O QUE FREUD DIZIA SOBRE AS MULHERES JOSÉ ARTUR MOLINA O que Freud dizia sObre as mulheres CONSELHO EDITORIAL ACADÊMICO Responsável pela publicação desta obra Elizabeth Piemonte Constantino Fernando Silva Teixeira Filho Mário Sérgio Vasconcelos José Artur MolinA O que Freud dizia sObre as mulheres © 2011 Editora UNESP Cultura Acadêmica Praça da Sé, 108 01001-900 — São Paulo — SP Tel.: (0xx11) 3242-7171 Fax: (0xx11) 3242-7172 www.culturaacademica.com.br feu@editora.unesp.br Editora afiliada: CiP – Brasil. Catalogação na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ M734q Molina, José Artur O que Freud dizia sobre as mulheres / José Artur Molina. – São Paulo : Cultura Acadêmica, 2011. inclui bibliografia iSBN 978-85-7983-176-8 1. Freud, Sigmund, 1856-1939. 2. Mulheres – Saúde mental. 3. Histeria. 4. Feminilidade. 5. Psicanálise. i. Título. 11-6215. CDD: 150.195 CDU: 159.964.2 Este livro é publicado pelo Programa de Publicações Digitais da Pró- -Reitoria de Pós-Graduação da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) A Josefina, que me ensinou a nascer A Janaína, que me ensinou a cuidar A Irmã Maria, que me ensinou a ler E à outra Maria, que me ensinou a amar Com liCença poétiCa Quando nasci um anjo esbelto, Desses que tocam trombeta, anunciou: Vai carregar bandeira. Cargo muito pesado pra mulher, Esta espécie ainda envergonhada. Aceito subterfúgios que me cabem, sem precisar mentir, não sou tão feia que não possa casar, Acho o rio de Janeiro uma beleza e ora sim, ora não, creio no parto sem dor. Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina. inauguro linhagens, fundo reinos – dor não é amargura. Minha tristeza não tem pedigree, Já a minha vontade de alegria, sua raiz vai ao meu mil avô. Vai ser coxo na vida é maldição pra homem. Mulher é desdobrável. Eu sou. Adélia Prado, 1935 Sumário 1 um mal-estar na psicanálise 11 2 Política, sociedade e a mulher na Viena do século XiX 19 3 As mulheres de Freud 55 4 As mulheres de schnitzler 85 5 As mulheres de Gustav Klimt 123 6 As mulheres de Viena: sintoma de uma época 155 referências bibliográficas 181 1 um mal-eStar na pSiCanáliSe A psicanálise se constrói a partir de um fracasso: a incapaci- dade da ciência médica de meados do século XiX em tratar de uma série de sintomas que desafiavam o saber racional médico (herdeiro do projeto iluminista), o que fez com que tentativas de solução desses problemas começassem a aparecer. Enigmá- ticos, esses sinais apresentados pelos pacientes (que eram, so- bretudo, mulheres) intrigavam os médicos naquele momento, porque não se conseguia descobrir a origem de seu surgimento, ou mesmo localizá-los fisicamente a partir do exame de tecidos ou órgãos biológicos. Dessa forma, as histéricas – como eram conhecidas as mu- lheres que apresentavam sintomas que a nosografia médica até então não conseguia classificar – foram, por muito tempo, ex- cluídas da medicina moderna (durante praticamente todo o sé- culo XiX). Foi apenas com sigmund Freud, com seu empenho e espírito desbravador, e que não renunciava ao desafio de en- tender aqueles fenômenos, que essa situação começa a mudar. A partir de suas pesquisas – e da escuta de inúmeras pacientes –, Freud fez descobertas preciosas, chegando à elaboração de um conceito-chave e propondo também um método de tratamento: o inconsciente e a psicoterapia. Ambos desencadeiam uma ver- 12 José Artur MolinA dadeira revolução epistemológica, produzindo até mesmo uma subversão dos pressupostos científicos da época, indicando que novos tempos se avizinhavam. o projeto psicanalítico origina-se, portanto, de uma dor, de algo que não quer calar justamente porque não podia dizer: a dor das mulheres. E essa nova prática, é bom frisar, não surge como uma filosofia. Freud sempre se eximiu de fazer da psicanálise uma filosofia, embora não tenha podido evitar contaminar-se com tantas influências a que um saber está sujeito. A psicanálise renunciou, desde o princípio, a colocar o sujei- to apenas sobre a égide da razão. se levarmos em consideração as características desses novos tempos em que vivemos, como le- vanta santaella (1996), (nos quais vivenciamos a crise do impé- rio da razão, o privilégio da heterogeneidade e da diferença como forças libertadoras), veremos que ela se encontra num terreno bastante familiar, navegando com desenvoltura nesses “oceanos modernos”. Entretanto, essa aparente habilidade não duraria