Tekoá Mirim Indigenous Land located inside the Conservation Unit of the Serra do Mar State Park in the municipality of Praia Grande on the coast of São Paulo, this work intends to highlight the struggle for indigenous permanence in its territory. Already, that different instances of the State started to consider them as invaders. Disregarding, therefore, that this permanence goes back to a secular possession, ensured by the socio-spatial realization of his own, culturally peculiar way of life, that is, of his Nhanderekó. Given this context, the aim of this work is to give visibility to the sociocosmological motivations that justify the dynamics of displacement and spatial occupation carried out by the Mbyá, as well as the dialogical dialogue that materializes in the face of the circumstance that the environmental perception they manifest in not at all random definition of their Tekoá, as well as the uses that make it, necessarily, are circumscribed and circumscribed simultaneously, the epistemic and ontological elaboration that they perform about their IT and about themselves. Keywords: Mbyá Guarani, territoriality, traditional knowledge, protagonist. LISTA DE MAPAS Mapa 1 Tekoá Mirim – Mapa Continental Guarani - CTI 26 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 10 1.1 Interesse pelo tema 15 1.2 Chegada a Tekoá Mirim. “Trabalho” que dera início aos trabalhos... 17 1.3 Sinopse dos capítulos 24 1.4 Prólogo 26 2 CAPITULO I 2.1 Motivações da Mobilidade Mbyá para a constituição da Tekoá Mirim. 52 2.2 Os sonhos: a síntese cosmológica de impulso para o deslocamento Mbyá para a constituição da Tekoá Mirim 54 2.3 A práxis e o pragmatismo político cotidiano dos Mbyá: outros impulsos a motivar o deslocamento para a constituição da Tekoá Mirim. 59 2.4 O deslocamento entre a Tekoá de Pariquera-açu e a Tekoá Mirim. A mobilidade Mbyá propriamente dita. 3 CAPÍTULO II 63 3.1 A perspectiva ambiental dos Mbyá e a ótica Juruá sobre o meio ambiente. 70 3.2 Contextos da concretização da Tekoá Mirim. 71 3.3 Os usos do “ambiente” na Tekoá Mirim. 74 3.4 Ambiente e território Mbyá na Tekoá Mirim. 77 3.5 Ambiente e terapêutica Mbyá na Tekoá Mirim. 83 3.6 Algumas incoerências e contradições entre as legislações ambiental e indigenista. 89 4 CAPÍTULO III 4.1 Alguns processos de construção para novas possibilidades na contemporaneidade da Tekoá Mirim. 96 CONSIDERAÇÔES FINAIS 111 REFERÊNCIAS 114 10 INTRODUÇÃO 11 1 Introdução. Quanto à causa indígena no Brasil contemporâneo, as temáticas concernentes à espacialidade e à noção de território vêm sendo alguns dos principais pontos de discussão entre os especialistas nas áreas antropológicas, jurídicas e afins. O direito fundiário tem remetido à discussão de uma série de conceitos e perspectivas antropológicas e jurídicas a fim de contemplar a especificidade das situações das sociedades indígenas, tanto num plano mais amplo (abordando os povos indígenas como um todo na categoria de índios), quanto de forma mais específica (quando se trata de cada sociedade indígena). Assim, a concentração em torno destas questões, está diretamente ligada ao acentuado interesse das populações Guarani para estabelecer seu direito territorial, especialmente a partir da Constituição Federal de 1988 (CF 1988), em particular no Art. 231 e Art. 232. Portanto, quando direcionando esse tema para os Mbyá Guarani, observa-se a necessidade de uma análise que tenha por base um esclarecimento tanto sobre aspectos teóricos que envolvem o conceito de território, quanto à história de contato dessas populações com a sociedade envolvente. Enfocar esses elementos é imprescindível, pois que seus problemas relacionados à economia, saúde, organização social e demografia estão imbricados e subsumidos na questão fundiária.Desta forma, pretende-se analisar neste trabalho, a partir de bases que compreendem as relações dos Mbyá Guarani que vivem na Tekoá Mirim com o espaço, tal qual sugerem as suas concepções nativas, e de que forma as relações com a sociedade evolvente forjaram mudanças históricas que moldaram a configuração atual que os afeta. Neste sentido, é preciso distinguir inicialmente, o conceito de território segundo a perspectiva da sociedade envolvente e a noção de espacialidade presente entre os Guarani. A noção de território é algo relativamente recente na História e está imbricado na formação dos Estados Nacionais, que se estabelece em bases espaciais com fronteiras geopolíticas precisas. Portanto, na análise sobre o confronto de perspectivas sociais distintas a respeito do espaço, é preciso sempre lembrar que o território é um atributo do Estado Nação. Oliveira Filho (1998, p. 19) aponta para vários estudos que indicam como diversos povos indígenas estudados possuem uma organização social que não necessita de uma vinculação ou base em um espaço territorial fixo. Cabendo ainda, incluir aqui a noção de territorialização, proposta por este autor, como um importante aspecto para se pensar a participação ativa das diferentes comunidades Guarani na reivindicação de demarcação de suas terras. Destarte, de acordo com o autor em referência, é a presença do agente colonizador que instaura uma nova relação da sociedade com o território, produzindo uma série de transformações socioculturais. Assim, o Estado Nação impõe que se estabeleçam bases fixas também para as sociedades indígenas, e é nessas condições históricas que se visualiza a territorialização: “a qual, define-se como um processo de reorganização social, (...) processo este que estabelece uma intervenção da esfera política que associa — 12 de forma prescritiva e insofismável — um conjunto de indivíduos e grupos a limites geográficos bem determinados” (OLIVEIRA FILHO, 1998, p. 20-21). Todavia, em antagonismo com relação a tais constatações historiográficas, é possível observar-se que os Guarani, assim como muitas outras sociedades indígenas, tradicionalmente estabeleceram-se em relação à espacialidade ocupada, sem uma preocupação em se fixar em uma área determinada e levantar limites precisos. Entretanto, o processo histórico de constante contato com a sociedade envolvente impôs mudanças nesses aspectos, que influenciaram, inequivocamente, os seus perfis socioculturais. Deste modo, ao se recorrer à historiografia sobre os grupos Guarani, é possível afirmar que os mesmos, quanto ao seu relacionamento com as principais instituições estatais brasileiras, eles o fizeram de uma forma bastante restrita. Já, que: Por um longo tempo, os Mbyá se valeram da estratégia da invisibilidade para estarem próximos da nossa sociedade e, assim, não sofrerem demasiadas intervenções da mesma em seu modo de vida. Como estratégia de invisibilidade compreende-se terem, por muito tempo, ocupado áreas caracterizadas como terras públicas, ocultando suas casas cerimoniais, protegendo suas crianças e mulheres do olhar do branco, vestindo-se como pessoas da sociedade englobante e se relacionando com elas como se fossem um grupo marginal qualquer ou índios sem identidade - ou aculturados, como ainda são identificados pelo senso comum. Progressivamente, e especialmente a partir de 1988, essa estratégia mudou. Os Mbyá perceberam que, ao se fazerem visíveis e acessíveis, obteriam mais vantagem nas relações interétnicas, especialmente nas questões relativas ao acesso a espaços geográficos adequados a suas pautas culturais (ASSIS & GARLET, 2004, p. 40). Assim, percebe-se em relação às situações de contato, que foi a partir da metade do século XX que os Guarani sentiram o impacto mais duro do processo de relação com a sociedade envolvente. Apesar de que, nas épocas precedentes, os espaços geográficos tradicionalmente ocupados tenham sido sistematicamente atacados e esbulhados, e eles próprios vítimas de guerras, escravização e epidemias, é a partir da segunda metade do século XX que o processo de invasão dos espaços por eles ocupados ocorre de forma mais contundente. O que torna necessário destacar, que, se até esta data eles ainda podiam dispor de espaços que lhes permitiam manter um distanciamento dos colonizadores, vê-se que isto agora passa a ser cada vez menos provável. Desta maneira, neste trabalho é proposto evidenciar, o processo de estabelecimento e criação da terra indígena (TI) Tekoá Mirim, circunscrita pelo município de praia grande, litoral do estado de São Paulo. Localizada no interior da Unidade de Conservação (UC) do Parque Estadual da Serra do Mar (PESM). Assim, de maneira efetiva, os Mbyá Guarani, que se caracterizam como a sua população, ocupam a região desde novembro de 2010. Fato, que fez com que as instâncias do poder executivo municipal, passassem a considerá-los invasores, e mais, situação que corroborou para que os órgãos ambientais estaduais, sobretudo, a Secretaria Estadual de Meio Ambiente de São Paulo (SEMA – SP), assumisse a 13 postura de considerar a permanência dos Mbyá Guarani na Tekoá Mirim, contrária ao “corpus” legal que legisla sobre a ocupação humana nas UC ambientais. E, portanto, iniciasse uma articulação político- administrativa para impossibilitar a permanência indígena em seu próprio território. Permanência esta, que remonta a uma posse que secularmente, está assegurada pela concretização sócioespacial do seu modo de vida próprio, culturalmente peculiar, ou seja, de seu Nhanderekó; completamente ignorado e desprezado pelo Estado brasileiro. Diante de tal contexto, pretende-se neste trabalho, dar visibilidade às motivações sociocosmológicas, culturais, portanto, que justificam a dinâmica de deslocamento e ocupação espacial dos Mbyá Guarani, além de problematizar os processos etnohistóricos que justificam a autenticidade quanto a sua ocupação do território em questão. Opondo-se, portanto, à ingenuidade de: Uma interpretação precipitada, errônea e de caráter essencialista que se fixa na justificativa da mobilidade espacial única e exclusivamente imbricada à busca da terra sem males como uma característica inerente à cultura, mas desvinculada das condições históricas vigentes. Assim, verifica-se que os guarani não só se encontram em permanente relação com a sociedade englobante, como também estão atentos aos processos de mudança que ocorrem nela e que os afetam diretamente, agindo ativamente em relação a ela (ASSIS & GARRET, 2004, p. 40). Assim, a atual presença/permanência do povo indígena Mbyá Guarani no litoral do estado de São Paulo, enfatiza novas percepções que incidem sobre as formas estabelecidas das relações entre eles e os “juruá”, ou seja, os não-índios. Situação esta, que em escala diminuta, mas não com menor significação, caracteriza e evidencia de modo peculiar a dinâmica que generalizada, torna concreta parte da complexidade dialógica existente entre os povos indígenas e a sociedade envolvente. Desta forma, é colocada a problemática a respeito da qual se concretiza a impossibilidade de que se tenham compatibilizado interesses e perspectivas de claro antagonismo sobre a ocupação da serra do mar por ambas as sociedades. Mesmo que na maioria das vezes em que se reflete a esse propósito, seja desprezado o contexto de que os Guarani, ao longo do tempo vivem naquelas matas, em simbiose com as mesmas, estabelecendo uma intrínseca relação de interdependência cultural e econômica. Contudo na contemporaneidade, segundo Ladeira (1989): “não mais ocultos sob as vestes da floresta, inevitavelmente eles aparecem diante de nós vestidos sobre a nudez cada vez mais escancarada da quase ex - Mata