GRÊMIO ESTUDANTIL E FRONTEIRAS DE EXCLUSÃO: EMANCIPAÇÃO JUVENIL E NOVAS TERRITORIALIDADES NA EDUCAÇÃO BÁSICA NO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO-SP ALEX MARIGHETTI RIO CLARO - SP 2024 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “Júlio de Mesquita Filho” Instituto de Geociências e Ciências Exatas Campus de Rio Claro ALEX MARIGHETTI GRÊMIO ESTUDANTIL E FRONTEIRAS DE EXCLUSÃO: EMANCIPAÇÃO JUVENIL E NOVAS TERRITORIALIDADES NA EDUCAÇÃO BÁSICA NO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO-SP Tese de Doutorado apresentada ao Instituto de Geociências e Ciências Exatas do Campus de Rio Claro, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutor em Geografia. Orientador: Prof. Dr. Diego Corrêa Maia Rio Claro – SP 2024 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “Júlio de Mesquita Filho” Instituto de Geociências e Ciências Exatas Campus de Rio Claro ALEX MARIGHETTI GRÊMIO ESTUDANTIL E FRONTEIRAS DE EXCLUSÃO: EMANCIPAÇÃO JUVENIL E NOVAS TERRITORIALIDADES NA EDUCAÇÃO BÁSICA NO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO-SP Tese de Doutorado apresentada ao Instituto de Geociências e Ciências Exatas do Campus de Rio Claro, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutor em Geografia. Comissão Examinadora Prof. Dr. DIEGO CORRÊA MAIA (Orientador – Participação Virtual) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) – Campus de Rio Claro (SP) Profa. Dra. PATRÍCIA DO PRADO OLIVEIRA – (Participação Virtual) – Prefeitura Municipal de São Paulo - SVMA/São Paulo (SP) Prof. Dr. EDUARDO DONIZETI GIROTTO– (Participação Virtual) – FFLCH/USP/São Paulo (SP) Profa. Dra. SANDRA DE CASTRO DE AZEVEDO – (Participação Virtual) – UNIFAL/Alfenas (MG) Prof. Dr. MARCO ANTÔNIO PAGEL – (Participação Virtual) – UNEMAT/Cáceres (MT) Conceito: Aprovado. Rio Claro (SP), 01 de novembro de 2023 Dedico essa pesquisa: À Deus Su, que me deu energia espiritual, sustento e fôlego em todos dias. Aos meus pais, dona Terezinha e seu Zé, pelo incentivo, dedicação e valores seguidos. Ao meu amor, Camila, pelo companheirismo e carinho. Aos meus amigos, pela paciência e apoio. Aos meus alunos, fontes de inspiração para seguir a longa caminhada docente. Agradecimentos A Deus Su por me iluminar em todos os momentos de minha vida. Aos meus pais, José e Terezinha, que me proporcionaram os maiores valores da vida: amor, dedicação e humildade. Ao meu amor, Camila Reichmann pela paciência e companheirismo nos grandes desafios que se colocam diariamente, que possamos viajar pelo mundo como sempre sonhamos! Ao meu orientador e amigo, Professor Dr. Diego Corrêa Maia pela paciência e compreensão ao longo da caminhada, te admiro e me espelho, somos poucos na universidade que não se esqueceram da escola pública. Aos professores que aceitaram o desafio de fazer composição da Banca Examinadora, meu muito obrigado por fazerem parte da construção coletiva do conhecimento. Aos meus grandes amigos da UNESP e da vida pelos anos de convivência e amizade (Fernando Velázquez, Patrick Miranda, Marcelo Garcia, Marcelo Franzin, João Vitor Gobis Verges, Nívea Massaretto Verges, Thais Helena, Anderson Marioto, Denise Marini, Gabriele Poleti, Viviane Garcia, Baltazar, André Luís dentre outros). Aos meus grandes amigos da vida e do trabalho pela capacidade de me aturarem diariamente e me proporcionar momentos agradáveis (Alice Alves, Gabriela Marujo, Juliana Andreo, ITA, Patrícia, Madalena, Denise Berkeras, Júlio Valim, Fátima, Fabiano, Cesinha, Leandro, Luciano Kenji, Renato Fernandes, Juan Carlos Ramirez, Renata Pingueiro, Alessandra dentre outros). Aos meus alunos da escola pública e da privada, que a cada aula de Geografia me fazem acreditar na carreira docente como forma de contribuir para o mundo neste plano. Aos alunos gremistas que me inspiram diariamente na luta por direitos e por uma escola publica de qualidade e democrática. Aos gestores, professores e educandos das escolas que participaram da pesquisa, pela atenção e divulgação dos dados. A todos aqueles que acreditaram no meu sonho e/ou contribuíram de maneira direta e indireta. Este trabalho é nosso! RESUMO Esta pesquisa de Doutorado em Geografia tem como objetivo geral analisar de maneira crítica as (des) territorialidades dos grêmios estudantis, bem como seu funcionamento e organização no cotidiano das unidades. Como objetivos específicos, procuramos elaborar uma reflexão teórica acerca dos conceitos de esperança, práxis, política e o princípio do comum como a base para a construção dos grêmios estudantis; estabelecer um levantamento sobre os marcos legais e históricos do grêmio estudantil em escala nacional e local, com destaque para o município de São Paulo – SP; criar uma interface possível entre a Geografia e os Grêmios Estudantis e, finalmente e apresentar e refletir de maneira crítica sobre as múltiplas realidades que envolvem o processo de construção e resistência de um grêmio estudantil a partir de uma unidade escolar. O problema da pesquisa pode ser compreendido com a seguinte questão: Os grêmios estudantis conseguem se expandir enquanto coletivo nos territórios educacionais de maneira plena? Se não, quais são os obstáculos que contribuem para a não efetivação do projeto nas unidades escolares? Operamos com a hipótese de que as políticas educacionais são elaboradas nos dias atuais como uma tentativa de desconstrução dos movimentos estudantis, bem como a inserção plena destes jovens no mundo do trabalho precarizado com uma visão mecanicista, inconsistente e pouco reflexiva. A metodologia utilizada foi a pesquisa bibliográfica, pesquisa documental e estudo de caso, baseados na investigação qualitativa, no qual exige a combinação de recolha de dados, bem como sua análise. Primeiro os questionários abertos e/ou fechados, em seguida as entrevistas e por fim, as considerações finais sobre os resultados encontrados em campo. Como resultado, temos que os grêmios estudantis das escolas municipais da São Paulo a partir do estudo de caso, não funcionam de maneira plena por conta das consequências da pandemia da COVID-19, alienação espacial provocada pelo mundo do trabalho precarizado, as políticas neoliberais que precarizam a participação dos alunos e por fim, a truculência da gestão escolar. Palavras-Chave: Grêmio estudantil; Territorialidade; Fronteiras de exclusão, Autonomia. ABSTRACT This Doctorate in Geography research was to analyze the (dis)territorialities of student council, as well as their functioning and organization in the daily life of the units. As specific objectives, we elaborate a theoretical reflection about the concepts of hope, praxis, politics and common principle as a basis for the construction of student council; establish a survey on the legal and historical frameworks of the student council on a national and local scale, with emphasis on the municipality of São Paulo - SP; in order to create a possible interface between Geography and Student Council and, finally, to present and reflect on the multiple realities that involve the process of construction and resistance of a student council from a school unit. The research problem can be understood with the following question: Are student council able to fully expand as collectives in educational territories? If not, what are the obstacles that prevented the project from being carried out in the school units? We operate with the hypothesis that educational policies are elaborated nowadays as an attempt to deconstruct student movements, as well as the full insertion of these young people in the world of work: a mechanistic, inconsistent and little critical-reflexive vision. The methodology used was bibliographical research, documentary research and studies case based on qualitative research, which requires the combination of data collection, as well as its analysis. First the open and/or closed questionnaires, then the interviews and the final considerations about the results found. As a result, we have that the student council of the municipal schools of São Paulo from the case study, do not function fully due to the consequences of the COVID-19 pandemic, spatial alienation caused by the world of work, the neoliberal policies that make precarious student participation and finally, the truculence of school management. Key words: Student council; Territoriality; Borders of exclusion, Autonomy. LISTA DE FIGURAS Figura 1: Objetivos do Desenvolvimento Sustentável – Currículo da Cidade .......... 17 Figura 2: Imagem de satélite do entorno da EMEF “Universo Jovem” ..................... 82 Figura 3: Reportagem sobre a falta de água na escola em 2022. ........................... 101 Figura 4: Temas dos Podcasts produzidos pelos gremistas ao longo do ano de 2020. ..................................................................................................................................116 LISTA DE QUADROS Quadro 1: Principais propostas gremistas da rede municipal de ensino ................. 110 Quadro 2: Propostas da chapa vencedora – 2019 .................................................. 114 LISTA DE TABELAS Tabela 1: Legislação que ampara os grêmios estudantis na esfera Federal, Estadual e Municipal ............................................................................................................... 68 Tabela 2: Funções e Atribuições do Grêmio Estudantil..............................................74 Tabela 3: Resultado das eleições da EMEF “Universo Jovem” .............................. 113 Tabela 4: Proporcionalidade dos membros do Conselho de Classe ....................... 122 LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1: Porcentagem de estudantes do Ensino Fundamental I segundo sua nacionalidade - 2022...................................................................................................86 Gráfico 2: Número de estudantes brasileiros e migrantes do Ensino Fundamental I segundo sua nacionalidade – 2022.............................................................................86 Gráfico 3: Países de Origem dos Estudantes Migrantes do Ensino Fundamental I segundo sua nacionalidade – 2022 .......................................................................... 87 Gráfico 4: Porcentagem de estudantes do Ensino Fundamental II segundo sua nacionalidade - 2022...................................................................................................87 Gráfico 5: Número de estudantes brasileiros e migrantes do Ensino Fundamental II segundo sua nacionalidade – 2022.............................................................................88 Gráfico 6: Países de Origem dos Estudantes Migrantes do Ensino Fundamental I segundo sua nacionalidade – 2022 .......................................................................... 88 Gráfico 7: Porcentagem de estudantes da EJA segundo sua nacionalidade - 2022............................................................................................................................89 Gráfico 8: Número de estudantes brasileiros e migrantes da EJA Ensino segundo sua nacionalidade – 2022..................................................................................................89 Gráfico 9: Países de Origem dos Estudantes Migrantes da EJA segundo sua nacionalidade – 2022 ............................................................................................... 90 Gráfico 10: Cargo/Função dos docentes na unidade escolar em 2022............................................................................................................................91 Gráfico 11: Cor ou raça segundo o IBGE dos docentes na unidade escolar em 2022. ....................................................................................................................................92 Gráfico 12: Religião dos docentes na unidade escolar em 2022 .............................. 