para sem- pre, uma vez que a psicanálise passou a ser questionada, princi- palmente em sua proposta de constituição do sujeito a partir de uma tríade edípica. A tramitação edípica coloca, de fato, uma ca- misa de força sobre o singular saber freudiano (o inconsciente e o método), posto tratar-se de uma tentativa de organizar – leia-se racionalizar – e universalizar uma constituição (do sujeito) que não pode ser atribuída a estritos núcleos familiares, e a intimida- des irredutíveis. A psicanálise bebe do mesmo veneno que a medicina vie- nense provara na derrocada da racionalidade do saber médico com respeito às histerias. é como se o projeto de Freud tivesse a intenção de trazer a psicanálise para o domínio da ordem da lei, em detrimento do caos do inconsciente. Por essa razão, ela se transformou num “Judas” ou numa “Geni” para boa parte da comunidade científica de então, sendo ainda (até hoje) alvo de críticas vindas de todos os campos do saber: dos “iluministas” o que Freud diziA sobre As Mulheres 13 aos “vanguardistas” das filosofias-pop. As análises de seus de- tratores são tão apaixonadas que esses discípulos das vozes dis- cordantes saem às ruas para malhar seu “Judas”, até que ele se reduza a cinzas; e dessa experiência (psicanalítica) parece não ter sobrado nada. talvez estejamos vivendo hoje no olho do furacão pós-mo- derno, que pressupõe um despojamento de todos os saberes de- finitivos e uma flutuação entre coisas efêmeras, provisoriedades. Fato é que o casco do navio psicanalítico contém fissu- ras, que foram causadas por intenções estruturalistas. Gos- taria de destacar, em especial, duas delas, que estão trazendo muita água para o interior da nau: a proposta das estruturas clínicas e a questão da feminilidade, ambas oriundas do pro- cesso edípico. um analista bem-intencionado também não poderia negar a explosão de uma rica gama de novos quadros psíquicos e de novos sintomas, que estariam até mesmo subvertendo a lógica do simbólico em nossos dias. A psicanálise, entretanto, jamais afirmou a não existência de outro mundo para além do simbó- lico – lugar esse (o simbólico) que seria uma espécie de jardim do éden, não apenas no que se refere ao bem-estar psíquico, mas também à aplicação de seu método. E, como consequên- cia, o que estivesse fora dessa paisagem seria um campo de exceção. se por um lado Freud tem o mérito de inaugurar um quadro reduzido das chamadas formações psíquicas (as neuroses, psi- coses e perversões), fugindo da enorme gama de quadros psico- patológicos propostos pela psiquiatria (as rotulagens amparadas em descrições sintomáticas), por outro lado a ideia de estrutu- ra dentro de uma tramitação edípica estaria funcionando como um redutor das possibilidades de expressão de subjetividades. Como segurar a barreira de uma proposta de estrutura psíqui- ca em três categorias e, ao mesmo tempo, conseguir apaziguar dentro desse lugar os desafios que as novas sintomáticas vêm 14 José Artur MolinA trazendo para a clínica psicanalítica? o que era exceção está se convertendo em regra. Para salvar os dedos e não perder os anéis surge a expressão borda: os pacientes não psicóticos, mas próximos a essa frontei- ra, seriam qualificados como borderlines. Mas essa denomina- ção é insuficiente, considerando que cada vez mais nos encontra- mos com pacientes que apresentam expressões fora do simbólico e, nem por isso, estariam na “borda” – se é que esse lugar existe. A verdade é que, no mesmo lugar onde a psicanálise foi construída (na relação analítica), ela está sendo questionada. E não se trata da técnica – no sentido do estímulo à produção dis- cursiva dentro do espírito da associação livre –, mas do enqua- dramento diagnóstico dentro de categorias que não conseguem abarcar singularidades. A outra pedra no sapato é a questão do feminino. o femini- no seria uma subformação do seu suposto inverso, o masculino. se a castração é o grande argumento para projetar o sujeito ao mundo da metáfora, como poderia o feminino ter acesso a esse lugar? Pela inveja do pênis? Como alguém que já perdeu pode constituir-se sobre uma punição de ver-se livre daquilo que não tem? não teria Freud, naquele momento, sucumbido à tentação de eternizar o modelo fálico vigente de seu tempo? seria um sin- toma de sua época? o mundo dos homens e da soberania desabava na queda das monarquias. Havia uma intenção de construir um mundo de leis amparadas