Atlântica”. Deste modo, os Mbyá enfrentam a dura realidade criada pela propriedade privada da terra, que impede a sua tradicional circulação. O ambiente sofre drástica alteração pelo desmatamento crescente, pela crescente especulação imobiliária, pela acelerada urbanização e por megaprojetos desenvolvimentistas. Eles foram espremidos pela sociedade envolvente nas últimas florestas que ainda existem no litoral paulista, sendo obrigados a se afastar cada vez mais do eixo fluvial de sua antiga vida. Entretanto, o 14 Mbyá Rekó (o modo próprio de estar) mantém-se existindo, apesar das intensas lutas de fronteira que culminaram na divisão do território Guarani entre os países do atual cone sul-americano. Pois, assim como indicou Wagner (2010): “A tendência da cultura é manter-se a si própria, reinventando-se”. Os Mbyá sabem de seus direitos constitucionais, e lutam para concretizá-los. Querem a garantia de políticas compensatórias que revertam à opressão social, que favoreçam o surgimento de melhores condições de produção e reprodução do seu “modo de estar” (Nhanderekó). Pois, a terra, aliada a recuperação e a preservação da memória e da cultura, aparece como elemento fundamental para a explicitação da identidade étnica e cultural e para a permanência das comunidades indígenas no tempo. Por isso, a luta pela preservação da identidade étnico-cultural vincula- se inevitavelmente, à questão da terra e ao alcance de uma autonomia política que permita a quebra dos vínculos de dependência e a tomada de decisões sobre seu próprio destino. Perpassa, ainda, pela incorporação das novas histórias e dos novos significados. Caracteriza-se, na síntese dos vários elementos que compõem os universos contraditórios e conflitantes do mundo Mbyá e do mundo capitalista circundante, síntese esta buscada pela valorização da diferença: o “eu” percebendo-se diferente do “outro”, e se afirmando como tal. Desta maneira, as reflexões contidas nesta pesquisa irão se referir, às análises executadas sobre o fato de que os Mbyá Guarani ao estabelecerem a Tekoá Mirim, o fizeram em execução plena de concretização e consonância de sua cosmologia com a sua práxis dialógica derivada das relações estabelecidas com a sociedade envolvente. Também se verificará a atuação das instâncias do Estado diante desta situação, podendo ser constatado, que a legislação que as norteiam, padecem de uma profunda e ininteligível esquizofrenia, em relação ao que diz respeito à garantia dos direitos dos povos indígenas no Brasil, sobretudo, quando definem as questões relacionadas às TIs, e a posse das mesmas pelos respectivos povos que milenarmente as utilizam. Podendo, portanto, neste sentido, ser revelado que no decorrer dos séculos, as relações de contato pouco mudaram, frutos da recusa em se admitir que povos com outras visões de mundo, de espaço e de tempo e outros costumes e tradições possam coexistir em espaços compreendidos e classificados de maneiras diferentes em relação àquelas padronizadas pela sociedade envolvente. Para tanto, considera-se neste trabalho, que a etnografia cuja proposta se concentra na apreensão, análise e reflexão sobre o modo de vida próprio dos Mbyá Guarani que atualmente ocupam as áreas litorâneas do estado de São Paulo, deve ao mesmo tempo focalizar contextos muito particulares e ser capaz de visualizar um universo social transpassado por fronteiras quase imperceptíveis. De um lado, definem-se efetivamente contextos locais, baseados em condições concretas do ambiente ocupado e as possibilidades de usos materiais, as disposições e escolhas por parte do grupo ocupante quanto à manutenção da sua existência e à política, o contexto específico das relações com os não indígenas do entorno e as agências do Estado. De outro, é justamente a variação entre tais contextos que nos leva a um outro ponto de percepção, a uma etnografia Mbyá Guarani que, mesmo tomando como ponto de partida a narrativa de uma pessoa, 15 atravessa tempos e lugares para além da sua experiência e apresenta-nos uma forma social que parece realizar-se justamente nas alterações das formas de vida. 1.1 O interesse pelo tema. Com relação aos grupos Mbyá Guarani que vivem no litoral do estado de São Paulo, sobretudo, na Serra do Mar, último remanescente nativo da Mata Atlântica no estado. E da peculiaridade cultural que este povo articulou por quase toda a história de contato com os Juruá, os não índios, isto é, a opção pelo não contato, e quando possível, pelo isolamento. Situação esta, plenamente consciente, ao que se refere a sua decisão e ao processo de colocá-la em prática ao longo da história. Sendo que, desta forma, o processo anteriormente apresentado, manteve-se preferencialmente se reproduzindo por escolha dos Mbyá até o período de transição entre o final da década de 1970 e meados da década de 1980. No entanto, a referida contextualização viria a estimular e acentuar o imaginário expresso pelo senso comum naquilo que se refere ao litoral paulista ser povoado por povos indígenas, ou seja, segundo ele, isto é historicamente superado. Ou porque, todos haviam sido dizimados pelos processos que caracterizaram a colonização e a ocupação do litoral, ou então, porque os poucos sobreviventes haviam sido totalmente integrados à sociedade envolvente, deixando, portanto, de serem índios. Especulação esta, ficcional, sobretudo, ao se analisar etnograficamente a região em evidência. Desta forma, a oposição efetiva às especulações já mencionadas, passa a se concretizar a partir da primeira metade da década de 1980, caracterizando assim, o contexto de emergência étnica Guarani, que articulada por eles de modo totalmente consciente enquanto ação agenciadora de mitigação política em suas relações com a sociedade envolvente, objetiva melhores condições de vida e liberdade de manifestação étnico-cultural própria. Situação corretamente compreendida, quando analisada à luz das dinâmicas e processos que caracterizaram o momento histórico em questão. Assim, o adensamento populacional do litoral paulista, a sua crescente e acelerada urbanização, a voraz especulação imobiliária, tanto quanto o aumento da privatização da terra e as limitações para a ocupação humana de áreas ambientalmente protegidas e dirigidas à conservação, que seguiam modelos anacrônicos e “importados”, impelem drasticamente à necessidade de mobilização e agência política das populações indígenas que tradicional e secularmente já ocupavam aquelas regiões. Então, impregnando este processo histórico, se caracterizava o contexto da realização da Assembleia Nacional Constituinte, que culminaria na promulgação da Constituição Federal do Brasil de 1988, que de modo inédito, historicamente falando, contou com a participação ativa e efetiva de múltiplos movimentos sociais, dentre eles, e com elevado destaque quanto a sua atuação, o movimento indígena. 16 Que de maneira proativa e eficiente viera a contribuir para a concretização, no texto constitucional, de artigos específicos que passariam a garantir a existência de direitos também específicos, aos povos indígenas. E dentre eles, quiçá o de maior relevância, o direito que assegura a posse plena de suas terras. Portanto, é naquele contexto, em que se interpenetram ambas as realidades apresentadas acima, é que a mobilização Mbyá Guarani ganha substância àquilo que se refere à luta pela concretização dos seus direitos constitucionais, principalmente aqueles dirigidos às suas terras. Assim, a partir da proposição de investigação minuciosa da realidade contemporânea concretizada nos contatos entre a sociedade envolvente e os povos indígenas que na atualidade habitam as áreas litorâneas de São Paulo, se concretiza esta proposta de pesquisa. Neste sentido, dirijo-me a campo, ao encontro dos Mbyá Guarani do litoral sul de São Paulo para o início desta pesquisa. Contexto este, que reservaria ao pesquisador uma complexa, porém, instigante realidade pronta a ser apreendida e interpretada à luz da antropologia, e, especificamente, da etnologia. Ou seja, contrariamente as conclusões das ciências sociais pretéritas, todo o complexo Serra do Mar no litoral paulista, é intensa e densamente povoado pelo povo indígena Mbyá Guarani, isto por tratar- se de seu território ancestral. E mais, o núcleo populacional Mbyá, caracterizado como o centro receptor e irradiador desta pesquisa, se caracterizava no início da mesma, como uma realidade social, política e cosmológica bastante peculiar. Dessa maneira, a Tekoá Mirim acabara de ser constituída fisicamente, isto é, a aldeia, ao início da pesquisa, havia se fixado em decorrência de motivações a serem detalhadamente investigadas ao longo deste trabalho. Portanto, mantinha-se reproduzindo o eixo cosmológico dos Mbyá, a saber, a mobilidade (Oguatá) derivada de causas cosmológicas e pragmáticas, ou seja, políticas. Realidade esta, que passou a impor sobre a Tekoá Mirim a alcunha de núcleo invasor da área em que se estabelecera, isto é, o PESM, área ambientalmente determinada pela legislação pertinente como uma Unidade de Conservação, e, portanto, de proteção integral com relação à presença humana. O que para as instâncias representativas do Estado, seja em relação ao Poder Executivo municipal e estadual, mediante a ação de suas esferas responsáveis pelas questões ambientais, os Mbyá da Tekoá Mirim tornaram-se invasores em sua própria terra. O que passou a evidenciar uma celeuma entre as legislações dirigidas a proteção indígena e ambiental, ocasionando um contexto conflituoso instalado sobre os Mbyá que apenas pretendem viver como tal. Assim, o campo oferecia a problemática de estudo ao pesquisador. Apresentava-se a necessidade de realização de uma etnografia que captasse aquele momento específico de concretização da cosmologia e da realidade pragmática da cultura Mbyá, principalmente ao que tangenciava o relacionamento da população da Tekoá Mirim com as demais aldeias Guarani naquelas proximidades, o que equivale pensar nas Tekoá Itaóca e Aguapeú de Mongaguá e Tekoá Rio Branco de Itanhaém, e, mesmo a Tekoá Tenondé 17 Porã de São Paulo. Além é claro, das relações estabelecidas com a sociedade envolvente em suas várias instâncias de representatividade. 