92 Gráfico 13: Faixa Etária dos docentes na unidade escolar em 2022.........................92 Gráfico 14: Tempo de Docência – incluindo outras redes de ensino Faixa Etária dos docentes na unidade escolar em 2022.......................................................................93 Gráfico 15: Tempo de Docência na Rede Municipal de São Paulo dos docentes na unidade escolar em 2022............................................................................................93 Gráfico 16: Tempo de Docência na EMEF "Universo Jovem" em 2022 .................... 93 Gráfico 17: Acúmulo de cargo/função dos docentes na unidade escolar em 2022............................................................................................................................94 Gráfico 18: Formação profissional dos docentes na unidade escolar em 2022...........94 Gráfico 19: Formação complementar para além da graduação inicial dos docentes na unidade escolar em 2022 dos docentes na unidade escolar em 2022............................................................................................................................94 Gráfico 20: Pós Graduação Latu Senso dos docentes na unidade escolar em 2022............................................................................................................................95 Gráfico 21: Número de pessoas que moram na residência dos docentes na unidade escola em 2022...........................................................................................................95 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS AACD Associação de Assistência a Criança com Deficiência AEL Academia Estudantil de Letras. AI Ato Institucional APM Associação de Pais e Mestres. B Bianca. BA Bahia. BDTD Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações. CAPES Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. CAPSI Centros de Atenção Psicossocial. CE Conselho de Escola. CEI Centro de Educação Infantil. CIEJA Centro Integrado de Educação de Jovens e Adultos. CPC Centro Popular de Cultura CTA Centro de Testagem e Aconselhamento. DF Distrito Federal DRE Diretoria Regional de Ensino E Entrevistador ECA Estatuto da Criança e do Adolescente EMEB Escola Municipal de Educação Básica. EMEF Escola Municipal de Ensino Municipal. EMEI Escola Municipal de Educação Infantil. ETEC Escola Técnica. EUA Estados Unidos da América FDUFBA Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia. GE Grêmio Estudantil JEX Jornada Especial de Horas-Aula Excedentes. LDB Lei de Diretrizes e Bases da Educação. M Maradona. MEC Ministério da Educação. MES Movimento Estudantil Secundarista. MMDC Martins, Miragaia, Dráusio e Camargo ODS Objetivos de Desenvolvimento Sustentável PARFOR Plano Nacional de Formação de Professores. PEC Proposta de Emenda à Constituição PIB Produto Interno Bruto. PMSP Prefeitura do Município de São Paulo. PNLD Plano Nacional do Livro Didático. PPP Projeto Político Pedagógico. PTRF Programa de Transferência de Recursos Financeiros. RME Rede Municipal de Ensino RL Rosa Luxemburgo. SAAI Sala de Apoio e Acompanhamento à Inclusão. SEDUCSP Secretaria de Estado da Educação de São Paulo. SME Secretária Municipal de Educação. SRM Sala de Recursos Multifuncionais. SP São Paulo. UBES União Brasileira dos Estudantes Secundaristas. TCA Trabalho de Conclusão Autoral. TEX Jornada Especial de Trabalho Excedente. UBS Unidade Básica de Saúde. UE Unidade Escolar. UFBA Universidade Federal da Bahia UFPE Universidade Federal de Pernambuco. UNE União Nacional dos Estudantes UNES União Nacional dos Estudantes Secundários. USP Universidade de São Paulo. SUMÁRIO INTRODUÇÃO....................................................................................................... 15 CAPÍTULO 1: Composição Teórica e Estado da Arte sobre os Grêmios Estudantis na Geografia .....................................................................................20 1.1 Espaços da Esperança.................................................................................... 20 1.2 Práxis............................................................................................................... 24 1.3 O conceito de política a partir de Hannah Arendt............................................ 29 1.4 A Noção de Comum e Neoliberalismo na Educação...................................... 32 1.5 Estado da Arte: Grêmios Estudantis na Geografia: interfaces e conexões .... 35 CAPÍTULO 2: Os Grêmios Estudantis na busca pela Gestão Democrática... 38 2.1 Grêmios Estudantis: Marcos legais e históricos: do surgimento à Ditadura Militar .............................................................................................................................. 39 2.2 Grêmios Estudantis: Marcos legais e históricos: da Ditadura Militar à Redemocratização ................................................................................................ 45 2.3 Grêmios Estudantis: Marcos legais e históricos - gestão democrática e século XXI ............................................................................................................................... 48 2.4 A Democratização como elemento de mudança social ................................. 52 2.5 Geografia e Grêmios Estudantis: uma interface possível .............................. 56 2.5 O Grêmio Estudantil: limites e perspectivas conceituais ............................... 60 2.6 Legislação que ampara os Grêmios Estudantis ............................................. 65 2.7 O Grêmio Estudantil na Secretaria Municipal de Educação – do conceito à prática .............................................................................................................................. 72 2.8 Metodologia de Pesquisa e coleta de dados .................................................. 75 CAPÍTULO 3: Fronteiras de Exclusão: Estudo de Caso – EMEF “Universo Jovem”.................................................................................................................. 80 3.1 Descrição da escola ....................................................................................... 80 3.2 Entorno e caracterização da população atendida........................................... 81 3.3 Mapeamento da Nacionalidade dos estudantes da Unidade Educacional em 2022 ............................................................................................................................... 85 3.4 Mapeamento do perfil dos docentes da Unidade Educacional em 2022 ........ 91 3.5 Projetos Complementares realizados no Contraturno .................................... 96 3.6 Entrevistas ...................................................................................................... 98 3.7 Trabalho de Campo: Estudo de Caso – O nascer de um sonho! ................... 109 3.7.1 O Gremio Estudantil na pandemia......................................................116 3.7.2 O Gremio Estudantil após a pandemia...............................................118 3.8 O papel e os desafios do professor orientador................................................ 118 3.9 O papel da gestão na (des)construção do grêmio estudantil ........................ 120 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................. 125 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................... 130 ANEXOS .............................................................................................................. 138 15 Introdução A escola no processo de ensino e aprendizagem assumiu, ao longo dos últimos anos, múltiplas funções na formação do educando, desde mudanças na estruturação física e politica até a ampliação da oferta e acesso a novos projetos que visam atender uma vasta comunidade que anseia e deposita na escola, em sua grande maioria, a responsabilidade para a formação do indivíduo. Neste sentido, entra em cena os grêmios estudantis – enquanto estrutura fundamental para a ampliação dos territórios democráticos e disrupção de um modelo de escola voltado para a ordem e a manutenção de um status quo. Para além disso, a problematização que se apresenta na educação pública na atualidade é a questão da escola enquanto espaço político que ora visa reproduzir a lógica neoliberal focada no protagonismo dos indivíduos, ora contrapor tais lógicas a partir da ideia de emancipação e autonomia através da completude dos seres humanos. Diante disso, o princípio do comum que emana de movimentos sociais e que se propaga através de práticas contrárias a racionalidade neoliberal são capazes de revolucionar o conjunto de relações que se desenvolvem nos territórios escolares. Neste sentido, e o grêmio estudantil se materializa enquanto forma e conteúdo para institucionalizar o princípio de comum. O objetivo dessa pesquisa é realizar uma análise de maneira crítica sobre as (des) territorialidades dos grêmios estudantis, bem como seu funcionamento e organização no cotidiano das unidades escolares a partir de um estudo de caso. Para o desenvolvimento da tese, complementa-se os seguintes objetivos específicos: a) elaborar uma reflexão teórica acerca dos conceitos de esperança, práxis, política e comum como a base para a construção dos grêmios estudantis; b) estabelecer um levantamento sobre os marcos legais e históricos do grêmio estudantil em escala nacional e local, com destaque para o município de São Paulo – SP; c) criar uma interface possível entre a Geografia e os Grêmios Estudantis e, finalmente, d) apresentar e refletir de maneira crítica sobre as múltiplas realidades que envolvem o processo de construção e resistência de um grêmio estudantil a partir de uma unidade escolar. 16 A tese aqui defendida entende que o grêmio estudantil se coloca como a principal forma de emancipação política e construção de cidadania no ensino público paulistano frente ao processo de acomodação de forças e alienação política que a escola é submetida nos dias de hoje. De maneira intencional e articulada, o grêmio atinge seu momento de reafirmação na rede frente a um processo garantido em nossa constituição há mais de trinta anos. Como hipótese teríamos uma política educacional burocratizada e deslocada da realidade que traz, como consequência a construção de um abismo entre os educandos, professores, gestão escolar e a escola em si – já que os territórios de formação e construção de uma cidadania plena não são garantidos em sua plenitude graças a um movimento de sucateamento da escola pública. A preocupação que motivou o desenvolvimento da tese ocorreu após a elaboração do projeto sobre os grêmios estudantis que viria a ser aplicado em uma unidade escolar, onde atuo desde 2012. No desenrolar das atividades, percebemos o elevado grau de clandestinidade com que até então a luta dos jovens era tratada na esfera da unidade escolar e, principalmente, pela rede municipal de ensino. Por se tratar da maior metrópole brasileira e umas das maiores do mundo, São Paulo implanta os grêmios estudantis enquanto política educacional apenas no ano de 2019, o que consideramos um absurdo frente a necessidade de vozes que foram represadas ao longo do tempo. Dentre os fatores que acreditamos representar o atraso no desenvolvimento desta politica educacional, destaca-se: o distanciamento e falta de articulação entre os três poderes da nação (federal, estadual e municipal) que se manifesta nessa dissociação temporal entre as mesmas; o destroçamento financeiro e organizacional que o MEC passa atualmente; a burocratização da escola pública no sentido de transformar os projetos em documentos, atas e lista de afazeres e por fim, a falta de uma cultura de democracia representativa nos territórios escolares. Acreditamos ainda que para a escola ser um território democrático precisa ressignificar as relações do cotidiano, norteando suas ações através da horizontalidade e transparência. Apesar do desenvolvimento do Currículo da Cidade baseado na resolução dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) (Figura 1), percebemos que do ponto de vista prático, o grêmio estudantil