na democracia, mas estas também naufragaram. A ênfase de Freud de que só a lei pode estruturar o sujeito seria, então, um sinal de sua ausência naquele entorno? o fundamen- talismo fálico encarnaria um saber escravo da tradição? Para desarticular o lugar estratégico desse paradigma na psi- canálise é necessário pôr em questão seu discurso não apenas pela via da história dos saberes e das práticas, mas também pe- los caminhos tortuosos da história social e política do ocidente. o que Freud diziA sobre As Mulheres 15 Em outras palavras, é preciso demonstrar como a modernidade se construiu pela desconstrução da antiga hierarquia entre os se- xos por meio da formulação de uma diferença ontológica entre eles. o sexo único da Antiguidade transformou-se em diferença essencial dos sexos, num discurso biologicamente fundamenta- do, no qual as faculdades morais são diretamente derivadas das marcas do organismo. Desse modo, constituíram-se o biopoder e a bio-história, que se tornaram as bases do gigantesco processo de medicalização que marca o ocidente desde o fim do século XViii. (Birman, 2002, p.9) Por outro lado, o tempo que abre a pós-modernidade vai ampliar de forma contundente as possibilidades subjetivas. san- taella (1996) atribui ao contemporâneo a seguinte característica: “idade pós-moderna (que é também chamada de pós-industrial, pós-histórica, era da comunicação, informática, telemáticas, abrindo portas para uma nova idade pós-mídia-intermídia)”. E, abusando de citações, continuo com santaella numa afirmação que considerei acolhedora de minhas indagações: Enfim, se conseguirmos ultrapassar este limiar ou iminência de nos destruirmos, penso que, se inventarmos os caminhos que nos safem disso, como seres humanos estaremos saltando para um outro patamar. Qual será? se começarmos a observar a fami- liaridade, intimidade, agilidade mental, disposição espontânea, sensibilidade (não venham dizer que não!) com que as crianças, desde a mais tenra idade, estão interagindo com este universo cada vez mais povoado de signos, botões e seres (sonoros e visuais) sin- tetizados, talvez possamos enxergar aí algum prenúncio. (santa- ella, 1996, p.2) E é este o prenúncio de algo que nos interessa. Dessa forma pretendo aqui trazer à luz o ambiente político e cultural da Vie- na de fins do século XiX para podermos responder à seguinte 16 José Artur MolinA questão: como pode um homem genial como Freud ter sido tão conservador na conceituação do feminino? sobretudo porque sua obra pioneira começa a ser escrita exatamente a partir da es- cuta das histéricas. Ademais, o cenário cultural e político daque- le tempo anunciava, mesmo que timidamente, uma nova forma de ser e enxergar o mundo. Este livro, portanto, parte do pressuposto de que assim como houve uma mudança radical nas estruturas políticas, econômi- cas, culturais e da subjetividade com o advento da modernidade (que permitiu, inclusive, o aparecimento da psicanálise), outras mudanças, de igual ou até de maior monta, aconteceram poste- riormente, exigindo a revisão radical de dogmas e verdades es- tabelecidas. isso nos leva a colocar em suspenso teorizações consagradas na psicanálise e examiná-las com todo rigor e liberdade crítica, não só dentro do panorama da atualidade, mas também do pró- prio panorama sociopolítico e cultural vivido por Freud. Desse pressuposto geral decorre outro, diretamente relacio- nado ao nosso objeto específico de estudo: se Freud foi reco- nhecidamente um homem de seu tempo, tendo a sagacidade e a sabedoria para perceber e escutar um sintoma da época – a histeria – parece não ter conseguido levar adiante sua escuta do feminino, sucumbindo à falocracia que silenciava e sufocava a mulher. Freud não viveu uma época qualquer; seu tempo esteve no epicentro de um marco da história da civilização ocidental, cujo paradigma haveria de se alastrar pelo resto do mundo: a moder- nidade (Berman, 1998). o mundo estava em plena em ebulição, e Viena transformava-se em todos os sentidos; o cenário era de um apocalipse festivo. De um lado vibravam os vanguardistas – entre eles Freud e seu inconsciente e seu método terapêutico –; do outro rosnavam os tradicionalistas – entre eles, Freud e seu conceito de feminino, que surge de uma posição de existência: a mulher. Ave- riguar, portanto, que tempo é esse, é algo de extrema importância; o que Freud diziA sobre As Mulheres 17 saber em que política