1.2 Chegada à Tekoá Mirim. “Trabalho” que dera início aos trabalhos... De forma conjunta ao processo de aprofundamento dos estudos a respeito da mui vasta literatura etnológica sobre os Guarani, ocorre concomitantemente, a necessidade de que se efetuasse também a aproximação do pesquisador junto a outros realizadores de trabalhos acadêmicos, assim como, demais intervenções de características mais pragmáticas realizadas conjuntamente aos Guarani do litoral paulista. Processo este, que viria contribuir para o acúmulo de densidade e solidez a esta pesquisa, pois a aproximaria de fato, da realidade contemporânea vivenciada e experienciada pelos grupos Mbyá, que constituem a população indígena litorânea do sul de São Paulo. Portanto, neste sentido ocorrera a minha aproximação com o Centro de Trabalho Indigenista (CTI), importante núcleo de produção de pesquisas e trabalhos técnicos efetuados junto às populações Guarani do litoral paulista, sobretudo, devendo ser evidenciada a sua ação para os processos de identificação, na região litorânea de São Paulo, das TIs Guarani. Assim, imerso neste contexto, ocorre o meu primeiro contato com a Profª. Drª. Maria Inês Ladeira, pesquisadora de amplo conhecimento e longa experiência de trabalho com as populações indígenas em questão. Neste sentido, as valiosas e precisas contribuições da Profª. Maria Inês ultrapassaram e muito, as meras indicações bibliográficas e correções quanto à forma e conteúdo desta pesquisa. Já, que por seu intermédio, foi-me possível o estabelecimento dos primeiros contatos com os Mbyá, indígenas que viriam a se constituir como parceiros no desafiante processo de elaboração desta pesquisa. Desta forma, viria a estreitar o contato, mediante as primeiras conversas, com aquele que se constituiria como o primeiro informante local a contribuir com este trabalho, ou seja, Luiz Karaí Jacupe, liderança Mbyá Guarani que à época do nosso primeiro encontro possuía 38 anos de idade e contava com uma relativa liderança junto a várias aldeias do litoral sul paulista. Esta condição conquistada por Luiz Karaí devia-se principalmente pela sua longa militância e atuação junto ao contexto de elaboração da Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI), já que por mais de catorze anos, vinha compondo os quadros indígenas que participavam diretamente da aplicação dos procedimentos e da prestação dos serviços de saúde junto às aldeias Guarani do litoral sul paulista, assim como, aquelas presentes no Vale do Ribeira. Possuía grande inserção na sociedade envolvente, pois se deslocava 18 constantemente para fora das aldeias em que habitava, participava de muitos congressos e encontros que mantinham a temática indígena em seu centro de discussões. Já havia sido Agente de Saúde indígena (ASI), representante indígena do conselho dos polos de atenção à saúde indígena, conselheiro indígena do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) nº 17 - Litoral Sul; e, em meados de 2013, no momento em que nos conhecemos, terminava o seu mandato como presidente do Conselho Indígena de Saúde do DSEI - Litoral Sul. Inicialmente, nos encontraríamos para que através da sua intermediação, eu pudesse ter efetuada a minha inserção de fato, no contexto da vida cotidiana Guarani, atingindo e iniciando a minha estada em suas aldeias e, paralelamente, começando o trabalho de campo que através da realização etnográfica viria a concretizar a elaboração desta pesquisa. E, como indicavam os planejamentos anteriores, esta inserção se realizaria nas aldeias do Vale do Ribeira, provavelmente, na aldeia de Sete Barras, onde o cacique é tio de Luiz Karaí. No entanto, no último contato realizado entre nós, na semana imediatamente anterior a minha viagem para o encontro com o informante em questão, por sua indicação, nosso encontro fora transferido para o município de Praia Grande, onde ele e sua família passavam a viver em uma nova Tekoá que recentemente ali se estabelecera. Tratava-se da Tekoá Mirim, onde sua esposa era componente de uma das famílias extensas que a integravam desde o seu estabelecimento inicial. Destarte, após o primeiro encontro pessoal com Luiz Karaí, já em Praia Grande, realizada as apresentações, mas, sobretudo, àquelas relativas ao balizamento das minhas intenções e pretensões contidas em minha ida até os seus parentes Mbyá, onde o “constructo” de uma argumentação sincera e que produzisse um elo minimamente confiável entre nós fora imprescindível. Então, depois de um deslocamento que dista aproximadamente 10 km do limite urbano do município, já no interior do território que compõe o PESM, atingimos a região que compreende a Tekoá Mirim. Iniciava-se assim, o contato direto com os Mbyá Guarani do litoral paulista, como também o trabalho de campo que passaria a circunscrever a etnografia que definiria a realização desta pesquisa. Portanto, o primeiro contato com os habitantes da Tekoá Mirim propriamente ditos, deu-se mediante o encontro com o jovem cacique Karaí Ñee’re (Edmilson), de aproximadamente 30 anos. Sendo que nossa primeira conversa também se caracterizou, além é claro das apresentações formais entre nós, pela apresentação da proposta de trabalho que me levara até eles, assim como, da solicitação do seu consentimento para que pudesse permanecer entre eles e alojado em sua Tekoá pelo tempo necessário ao desenvolvimento do trabalho de campo. Então, com aqueles primeiros acordos resolvidos, positivamente para o desenvolvimento do trabalho de campo, diga-se de passagem, a minha primeira noite na Tekoá Mirim foi transposta sob o abrigo do cacique Edmilson, ou seja, alojado em sua casa, junto a sua família. Pois, no dia seguinte, seria apresentado ao Xeramo’i Karaí Mirim (Maurício), isto é, ao líder espiritual daquele grupo indígena, que 19 até então, desconhecia tratar-se do pai do cacique Karaí Ñee’re. Assim, ao amanhecer após ser convidado para participar da primeira refeição do dia junto à família do cacique, seria levado até a Opy’i (casa de reza) para conhecer o Xeramo’i. Sendo, portanto, esta refeição composta por Xipá, alimento bastante comum entre os Mbyá, feito a partir de uma massa de farinha de trigo, que manualmente modelada adquire a forma circular de aproximadamente um centímetro de espessura e não mais do que 15 centímetros de diâmetro, sendo então, posteriormente, várias delas fritas em óleo quente. Desta maneira são ingeridas, e acompanhadas por chimarrão. Deste modo, após a refeição matinal, conduzido e acompanhado pelo cacique Karaí Ñee’re, deixamos para trás o pátio da aldeia e iniciamos a subida da serra em direção à casa do Xeramo’i Karaí Mirim. Ao conhecê-lo, percebo que há muito ele já sabia da minha estada entre eles, mas, é também muito clara a grande cordialidade com que sou recebido. O Xeramo’i que tinha naquele momento 80 anos nascera na Argentina, vivera em Santa Catarina e lá iniciara o seu processo de Oguatá; para atingir o litoral Atlântico, passa a se deslocar sistematicamente até se fixar na Tekoá de Pariquera-açú no litoral sul de São Paulo. De onde, portanto, passaria a conduzir o deslocamento do grupo Mbyá formado principalmente por sua parentela, para a constituição da Tekoá Mirim. Processo este que será analisado em detalhes no primeiro capítulo deste trabalho. Assim, após as apresentações formais realizadas pelo cacique, de maneira bastante prestativa o Xeramo’i Karaí Mirim, tem a iniciativa de passar a relatar-me a história de sua vida, como indiquei acima, mesmo que em nosso primeiro encontro. Portanto, de maneira a complementar as formalidades, tomei a iniciativa de passar à apresentação das motivações que haviam me conduzido até eles, assim como, das propostas de realização desta pesquisa. E então, de forma surpreendente e de maneira diferente em relação às demais lideranças que encontrara até aquele momento, disse-me que ainda não havia a necessidade de relatar-lhe aquelas motivações. Haja vista, que tal processo seria realizado em um trabalho (uma sessão xamânica) que se aproximava e em que ambos estaríamos presentes, e mais, que minhas reais motivações, assim, como também as minhas intenções lhe seriam verdadeiramente reveladas por inspiração, dada por Nhanderú (Nosso Pai), esta a principal divindade entre o Guarani. Sendo assim então, nossa conversa que fluía prazerosamente, contava com o auxílio do seu filho, o cacique Karaí Ñee’re, que articulava as nossas limitações ao que se referia ao idioma falado por cada um de nós e dirigido ao outro. O diálogo fluía ininterruptamente, com o detalhe de que a participação que o Xeramo’i concretizava naquelas nossas conversas, as direcionavam no sentido de que a curiosidade que ele manifestava sobre o quanto de conhecimento acumulado eu possuía a respeito da sua cultura, fosse sanada. Ou seja, sob o critério da análise etnográfica, esta prática já iniciara a articulação entre a exposição das motivações da minha estada ali e das minhas intenções com a realização da proposta de 20 trabalho que eu levava até eles. Desta maneira, já se iniciara a referida “inspiração” que anteriormente, fora mencionada pelo Xeramo’i. Destarte, ao conversarmos nos aprofundávamos em questões que tangenciavam a complexidade cosmológica Mbyá Guarani. O Xeramo’i Karaí Mirim apresentava sucessivos contextos mitológicos, falava a respeito da ação de Nhanderú na criação do mundo, isto é, da “primeira terra” (Yvy Tenondé), assim como das motivações e consequências da sua destruição mediante uma grande inundação, sendo que a principal e posterior àquela tragédia seria a recriação do mundo atual (Yvy Pyaú). Local que a humanidade atual (Mbyá) deveria superar as provações de uma existência efêmera e que contém muitas dificuldades (Tekó axy), a partir da concretização do seu Nhanderekó, ou seja, do seu “modo próprio de existir”. O que, por sua vez, possibilitaria a eles atingir a almejada condição do Agudjê, a plenitude espiritual que criaria as possibilidades de se atingir Yvy Mara ey (“Terra sem Males”), a quimera cosmológica Mbyá Guarani. Assim, em decorrência de perguntas mútuas que eram realizadas por parte de um para o outro, percorríamos grande parte do complexo mítico e cosmológico dos Mbyá. Contudo, as minhas breves perguntas, eram longa e filosoficamente articuladas nas respostas do Xeramo’i, processo este que passava a tornar evidente algo que em breve se revelaria completa e esplendidamente a minha percepção a respeito da comunicação Mbyá, a saber, a complexa e bela oratória que caracteriza e constitui a fala desta população indígena. Seguiu-se então a explanação sobre a mitologia que reunia diferentes versões a respeito dos gêmeos Kwaraí (Sol) e Jacy (Lua), correspondentes aos arquétipos dos “heróis civilizadores” no contexto do conjunto dos mitos Mbyá. Com a curiosa peculiaridade que neste mosaico mitológico, Jacy, um dos gêmeos, e visualizado na realidade contemporânea daquela população, concretizado na Lua, assume a representação masculina, em relação ao modo como é mantido e reproduzido quanto a sua significação mítica. Depois, ainda respondendo minhas perguntas, falou-me sobre a “alma-palavra” (Nhê’e), isto é, explanou de maneira superficial o ritual do Nimongaraí, contextualizando tanto o processo de batismo do Awati, isto é, do milho, assim como suas implicações socioecológicas, que serão aprofundadas no segundo capítulo deste trabalho; como também o processo do batismo das crianças, que com aproximadamente um ano de idade receberiam através deste ritual, não apenas o seu nome Guarani, mediante a intermediação xamânica do Xeramo’i, mas, principalmente, a sua “alma”. Que para uma maior correção do entendimento a respeito, este deve ser apreendido a partir da concepção de “potencialidade vital”. Que, por sua vez, originalmente, estaria localizada sob os domínios das divindades Mbyá, inferiores a Nhanderú. Ou seja, os “donos dos nomes”, a saber, Kwaraí Etê, Karaí Etê, Werá Etê e Tupã Etê, donos dos nomes masculinos; além de Ará Tietê, Pará Tietê, Yvy Tietê e Kerexu Tietê, donos dos nomes femininos. Que na perspectiva Mbyá, independentemente da bipolaridade que se refere à 21 propriedade dos nomes, estas divindades transferem-se para a espacialidade física e propiciam a sua interpretação, à equivalência possível com o que determinaríamos serem os quatro pontos cardeais. Portanto, seria a mediação xamânica efetuada pelo Xeramo’i junto a estas divindades, que em decorrência da inspiração daquele, propiciada por Nhanderú, que haveria a articulação para a condução da “alma- palavra” até seu “receptor, que seria então batizado ao recebê-la”. Assim, diante da oportunidade de participar ativamente de um diálogo em que a interlocução era praticada por um experiente Xeramo’i, e o objeto comum