se configura apenas como um grupo de jovens que realiza tarefas, resolve problemas e realiza passeios 17 no final do ano; já o professor orientador, apenas como responsável legal pelo desenvolvimento do projeto imerso em burocracias e um mediador de conflitos entre a gestão escolar e os estudantes. Figura 1: Objetivos do Desenvolvimento Sustentável – Currículo da Cidade. Fonte: Prefeitura do Município de São Paulo, 2021. Para além das funções acima descritas, o grande desafio que se coloca a frente da atuação dos grêmios estudantis hoje é o de garantir sua autonomia e construir um legado para a unidade escolar. Legado este que se materializa através de reformas físicas, melhora do desempenho escolar e principalmente, a construção de um educando reflexivo capaz de sonhar e que encontra no grêmio, um território seguro para ser quem é. As formações pedagógicas começam a emergir pelas DRE’s em parceria com a SME, no entanto, consideramos insuficientes para à proporção que o projeto grêmio estudantil exige, ou seja, mais um desafio para o professor orientador, que aprende e, ao mesmo tempo, media o projeto em suas respectivas unidades. Afinal como nos aponta Freire (2009) apud Block&Rauch (2014), não é possível ensinar alguém sem discência, já que a formação docente exige: 18 (...) caráter experiencial de onde se originam saberes, onde se torna imprescindível a percepção de que a relação do professor como sujeito do conhecimento e do aluno como seu objeto não se justifica. Muito pelo contrário, professor e aluno não se limitam a uma relação que os torne objeto um do outro (BLOCK &RAUSCH, 2014). Do ponto de vista metodológico1, a tese foi desenvolvida da seguinte forma: com a premissa de que o grêmio estudantil é uma realidade incipiente no município de São Paulo, procurou-se levantar as variáveis que contribuíram para tal retrocesso. O levantamento bibliográfico e documental foi de suma importância para trazer algumas categorias de análise, como práxis, esperança, política e o princípio do comum, já que fomenta o arcabouço teórico para o trabalho de campo. Posteriormente, levantamentos em campo e visitas a uma escola municipal, fundamentando a ideia de que as políticas educacionais ao mesmo que desterritorializam os grêmios estudantis, criam novos territórios de resistência. Neste sentido, realizou-se pesquisas quantitativas e qualitativas, bem como entrevistas aos envolvidos de maneira mais direta na construção dos grêmios: três ex- gremistas, um professor orientador, um gestor escolar e aplicação de questionário on-line a escola da rede municipal de ensino. Documentos, notícias, blogs estudantis e levantamento em fontes secundárias também fazem parte da metodologia utilizada no trabalho e estão demonstradas no corpo do texto como também em anexo. A pesquisa está organizada em três (3) capítulos. No primeiro (1º) busca-se analisar a ideia de práxis como categoria mediadora para a reflexão sobre os Espaços da Esperança, além da politica a partir da perspectiva de Hannah Arendt e o princípio do comum. Neste sentido, a esperança, a práxis, a política e o comum assumem como eixos norteadores para a territorialização dos grêmios estudantis. No segundo (2º) capítulo, procuramos estabelecer um levantamento sobre os marcos legais e históricos do grêmio estudantil em escala nacional e local, com destaque para o município de São Paulo – SP, além de criar uma interface possível entre a Geografia e os Grêmios Estudantis e, por fim, apresentar detalhadamente a metodologia de pesquisa a partir de um estudo de caso a ser utilizada ao longo do terceiro capitulo. 1 No item 2.8 da referida tese nos aprofundamos sobre os procedimentos metodológicos envolvidos na pesquisa acadêmica. 19 O terceiro (3º) e último capítulo procuramos apresentar e refletir de maneira crítica sobre as múltiplas realidades que envolvem o processo de construção e resistência de um grêmio estudantil a partir de uma unidade escolar. Para além, definimos o grêmio estudantil com as suas respectivas atribuições e funções e foi dedicado para as análises realizadas em trabalho campo. Trata-se, portanto, de um capítulo mais empírico e todo ele analisado sob a égide das contribuições teóricas e de fontes secundárias. As falas dos gremistas, docentes e gestão escolar é analisado a partir dos movimentos de (des) territorialização do grêmio, bem como seus avanços e percalços durante o processo. A tese também conta, além desses três (3) capítulos e dessa introdução, das considerações finais, das referenciais bibliográficos e anexos. 20 Capítulo 1 Composição Teórica Espaços de Esperança, Pedagogia da Liberdade e Territórios do Saber – Perspectiva x Realidade Neste primeiro capítulo, buscamos apresentar através de autores consagrados nas literaturas os elementos gerais no que cerne a base teórica para a referida tese na atmosfera social que envolve a construção dos Grêmios Estudantis. A escolha dos espaços da esperança, práxis, política, princípio do comum e neoliberalismo na educação como ponto de partida tem relação direta com a reflexão das ações gremistas na contemporaneidade. A construção conceitual e espacial dos movimentos estudantis, assim como o aprofundamento das contradições inerentes ao processo, bem como sua resistência em uma realidade complexa, alienante e mediada pelo capital perpassa por trilhar esse caminho conceitual afim de responder como o Grêmio Estudantil é produzido no espaço geográfico. 1.1. Espaços da Esperança A ideia de esperança em seu sentido mais amplo e irrestrito nos traz a perspectiva de um futuro melhor a partir de uma ação individual e ao mesmo coletiva em prol de um objetivo em comum. Define-se esperança como o “ato de esperar aquilo que se deseja obter; expectativa na aquisição de um bem que se deseja; a segunda das três virtudes teologais, simbolizada por uma âncora ou pela cor verde” (ESPERANÇA, 2020). Enquanto substantivo feminino, a palavra esperança se faz mais significante enquanto verbo/ação de esperar e desejar no presente com a intenção de se obter algo no futuro, ou seja, nos traz uma conotação direta da relação entre contemplação e materialidade. Já na perspectiva trazida pelos estudos teológicos da Igreja Católica, esperança nos remete a uma das três virtudes do ser humano – ao lado da fé e do amor, age no sentido de almejar a vida eterna e o Reino de Deus através de uma confiança inabalável nos preceitos do chamado Cristo Salvador. 21 Na perspectiva da psicologia positiva trabalha-se com a ideia de estabelecer as emoções positivas por parte dos estudantes e demais entes envolvidos na comunidade escolar em um sentido de garantir as vivências de emoções positivas que dentro deste contexto trata a esperança como sinônimo de alegria (CINTRA & GUERRA, 2017). Para além disso, há uma interpretação ligada a uma autoajuda disfarçada e que foi cooptada pelo mercado que se apropria da tirania da positividade, no qual esse discurso acaba por supervalorizar construtos relacionados ao bem-estar e rejeitar os déficits ou aspectos negativos da saúde mental (Reppold, 2019). Já na sociologia, o espanhol Manuel Castells (2003), ao interpretar diversas mobilizações sociais populares lideradas por jovens em redes ocorridas no mundo árabe, nos EUA e na Espanha em virtude das crises de representatividade política no início do século XXI, associa a esperança como engrenagem local para a mudança/transformação/ruptura necessária para a ampliação do estado de democracia plena. Neste sentido, afirma que a esperança é “um ingrediente fundamental no apoio à ação com vistas a um objetivo” (CASTELLS, 2013 p. 15). Ao ampliar o debate para atuação dos movimentos sociais em diversas partes do mundo, o autor não aborda a esperança no sentido lato sensu, já que traz o conceito para a práxis espacial no sentido de fomentar ações coletivas aparentemente desarticuladas entre si, mas que no discurso da globalização fazem algum sentido, como uma “onda” de esperança que atinge a todos de maneira significativa, mas que encontra no nó espacial suas conformidades e acomodações. Em suma, a ideia de esperança trazida pelo autor, que diverge das questões preliminares da noção da palavra no sentido de espera, enquanto acomodação ou do ponto de vista teológico que para além da espera, nos traz uma visão contemplativa e mística da realidade a partir de um salvador que irá nos redimir de todos os pecados de nossa existência enquanto indivíduo e humanidade. No entanto, a partir da tentativa de definir o conceito para as diversas áreas do conhecimento, com um viés voltado para a Educação, é fundamental neste momento já afirmar de antemão que utilizaremos ao desenrolar da tese a ideia de práxis como categoria mediadora para a reflexão sobre os Espaços da Esperança trazidas por Harvey (2004). Como modo de anteciparmos a discussão sobre o conceito de Esperança, 22 oferecemos mais um exemplo axiológico do pensamento freiriano. Nas palavras de Paulo Freire (2014): É preciso ficar claro que a desesperança não é maneira de estar sendo natural do ser humano, mas distorção da esperança. Eu não sou primeiro um ser da desesperança a ser convertido ou não pela esperança. Eu sou, pelo contrário, um ser da esperança que, por “n” razões, se tornou desesperançado. (FREIRE, 2014, p.71) Há, nesse excerto, uma clara afirmação de inversão de valores, uma transmutação axiológica falsa, que tem em si uma teleologia que difere da teleologia freireana. Os seres humanos são, por natureza, seres da Esperança, a desesperança é que não é natural. O que nos torna, por vezes, seres da desesperança é a desvalorização da Esperança como possibilidade real do ser mais dos homens e das mulheres em sua práxis. A desesperança só existe quando há uma negação, socialmente posta, da possibilidade de outro telos histórico. Fazendo-se e refazendo-se no processo de fazer a história, como sujeitos e objetos, mulheres e homens, virando seres da inserção no mundo e não da pura adaptação ao mundo, terminam por ter no sonho também um motor da história. Não há mudança sem sonho, como não há sonho sem esperança (FREIRE, 2011, p. 126, grifo do autor). O subtítulo anterior, onde tratamos das dimensões do pensamento freiriano, fez-se necessário para que agora seja viável a explanação do conceito de Esperança nas obras do autor que nos dedicamos a estudar. Cabe dizer, nessa altura da discussão, que à noção de Esperança está intimamente ligado ao sonho. Essa relação é recíproca, complementar e dialógica. Não se trata de conceitos metafísicos de caráter inalcançável ou desligados da realidade. Na concepção freiriana, tanto a Esperança quanto o Sonho são atos políticos de caráter histórico e social. “A questão que se coloca é saber se, quem sonha, está sonhando um possível histórico. Segundo, se, quem sonha, está lutando para possibilitar o que está sendo impossível hoje” (FREIRE, 1985, p. 20). Ao conceito de Esperança é necessário o entendimento da historicidade do ser, pois é na luta que reside o possível histórico. O impossível hoje não significa o eterno impossível; por isso, a Esperança deve ser entendida a partir da realidade objetiva dos seres humanos que emergem do mundo, que o admiram, que o enxergam de dentro, que colocam para si uma teleologia pautada na axiologia contrária ao que está 23 legitimado. O conceito de Esperança concita ao movimento, não à espera estática. Para que seja evitado qualquer dispêndio cognitivo na apreensão deste conceito, afirmamos que Esperança, no sentido freiriano do termo, não é sinônimo do verbo “esperar”, mas do verbo “transcender”. Porém, é um erro apreender o conceito de Esperança enquanto promessa que leva os oprimidos a serem opressores; isso “se verifica, sobretudo, nos oprimidos de ‘classe média’, cujo anseio é serem iguais ao ‘homem ilustre’ da chamada classe ‘superior’” (FREIRE, 2014b, p. 68). O projeto freiriano quer inviabilizar todas as formas de opressão e não uma mera inversão de papéis em que o oprimido se torne um opressor. A Esperança é um conceito que carrega os traços encharcados das dimensões do pensamento freiriano. Por exemplo: i) enquanto teleologia, a Esperança rompe com a lógica do simples esperar; é propulsora da luta e da resistência ao fatalismo neoliberal que proclamou o fim da história e a necessidade de adaptação ao que está posto; ii) como axiologia, a Esperança jamais tornar-se-á desesperança ou desespero; dá novos sentidos à vida humana e às relações sociais (econômicas, políticas e culturais), pois integra a comunidade humana no seio da igualdade e da ética universal do ser humano; iii) num sentido epistemológico, a Esperança desperta a curiosidade, faz do sujeito cognoscente um cético quanto ao determinismo; a Esperança transforma-se em busca permanente e promove a consciência crítica do inacabamento do Ser. Num sentido estético, a Esperança desperta a experiência da sensibilidade ética, do imperativo da subjetividade inconformada com o saber que não ultrapassa a aparência dos objetos cognoscíveis e quer ser mais. A Esperança também dá legitimidade à raiva sentida pela negação do amanhã, do sonho que é impossibilitado pela ganância da exploração, do autoritarismo opressor que faz ser menos. A única ligação da Esperança com a espera é a luta: enquanto lutamos, esperamos; enquanto esperamos, lutamos. Assim, lançamos a premissa hipotética de que, se a Esperança é a luta consciente pela mudança, é autêntica sua ligação com a Educação. 