o mundo dos homens naufragou na Viena do XiX assevera-se, sob essa perspectiva, algo fundamental. Além disso, e seguindo a própria sugestão de Freud, incur- sionamos pelo campo artístico e literário para saber que tipo de mulher estava sendo construída no final daquele século. Visita- mos a literatura de Arthur schnitzler (que faz da mulher pro- tagonista de sua obra) e a pintura de Gustav Klimt (que dedica toda sua arte à mulher): na arte, elas seriam desnudadas, sem pecado e sem pudor. Faz-se urgente um diálogo interdisciplinar da psicanálise, a fim de que, sem perder sua especificidade teórica, ela também possa avançar nas questões cruciais da contemporaneidade pela interpelação fecunda trazida pelas outras disciplinas. (Birman, 2002, p.10) o que Freud diz sobre as mulheres é, antes de tudo, o que seu entorno fala sobre elas. nesse sentido é conveniente explorar a política, a sociedade, a literatura e a pintura para nos aproximar do tema. Que sorte de ameaças poderiam estar contaminando o cria- dor da psicanálise? o que avançava e o que recuava em seu pen- samento? Freud sempre afirmou que não considerava a psicanálise como um saber concluído; a tarefa de colocar a psicanálise num terreno onde ela possa, de fato, abandonar conceitos claudican- tes e encontrar um “bom” caminho está, portanto, em aberto. Boa parte das instituições oficiais e não oficiais do establishment psicanalítico, na sua falta de ousadia, escondem-se atrás dos conceitos tradicionais, dando estatuto bíblico à obra freudiana. Do que se trata? levantar a bandeira psicanalítica por sua pro- dução singular e perdoar as intenções de Freud que, afinal, eram filhas do seu tempo iluminista. 2 polítiCa, SoCiedade e a mulher na Viena do SéCulo xix os ventos da revolução Francesa sopram sobre toda a Europa. A França inventa a república moderna e, com ela, a guilhotina. A revolução, ao contrário do que se poderia esperar, não representou a liberdade para a plebe excluída, mas um regime de exceção: a luta contra o absolutismo monárquico fora substituída pelo absolutis- mo republicano. A ideia da revolução seduziu a Europa, mas, por outro lado, o novo modelo republicano acabou sendo implantado com extrema violência. uma de suas vítimas mais conhecidas foi a alegre rainha Maria Antonieta, que nunca fora realmente aceita pelo povo francês – não só por que ela transformara a corte numa festa permanente, mas, e sobretudo, porque era austríaca. Maria Antonieta, irmã de José ii (herdeiro da coroa dos Habsburgo) e filha de Maria teresa (que comandou o império austro-húngaro com mãos de ferro), casou-se com luís XVi por desejo da mãe, já que na época ele era príncipe herdeiro da monarquia francesa (o que nos oferece um bom exemplo de como a política matrimo- nial era utilizada para defender o patrimônio). A então rainha da França até tinha a esperança de ser repatriada com seus filhos para a Áustria, mas os rebeldes, comandados por robespierre, foram 20 José Artur MolinA inclementes e queriam ver seu sangue ser derramado sob a ação da guilhotina; a ordem era de não deixar nenhuma semente real que pudesse ameaçar a república (seus filhos também morreram pouco tempo depois da mãe, por maus tratos). As monarquias europeias, como se vê, vinham sofrendo com os ventos da mudança. Francisco José i (imperador do império austro-húngaro), talvez para não perder os dedos, decide gover- nar junto a uma classe política cada vez mais reivindicativa, e aceita um regime monárquico parlamentarista: o império come- ça a assistir as sementes do capitalismo germinarem. Viena vai paulatinamente se transformando numa metrópole, passando a atrair trabalhadores de outras regiões e estimulando casas ban- cárias a ali se estabelecerem: estamos diante de uma sociedade cansada de guerrear e que decide, finalmente, obter o poder atra- vés do dinheiro. Paralelamente a essa mudança, assiste-se no campo da economia ao advento do liberalismo, que promove a implementação de indústrias em todo o império e, com ele, uma destituição progressiva do trabalho artesão. o regime permanece, contudo, sendo de exclusão, simples- mente moldando-se a uma poderosa classe emergente que exigia ser respeitada por seu poder financeiro: a burguesia liberal. os burgueses fazem um pacto de boa convivência com a monar- quia vienense, de forma que ambos passam, então, a conviver sem grandes ameaças. E se por um lado a aristocracia