das reflexões era a importante prática ritual do Nimongaraí, à medida que eu percebia a enorme predisposição e boa vontade de falar manifestada pelo Xeramo’i, perguntei-lhe a respeito dos Mbora’í, ou os seus “cantos sagrados”. Surpreendentemente, a feição, o gestual, o tom e a entonação da voz do meu interlocutor se modificaram. E, após uma breve pausa reflexiva; ainda calmo, e, portando uma enorme dose do senso de humor e inteligência peculiares aos Mbyá, o Xeramo’i Karaí Mirim constrói a sua argumentação: “Mbora’í não é da pessoa. Não é de quem tem. E é porque não é a pessoa que faz ele, o que a gente não faz não é nosso. Nhanderú é que mostra ele, mostra no sonho e dá ele para a pessoa. Então, não falo dele não; só falo dele, na Opy´i. No lugar certo, na hora certa...” Argumentos estes, que caracterizam através das palavras do Xeramo’i a perspectiva dos Mbyá diante do olhar Juruá sobre a sua existência; sobre os questionamentos realizados por mim em um contexto de pesquisa. E mais ainda, além de demonstrar em suas entrelinhas o como os Mbyá estão conscientes a respeito do modo como percebem o interesse sobre a sua cultura, a fala acima registrada, quando analisada, sugere também a lúcida inteligência de articular uma possível “negociação” de interesses. O do pesquisador e o do pesquisado, o da pesquisa e o do grupo pesquisado. Uma “negociação” sutil, que evidencia um sofisticado tato de articulação, e porque não a compreender como um indício elementar, de articulação política. Portanto, acrescida às considerações realizadas acima, o contexto de conversas junto ao Xeramo’i Karaí Mirim a respeito dos Mbora’í, tornou bem claro, que está mantida ainda que ressignificada a concepção Mbyá que sustentou a afirmação realizada por Clastres (1990, p. 15), a respeito dos “cantos sagrados” Guarani: “Se os índios consentem muito facilmente em contar a um branco seus mitos, eles recusam, em contrapartida, da maneira mais firme, como tivemos experiência pessoal, deixar entreouvir o menor fragmento do que chamam de Belas Palavras (...)”. Sabe-se que quase todos os guarani conhecem e sabem contar os mitos da tribo. Mas só uma minoria de homens sabe falar com os deuses e receber suas mensagens: os sábios são os senhores exclusivos das Belas Palavras, detentores respeitados do arandu porã, o belo saber. Uma potência, a ponto de como observamos, uma embriaguez verbal tomar conta do orador, de quem se pode dizer então que, literalmente, não é ele que fala, mas, através dele, os deuses (CLASTRES, 1990, p. 15-16). 22 Desta forma, um grande silêncio sucedeu a conversa descrita anteriormente, e diante de seu complexo conteúdo e extensão, considerando-se tratar de uma primeira conversa junto à liderança espiritual e religiosa do grupo que participava ativamente do processo de elaboração desta pesquisa, compreendo o “timing” daquele diálogo. Podendo perceber então, que após praticamente toda a manhã de coleta de informações úteis a este trabalho, e que foram generosamente compartilhadas pelo Xeramo’i Karaí Mirim, era o momento de pausa. Instante de encerramento daquela conversa. Assim, depois dos agradecimentos e despedidas, retornaria ao pátio da aldeia. Contudo, quando eu partia, o Xeramo’i, de modo sorridente pergunta se eu gostaria de retornar a sua casa ao anoitecer, para que fosse até a Opy’i, acompanhar os trabalhos a serem realizados àquela noite. E claro, prontamente, estava aceito o convite e combinado o retorno àquela noite. Assim, ao anoitecer me dirigi à casa do Xeramo’i Karaí Mirim, no caminho me acompanhavam até lá, além do cacique Karaí Ñee’re, a sua esposa Pará Yvy (Venância), que como ele possuía 30 anos, e também Pará Mirim (Ellem), um bebê de aproximadamente um ano, era a filha mais nova do casal, já que são pais de quatro filhos. Depois de subirmos o trecho de serra que nos conduziu, a partir da casa do cacique, até o nosso destino, fui convidado a conhecer a Opy’ i, isto é, a “casa de reza”. Assim, durante o período em que lá eu permaneci ao longo da sessão dos trabalhos xamânicos daquela noite, foi possível então, acompanhar as rezas do Xeramo’i, ou seja, os seus Mbora’í. Que depois, foi-me dito, que se dirigiam a mim, à minha chegada e permanência na Tekoá Mirim, no sentido de que Nhanderú interferisse sobre as minhas intenções, as elevando de maneira que fosse possível se tornarem ações colaborativas junto a todos os Mbyá. Desta maneira, o início daquela cerimônia, se caracterizou pelas ações do Xeramo’i Karaí Mirim que sentado em um pequeno banco no centro da casa de reza fumava o seu Petynguá (cachimbo), se dirigindo em seguida, depois de levantar-se, em direção a uma das paredes que definiam o comprimento da Opy’i, justamente aquela que sustentava a complexa “cosmologia sonora” Mbyá, a saber, seus instrumentos musicais sagrados, que se encontravam dispostos lado a lado. Tratava-se, do Mbaraká (o violão com cinco cordas e afinação peculiar), do Mbaraká Mirim (“chocalho” confeccionado a partir de uma pequena cabaça), do Rave’i (violino/rabeca com afinação peculiar), do Mimby (espécie de pequenas flautas doce, construídas, algumas delas a partir de pedaços de taquara e outras de ossos), do Angua’ pu (tambor), do Takuapu (pedaços de bambu de diâmetro aproximado a 15 cm e comprimento próximo a 1 m), do Popyguá (duas pequenas taquaras de aproximadamente 30 cm de comprimento e diâmetro próximo a 2 cm, cada uma, ligadas por um curto cordão). Assim, no seu deslocamento entre o banco que estava sentado e a maior aproximação possível dos instrumentos rituais dispostos ao longo de uma das paredes da Opy’i, o Xeramo’i Karaí Mirim, entoava seus cantos sagrados, os Mbora’í, que solicitavam a permissão e o apoio, de fato, para o início dos trabalhos. Em seguida, passou a assoprar a fumaça do Petynguá (Atyt’i) sobre eles. Pois, segundo a cosmogênese Mbyá, a importância desta fumaça reside no 23 contexto de que ela reproduz, “a bruma (taxa xina) de onde derivam as névoas (Yet’i) que se formam pelo calor do sol (Kwaray) sobre as florestas” (IPHAN, 2007, p.32). E assim, a composição sagrada da Atyt’i (a fumaça do Petynguá) é compreendida pelos Mbyá como um elemento capaz de transferir-lhes de modo sinergético e parcial, à composição divina da criação. Continuando a cerimônia, o Xeramo’i toma para si o Mbaraká e ao começar a tocá-lo, inicia uma melodia que seria longamente mantida e repetida, podendo facilmente ser caracterizada como um mantra, que prenunciou uma série de rezas, que se iniciavam como trechos de falas que eram “recitadas”, mas, à medida que se intensificava a melodia do violão, elas passaram a assumir a característica de uma “canção”. A melodia da “canção” passou a ser acompanhada por uma sonoridade percussiva que era derivada do Takuapu, tocado pela esposa do Xeramo’i; Pará Pyty (Marta), uma senhora de 73 anos, que também é junto ao grupo Mbyá que vive na Tekoá Mirim, uma das Xejaryi (parteiras) que vivem naquela aldeia. Quanto à sonoridade percussiva, resultante do Takuapu tocado pela senhora Pará Pyty, se caracterizava por um ritmo bem marcado e de curtos intervalos entre uma batida e outra daquele instrumento sobre o solo sagrado do interior da casa de reza. Desta maneira, canção e música, isto é, os Mbora’í do Xeramo’i se estenderam por um período de aproximadamente 10 minutos. As belas palavras [Ne’ ë porä] são as palavras sagradas e verdadeiras que só os profetas sabem proferir; são a linguagem comum a homem e deuses; palavras que os profetas dizem aos deuses ou , o que dá no mesmo, que os deuses dirigem a quem sabe ouvi-los, Ayvu porä, e que traduzem noções abstratas (saber-poder, criador; completude; força espiritual e outros) nunca são usados na linguagem corrente e não possuem equivalentes nesta; seu sentido e uso são exclusivamente religiosos (CLASTRES, 1978, p.88). Em seguida, gradativamente, a intensidade sonora foi diminuindo até que cessou o canto e a música, e o Mbaraká foi recolocado em sua posição original pelo Xeramo’i. Momentos depois, o Petynguá é reaceso, e o Xeramo’i fumando-o intensamente, dirige a fumaça novamente aos instrumentos, para logo após, fazer com que ela se espalhe sobre o seu rosto, que em sincronia a movimentos de sua mão, parece trazê-la sobre a sua própria cabeça. Então, seguindo e interrompendo uma longa pausa sonora e de movimentação, o cacique Karaí Ñee´re assumiu o protagonismo da palavra, assim, como se agradecesse e reafirmasse o compromisso à sua liderança política enquanto representante junto aos Mbyá, e destes em relação à sua aliança com Nhanderú. Logo após, Karaí Ñee´re é que passa a fumar o Petynguá, repetindo as ações do Xeramo’i, quanto a exalar a fumaça sobre o próprio rosto para depois com a mão, espalhá-la por cima da cabeça e pelos braços. Ações estas, com claras intenções de que em conjunto com a fumaça, fosse-lhe transmitida parcimônia e sabedoria, assim como, força para o justo e correto encaminhamento da sua complexa tarefa de liderança, junto a seus parentes, e a seu povo. Fumando o Petynguá se dirigiu aos instrumentos musicais, e ao apanhar o Popyguá, tocando-o se deslocou até as quatro extremidades da Opy’i, e balbuciando algumas frases rituais, espalha a fumaça por cada uma delas, por sobre cada um dos 24 presentes, para em seguida retornar o Popyguá ao seu local sagrado, agradecer a Nhanderú e encerrar aquele trabalho. Assim, como ação finalizadora de fato, daquele trabalho, em uma roda de conversa, ainda na casa de reza, em que compartilhávamos o Ka’a (chimarrão); eu, o Xeramo’i Karaí Mirim, a sua esposa Pará Pyty e o filho do casal, o cacique Karaí Ñee´re, ali me foi comunicado então, que aquele ritual xamânico, ou seja, aquele trabalho conduzido pelo Xeramo’i fora dirigido a mim, e a uma pertinente lucidez e compromisso que deveriam indicar o balizamento futuro para a elaboração da pesquisa que propunha concretizar junto aos meus cor realizadores deste trabalho, ou seja, os próprios Mbyá que viviam na Tekoá Mirim. Portanto, foi derivado da conclusão e consequentemente, mediante a aprovação daquele trabalho, isto é, do processo ritual levado a cabo, não aleatoriamente conduzido pelo Xeramo’i e pelo cacique, respectivamente as lideranças espirituais e política da aldeia, que os trabalhos da pesquisa junto aos Mbyá da Tekoá Mirim vieram a se iniciar. 