24 1.2 Práxis O conceito de práxis é utilizado por diversos autores com significados diferentes desde a Grécia Antiga até as correntes marxistas mais atuais, perpassando por diversas áreas do conhecimento – como a economia, sociologia, filosofia, pedagogia dentre outros. De maneira comum, é associada a tudo aquilo que tem a ver com a ação. Ação esta entendida por ser concreta e objetiva de natureza prática. Ou seja, não é excepcional dentro das pesquisas de natureza acadêmica ou empresarial, os pesquisadores e palestrantes trabalharem com a dicotomia discurso x práxis com duas prerrogativas básicas. A primeira prerrogativa é de que o mérito das atividades humanas está atrelado a sua prática enquanto ação, seja na construção de hábitos diários, na implantação de projetos arquitetônicos, na aplicação de avaliações no ambiente escolar ou na realização de atividades físicas em prol da melhoria da qualidade de vida. A segunda é a ideia da epistemologia da prática, em que a prática acaba sendo a reflexão prática sobre a própria prática. Independentemente de como ele atua, é notório que sua antítese trabalha na ideia de discurso, enquanto uma teoria que não dialoga com a realidade, de natureza panfletária ou midiática, atrelada a questão da demonstração de poder por uma falsa liderança pela fala e não pela ação. Quantas vezes nos deparamos com as diversas linhas da psicologia da educação que trabalham com a ideia de que a criança não aprende pelo discurso e sim pela prática copiada por uma figura de referência. No entanto, quando partimos para a análise da origem da palavra e no contexto em que lhe foi atribuída sentido no sentido filosófico, cabe destaque para a Grécia Antiga, na figura de Aristóteles. Segundo Yarza (1986), a práxis aristotélica apresenta dois significados em sua origem. O primeiro associado as “operaciones cognoscitivas que merecen por su absoluta inmanencia la calificación de praxis perfectas, que se oponen por esa misma razón a los movimientos transitivos o kínesis” e o segundo as “acciones éticas o morales del hombre” (YARZA, 1986, pág. 153). Nessa passagem, o autor nos aponta a práxis aristotélica como as atividades 25 de natureza transitiva que apresentam sua finalidade numa obra exterior quando ela mesma cessa, ou seja, há uma produção (poiêsis) como por exemplo cozinhar, pintar ou construir uma casa. Vale complementar que este primeiro significado traz em si uma noção de práxis inacabada já que apesar do exercício cognitivo do homem, o mesmo esbarra na apreensão do objeto exterior, que reverbera por si só o resultado da ação a partir do fim que lhes é dado. Para exemplificar, tomamos o ato de refletir de maneira consciente manifestado na prática de cozinhar, que na perspectiva aristotélica, se torna práxis a partir do momento que seu fim é atingido: no caso, servir de alimento para uma determinada pessoa ou sociedade. Além disso, a práxis aristotélica serve para designar as atividades de natureza intransitiva ou morais dependentes diretamente da atuação do indivíduo em um sentido completo ou pleno e, consequentemente, menos atreladas a realidade exterior. Podemos tomar como exemplo o ato de ver, pois: “o fim da vista é a visão não se produz nenhuma obra diferente da vista” (BARBOSA, 2011, p. 53). Ora, quando analisamos o fim da vista como visão, o mesmo não se faz na ideia de cozinhar por exemplo, já que nos abre uma multiplicidade de finalidades. Em suma, a perspectiva de práxis aristotélica que abordaremos na tese enquanto pano de fundo para as reflexões a seguir gira em torno da sabedoria prática e consciente no sentindo amplo e não em contraponto a uma teoria a priori. Já avançando nos estudos, nos remeteremos agora à práxis enquanto perspectiva marxista que se baseia no materialismo dialético da tríade Reflexão - Ação – Reflexão com orientação revolucionária, ou seja, a teoria transformada em realidade. O objetivo da práxis marxista é transformar o mundo e, caso a mesma não se efetive, gera em si duas situações - o academicismo, onde a teoria não dialoga para além dos muros da Universidade atingindo assim sua incompletude - e o vanguardismo, onde um grupo dirigente dos pensamentos marxistas de maneira rígida e não democrática decide o que é aplicado na realidade. É importante frisar o contexto histórico em que Marx desenvolveu sua tese sobre a relação capital x trabalho e, principalmente, com o objetivo de propor do ponto de vista prático uma alternativa para o capitalismo enquanto sistema hegemônico. 26 Tal alternativa só se tornaria viável a partir da tomada de consciência de classe enquanto proletário ou trabalho em contraposição aos capitalistas afim de fato atingir a práxis enquanto ação destinada à transformação da realidade. É importante já mencionar neste ponto que a práxis marxista não se reduz meramente a transformação da realidade por si só, mas há uma ação orientada por uma teoria que procura dialogar com a realidade vigente. Portanto, se os contextos sócio-históricos mudam é fundamental que a práxis também mude, afim de dialogar com um maior número de pessoas e, veremos, que apesar da definição aparentemente simples, a realidade se torna mais complexa para a efetivação da proposta de práxis marxiana. Outro autor que aborda a práxis do ponto de vista marxista é o italiano Antônio Gramsci. A categoria mediadora é abordada para trabalhar alguns temas de suma importância ao longo de sua vida – como a consciência de classe, materialismo histórico, o próprio historicismo e o economicismo. Viveu em um contexto de urbanização e industrialização típica do final do século XIX, ascensão do fascismo na Itália e vislumbrou a Revolução Russa como perspectiva real e efetiva dos preceitos ideológicos de Marx. Sobre a ideia de classe trabalhadora, Gramsci afirma que a mesma possui duas formas de consciência – uma orientada pelas ideias e outra informada pela prática - mediada diretamente pela realidade vigente. Quando há uma desconexão entre as consciências (sem práxis), elas entram em contradição e fica impossível interpretar a realidade de maneira crítica sujeito as ideologias das elites acreditando que basta trabalhar muito que conseguirão vencer no capitalismo. Partindo desta premissa, é importante afirmar de maneira introdutória que a práxis gramsciana é a conexão direta entre os ideais e a prática como forma de ruptura do “status quo”. Vale frisar neste momento que grande parte das referências gramscianas utilizadas na tese se baseiam no Dicionário Gramsciano de Liguori e Voza (2017), já que grande parte dos textos originais do autor foram escritos em cárcere e destruídos em sua maioria pelo regime fascista de Mussolini. Feita a ressalva, para amparar suas discussões, a filosofia da práxis entra em cena como uma nova estrutura pilar para o materialismo histórico, que na tentativa de se tornar popular e atraente no inicio do século XX, se apropria dos preceitos 27 filosóficos da época – idealismo, positivismo e materialismo para superar suas próprias contradições trazidas na construção de sua matriz original. Sobre a filosofia da práxis, Gramsci (2017) afirma que: “(...) a ‘matéria’ não deve ser entendida nem no significado que resulta das ciências naturais [...] nem nos significados que resultam das diversas metafisicas materialistas [...]. A matéria, portanto, não deve ser considerada como tal, mas como social e historicamente organizada pela produção e, desta forma, a ciência natural deve ser considerada essencialmente como uma categoria histórica, uma relação humana” (LIGUORI e VOZA, 2017, p.154) Como dito anteriormente, a tomada de consciência é fundamental para a interpretação da filosofia da práxis, mas também aborda a revisão do materialismo histórico como filosofia original e articuladora da compreensão da matéria como social e histórica indissociada das chamadas ciências naturais/brutas. O avanço se dá na interpretação da matéria, antes abordada como uma totalidade existente para a ideia de processo histórico organizado para a produção como relação eminentemente humana. Além disso, soma-se as críticas o fato de o marxismo clássico abordar a relação homem-matéria de maneira não proporcional já que focou mais na primeira parte em detrimento do “apagamento” da segunda, aferindo um caráter historicista de Marx. Complementa-se (2017): “Nem o monismo materialista nem o idealista, nem ‘Matéria’ nem ‘Espírito’ evidentemente, mas ‘materialismo histórico’, isto é, atividade do homem (história) [espírito – ndr] em concreto, isto é, aplicada a certa ‘matéria’ organizada (forças materiais de produção), à ‘natureza’ transformada pelo homem. Filosofia do ato (práxis), não do ‘ato puro’, mas exatamente do ato ‘impuro’, isto é, real no sentido profano da palavra” (Q 4, 37, 455). Se a filosofia da práxis deu um passo à frente, o mais importante, porém, resta por ser feito: essa filosofia “ainda atravessa sua fase popular [...] é a concepção de um grupo social subalterno [...] sempre aquém da posse do Estado, do exercício real da hegemonia”. O problema da afirmação tanto teórica como prática coincide com a questão da superação da antinomia vulgarização- alta cultura: isto é, a passagem da subalternidade à hegemonia (LIGUORI e VOZA, 2017, p.163) Neste sentido, na perspectiva gramsciana a filosofia da práxis ainda se encontra em uma fase de disseminação já que os subalternos ainda não superaram a vulgarização e a marginalidade que o Estado e o Capital articulado os submetem. 