decadente ressente-se do fato de a monarquia ver-se obrigada a “descer” para dialogar com esses novos ricos, por outro a burguesia as- cendente passa a frequentar os mesmos ambientes dos antigos ricos – locais em que os burgueses até eram aceitos, mas com bastante parcimônia e hipocrisia. A burguesia, em princípio, não apresentava os mesmos a priori da aristocracia, sendo condescendente com tudo e todos desde que não atrapalhassem o crescimento de seu capital. E nes- se ambiente de “tolerância”, os judeus poderiam viver sem amea- ças, dado que mesmo o conceito de raça e os credos tornam-se o que Freud diziA sobre As Mulheres 21 elementos secundários nessa sociedade, na qual o importante agora eram os negócios. Para os adversários do liberalismo, judeus e capitalismo sempre foram considerados sinônimos. o Estado Multinacio- nal dos Habsburgo tinha total apoio da comunidade judaica (os judeus pareciam não ter muita vocação para se rebelar contra o poder constituído). Assim sendo, os amigos do império germâ- nico, excetuando-se os povos orientais da Europa, constituíam- -se em inimigos do sionismo. A cultura judaica associa-se aos países e cidadãos que defen- diam o pluralismo político, a liberdade econômica e a tolerância religiosa, e é nesse sentido que foi possível a ela identificar-se com o liberalismo. schorske (1988), por exemplo, aponta que o liberalismo vienense guarda semelhanças com o de outros países da Europa, mas conserva peculiaridades. segundo o autor, ele estaria dividido entre componentes morais e estéticos contradi- tórios, o que permitiu que inteligências dentro do espírito liberal pudessem encontrar soluções diferentes para as constantes crises que ocorriam em seu interior: o liberalismo austríaco, como na maioria das nações euro- peias, conheceu sua idade heroica na luta contra a aristocracia e o absolutismo barroco. Essa luta encerrou-se com a extraordiná- ria derrota de 1848. os liberais moderados chegaram ao poder e, quase que à sua revelia, estabeleceram um regime constitucional nos anos 1860. o que os levou à direção do Estado não foi a sua força interna, mas as derrotas da velha ordem às mãos de inimi- gos externos. Desde o início, os liberais tiveram de partilhar o poder com a aristocracia e burocracia imperiais. Mesmo durante seus vinte anos de governo, a base social dos liberais continuou frágil, restrita aos alemães e judeus alemães de classe média ur- bana. Cada vez mais identificados com o capitalismo, conserva- ram o poder legislativo graças ao expediente não democrático de direito de voto restrito. (schorske, 1988, p.27) 22 José Artur MolinA Entretanto, uma sociedade que continua a propagar a po- breza e destituir o artesão, fomentando com isso o desem- prego, não poderia ter vida longa. Assim como na revolução Francesa, durante a qual o preço do trigo fora o estopim para o movimento rebelde, o império austro-húngaro começa a se esfacelar com a crise em 1872. A quebra da bolsa desmoraliza os liberais de afã democrático e os judeus, que tinham em suas mãos vários bancos, são acusados de inescrupulosos, agiotas e ladrões. Esse acontecimento dá o ensejo para a manifesta- ção de posturas intolerantes, e, com isso, a ideia do nacional- -socialismo ganha espaço: o sonho liberal começa a dar sinais de fragilidade. os liberais, então, acabaram sendo esmagados por partidos populistas, racistas e clericais. sua derrota, entretanto, não anun- ciava a decadência do sistema, mas sua impotência em conter a fúria das massas, que eram lideradas por representantes opor- tunistas, ex-liberais, traidores e manipuladores. Cabe ressaltar que a ideologia separatista dos antiliberais foi apoiada, de forma entusiasmada, pelos estudantes da universidade de Viena. Para a Neue Freie Presse, era um golpe cruel que alterava o curso racional da história. A “massa hostil à cultura” alcançara a vitória, antes que os pré-requisitos do esclarecimento político tivessem sido criados. na terça de Carnaval de 1897, escreveu a Neue Freie Presse, os liberais bem que podiam usar “um na- riz postiço [só] para esconder um rosto aflito. [...] Ao invés da valsa alegre, só se ouvem berros de uma turba excitada e rui- dosa e os gritos dos policiais tentando dispersar os adversários [políticos]”. Ansiedade, impotência, consciência agudizada da brutalidade da vida social. (schorske, 1988, p.28) Como os intelectuais vienenses poderiam se defender diante