1.3 Sinopse dos capítulos. Inicialmente, o primeiro capitulo: “Impulsos da mobilidade”, é caracterizado pela análise da etnografia a respeito das motivações prévias que definiram o contexto de mobilidade, isto é, do deslocamento espacial que o grupo Mbyá pesquisado realizou até a fixação territorial de ocupação da área específica onde definiram se estabelecer em sua “nova” Tekoá, ou seja, a Tekoá Mirim. A investigação antropológica realizada “in lócus”, pôde apreender a multiplicidade semântica, que, nas entrelinhas, permeando as falas e as ações dos indivíduos e do grupo em questão, assim como em seu comportamento, no conjunto das relações sociais, políticas, e, sobretudo, rituais, que concretizavam a sua realidade, a clara e objetiva motivação cosmológica. Ou seja, cosmologia e mitos Guarani, ressignificados e concretizados como impulsos conscientes da dinâmica sociocosmológica que configura a percepção a respeito da espacialidade peculiar deste povo. Contudo, não apenas os quesitos mítico-cosmológicos se caracterizaram como os únicos elementos que impulsionaram as ressignificações e recriações das subjetividades Mbyá no seu cotidiano concreto. Ao contrário, de modo a lhes complementar, e, portanto, possibilitar o pleno entendimento a respeito das suas significações; também as análises sobre o contexto pragmático contido em sua práxis político-econômica evidenciaram o quanto as articulações internas de um mesmo grupo, aproximando indivíduos que constituem uma mesma parentela, ao mesmo tempo em que a afastam de outras, se concretizam como notáveis impulsos a estimular a recriação simbólica e sociopolítica da característica e 25 peculiar mobilidade espacial Mbyá. Por isso, a categoria cosmo-mitológica dos Mbyá, a saber, a Oguatá Porã (Bela Caminhada) que se caracteriza como meio para a concretização do contexto processual que reuniu as principais motivações para a realização do deslocamento, e, portanto, da mobilidade socioespacial do grupo estudado, e que efetivou consequentemente, a constituição da sua Tekoá Mirim, apesar de realizado mediante o seu balizamento cosmológico; de modo complementar, uma série de elementos derivados do pragmatismo presente no contexto político-econômico peculiar à cultura Mbyá, se constituíram conjuntamente como corresponsáveis por sua realização. Quanto ao segundo capítulo, “A perspectiva ambiental Mbyá Guarani na Tekoá Mirim”, ele propõe evidenciar a discussão a respeito do contexto cotidiano, influenciado pela cosmologia e pela práxis deste grupo indígena, em específico sobre as questões que definem as suas relações com o ambiente que ocupam. Pois, posterior à fixação desta população na área que viria a constituir-se como a sua Tekoá Mirim, se concretizou uma grande quantidade de problemas que esta comunidade viria a estar submetida pela ação de vários órgãos do Estado, que em suma, articulavam no sentido de fazer prevalecer, segundo a sua óptica, a impossibilidade de permanência dos Mbyá no território da Tekoá Mirim, sob a alegação de tratar-se este território, de uma área ambientalmente protegida, e, portanto, de impossível ocupação humana em suas delimitações. Neste sentido, buscou-se a partir da apresentação e análises de registros etnográficos coletados em campo, de que os usos concretizados sobre o ambiente ocupado pelos Mbyá realizam-se a partir de diretrizes cosmológicas e socioculturais, que têm como prioridade o manejo conscientemente sustentável do seu território. Manejo este, que produz as condições concretas e subjetivas para a produção e reprodução das condições ecológicas e culturais, portanto, necessárias à manutenção de sua identidade peculiar, e, por conseguinte, da perpetuação de sua existência física, enquanto unidade étnica distinta, condição esta, que lhes é de grande apreço. Desta forma, evidenciou também, a inconsistência dos argumentos utilizados pelos órgãos estatais, que pretendiam utilizá-los para justificar as afirmações circunscritas a ideia de que a permanência indígena em área ambientalmente protegida, imediatamente, seria um sinônimo de danos ecológicos e ambientais. Já, quanto ao terceiro capítulo: “A construção de novas possibilidades”: é realizada a apresentação minuciosa dos registros etnográficos, coletados ao longo do trabalho de campo na Tekoá Mirim junto aos Mbyá que a habitam, assim como de suas consequentes interpretações, que demonstra de maneira completa, todo o complexo processo de construção de uma nova Opy’i (casa de rezas) a partir do trabalho coletivo desta comunidade. Assim, da mesma maneira que a construção desta casa de rezas significa a construção de um contexto de fortalecimento da percepção a respeito das determinações cosmológicas e socioculturais peculiares dos Mbyá, que os fortalecem para o enfrentamento das múltiplas dificuldades que a sociedade envolvente lhes impõe; textualmente, neste trabalho, ela assume também a prerrogativa de concretizar-se enquanto um processo alusivo, a contribuir para a correta apreensão de algumas outras 26 construções que são realizadas pelos Mbyá na realidade contemporânea brasileira em que se encontram inseridos, em submissão a um indesejável e assimétrico contexto de contato com a sociedade envolvente. Construções estas, que colocam em evidência a agência ativa que os Mbyá assumem frente às referidas dificuldades. 1.4 Prólogo. Localização da Tekoá Mirim. Fonte: Mapa Continental Guarani – CTI (Centro de Trabalho Indigenista). É inegável e inconteste que o atual governo federal não apenas posicionou-se como antagonista aos povos indígenas, assim como também, os elegeu publicamente enquanto alvo preferencial do seu autoritarismo e desmandos que caracterizam o processo em curso de precarização dos direitos constitucionais destas populações. Direitos estes, conquistados legitimamente, e assegurados de maneira específica, pelo Art. 231 e Art. 232 da Constituição Federal de 1988. Deste modo, tal contexto, é bastante visível e evidente, por exemplo, tanto nas declarações do presidente da república de que em todo o seu governo sequer um centímetro de terra será demarcado como território indígena, como também, em trâmites jurídicos impulsionados pelo Estado. Podendo aqui, serem citados: a “Tese do Marco Temporal”, precedente que vem de maneira sistemática, sendo aplicado pelo Poder Judiciário em suas decisões naquilo que se refere aos conflitos fundiários que envolvam povos indígenas; além, da Medida Provisória nº886/19, editada pelo Poder Executivo, e que, determina que as atribuições legais quanto à demarcação das Terras Indígenas sejam transferidas da FUNAI (Fundação Nacional do Índio) para o Ministério da 27 Agricultura, e, portanto, submetidas aos interesses do agronegócio, que, por sua vez, se encontram representados por esta instância do governo federal. Assim, diante desta situação histórica, politicamente bastante assimétrica para os povos indígenas, naquilo que se refere ás suas relações com o Estado. Portanto, é de suma importância deixar evidente, que no contexto histórico contemporâneo onde o Estado Brasileiro (mais uma vez) elege preferencialmente os povos indígenas como seus inimigos, como entraves ao “desenvolvimento” econômico do país, a luta Mbyá Guarani para assegurar a demarcação legal da Tekoá Mirim e consequentemente garantir o acesso aos seus direitos constitucionalmente reconhecidos; fizeram com que as dificuldades enfrentadas por eles passassem a se caracterizar de modo ininterrupto, como constantemente crescentes. Assim, além das contradições presentes entre as legislações indigenistas (CF 1988 – Art. 231 e Art. 232) e a legislação ambiental referente a ocupação humana nas UC (SNUC – 2000), apresentadas e desenvolvidas ao longo deste trabalho, inviabilizarem os avanços quanto as diversas e diferentes etapas relativas ao processo de demarcação da referida TI. Algumas situações, materializadas a partir de janeiro de 2019, devem chamar a atenção quanto aquilo que possuem de aspectos no mínimo estranhos, quando considerados os relacionamentos entre o Estado e os Mbyá da Tekoá Mirim, sobretudo quando se leva em consideração os entes estatais que em tese, são os garantidores dos direitos indígenas no país. Por exemplo, tal situação, pode ser verificada através da análise das condições que circunscrevem o acionamento que o Cacique Karaí Ñee’re (Edmilson), em 2014, efetuou junto ao MPF (Ministério Público Federal) na busca pelo reconhecimento e cumprimento legal dos direitos fundiários indígenas. Mas, sobretudo, pela resposta emitida pelo referido órgão em 2019! Análise esta, portanto, que deve se iniciar pela verificação a respeito do hiato temporal referente a paralização dos procedimentos jurídicos circunscritos pelo referido documento, isto é, o ICP (Inquérito Civil Policial) número 1.34.012.000632.2014.12. Desta forma, ao considerar que durante cinco anos, entre 2014 e 2019, nenhuma menção foi atribuída por parte do MPF aos Mbyá da Tekoá Mirim, com relação aos trâmites jurídicos que deveriam contemplar o processo de demarcação desta TI, curiosamente, o contexto se inverte radicalmente após o recente governo eleito do presidente da República Jair Bolsonaro se manifestar publicamente contrário à continuidade das demarcações de Terras Indígenas no país; podendo ser citados para ilustrar tal contexto, diversos exemplos; como algumas declarações do presidente da república, assim, nos indica Maisonnave apud Bolsonaro (2019 pag. A12): “Quem demarca terra indígena sou eu! Quem manda sou eu. Nessa questão, entre tantas outras”. Ou, na fala do ministro chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno, sobre a Raposa Serra do Sol e outras terras indígenas: “[… ] são zoológicos humanos, onde os indígenas vivem como na idade da pedra e impedem o desenvolvimento, além de representar uma ameaça à soberania nacional” (MAISONNAVE apud HELENO, 2019, pag. A12). Para então, deste modo, logo em seguida o MPF determinar como sigiloso este Ato Jurídico (IPC) e restringir a acesso ao mesmo. E mais, por meio da Procuradoria Municipal de Santos, especificamente, através da 41ª Subseção Judiciária, responder às demandas dos Mbyá da Tekoá Mirim, arquivando-as e as 28 remetendo à 6ª Câmara de Coordenação e Revisão – populações Indígenas e Comunidades Tradicionais – Brasília/DF. Tal como é possível ser verificado a partir da análise da documentação que segue reproduzida: 29 30 31 32 33 34 35 Já, quanto ao acesso do pesquisador ao que diz respeito a versão da FUNAI, que, por sua vez, pudesse contrapor-se ou corroborar esta situação apresentada pelo MPF, mesmo sob intensas e repetidas tentativas de obtê-la ao longo do processo de produção e desenvolvimento desta pesquisa, ocorreram diversas negativas por parte deste órgão institucional. Porém, as dificuldades de acessos à documentação, passaram a se ampliar a partir de setembro de 2019, culminando em dezembro do mesmo ano, devido a exoneração do Coordenador Regional da Sede do Litoral Sudeste, Cristiano Hutter. Contexto este que culminou com a ocupação desta sede da FUNAI pelos Guarani do Litoral Paulista, e, interrompeu qualquer possibilidade de acesso à documentação referente a Tekoá Mirim. Contudo, como nos últimos cinco séculos, os povos indígenas não retrocedem perante tal quadro de adversidades. Organizados, e plenamente conscientes quanto a defesa da garantia dos seus direitos constitucionais, eles empreendem corajosa luta de resistência contra as arbitrariedades políticas e aos crimes de lesa humanidade quem vem sendo vítimas na atualidade em decorrência da atuação do governo federal: O governo está retrocedendo em uma série de avanços na implementação dos direitos dos povos indígenas, principalmente aquelas que nos foram garantidos pela Constituição Federal de 1988 sobre o reconhecimento das terras. Quando se tiram por Medida Provisória, a delimitação e a demarcação da responsabilidade da Funai, isso é um retrocesso das políticas públicas. Criou-se um órgão com preparo técnico qualificado, específico para a questão indígena, para não ser manipulado por grupos de interesses. A lei colocou essa responsabilidade na Funai para proteger os interesses coletivos dos povos indígenas, para ter as terras garantidas, respeitadas e protegidas, longe dos interesses individualistas econômicos, de influências e de posicionamentos políticos. A gente simplesmente reivindica a demarcação de terras indígenas e o respeito ao direito à consulta prévia. Isso é lei e o país já confirmou. Estamos apenas exercendo os direitos como cidadãos. Temos que mudar o discurso de que somos empecilho para o desenvolvimento (WAPICHANA, 