28 No que tange a área da Educação, Gramsci elabora a ideia de “intelectual orgânico”, para além de uma visão meramente academicista, o autor aborda a necessidade de que a função social primária da Educação é a de formar um homem preocupado a priori com as questões do cotidiano e, posteriormente, para uma visão de mundo mais reflexivo-teórica. Em uma perspectiva marxista gramsciana, o formador do educador tem por essência promover através das experiencias cotidianas, as reflexões necessárias para as classes proletárias. Para além de uma mera reflexão, o formador do educador é responsável por gerir uma práxis pedagógica voltada para expandir e elaborar meios de se tomar uma ação contra sistêmica. Na perspectiva freiriana (1982), para isso é fundamental a transição de uma consciência ingênua para uma consciência crítica. Sobre o tema, o autor define: A consciência crítica é “a representação das coisas e dos fatos como se dão na existência empírica. Nas suas correlações causais e circunstanciais”. “A consciência ingênua (pelo contrário) se crê superior aos fatos, dominando-os de fora, se julga livre para entendê- los conforme melhor lhe agradar” (FREIRE, 1982a: 138). Neste sentido, ao formador do educador lhe cabe a função de aprimorar a superação do ego, de suas crenças e certezas individuais para uma concepção de mundo que se exterioriza através de uma práxis pedagógica. Em suma, o compartilhamento das experiencias, atrelado a uma tomada de consciência por parte do formador do educador, do educador e do educando se tornam uma simbiose ideal para uma perspectiva de mundo mais reflexiva, prática e libertadora. Como veremos no desenrolar da tese, a efetivação da filosofia da práxis é o grande ponto de encontro para a efetivação da educação que queremos para as futuras gerações no que tange as relações democráticas e os espaços de mediação. Sobre educação e a práxis como perspectiva de análise, trouxemos para o debate Paulo Freire, com vasta experiência na área da Educação é atualmente o terceiro pensador mais citado no mundo em universidades da área de Ciências Humanas. Durante o período de exílio militar realizado no Chile (1964-1969), aprofundou suas leituras marxistas em torno do materialismo histórico dialético onde entende inicialmente a práxis como uma unidade dialética entre teoria e prática, ou seja, 29 atuação que é informada pela teoria, impacta a realidade de forma a informar a teoria também. Atuação que confronta contradições e que resolve tais contradições. Para de fato atuar no sentido resolutivo das contradições vigentes, assim como Gramsci, Freire em diversas obras retoma o conceito de consciência inicialmente na perspectiva gramsciana do foco às ideias – como interiorização de uma visão de mundo libertária para atingir posteriormente na direção de uma práxis educacional afim de atingir a origem da opressão. Munido de uma consciência crítica e libertária, o oprimido passa a lutar por um futuro distante da realidade que esta posta diante dos seus olhos, daí deriva a unidade dialética entre teoria e prática. 1.3 O Conceito de Política a partir de Hannah Arendt Antes de iniciarmos o debate acerca do conceito de política a partir de Hannah Arendt, é necessário fazer uma breve contextualização do conceito. A política surge junto com os primeiros agrupamentos sociais, isso porque assim que se viram em uma relação de dependência, indivíduos pontuais procuraram tomar o controle das situações e se tornarem os líderes de seus grupos. Essas vieram a serem as primeiras ações humanas que poderiam ser chamadas de “atos políticos”, milhares de anos depois o conceito de política se tornou tão complexo quanto à sociedade em que ele está inserido. Teixeira (2009) coloca em discussão a pluralidade do conceito de política através da adoção da nomenclatura “políticas”. Isso porque, muitas instituições, indivíduos e até atos podem ser considerados políticos: o congresso nacional é um ambiente político, um vereador é um político e o voto é um ato político. Indo ainda mais além, o autor afirma que todas as ações, instituições e indivíduos que estiverem ligados às relações públicas podem ser considerados políticos. O autor faz uso dos conceitos de classe social, os papeis de dominância dos meios de produção e a perpetuação das concentrações de renda para pontuar os pilares da política moderna. A linha de pensamento em busca de esclarecer o que seria o conceito de “fazer política”, colocando como exemplo a igreja que, apesar de não ser uma instituição propriamente política, sempre agiu de forma política em busca da capitação e conservação de seguidores. Sendo assim, o “fazer política” pode ser colocado como 30 ações executadas em busca da obtenção de benefícios que derivem do coletivo, de modo geral (TEIXEIRA, 2009). Para além do pragmatismo acadêmico, nos aprofundamos sobre o entendimento sobre o conceito de política a partir de Hannah Arendt, uma das mais importantes filósofas políticas do século XX, com enfoque na área de educação. Apresentou uma abordagem original e provocadora em relação ao conceito de política. Sua visão rompe com as abordagens tradicionais e propõe uma compreensão da política como um espaço de ação coletiva, liberdade e pluralidade. Arendt rejeita a visão da política como mera questão de exercício do poder ou de negociação de interesses particulares. Em vez disso, ela enfatiza a importância da política como uma esfera fundamental da vida em sociedade, onde os indivíduos podem se engajar em atividades públicas, deliberar sobre questões comuns e exercer sua capacidade de agir e interagir com os outros (Vaccaro, 2015). Concebemos a escola pública por excelência como um território do saber, a potencialidade do conceito de Arendt traz grande luz para a fundamentação teórica e ação prática na esfera do cotidiano para os grêmios estudantis, visto que este se apresenta como a materialidade da política na perspectiva arendtiana. Um dos conceitos no pensamento de Arendt é a "esfera pública", que representa o espaço onde os cidadãos podem se reunir e se engajar em discussões políticas. A esfera pública é vista como um espaço de liberdade, onde os indivíduos podem expressar suas opiniões e participar ativamente das decisões coletivas. É nesse contexto que a política adquire sua importância, ao possibilitar a ação conjunta e a construção de um mundo comum (DETONI, 2016). Gostaríamos de ampliar o enfoque de Arendt para “as liberdades” que se manifestam na esfera do cotidiano da escola pública, que lida com a diversidade e pluralidade de ideias, religiões, identidades de gênero, condições socioeconômicas dentre outras. Daí o desafio e as potencialidades que o grêmio estudantil assume enquanto representação de uma coletividade diversa e multifacetada. Arendt em suas obras também destaca a importância da ação política como uma manifestação da condição humana. Para ela, a ação política vai além da mera ação instrumental, que visa a alcançar um objetivo específico. A ação política é um fim em si mesmo, uma forma de expressão da liberdade e da pluralidade humana. 31 Através da ação política, os indivíduos exercem sua capacidade de iniciar algo novo, de trazer inovação e transformação para o mundo (DETONI, 2016). Ao se confrontar com a implantação de um grêmio estudantil, a comunidade escolar se depara com a necessidade desenfreada de construção de pautas unificadas, projetos de intervenção cultural, construções e/ou reformas nos equipamentos esportivos, dentre outros. No entanto, a própria (des) construção de uma chapa já torna a ação política, visto que mobiliza sonhos, perspectivas e interesses coletivos diante de uma realidade que não está posta. Complementa-se que Arendt destaca que somos seres únicos, diferentes uns dos outros, e é na esfera política que podemos expressar e reconhecer essa diversidade. A política, nesse sentido, é um espaço de encontro e diálogo entre diferentes perspectivas, onde a pluralidade de opiniões e visões de mundo é valorizada. Neste sentido, a política não deve ser deixada apenas para os especialistas ou para os detentores do poder institucional. Todos os cidadãos têm o direito e a responsabilidade de participar ativamente da esfera política, contribuindo com suas opiniões, questionamentos e propostas. A participação cidadã fortalece a democracia e a tomada de decisões coletivas. No que tange o ambiente escolar do município de São Paulo, a SME e os gestores nas unidades escolares representam os detentores do poder institucionalizado, entretanto, poucos de fato se debruçam para a especialização teórica e principalmente para o exercício das políticas necessárias para cada escola da rede municipal. O conceito de política segundo Hannah Arendt vai além das abordagens convencionais, enfatizando a importância da ação coletiva, da liberdade, da pluralidade e da participação cidadã. Através da obra de Ana Paula Repolês Torres, é possível aprofundar-se nessa visão crítica e transformadora, compreendendo como a política pode ser um espaço de construção de um mundo comum, onde os indivíduos podem expressar sua liberdade e agir em conjunto para transformar a realidade (SILVA, 2021). Portanto, perceberemos ao longo do Capítulo 3 (três) que a atuação dos GE esbarra na burocratização dos especialistas e detentores do poder, no caso, a SME e 32 nos movimentos de manifestação do coletivo a da autonomia dos estudantes antes, durante e depois da participação do projeto. 1.4 A Noção de Comum e Neoliberalismo na Educação Não poderíamos deixar de mencionar na presente tese, as recentes tentativas por parte das políticas neoliberais de gerar o esvaziamento do papel político da escola pública ao longo do século XXI em nosso país. Diversos movimentos, como o “Escola Sem Partido”, lotados na ideia da doutrinação marxista e ideologia de gênero trazem em si, uma pretensa neutralidade que projeta uma educação que é incapaz de intervir no mundo e, por isso, torna-se cúmplice das injustiças e das violências que nele ocorrem (MIGUEL, 2016). Após diversas tentativas de cercear o trabalho docente teve seu projeto de lei arquivado no final do ano de 2018 e depois de mais de uma década ativo, decidiu suspender suas atividades em 1º de agosto de 2019. Segundo Miguel Nagib, coordenador do projeto, desde o fim das últimas eleições presidenciais, Jair Bolsonaro não “tocou mais no assunto”. De acordo com ele, sem o apoio do Presidente da República, o movimento tem poucas chances de avançar. É o que esperamos! No entanto, apesar do arquivamento do projeto a nível federal, alguns municípios aprovaram o projeto de maneira institucionalizada e não legitimada, já que os professores da educação básica sofrem diversas ameaças por parte de gravações ilegais em busca de uma falsa neutralidade da escola. Posto isso, o GE enquanto materialidade política na perspectiva arendtiana se depara com uma realidade cada vez mais ancorada na ideia do indivíduo, do mérito, do protagonismo, do projeto de vida, ou seja, a escola, o estudante, o professor ou até o próprio grêmio estudantil se tornam massa de manobra ou obstáculo para os grandes objetivos do neoliberalismo para além dos aspectos econômicos. Afim de dar conta do grande desafio que a escola pública assume nos dias atuais, é necessário abordar o conceito do comum como perspectiva teórica e prática para a atuação dos grêmios estudantis na esfera local. No livro "Comum: ensaio sobre a revolução no século XXI", encontramos uma análise específica sobre a aplicação do conceito de comum na educação. Essa obra nos permite compreender como a noção 33 de comum pode contribuir para repensar as práticas educativas, promovendo uma perspectiva mais colaborativa, participativa e emancipatória (Dardot e Laval, 2020). Para tal, o comum se depara com o neoliberalismo que pode ser compreendido de maneira geral como uma ideologia econômica e política que enfatiza a primazia do mercado, a privatização dos serviços públicos e a competição como princípio organizador da sociedade. Na área educacional, isso se traduz em políticas de mercantilização e redução da educação a uma mera mercadoria, onde o valor é medido em termos de resultados quantitativos e produtividade (MAZETTO, 2015). Se a educação se torna uma mercadoria, todos os seus componentes materiais e imateriais formam uma densa e complexa cadeia de suprimentos necessários para a manutenção de um status quo amparado na lógica da meritocracia e da valorização do indivíduo em detrimento do questionamento da realidade enquanto possibilidade de transformação. Em contrapartida, a noção de comum busca resgatar a ideia de que certos recursos e bens devem ser compartilhados e geridos de forma coletiva. O comum representa uma forma de organização social baseada na cooperação, na solidariedade e no reconhecimento dos direitos coletivos. No âmbito educacional, a perspectiva do comum desafia a lógica do neoliberalismo, ao propor uma educação que valorize a colaboração, o diálogo e a participação ativa dos sujeitos envolvidos no processo