2019, pág. A14). Destarte, além da morosidade e dos empecilhos circunscritos as esferas jurídicas naquilo que se refere ao contexto de luta para a demarcação da TI Tekoá Mirim, e do atual contexto político brasileiro, “terrivelmente” desfavorável aos povos indígenas, o mais urgente problema enfrentado pelos Mbyá, diz respeito aos enfrentamentos técnicos e políticos que vem sendo travados entre eles e os representantes do megaempreendimento econômico e comercial denominado: Complexo Andaraguá. Trata-se de um “faraônico” complexo intermodal de transportes aéreo, ferroviário e marítimo, cuja planta baixa que apresenta para a sua instalação, sobrepõe-se exatamente sobre a TI Tekoá Mirim. Sendo então, que maiores detalhes podem ser acessados a partir do link: https://www.youtube.com/watch?v=RPnzS8UCQlk O fato, é que através do “lobbie” político e de defesas escusas de terminados pareceres técnicos utilizados, este conglomerado vem ampliando as pressões exercidas sobre os indígenas da Tekoá Mirim. Práticas estas, no mínimo questionáveis quando se procede à análise criteriosa realizada sobre a confrontação de alguns trechos dos exemplos documentais que são apresentados a seguir: https://www.youtube.com/watch?v=RPnzS8UCQlk 36 37 38 39 40 41 Portanto, o que se pode verificar de imediato, mesmo que em uma breve análise realizada sobre alguns trechos da documentação acima apresentada, a saber, o Relatório de Impacto Ambiental apresentado pelo megaempreendimento: Complexo Andaraguá, já mencionado anteriormente, quanto a sua sobreposição na Terra Indígena Tekoá Mirim, é, inicialmente, a ausência de um Estudo do Componente Indígena. O que também, de modo imediato, indica o descumprimento da legislação socioambiental que regulamenta a formulação do referido documento. Mas, além disso, não há nesta documentação, nenhuma menção a existência da Tekoá Mirim. Fato que é complementado por afirmações explicitas, quanto a inexistência de população indígena presente na área almejada para a instalação do Complexo Andaraguá, e que podem ser verificadas no material audiovisual de divulgação do megaempreendimento, sendo que tal material já foi indicado acima quanto a possibilidade da sua visualização. E mais, que toda e qualquer menção a ocupação indígena desta área, está remetida ao pretérito longínquo. Sendo a mesma considerada apenas presente no Diagnóstico Arqueológico deste Relatório. Desta forma, é possível, portanto, considerar a formulação deste documento, como resultante de exclusivos e escusos interesses. Posto, que, sobretudo, quando se efetua a contraposição deste Relatório, ante outra documentação de mesma natureza, mas materializada por outra corporação empresarial, espanta-nos o número de contradições que são evidenciadas. Sem dúvida nenhuma, sendo a mais espantosa dentre elas, a percepção quanto à existência de uma aldeia indígena inteira. Trata-se do Plano Operativo do Componente Indígena do Plano Básico Ambiental da Empresa Rumo Logística. Cujo acesso, deu-se a partir de incursões de pesquisa junto a sede do MPF de São Bernardo do Campo, entre outubro e dezembro de 2019. Assim, vamos aos fatos: 42 43 44 45 46 47 48 49 Neste sentido, quanto a ocupação e usos próprios de sua terra, os Mbyá da Tekoá Mirim estão localmente pressionados pelo “lobbie” de megaconglomerados empresariais e interesses duvidosos de políticos locais, tal como é indicado pela seguinte fonte: https://www.diariodolitoral.com.br/cotidiano/projeto-andaragua-avanca-com-uniao-dos- vereadores/122358/ https://www.diariodolitoral.com.br/cotidiano/projeto-andaragua-avanca-com-uniao-dos-vereadores/122358/ https://www.diariodolitoral.com.br/cotidiano/projeto-andaragua-avanca-com-uniao-dos-vereadores/122358/ 50 Do mesmo modo, em uma dimensão nacional mais ampla, permanecem a oposição política institucional do Estado brasileiro, que contemporaneamente escolhe opor-se aos direitos indígenas já constitucionalmente reconhecidos e assegurados. Portanto, a pesquisa etnográfica e antropológica que segue, busca evidenciar o contexto sociocosmológico dos Mbyá Guarani da Tekoá Mirim, em sua luta permanente pelo reconhecimento da sua permanência e uso próprio nesta Terra Indígena. Processo este, que ao ser compreendido desde o seu início até a atualidade, constitui como poderia dizer Lévi-Strauss, uma imagem de “Fundo e Forma” em relação ao estabelecimento de relações entre o Estado e os povos indígenas. Situação, que em contexto político pretérito, pode atribuir à Tekoá Mirim uma possibilidade de materialização da demarcação. E, que na atualidade, lhe atribui um complexo indicativo de interrupção desta possibilidade. Expectativa de que poderia germinar este sonho. Mas que agora, transparece a interrupção deste processo. Ou, como afirmou Dona Vitalina: “Aqui, a Tekoá Mirim, parecia uma semente. Era uma semente. A nossa semente. Mais agora, parece que não vai nascer. Não estão deixando nascer”. (Dona Vitalina, Kerexu Mirim, janeiro de 2020). Neste sentido, cabe a reflexão: Semente em malogro ou “nenhum centímetro a mais para Terra Indígena? ” 51 CAPÍTULO 1: IMPULSOS DA MOBILIDADE 52 2.1 Motivações da mobilidade 1 Mbyá para a constituição da Tekoá Mirim. A realidade vivenciada pelos Mbyá Guarani da Terra Indígena Tekoá Mirim foi apreendida como processo constituinte da etnografia que caracterizou parcialmente o trabalho desta pesquisa àquela população, já que “nada poderia substituir a observação direta (...), pois é frequentemente sob a inocência de um gesto semi-esboçado, de uma palavra subitamente dita, que se dissimula à singularidade fugitiva do sentido” (CLASTRES, 1995, p.11). Assim, tal perspectiva passa a ser aqui apresentada e problematizada em relação àquilo que se refere às dificuldades enfrentadas por esta população indígena desde o seu deslocamento da localidade que anteriormente habitavam, a saber, a aldeia localizada em Pariquera-açu, área também localizada no litoral sul do estado de São Paulo, para poder estabelecer-se, e se manter, de acordo com o seu modo tradicional de existência cultural determinada por sua cosmologia, e que se concretiza em sua ocupação e utilização do espaço social, isto é, seu Nhanderekó. Que “com um claro sentimento de singularidade falam dele como a expressão mais cabal da sua identidade e de sua diferença” (MELIÁ, 1989: 293). Afinal, como insiste Meliá (1989): “Durante os últimos 1500 anos, os Guarani se mostraram fiéis à sua ecologia tradicional, pelo trabalho ativo que supõe a recriação e a busca das condições ambientais mais adequadas para o desenvolvimento de seu modo de ser”. Pois bem, a coleta das narrativas dos Mbyá Guarani da Tekoá Mirim, e que se constituíram como nexos das reflexões e problemáticas a serem aqui apresentadas e desenvolvidas, derivaram em sua maioria das conversas com o Xeramo’i Karaí Mirim (Maurício) e com o cacique Karaí Ñee’re (Edmilson), respectivamente representante espiritual e representante político daquela Tekoá, além de serem pai e filho. Entretanto, uma série de outras conversas com os demais integrantes daquele grupo populacional compõem o material coletado para a concretização deste trabalho. Assim, a aldeia Tekoá Mirim e o grupo Mbyá em questão, protagonistas dessas considerações se instalaram em área circunscrita pelo município de Praia Grande, litoral do estado de São Paulo. Então, especificamente, a concretização da aldeia se efetivou no interior do Parque Estadual da Serra do Mar. Devendo, portanto, tais processos de deslocamento e fixação espaciais deste grupo populacional, serem vistos e compreendidos a partir da perspectiva de concepção mitológico-religiosa e político-social, enfim cosmológica, peculiar aos grupos e indivíduos que as criam, as recriam e as experienciam, ou seja, os 1 O termo mobilidade foi proposto por Garlet numa tentativa de ampliar a abordagem dos deslocamentos Mbyá Guarani em suas variadas formas, o que inclui, além das migrações propriamente ditas, a visitação entre parentes, a exploração sazonal de recursos ambientais, ou seja, uma diversidade de motivos implicados nos movimentos populacionais do grupo (GARLET, apud PISSOLATO, 2007, p.97). 53 Mbyá Guarani e sua maneira de organizar a apropriação e utilização da espacialidade física e geográfica. Entretanto, em absoluto, desconectá-los de uma outra composição do espaço, isto é, seu aspecto imaterial, complexamente organizado e diversamente habitado, que interagem dialogicamente, sendo consequências e produzindo causas de interferências reais e concretas na vida humana (Mbyá). Afastando-se então, uma percepção equivocada e essencialista, e mesmo preconceituosa, a respeito da sua ocupação/permanência espacial e territorial. Portanto, o deslocamento espacial, tão caro aos Mbyá, como história e como projeto, constitui um traço característico dos Guarani. Concretiza-se, mediante a vivência cultural da sua estrutura mitológica. “Como estrutura do modo de pensar do guarani, dá forma ao dinamismo econômico e a vivência religiosa que lhes são tão próprios (...) é a síntese histórica e prática de uma economia vivida profeticamente e de uma profecia realista, com os pés no chão” (MELIÁ, 1989, p.294). Assim, este autor manifesta a percepção sobre a espacialidade, como sendo na contemporaneidade, o elemento seminal do Tekó (modo de ser) Guarani, e, que ela seria concretizada como movimentação da busca por lugares, tanto geográfica quanto espiritualmente pré-concebidos. Se concretizando, portanto, esta busca, de maneira simultânea, pela busca de “novos” solos (para que sejam sanadas as demandas socioeconômicas) e pelo manifestar-se de inspirações divinas. Contudo, a prática etnográfica desenvolvida ao longo do desenvolvimento desta pesquisa junto aos Mbyá da Tekoá Mirim, possibilitou a apreensão de uma perspectiva complementar a percepção sobre a mobilidade Guarani compreendida exclusivamente como derivada de uma concepção mítico-religiosa predeterminada. Portanto, se pretende evidenciar também, em decorrência da etnografia realizada, as motivações de ordem pragmática, inseridas de modo a permearem e distribuírem-se no plano do cotidiano daquela realidade. Assim, na experiência contemporânea dos Mbyá, em que o problema da terra se caracteriza de forma premente, há a consequência imediata que tal processo histórico age de modo a transformar as concepções e usos do espaço entre essa população. Nesse sentido, Almeida & Mura (2004) propõem que “a noção nativa de “tekoha” seja compreendida como elaboração indígena produzida nos contextos de relacionamento intercultural, e não como categoria já determinada que se conservasse a despeito das alterações das suas condições de existência”. Segundo estes autores, deve-se entender “o tekoha como resultado e não como determinante” das formas de concepção e organização da espacialidade. Além disso, considera-se também neste trabalho, como aspectos importantes a estrutura do parentesco, isto é, o modo como se entrelaçam as relações entre as famílias extensas ou parentelas; a emergência de novas lideranças que passam a se tornar o novo centro gravitacional onde passa a orbitar e a se concentrar grande parte das demandas de um grande número de membros do grupo, assim como, a progressiva incompatibilidade de que na mesma composição espacial haja a prática compartilhada de mais que uma liderança espiritual e religiosa. 54 Desta maneira, a análise a respeito das motivações geradoras do processo de mobilidade Mbyá, por sua vez, causadora do deslocamento que viria a constituir a Tekoá Mirim, será aqui tratada, de modo a considerar o contexto de complementariedade que assumem as suas variações cosmológicas e míticas, assim como, aquelas que caracterizam as instabilidades políticas peculiares definidoras do pragmatismo cotidiano, concretizadas no convívio do grupo indígena em questão. 2.2 Os sonhos: a síntese cosmológica de impulso para o deslocamento Mbyá na constituição da Tekoá Mirim. As reflexões que irão ser apresentadas nesta análise se referem ao fato de que os Mbyá ao se estabelecerem para a concretização da Tekoá Mirim, o executaram em plena manifestação de concretude da sua cosmologia, mesmo esta sendo ressignificada. Ressignificação, claro, derivada dos dinâmicos processos que caracterizaram a historicidade peculiar desta situação. Pois, a história da fundação da Tekoá Mirim foi narrada, como consequência de um contexto em que a mobilização de um grupo de parentes, isto é, uma família extensa ou parentela, passou a ocupar determinado lugar após um sonho que o teria indicado à liderança espiritual e religiosa do grupo. Neste caso, ao Xeramo’i Karaí Mirim (Maurício), que se caracterizou como o principal narrador a colaborar com a maior parte do processo de registro etnográfico realizado nesta seção. Assim, vê-se mantida na práxis cotidiana dos Mbyá, a reminiscência cosmo-mitológica que compreende as “Terras sonhadas (por xamãs), tekoá porã, que devem possibilitar a vida social e ritual dos indivíduos em sua plenitude, lugares onde se tornaria possível a vida harmoniosa, que compreende as relações sociais e o respeito ao sistema antigo” (PISSOLATO, 2007, p.115). Já, que ao longo das coletas e registros referentes à historicidade da Tekoá Mirim, junto ao Xeramo’i, sempre prevaleceu na sua narrativa, o amparo na concepção cosmo-mitológica de que as principais e reais motivações do deslocamento de sua parentela, para o início do núcleo que se constituiria de fato, como a “nova” aldeia, devia-se as suas inspirações divinas que lhe haviam sido entregues em seus sonhos por Nhanderú. Portanto, o percurso de deslocamento que fundaria a aldeia Tekoá Mirim, se iniciou como concretização de uma jornada pautada pela cosmologia Mbyá, a partir da aldeia em que o protagonista deste contexto mítico migratório, isto é, o Xeramo’i Karaí Mirim, vivia com seus demais parentes, ou seja, em Pariquera-açú, também no litoral paulista. Assim, quando questionado a respeito das motivações que o impeliu a deixar a aldeia em que viviam, e se deslocarem até o local devido para a sua fixação, o Xeramo’i relata a explicação que segue transcrita: “Principal motivo, foi que eu começava a ficar ruim, incomodado. Não conseguia mais ter sono bom, não dormia mais. Também passei a não comer mais, comia e já vomitava. Ficava só triste. Toda hora triste, ficava muito mal..., toda hora, o tempo inteiro. 55 Daí passei a rezar muito. Ficava todo o tempo em Opy’i, comecei a dormir e acordar lá. Na hora da reza, do m’boraí tinha muita força. E também, o Petynguá, eu fumava muito o Petynguá. Outra coisa é a comida. Deixei para mim só a comida Guarani, awati (milho), mandió (mandioca), jyty (bata-doce), pindó (palmito), Ka’a (chimarrão) e não comia carne de jeito nenhum. Eu sabia que tinha problema muito grande, muito sério né. Então, comecei a rezar muito, cada vez mais. Pedia ajuda pra Nhanderú, precisava saber o que tinha de errado. Foi daí então que aconteceu, eu tinha ficado uma noite inteira e um dia também, ele todo, numa reza muito forte, ouvindo Nhanderú dizer para eu dormir, que aí vinha a solução. E trabalho foi assim, quando acabo o trabalho, estava muito cansado, eu nem lembro, mas me contaram que eu fiquei lá na Opy’i dormindo, mais de um dia. Daí tudo resolveu, foi sim, no sonho, Nhanderú me mostrou que problema era lá, não era mais para fica lá, tinha que vê e depois achar o lugar, a nossa Tekoá. Nós tínhamos que ir embora para lá. Foi Nhanderú que veio ajudar, mostra qual era o problema e dá pra nóis a solução. No sonho. E foi depois de muitos trabalhos e de muita reza na Opy’i, feita nos outros dias, que em outro sonho, é quando eu sonhava que Nhanderú me mostrou o lugar da Tekoá, o lugar para onde nos tinha que ir. Ir para lá, para a nossa Tekoá, lá é que nós tínhamos que ficar. E Nhanderú já tinha me mostrado onde. E mostro no sonho”. Assim, a realização da análise interpretativa sobre a transcrição exposta acima, revela a partir da perspectiva própria da liderança espiritual e religiosa do grupo indígena estudado, ou seja, o Xeramo’i Karaí Mirim, de modo literal, como se caracterizou o complexo processo de inspiração divina que o acometeu, e, que, portanto, desencadeou o “start” ao que se refere à composição e a articulação dos preceitos cosmo-mitológicos Mbyá, que segundo a sua perspectiva, se constituíram como o principal motivo de explicação para a mobilidade territorial do seu grupo de parentes que viriam a constituir o primeiro núcleo populacional da Tekoá Mirim. Pois, afinal tudo que se compõe, mesmo que parcialmente, enquanto experiências dos vivos mantendo-os como tal, depende do que os Mbyá identificam como “a vontade de Nhanderú, a quem sempre se deve “pedir” (jejure), “perguntar” (porandu), “escutar” (endu). De que se pode obter, o “fortalecimento” (mbaraete) ou a “coragem” (py’a guaxu) para continuar na Terra” (PISSOLATO, 2007, p.228). Portanto, todo o processo de concretização das condições que viriam a determinar o deslocamento ritual (Oguatá) deu-se como consequência da reprodução, no cotidiano, da mitologia Mbyá. Sua motivação então derivara de questões míticas e religiosas, culturalmente peculiares. Desta forma, a composição cosmológica em que esta se expressa mediante a “visão onírica”, ou seja, a motivação ritualisticamente percebida e a demonstração da nova localidade a se fixar ocorrida em um sonho, assim 56 como, a inspiração dada por Nhanderú, foram todas elas etapas vivenciadas, e apresentadas nas transcrições dos depoimentos dados pelo Xeramo’i Karaí Mirim. Desta forma, a análise da fala do Xeramo’i passa também a revelar, a extrema relevância que o sonho concentra na cultura Mbyá. Tornando evidente, que em alguns contextos, seriam propiciadas especiais experiências perceptivas, onde a concentração de dinâmicas subjetivas, implicitamente os preencheriam, assim como acontece nos sonhos. Já que para a cultura Mbyá, a abordagem dos sonhos se concretiza como uma forma de percepção, que costuma ser traduzida a partir de contextos caracterizados enquanto processos da recepção de mensagens. Destarte, para os Mbyá a passagem do sono para a vigília, seria um dos momentos particulares, que favoreceriam a comunicação com suas divindades. Já que ao se levantarem pela manhã, cada um deles deve estar atento em relação ao seu despertar do sono. Processo que engloba a percepção sobre o seu estado de humor e a sua condição física, pois, qualquer alteração destas e de outras circunstâncias, seriam apenas por eles, indicativos de que algum problema estaria ocorrendo, havendo então, a necessidade da apreensão consciente de alguma evidência, por menor que seja, ou algum aviso que se tenha apresentado no sonho. Tal qual a própria doença, o sonho é por excelência matéria de interpretação. Pode contar de maneira mais ou menos explícita acontecimentos que poderão envolver o próprio sonhador, alguém que lhe esteja próximo ou mesmo uma outra pessoa (...) E, não há, ao que parece uma gramática dos sonhos, ainda que muitos Mbyá sonhem de maneira parecida: acidentes sonhados, lugares nunca vistos, a vinda de um parente que mora longe etc. Se alguns destes sonhos parecem conter imediatamente o conteúdo que comunicam, por outro lado, há sempre um lugar importante da interpretação que pode vir complementar ou modificar o que, em sentido mais estrito, se “viu no sonho”. “Sonhar” é um modo de “ver” na forma de um pressentimento, muito mais que a determinação do que vai acontecer (PISSOLATO, 2007, p.322). A propósito, é de grande importância destacar que no idioma Mbyá o verbo utilizado para compreender o contexto explicitado acima, é especificamente “Exa”, ou seja, “ver”. Portanto, de maneira mais estrita, tal contexto passa a assumir a seguinte composição: “ver no sonho” (Exa ra’u). Então, segundo Pissolato (2007, p.322), “vê-se o que possivelmente acontecerá, mas, o que o sonho conta não está apenas no sonho nem em um tempo determinado; há uma negociação entre o sonhador e aquilo que sonhou em que a atitude do primeiro é fundamental à definição dos resultados produzidos”. Assim, deve ser notado o quão sutil é considerada a questão dos sonhos para os Mbyá. Porque o instante do despertar do sono, se caracteriza por trazer impressões e resultados mais ou menos fortes e evidentes para aquele que sonhou. Sendo bastante variado também, o modo como são materializados a recepção e os entendimentos a seu respeito. Podendo em algumas circunstâncias específicas, esta situação se caracterizar como um contexto de transmissão efetiva de poderes, que segundo a óptica Mbyá, seriam originários da intervenção direta de Nhanderú, como é o caso do sonho com o Mbora’í, o canto/reza sagrado que então o seu receptor deverá passar a cantá-lo a partir desse momento. 57 Fica assim, bastante evidente o elevado grau de importância que o sonho possui para a cultura Mbyá. Importância esta, que permanece ainda na contemporaneidade, mantida e circunscrita pelo complexo cosmo-mitológico, ou seja, relacionada àquelas significações que orientam os processos de mobilidade intensa dos grupos Mbyá, determinadas pela busca milenar e incessante da “Terra sem Mal”, através de suas “Belas Caminhadas”, sempre conduzidas pela liderança espiritual e religiosa do grupo que se desloca, isto é, o Xeramo’i. Condução esta, que, por sua vez, é determinada antecipadamente no sonho do xamã, manifestando-se desta forma como uma dádiva divina. Ou seja, como a intervenção direta de Nhanderú, situação que ocasionaria a inspiração religiosa ao Xeramo’i, processo necessário à clarividência inspirada, portanto, que indicaria o correto local a ser atingido pelo grupo indígena que migra. Assim, ficou bastante evidente nas análises e interpretações realizadas a partir do registro etnográfico do depoimento cedido pelo Xeramo’i Karaí Mirim, que a composição cosmológica, mítica e religiosa, peculiares à cultura Mbyá, foi de fato, coimpulsionadora do processo de mobilização e de mobilidade da parentela indígena que sob a condução daquela liderança religiosa, que inspirado divinamente por Nhanderú nos seus sonhos, deslocou-se norteada pela perspectiva de constituição de uma “nova” Tekoá, capaz de circunscrever a concretização do seu Nhanderekó, neste caso em específico a Tekoá Mirim. Entretanto, para o povo Mbyá a importância do sonho e a consequente acessibilidade às possibilidades de “ver” e interpretar aquilo que foi apresentado durante o sono, não se caracteriza como uma exclusividade própria dos xamãs, dos Xeramo’i, portanto. Ao contrário, qualquer pessoa pode acessar a realização da prática de Exara’u, isto é, “ver no sonho”. Desta forma, em contraste com diversas cosmologias amazônicas circunscritas também à origem linguística Tupi, aparentemente os Mbyá não privilegiam, na agência da Nhe’ë (alma), a via do deslocamento, mas antes a da “concentração”. Isto é, a via da escuta, do ouvir os saberes originados nas e pelas divindades. Portanto, não parece haver