educativo (LINHARES, 2020). Neste sentido, o grêmio estudantil deve carregar em sua essência o princípio do comum não apenas enquanto algo que pertence a todos, geral, coletivo ou público. Mas de fato, se apropriar do comum enquanto possibilidade de enfrentamento para as estruturas normativas e práticas neoliberais que se apropriam da educação pública neste século. Afim de complementar a ideia, um dos principais aspectos explorados por Dardot e Laval (2020) é a noção de compartilhamento do conhecimento. A partir da visão do comum, o conhecimento deixa de ser uma mercadoria limitada e exclusiva, passando a ser visto como um bem comum, acessível e compartilhável por todos. Essa abordagem questiona a lógica da propriedade intelectual e incentiva práticas de colaboração e construção coletiva do conhecimento (ŽIŽEK, 2015). Apesar da educação ser um direito alienável em nosso país, o conhecimento formal é um privilégio em nosso país, visto que a evasão ou abandono escolar faz 34 parte do cotidiano das escolas brasileiras, sobre isso Silva Filho e De Lima Araújo (2017) afirmam: Fatores internos e externos, como drogas, tempo na escola, sucessivas reprovações, falta de incentivo da família e da escola, necessidade de trabalhar, excesso de conteúdo escolar, alcoolismo, localização da escola, vandalismo, falta de formação de valores e preparo para o mundo do trabalho, podem ser considerados decisivos no momento de ficar ou sair da escola, engrossando a fila do desemprego. (SILVA e ARAÚJO, 2017, pag. 36) Diante de uma realidade tão avassaladora que se apropria dos jovens brasileiros, os movimentos estudantis, mais especificamente os grêmios estudantis se deparam para além das questões de natureza global e os processos neoliberalizantes, com os enfrentamentos de natureza local, como os próprios desafios pessoais dos alunos gremistas, bem como a realidade da comunidade escolar na qual estão envolvidos, como veremos mais adiante no desenvolvimento da tese. Para além disso, a noção de comum na educação visa promover a autonomia dos sujeitos e a democratização das decisões. Ela propõe a valorização das vozes e experiências dos estudantes, professores e demais membros da comunidade educacional, buscando uma participação efetiva e igualitária de todos. Essa abordagem desafia a concepção tradicional de educação como um processo hierarquizado, em que o conhecimento é transmitido de forma unidirecional (ŽIŽEK, 2015). É importante reconhecer os desafios e contradições da perspectiva do comum na educação. A lógica do neoliberalismo ainda exerce uma forte influência sobre as políticas e práticas educacionais, o que pode dificultar a concretização de propostas mais colaborativas e participativas. É necessário refletir sobre as questões de governança e gestão do comum, garantindo que sua aplicação não recaia em formas de autoritarismo ou exclusão. Ao analisar essa temática, é fundamental reconhecer as complexidades e desafios envolvidos, mas também as possibilidades de construir práticas educativas mais justas, inclusivas e democráticas. (Dardot e Laval, 2020). Portanto, para superar a influência do neoliberalismo requer esforços coletivos e uma reflexão crítica sobre as estruturas e dinâmicas que sustentam o sistema atual. Diante disso, é fundamental que pesquisadores, educadores e formuladores de políticas públicas se engajem em diálogos e práticas que promovam a compreensão e a aplicação dos conceitos de comum na educação afim de minimizar as mazelas sociais em nosso país. 35 1.5 Estado da Arte: Grêmios Estudantis na Geografia: interfaces e conexões O Estado da Arte é um dos componentes mais importantes de qualquer trabalho científico, uma vez que procura referenciar o que já se tem descoberto sobre o tema pesquisado. Neste sentido, consideramos para a referida tese não somente realizar um levantamento bibliográfico acerca de palavras-chave, mas de fato refletir sobre as possibilidades de conexão e interface entre os Grêmios Estudantis e a Geografia. Segundo Salomon (1991), a atitude científica se dá em dois momentos distintos: a primeira quando deixa de ser por um momento um pesquisador e se torna filósofo do seu próprio trabalho e o segundo, quando evitamos por um momento técnicas de pesquisa que já estamos habituados em detrimento da busca por recursos da lógica da demonstração. Neste sentido, procuramos a priori realizar um levantamento prévio no catálogo de teses e dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). No ato de refino da pesquisa, procuramos trabalhar com a palavra- chave: Grêmio Estudantil apresentadas na área da Geografia. Desconsiderando a palavra-chave inserida em outros contextos, de fato encontramos apenas 3(três) dissertações de mestrado e 1(uma) tese de doutorado compreendidas entre os anos de 1987 e 2023. A primeira delas é a dissertação de mestrado de Silva (2015), na qual procura compreender as representações sociais da juventude estudantil a respeito da escola e de seu vínculo com o trabalho formal. Os sujeitos da pesquisa foram compostos por estudantes da 3ª (terceira) série do ensino médio regular das escolas da rede pública de ensino na Região Administrativa do Gama-DF e a ideia do autor foi a de estabelecer conexões entre o mundo do trabalho e a cooptação da juventude frente as políticas neoliberais. A segunda delas é a dissertação de mestrado de Silva (2019), na qual procura entender como o projeto de reforma “Reorganização” escolar de 2015 reproduz a desigualdade socioespacial em Sorocaba-SP, mais especificamente no entorno de uma escola na periferia da cidade. Apesar do enfoque do trabalho ser mais voltado 36 para a relação entre escola e espaço urbano, o autor posiciona a importância do grêmio estudantil através de entrevistas e questionários para a construção de espaços de diálogo e resistência. Assim como o segundo trabalho, a dissertação de mestrado de Queiroz (2020) buscou apreender as ocupações escolares em 2015 tendo como referência algumas escolas estaduais que foram ocupadas pelos estudantes do Estado de São Paulo. O foco da pesquisa girou em torno do conceito de espaço e território a partir da tática de luta contra o neoliberalismo e dando ao conceito de espaço uma posição estratégica como forma de resistência nas cidades aos ditames do sistema de capital. Por fim, novamente Silva (2021), dando continuidade aos seus estudos produz a tese de doutorado intitulada por: “A motivação para aprender no ensino de Geografia: o posicionamento da juventude estudantil em relação as metodologias de ensino em escolas públicas do Gama-DF”. Neste trabalho, o autor procura analisar as metodologias de ensino empregadas nas aulas de Geografia, com o intuito de identificar aquelas que mais motivam os estudantes para as aulas, de acordo com o posicionamento da juventude estudantil, em duas escolas públicas de Ensino Médio na Região Administrativa do Gama - DF. Apesar do grêmio estudantil não ser o principal enfoque da pesquisa, a tese se apresenta como material de referência para consolidar os estudos entre o ensino de geografia e a juventude brasileira na atualidade. Posto isso, em seguida realizamos um levantamento prévio de periódicos, apresentações de trabalho em eventos, capítulos de livros, dentre outros na plataforma do Google Scholar a partir da mesma premissa anterior, ou seja, trabalhar com a palavra-chave: Grêmio Estudantil apresentadas na área da Geografia. Desconsiderando a palavra-chave inserida em outros contextos, de fato encontramos apenas 3(três) artigos. O primeiro deles é Oliveira (2020), no qual salienta o papel político da escola na formação de indivíduos que compreendam e valorizem o bom funcionamento de uma democracia a partir da realidade carioca, mais precisamente no Colégio Pedro II. O Colégio Pedro II é uma instituição de ensino público federal do Brasil, localizada na cidade do Rio de Janeiro. Fundado em 1837, é uma das instituições de ensino mais antigas e tradicionais do país. 37 Em seguida, temos dois trabalhos de Estágio Supervisionado de Geografia, tanto Scheibe e Silva (2015), quanto Oliveira e Morais (2021) onde procuram retratar em realidades distintas no ambiente escolar e, ao meu ver, de maneira superficial, a atuação dos grêmios estudantis no Ensino Médio frente a greves e situações de vulnerabilidade dos estudantes. Além disso, acessamos a Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD) e a Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP e desconsiderando a palavra-chave inserida em outros contextos, não encontramos nenhum trabalho. A partir do momento em que ampliamos nosso olhar para além da área da Geografia, o universo de pesquisas se amplia, principalmente em estudos ligados a História, Pedagogia, Filosofia e Ciências Sociais. Daremos destaque para aquele que mais se aproxima de nossa realidade. Estamos falando da dissertação de mestrado em Educação: História, Política, Sociedade de Amália Galvão Idelbrando, datada de 2012, intitulada por: “O grêmio estudantil de uma escola municipal de ensino fundamental de São Paulo e a relação no processo de formação da cidadania dos alunos”. Graduada em Letras, a autora procura verificar qual a relação entre as ações de um Grêmio Estudantil de uma Escola Municipal de Ensino Fundamental de São Paulo e o processo de formação da cidadania dos alunos. Por fim, a partir do estado da arte, podemos inferir que a presente tese se apresenta como inédita na temática dos Grêmios Estudantis ligadas à área da Geografia. Principalmente quando considerarmos as manifestações em realidades do Ensino Fundamental II no município de São Paulo, com o enfoque para uma linha do tempo, desde a criação, construção e resistência de um coletivo em tempo real. Daí as categorias geográficas como espaço e território ganham sentido a partir da realidade escolar. 38 Capítulo 2 Os Grêmios Estudantis na Busca pela Gestão Democrática A democracia na gestão do ensino, uma questão de importância indubitável no panorama atual, assume particular pertinência nos contextos pedagógicos. Inseridos nessa dinâmica, os grêmios estudantis surgem como os protagonistas imprescindíveis na catalisação da democracia escolar, instigando a participação enfática dos discentes na esfera educacional. Em uma meticulosa análise das organizações democráticas, revela-se apropriado interpretar os grêmios estudantis como epicentros de um poder desprovido de centralidade, que asseguram uma corrente contínua de comunicação entre a coletividade discente e a administração pedagógica no ambiente escolar. Eles atuam como mensageiros da representação, expressão e ação estudantil, convertendo-se em componentes indispensáveis para a formação cidadã e a fomentação de uma consciência crítica na parcela jovem da população (SILVA; SANTOS, 2019). Segundo Virginio e Keller (2016) a despeito de sua importância, há um perigo latente no fato de os grêmios estudantis desempenharem um papel preponderante no panorama educacional: há uma suposição subjacente de que eles detêm a capacidade de concretizar a experiência democrática, materializando o conceito de democracia participativa. Em teoria, eles desempenham a função de um canal profícuo para a edificação de lideranças e a realização de decisões coletivas, promovendo a influência estudantil nas políticas escolares. Entretanto, a existência de estruturas hierárquicas internas e a possível ausência de participação igualitária de todos os estudantes podem desafiar essa suposição. Os grêmios estudantis são, ademais, ferramentas proclamadas de inclusão e equidade. Ao proporcionar voz aos estudantes, tais organizações propõem um ambiente onde todos se sintam ouvidos e representados. A presença desses conglomerados dentro do ambiente escolar ostenta um compromisso declarado com a pluralidade, incentivando a edificação de um espaço de aprendizagem mais inclusivo e democrático. Contudo, cabe questionar até que ponto essa inclusão e equidade são efetivamente realizadas na prática (VIRGINIO; KELLER, 2016). 39 Segundo Lima et al., (2011) a intervenção dos grêmios estudantis no planejamento e na efetivação de políticas escolares é um elemento crucial para uma administração pedagógica transparente e diligente. Esta participação discente na formulação de decisões incrementa a legitimidade das políticas implementadas e incita um maior envolvimento dos estudantes com o ambiente escolar. No entanto, a maneira como essas políticas são negociadas e implementadas pode levantar questões sobre o equilíbrio de poder e a autêntica natureza democrática da gestão escolar. Embora seja incontestável que os grêmios estudantis representam pilares vitais para a gestão democrática, estimulando a participação incisiva dos estudantes no procedimento de tomada de decisões e no funcionamento da instituição escolar, é preciso exercer uma vigilância crítica. Eles têm a capacidade de contribuir para a edificação de um ambiente de aprendizado participativo, inclusivo e democrático, mas é necessário questionar constantemente e avaliar a sua eficácia e equidade em termos práticos (VALENTE NETO et al., 2015). Posto isso, vale frisar que os grêmios estudantis para além da concepção conceitual abrange marcos legais e um legado histórico em um sentido mais amplo (do nível básico ao nível superior) que viabilizam sua existência e sua resistência diante dos desafios que perpassam na atualidade, é o que veremos a seguir. 2.1 Grêmios Estudantis: Marcos legais e históricos: do surgimento à Ditadura Militar O movimento estudantil exerce papel importante na memória dos povos ao longo da formação territorial das nações. Além disso, contribui diretamente na consolidação de interesses dos jovens na organização da sociedade vigente afim de tornar a realidade menos desigual e justa. Ao longo da história do Brasil, frente ao levantamento bibliográfico nos deparamos com algumas datas de suma importância para a consolidação dos movimentos estudantis, bem como a chegada do Grêmio Estudantil na esfera estadual e municipal. No qual podemos elencar: 40 Séc. XVIII • 18 de setembro de 1710 – Em um contexto de Brasil Colônia, houve uma tentativa frustrada de invasão francesa na costa do Rio de Janeiro onde se havia recém-descoberto minas de ouro. Na incursão em direção a residência do Governador Francisco Morais, a Companhia de Estudantes, formada por alunos jesuítas lideradas pelo militar Bento do Amaral Coutinho expulsou os invasores. A reação dos populares gerou a rendição e o encarceramento do corsário francês Duclerc nas dependências do colégio dos jesuítas localizado no Morro do Castelo. (BRASÃO, 1940). É importante ressaltar neste momento da tese o fato de que já existe desde sua origem, um movimento estudantil atuando com as forças vigentes da época, por mais contraditórias que sejam ao longo da história do Brasil. Ou seja, neste momento a parceria com as forças armadas e o caráter de subserviência do movimento, já que fora comandado pelo exército revela em certo grau de dificuldade na construção de uma identidade própria e, de fato, autônoma. • 1786 - Ainda no Brasil Colônia, estudantes brasileiros matriculados em universidades europeias construíram, o que chamavam na época de um “clube secreto”, onde estimularam movimentos de independência em relação a corte portuguesa. A comunicação entre os estudantes se dava através de cartas e alguns deles participaram efetivamente do levante conhecido como Inconfidência Mineira ou Conjuração Mineira. Cabe destaque para o estudante José Joaquim Maia e Barbalho que se comunicou diretamente com Thomas Jefferson, embaixador dos EUA na França na tentativa de buscar apoio, já que no ano de 1776, os Estados Unidos conquistaram sua independência em relação aos ingleses (JARDIM, 1989). Através do codinome Vandek, em sua segunda carta direcionada ao embaixador americano, o sentimento de liberdade e desejo de ruptura se fazia presente no trecho: “Sou brasileiro e sabeis que a minha desgraçada pátria geme em atroz escravidão, que se torna todos os dias mais insuportáveis depois da vossa gloriosa independência, pois que os bárbaros portugueses nada poupam para tornar-nos desgraçados com medo que vos sigamos as pisadas, e como sabemos que estes usurpadores, contra a lei da natureza e da humanidade, não cuidam senão de oprimir-nos, estamos decididos a seguir o admirável exemplo que acabais de dar-nos e, por conseguinte, quebrar as nossas cadeias e fazer reviver a nossa liberdade, que está de todo morta e oprimida pela força, que é o único direito que os europeus tem sobre a América”. (Autos de Devassa, Volume VIII, 1977, p. 21, grifo nosso). 41 Thomas Jefferson aceita ajudar o movimento brasileiro atrelado a garantia de pagamento das despesas e com promessa de futuras relações econômicas com os EUA. No entanto, Vandek morreu no ano de 1788 em Portugal na cidade de Coimbra por causas desconhecidas antes de viajar para o Brasil e participar de fato da Inconfidência Mineira. Para além do processo histórico que irá culminar no século seguinte com a Independência do Brasil, a importância de Vandek para nossos estudos preliminares se deve ao fato de que para além da proteção do território brasileiro e eventual independência política, os primeiros movimentos estudantis eram restritos a pequenas elites intelectuais e econômicas, já que grande parte destes estudantes brasileiros eram formadas por elites locais de caráter liberal que estavam diretamente interessadas na ampliação do comércio com outras nações. Séc. XIX • 1808 – Ano de suma importância para a historiografia brasileira, já que coincidiu com a chegada da família real para o Brasil, notadamente marcado pela transferência da corte portuguesa como consequência da invasão de Portugal por tropas francesas durante o período napoleônico (1799-1815). Para além disso, no dia 18 de fevereiro do mesmo ano houve a fundação da Escola de Cirurgia em Salvador (BA) através de documento assinado por Dom João VI, considerada a primeira faculdade do Brasil. Segundo Jacobina et al. (2008), a faculdade enfrentou inúmeras dificuldades para sua efetivação, desde a infraestrutura precária, quanto os critérios acadêmicos para a consolidação do curso. Segundo relatos dos memorialistas do acervo, os primeiros estudantes eram formados para além da carreira médica e integravam setores da imprensa (já que muitos brasileiros na época eram analfabetos), afim de informar e atuar diretamente na publicidade dos eventos ligados a Independência do Brasil no ano de 1822. Sobre isso, o autor aborda: “Apesar das dificuldades de identificar os estudantes nessa luta devido a inexistência de registro dos alunos matriculados, como lamenta Malaquias Santos, encontram-se referências na memória histórica de 1942 de Eduardo de Sá Oliveira da participação de dois lentes, participação, fique claro, antes da docência: Manuel Maurício Rebouças (1800-1862), na qualidade de cidadão, sobretudo nas lutas da Independência, mostrou-se de um heroísmo extraordinário e João Antunes de Azevedo Chaves (1805-1873), 42 condecorado na campanha da Independência”. (JACOBINA et al, 2008 p.2, grifo nosso). Muitos alunos recém formados eram enviados à Europa afim de concluírem suas especializações e, alguns deles, seguiram a carreira acadêmica contribuindo para a formação de outros médicos no país. Logo após a Independência do Brasil, mais precisamente no ano de 1827, as faculdades de Direito se pulverizaram pelo território brasileiro, como é o caso da Faculdade de Direito de Olinda, que mais tarde se tornou a Faculdade de Direito do Recife, hoje pertencente à Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), e a Faculdade de Direito de São Paulo, atual Faculdade de Direito da USP – esta última, com campanhas significativas em campanhas pela Abolição da Escravatura e Proclamação da República. Voltando ao pioneirismo na Escola de Cirurgia da Bahia, atual Faculdade de Medicina da UFBA, mesmo que de maneira não organizada reside ali o embrião do protagonismo estudantil a nível de ensino superior em território brasileiro, já que como vimos anteriormente, seus primeiros estudantes atuaram diretamente no processo de Independência do Brasil. • 1897 – Para além das faculdades de Direito supracitadas acima, daremos ênfase neste momento para Faculdade Livre de Direito da Bahia, atualmente pertencente à Universidade Federal da Bahia (UFBA), que no ano de 1897 já completara seis anos de existência. Além da coexistência com outras faculdades na região Nordeste, a FDUFBA foi responsável por abrigar a primeira entidade estudantil do Brasil. No dia 3 de novembro do mesmo ano temos a criação do Centro Acadêmico Ruy Barbosa2, no qual ficou notadamente conhecido na época por atuar na Guerra dos Canudos, onde os estudantes protestaram através de manifesto escrito contra os degolamentos praticados pelos militares envolvidos no conflito. 2 Ruy Barbosa de Oliveira (1849-1923) foi um polímata brasileiro, tendo se destacado principalmente como jurista, advogado, político, diplomata, escritor, filólogo, jornalista, tradutor e orador. Um dos intelectuais mais conhecidos do seu tempo, foi designado por Deodoro da Fonseca como representante do governo republicano, tornando-se um de seus principais organizadores, além de coautor da constituição da Primeira República juntamente com Prudente de Moraes. Ruy Barbosa atuou na defesa do federalismo, do abolicionismo e na promoção dos direitos e garantias individuais. Disponível em: https://www.academia.org.br/academicos/rui-barbosa/biografia. Acesso em: 14 de outubro de 2020. https://www.academia.org.br/academicos/rui-barbosa/biografia 43 Sobre o manifesto e o conteúdo, basicamente: “criticava as atrocidades acontecidas no Sertão Baiano, acusavam o Exército de ser o responsável pelos crimes cometidos e que a luta fora terrível, com o uso de degolamento de forma indiscutível, sendo considerado um dos primeiros protestos estudantis brasileiros” (DA ROCHA, 2015 p. 65). A visão hegemônica do conflito envolvia grande parte da imprensa oficial e os políticos da época no qual afirmavam que sua principal liderança – Antônio Conselheiro e seus seguidores tinham a pretensão de invadir territórios vizinhos no interior da Bahia afim de derrubar o governo republicano e reestabelecer a Monarquia. Apesar dos esforços e da empatia por parte dos estudantes diante do fato ocorrido, a Guerra de Canudos representou o fortalecimento da república e uma mancha sob o governo turbulento de Prudente de Morais. Segundo relatos da época, após o massacre, os estudantes reivindicavam a ausência de prisioneiros e a declaração do contraditório por parte dos apoiadores de Antônio Conselheiro, mas o mesmo não ocorreu. O próprio Ruy Barbosa criticou severamente o ocorrido ao lado do jornalista e escritor Euclides da Cunha, cuja chacina foi devidamente apresentada no livro Os Sertões. Em suma, o final do século XIX ficou marcado pela ação individual de estudantes matriculados nas primeiras faculdades do Brasil diante do processo de Independência, bem como a criação do primeiro centro acadêmico que, mesmo organizado de maneira elementar no estado da Bahia, foi o pontapé inicial para a pulverização da luta estudantil que estaria por vir ao longo do século XX e XXI. Séc. XX • 1901 – O início do século XX na historiografia brasileira tem início com uma república incipiente que enfrenta dificuldades tanto no campo internacional como no campo nacional, desde o estabelecimento de relações comerciais com a Grã- Bretanha e, posteriormente com os EUA em um modelo tipicamente agrário exportador. Sobre as relações diplomáticas, Neves (2003) destaca: “(...) o Brasil continua inscrito como país dependente e periférico, mas não mais exclusivamente na área de influência inglesa. Outros investimentos e interesses internacionais aqui aportam, notadamente os norte-americanos. (NEVES, 2003, p.6). 