entre os Mbyá, uma definição clara das atividades de Nhe’ë como alma liberada temporariamente do corpo, capaz nesta situação de apreender capacidades existenciais, como, por exemplo, em outros grupos indígenas amazônicos. Então, ainda que o sonho ocupe um lugar central na produção de conhecimentos fundamentais à manutenção da vida, os Mbyá, não estabelecem a relação direta entre o contexto da liberação da alma com aquele relativo à captura de saberes e/ou poderes. Assim, não se fala em viagens que o xamã faria até o mundo dos deuses no ritual e na cura. Enfim, as práticas de sonhar ou ver no sonho, ocupam um lugar de extrema importância no complexo cultural Mbyá, sobretudo, os resultados que a experiência produziu em quem sonhou. Vale, portanto, a reflexão a respeito do comentário realizado por Bartomeu Melià sobre a maneira como os Guarani articulam sua apropriação dos “cantos sagrados” transmitidos pelos sonhos: “Tal vez lo que se 58 puede decir es que el Guaraní es un organizador consciente y um transformador poético de su sueño” (MELIÀ, apud PISSOLATO, 2007, p. 260). Desta maneira, como indicou Ladeira (2007), se constata que “a história Mbyá é resgatada cotidianamente”. Porque “para os Mbyá, especialmente os que ainda não têm definido um lugar para um assentamento mais duradouro, “viver os mitos”, não se distingue da vida cotidiana, pois o cotidiano está impregnado de relações míticas com o universo” (LADEIRA, 2007, p.77). Neste sentido, “O mito é uma história verdadeira porque se refere sempre a realidades” (ELIADE, apud LADEIRA, 2007, p.76). Contudo, os motivos responsáveis por impulsionarem à mobilidade o grupo Mbyá que fora conduzido em seu deslocamento desde a Tekoá de Pariquera-açú pelo Xeramo’i Karaí Mirim (Maurício), até o local específico e pré-determinado pelo contexto e práticas rituais já descritas analiticamente acima, sobretudo, aquelas relacionadas à importância atribuída ao sonho e sua interpretação, segundo as estruturas cosmológicas, míticas e religiosas peculiares desta cultura. O que por sua vez, atesta a manutenção, claro que ressignificadas na contemporaneidade, das diretrizes culturais deste povo, e que, diretamente atuam como processos que validam a sua ocupação/permanência na localidade escolhida. Porém, não devem ser compreendidos como os únicos impulsos responsáveis por este deslocamento. Assim, processos e dinâmicas relativas às interrelações próprias dos Mbyá, questões dispostas no âmbito da política, pragmática e cotidiana, constituídas entre as famílias extensas, ou seja, as parentelas, e mesmo as relações de contato com a sociedade envolvente, são tão relevantes quanto às determinações cosmológicas, para um correto entendimento das causas que impulsionam os grupos indígenas Mbyá na concretização do seu contexto de mobilidade espacial tão característico a eles. Portanto, consideramos na elaboração deste trabalho, relevância similar e complementarmente composta, entre a cosmologia e a práxis, a religiosidade e a historicidade Mbyá, como articulação necessária para uma plena e correta apreensão das motivações dos seus deslocamentos espaciais. Desta maneira, a próxima seção ocupa-se das reflexões e análises sobre os processos contidos nas relações políticas relativas ao cotidiano Mbyá, naquilo que se referem às suas interrelações e nas relações com a sociedade envolvente. Para que sejam também, perfeitamente compreendidas como corresponsáveis pelo seu deslocamento no contexto de constituição da Tekoá Mirim. 59 2.3 A práxis e o pragmatismo político cotidiano dos Mbyá: outros impulsos a motivar o deslocamento para a constituição da Tekoá Mirim. Pois bem, nesta seção além das considerações estabelecidas a respeito dos depoimentos colhidos junto ao Xeramo’i Karaí Mirim, já que ainda se objetiva nesta análise a plena compreensão a respeito das motivações que se constituíram como os impulsos do deslocamento Mbyá para a formação da sua “nova aldeia” Tekoá Mirim, serão considerados com destaque, os registros dos depoimentos do cacique Karaí Ñee’re (Edmilson), assim como, o do seu irmão mais velho Werá Pyty (Edson). Pois, de maneira específica como é pretendido nesta análise, os informantes acima mencionados, propiciam em decorrência das análises das suas falas, uma exposição e consequentemente, um entendimento, complementar às motivações do deslocamento Mbyá em questão. Ou seja, suas falas apesar de denotarem extrema importância aos aspectos cosmológicos e míticos que caracterizaram os principais motivos de impulso a detonar o processo de mobilidade espacial entre os Mbyá que estabeleceram a Tekoá Mirim e que puderam ser claramente apreendidos através das análises realizadas sobre as falas do Xeramo’i Karaí Mirim, revelam nas entrelinhas, quando minuciosamente tratadas como objeto de análise atenta, que fatos, dinâmicas e processos característicos da convivência cotidiana entre parentelas distintas que coabitam uma mesma limitação territorial, isto é, uma mesma Tekoá, produzem cismas quanto às suas relações. Que ainda quando associadas às limitações materiais e práticas, quanto à acessibilidade de condições às vezes elementares para a sobrevivência, também tornam concretas motivações que impulsionam os processos de deslocamentos territoriais entre os Mbyá. Devendo então, serem associadas, como causas pragmáticas de motivação da mobilidade dos Mbyá, as complexas relações destes com a sociedade envolvente, em seus múltiplos aspectos, sejam eles políticos, sociais e econômicos. Pois: A grande mobilidade de indivíduos e famílias entre as comunidades, que tem um sentido ritual, é, também, uma forma de sobrevivência, já que não é mais possível reproduzir integralmente as estratégias tradicionais na obtenção de alimentos, devido à escassez resultante da degradação do meio ambiente e da pequena dimensão das áreas disponíveis para a coleta, a caça e a pesca (IPHAN, 2007, p.12). Desta forma, segue a transcrição das falas do cacique Karaí Ñee’re ao responder os questionamentos acerca dos motivos que causaram a mobilização do seu grupo de parentes, e que os impulsionaram a deixarem a localidade que já viviam, ou seja, a Tekoá de Pariquera-açú. “Nós conversávamos muito, eu e o meu pai, o Xeramo’i, lá na aldeia de Pariquera estava muito difícil. Começou a ficar muito problema. Nós chegamos lá depois, eu, minha família, meu pai, mãe, meus irmão e irmã, os meus sobrinhos e outros parente. A aldeia já existia e era outras famílias que já estavam lá. É tudo parente nosso, nós tudo é parente. E nós no começo vivia tudo bem. Mas daí foi passando o tempo foi ficando mais difícil. Lá já tinha outro Xeramo’i também. Nós organizávamos para plantar, cuidava para as casas nossa ficarem limpas. E toda noite, meu 60 pai rezava, mas não era na Opy’i, o outro Xeramo’i é que rezava lá. O meu pai só ia até a Opy’i depois, quando ela estava vazia. Mais começou a ir cada vez mais parente no trabalho do meu pai, na hora das conversas para trabalho de todo mundo junto também. E também, começou a cresce a aldeia, começo a ficar com muita gente, aí era difícil o espaço, a aldeia era pequena, ficou difícil a água. Começou muita gente não se entender mais. ” Assim, a transcrição de algumas das falas do cacique Edmilson, registradas acima, e, circunscritas ao contexto em que elas se direcionam as análises e interpretações propostas aqui, ou seja, a verificação de outras motivações e impulsos que estimularam o deslocamento do grupo indígena Mbyá que viria a constituir a Tekoá Mirim, para além daqueles já discutidos. Pois bem, inicialmente cabe ressaltar que a parentela a qual o cacique Karaí Ñee’re fazia parte, compunha um núcleo familiar, isto é, uma família extensa diferente em relação àquela, que, já antes deles, viviam na Tekoá de Pariquera-açu. Portanto, apesar da intensa solidariedade e cooperação que permeiam todas as relações entre os grupos, parentelas e indivíduos Mbyá; inevitavelmente, a partir daquele momento se estabeleciam divergências latentes a respeito das intenções, dos interesses e das perspectivas de cada um daqueles grupos. Fato este, portanto, que dera início a uma tensão que estava latente. Também, deve-se estar atento as passagens da fala do cacique quando ele se refere a seu pai, o Xeramo’i Karaí Mirim, e, sobretudo, ao fato de que ele na condição de Xeramo’i, chegava a uma Tekoá cuja função social já era ocupada e desempenhada por outra liderança espiritual e religiosa. Constatações estas, que derivadas das análises e interpretações realizadas sobre os registros etnográficos produzidos em campo, evidenciam a proximidade desta situação com as conclusões já consagradas de P. Clastres (1978 e) e H. Clastres (1978). Conexões que se efetuam no sentido de que as reflexões do primeiro autor, apresentam os processos de diluição do poder entre os ameríndios em condições específicas; sendo que esta diluição, como foi articulada pelas reflexões da autora em questão, se concretizaria pela ação dos líderes religiosos, em contextos de desmembramentos e fragmentação das sociedades indígenas. O xamanismo parece oferecer, em toda a América, uma notável homogeneidade. Como tantas outras populações ameríndias, os tupis-guaranis dispunham dessas personagens prestigiosas, mediadoras entre o mundo sobrenatural e os humanos, capacitadas por seus dons particulares a desempenhar as mais diversas funções: curar os doentes, predizer o futuro, mandar na chuva ou no bom tempo... Com os Guarani, contudo, o xamanismo é mais e outra coisa do que isso, ao mesmo tempo: acresce-se de uma dimensão nova e adquire significado e alcance particulares – de ordem religiosa e não mais, apenas mágica – que o diferenciam sensivelmente do que é em outros povos. A Terra sem Mal foi o núcleo do pensamento religioso dos tupis-guaranis: a vontade de chegar a ela governou suas práticas: esteve na origem de uma diferenciação nova, nascida no xamanismo, que viria a isolar uma categoria especial de xamãs: os caraís, os homens deuses cuja razão de ser era essencialmente promover o advento da terra sem mal. Pois a atividade dos homens deuses não se limitava a discorrer sobre ela: propunham-se a conduzir aos índios para ela (CLASTRES, 1978, p.34). Nota-se ainda, como outro possível impulso para o deslocamento da parentela do cacique Karaí Ñee’re da Tekoá de Pariquera-açú, o processo de aumento do seu prestígio junto aos demais habitantes daquela aldeia, já que o ainda jovem Xondáro passava a atrair à sua órbita de influência, enquanto 61 liderança, uma grande quantidade de indivíduos. Então, entende-se aqui, que tais questões ao expressarem rivalidades políticas, de disputas pela predominância na condução do contexto ritual e religioso e mesmo as que atestaram as limitações físicas quanto à utilização da espacialidade da Tekoá de Pariquera-açú frente ao aumento demográfico na mesma, e que se apresentam de modo bastante claro nas falas do cacique Karaí Ñee’re, concretizam, portanto, o entendimento de que outros motivos complementares àquele circunscritos a cosmologia e que foram tratados anteriormente, também estão diretamente caracterizados como impulsos da mobilidade dos Mbyá. Podendo, por sua vez, tornar-se mais explicito este contexto, ao se analisar a transcrição de algumas das falas de mais um dos importantes informantes Mbyá que colaboraram decisivamente para a elaboração desta investigação. Trata-se do irmão mais velho do cacique, ou seja, Werá Pyty (Edson), que à época do registro