44 A Primeira República ou República Velha (1889-1930), se baseava em um primeiro plano, na exportação de café e, em um segundo plano, na exportação de algodão. A necessidade de aprimorar a produção interna fez com que o processo de industrialização se pulverizasse pelos centros urbanos. A oligarquias rurais a nível estadual exerciam forte influência na dinâmica do estabelecimento dos rumos do governo Federal. No cenário educacional, o ensino superior dá os seus primeiros passos para não se destinarem somente à classe de elite, mas também à serviço de uma parcela maior da população brasileira. Mas podemos afirmar que, de maneira geral, o ensino para o além do ler e escrever era ainda para poucos na República Velha. Para as camadas populares da sociedade brasileira, a educação se reduzia a instruções básicas para a labuta no campo e nos primeiros estabelecimentos fabris. Além disso, como nos aponta Trindade (2004), “a República brasileira rompeu com o ensino superior “oficial” das faculdades e escolas profissionais do período da monarquia imperial”. (TRINDADE, 2004, p.824). Esse rompimento se dá através das reformas de Benjamin Constant, ministro da Instrução Pública, Correios e Telégrafos (futuro Ministério da Educação), positivista voltado para uma formação mais prática e utilitarista, descentraliza e descola do Estado a responsabilidade pelas escolas livres superiores. Posteriormente esta política educacional é revisada, mas por ora, no que tange os objetivos da tese, é importante salientar que o aumento significativo de escolas reverbera também em uma maior organização coletiva dos jovens. Em meio a um cenário de consolidação econômica e composição da república, surge a Federação dos Estudantes Brasileiros, entidade pioneira que teve atuação efêmera e curta. A ausência de estudos sistemáticos revela o caráter transitório para a formação a posteriori da renomada UNE, principal entidade brasileira dos estudantes universitários (BITTAR, 2014; CAVALCANTI, 2019). Segundo Eickhoff (2017), o principal objetivo da entidade era destinado à: “defesa da qualidade de ensino, do patrimônio nacional e da justiça social, conclamando as principais lideranças estudantis a participarem ativamente de mobilizações em todo o país”. (EICKHOFF, 2017, p.1). • 1902: Ano-chave do surgimento dos primeiros grêmios secundaristas nos espaços de formação em território brasileiro. Em 1902 é fundado o primeiro Grêmio 45 Estudantil do país, em São Paulo, com uma característica recreativa, voltada para o esporte, cultura e lazer. • 1910: É realizado em São Paulo o I Congresso Nacional de Estudantes, em São Paulo. O rápido aumento do número de escolas, nas primeiras décadas do século, acompanhou também a rápida organização coletiva dos jovens, que desde o início de sua atuação estiveram envolvidos com as principais questões do país. A partir da Revolução de 1930, a politização do ambiente nacional levou os estudantes a atuar firmemente em organizações como a Juventude Comunista e a Juventude Integralista. A nova Constituição brasileira tornou o ensino primário obrigatório em todo país, levando a uma expansão da rede de ensino e a maior organização do movimento secundarista; surgem as primeiras entidades municipais e estaduais. • 1914: Estudantes tiveram participação significativa na Campanha Civilista de Rui Barbosa ocorrida em meados do século XX, e na Campanha Nacionalista de Olavo Bilac, promovida durante a 1ª Guerra Mundial. • 1932: A morte de quatro estudantes (MMDC – Martins, Miragaia, Dráusio e Camargo) inspirou a revolta que eclodiu na insurreição de São Paulo contra o Governo Central (Revolução Constitucionalista). • 1937: Criação da União Nacional dos Estudantes (UNE), a entidade brasileira representativa dos estudantes universitários. • 1952: Primeiro Congresso Interamericano de Estudantes, no qual se organizou a campanha pela criação da Petrobrás – “O Petróleo é Nosso”. 2.2 Grêmios Estudantis: Marcos legais e históricos: da Ditadura Militar à Redemocratização Durante o período da ditadura militar no Brasil (1964-1985), os grêmios estudantis enfrentaram uma série de desafios e restrições devido ao contexto político autoritário e repressivo. A ditadura militar começou em 1964 com um golpe de estado que derrubou o governo democraticamente eleito de João Goulart. Esse período foi marcado por um regime de controle político, censura, perseguição política e violações dos direitos civis e humanos. 46 Sobre isso, Yamagami (2013) em seu trabalho sobre a relação entre a ditadura e o controle do Estado sobre as instituições de ensino destaca o papel dos movimentos estudantis na reivindicação por mudanças no sistema educacional e reagia contra a privatização da educação. No entanto, a relação entre a ditadura militar e os grêmios estudantis foi marcada por intensa repressão política, visto que grande parte dos movimentos foi vista como suspeita pelo regime, pois acreditavam que essas organizações poderiam se tornar o eixo de mobilização política e resistência. A censura e as restrições à atividade estudantil afetaram diretamente a liberdade de expressão dos mesmos, caracterizando a diminuição ou ausência de eventos, palestras e debates. Somados a isso, perseguições a lideranças estudantis, além de prisões e tortura se tornam ferramentas de opressão a qualquer forma de mobilização estudantil que pudesse ameaçar a estabilidade do regime. Na contramão do processo, a mobilização e resistência fizeram também parte do processo já que buscaram formas criativas de expressar suas opiniões e defender seus direitos, mesmo sob o risco de retaliação por parte das autoridades, como por exemplo, a passeata dos 100 (cem) mil. Sobre isso, SANTOS e SILVA (2018, p. 8) definem o momento como: (...) aproximadamente 150 padres e freiras se ajuntaram também em frente do teatro municipal. Os padres chegaram a grupos de cinco os seis e mantiveram-se unidos durante toda a passeata. Frente à passeata estava os lideres de cada movimento estudantil, como também os estudantes. Primeiro vinha os estudantes das faculdades federais e depois particulares, logo após estes todos os demais protestantes, como professores, cantores, artistas, mães, intelectuais e jornalistas. (SANTOS e SILVA, 2018, p.8) Este e outros movimentos foram destaque no período como elencamos abaixo, no entanto vale salientar que o período da ditadura militar deixou um legado de resistência e luta pelos direitos civis e democracia, onde inúmeros estudantes que foram ativos durante esse período continuaram a ser defensores dos direitos humanos e da democracia após o fim da ditadura. Por fim, é importante ressaltar que a experiência dos GE durante a ditadura militar pode variar dependendo da região do Brasil e do contexto específico de cada instituição de ensino. No entanto, elencamos as principais ações durante o período, foram elas: 47 • 1963/64: Os estudantes foram responsáveis por um dos mais importantes momentos de agitação cultural da história do país. Era a época do Centro Popular de Cultura (CPC) da UNE, que produziu filmes, peças de teatro, músicas, livros e teve uma influência, que perdura até os dias de hoje, sobre toda uma geração. Em 1º de abril, o Golpe Militar derrubou o presidente João Goulart. A partir daí foi instituída a ditadura militar no Brasil, que durou até o ano de 1985. Neste período as eleições eram indiretas, sem participação direta da população no processo de escolha de presidente e outros representantes políticos. Os estudantes formavam uma resistência contra o regime militar, expressando-se por meio de jornais clandestinos, músicas e manifestações, apesar da intensa repressão. • 1968: Em março, morre o estudante Edson Luís, assassinado por policiais no restaurante Calabouço, no Rio de Janeiro. No congresso da UNE, em Ibiúna, os estudantes reuniram-se para discutir alternativas à ditadura militar. Houve invasão da polícia, muitos estudantes foram presos, mortos ou desapareceram, evidenciando a repressão e a restrição à liberdade de expressão que eram características desse período. Em junho deste ano ocorre a passeata dos Cem Mil, que reuniu artistas, estudantes, jornalistas e a população em geral, em manifesto contra os abusos dos militares. Em dezembro, durante o governo do general Artur da Costa e Silva, foi assinado e decretado o Ato Institucional número 5 (AI-5) que cassou a liberdade individual, acabando com a garantia de Habeas Corpus da população. • 1979: As entidades estudantis começam a ser reativadas. Acontece a primeira eleição por voto direto na história da UNE, quando é eleito o presidente baiano Rui César Costa e Silva. • 1984: “1,2,3,4,5 mil. Queremos eleger o presidente do Brasil!!!” Diretas Já! – movimento da população, com participação fundamental dos estudantes e dos políticos progressistas, para a volta das eleições diretas para presidente no Brasil. O congresso votou a favor das eleições indiretas e Tancredo Neves foi nomeado presidente para o próximo mandato (a partir de 1985). Ficou decidido que as próximas eleições, em 1989, seriam diretas. Depois de 34 (trinta e quatro) anos de eleições indiretas Fernando Collor de Melo é eleito presidente. 48 2.3 Grêmios Estudantis: Marcos legais e históricos - gestão democrática e século XXI Os GE desempenharam um papel significativo no processo de redemocratização do Brasil após o período da ditadura militar. Como vimos anteriormente, durante a ditadura militar, os GE foram frequentemente restringidos, controlados e até mesmo suprimidos pelo regime, que viu neles uma fonte potencial de mobilização e resistência política. No entanto, durante a transição para a democracia, os GE ganharam um novo espaço para atuar como agentes de engajamento cívico e participação política. Daremos destaque para a questão da reinvindicação de direitos, participação em movimentos sociais, diálogo/mediação, a formação política, celebração das diversidades, formação de debates abertos e, finalmente a questão do monitoramento e vigilância dos valores democráticos. Baseados nos estudos de Vaccaro (2015) sobre a ideia de política de Arendt, discordamos de Zambon (2018) que nos alerta através de estudos que as ações do GE são consideradas despolitizadas e também de Pescuma (1990), onde identificou que os alunos de 1o e 2o graus das escolas estaduais do Estado de São Paulo não tinham, no final da década de 1980, conhecimento a respeito da legislação sobre GE. Posto isso, elencamos os principais eventos do processo de redemocratização até o ano de 2019 no qual se insere o estudo de caso sobre o GE na referida tese, bem como algumas reflexões de encerramento sobre a questão do que compreendemos como gestão democrática: • 1992: Acontecem sucessivas manifestações nas ruas contra a corrupção no governo dando início ao movimento de estudantes chamado Caras Pintadas, que resultou no Impeachment do então Presidente da República, Fernando Collor de Melo. • 1995: A União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES) inicia uma grande campanha nacional contra a privatização do ensino público e lança campanha pelo ensino técnico: “Queremos mais que apertar parafusos”. 49 • 2003: O Congresso Nacional apresentou um projeto de lei que institui a proposta da UBES, obrigando as instituições de ensino público superior a reservar 50% das suas vagas para estudantes vindos das escolas públicas. • 2009: Os estudantes mobilizaram a opinião pública com passeatas nacionais da Jornada de Lutas da UBES pelos 10% do PIB para Educação em atos que chegaram a reunir mais de 20 mil secundaristas. • 2012: Os secundaristas ocupam as ruas do Rio de Janeiro pelos royalties do petróleo e o fundo social do pré-sal para a Educação. • 2015: Os jovens protestaram contra o projeto de reestruturação da rede escolar do Estado – que consistia em separar as unidades escolares e no fechamento de 94 instituições. Após dois meses de ocupação, o projeto foi revogado. No ano seguinte, o movimento se expandiu para outros Estados e passou a combater a precarização do ensino público. • 2016: Primavera Secundarista: estudantes denunciam o golpe p