dessa nova ordem? A tradição liberal burguesa vienense ancora- va-se em duas vertentes: a moralista-científica e a estética, e de- o que Freud diziA sobre As Mulheres 23 las deveria fazer uso para poder existir. Defensores da lei e aliados do imperador, os liberais governaram por vinte anos; uma vez fora do poder, a alta burguesia utilizou-se do recurso da cultura para poder, sem sucesso, ser assimilada pela aristocracia. Freud tinha, na ocasião, 41 anos, e iniciava a construção da psicanálise. teria ele avançado para além da cultura liberal com a proposta do inconsciente e, na mesma medida, recuado na for- mulação conceitual do feminino? Vanguarda e moralismo po- dem ter acompanhado o criador da psicanálise? schorske (1988, p.28) define a cultura moral e científica: [...] praticamente não se distingue do vitorianismo corren- te dos outros países europeus. Em termos morais, era convicta, virtuosa e repressora; em termos políticos, importava-se com o império da lei, ao qual se submetiam os direitos individuais e a ordem social. intelectualmente, defendia o domínio da mente sobre o corpo e um voltairianismo atualizado: progresso social através da ciência, educação e trabalho duro. nessa mudança de valores que habita o fim do século XiX, é compreensível que alguns avancem para a outra margem – a fim de visualizar um novo horizonte –, e outros, amedrontados, recuem para o porto seguro da tradição. A desintegração dessa moral-estética faz com que Freud percorra os dois caminhos. Por um lado avance e, por outro, recue: intelectuais inventivos e mulheres no matrimônio! Junto ao caos, Viena convive com uma alegria de viver ines- perada. um passeio pelo Prater (observando-se ali os teatros e suas operetas, sobretudo – obras que possuíam temas sempre muito preconceituosos com respeito à mulher) revela-nos infor- mações interessantes: todos os clichês referentes às mulheres encontram-se nos diálogos e letras das árias de opereta que são cantaroladas por 24 José Artur MolinA toda parte; [...] gostava-se de se ouvir dizer que as mulheres são frívolas, infiéis, ao mesmo tempo que bobas e maliciosas e que estão prontas a se apaixonar pelo primeiro que lhes fi- zer um elogio. As mulheres estão tão acostumadas com essas asnei ras, que riem delas tanto como seus companheiros, sem per- ceber que eles acreditam nelas. o “machismo” ainda não fora de nunciado. [...] As heroínas das operetas famosas, nascidas da imaginação de libretistas nada atemorizados pelos estereótipos em nada se assemelham às vienenses de carne e osso. (Bertin, 1990, pp.50-51) Cabe lembrar que o teatro era na época um grande palco que ultrapassava seu recinto estrito. Ícone da cidade, da vida e da so- ciedade inteira, a arte teatral possuía uma enorme importância de força simbólica. Fazia pouco tempo que havia sido permitido às mulheres subir ao palco como atrizes; quando isso aconteceu – primeiro na inglaterra e na França, e depois em outras cidades europeias, no século XVii – tratava-se de um claro sinal de que a mulher começava a despontar no palco e no teatro social como protagonista. As histéricas podem ser consideradas mulheres que ousaram tomar o palco do cotidiano para mostrar sua condição de vida. talvez tenha sido essa a grande descoberta de Freud: as mulhe- res de carne e osso. na Viena feminina e vivaz, os bailes proliferavam em todas as camadas sociais: na corte, o Hofball (ou Baile da Corte) era o di- vertimento das camadas mais altas. Havia ainda o baile da classe média emergente (o baile da Elite e o baile dos Farrapos), com intuitos sociais (arrecadar dinheiro para a caridade), e também o baile dos pobres (das lavadeiras e dos Cocheiros de Fiacre) que, curiosamente, também atraíam pessoas elegantes, as quais aproveitavam o anonimato para fazer valer desejos secretos. Como se vê, havia festas tanto para pobres quanto para ricos: nesse caso, Viena não se esquecia de ninguém. A cidade fervia o que Freud diziA sobre As Mulheres 25 e clamava apaixonada por um outro destino que não fosse o de ser uma capital provinciana, e, para isso, ela não poderia viver apenas de festas! é inegável a contribuição liberal para a transformação do império, principalmente de Viena, sua capital. Ele começa a ser industrializado, inicialmente nas regiões vizinhas como a Morá- via, mas é em Viena onde as empresas estabelecem suas centrais administrativas. A população e o número de estabelecimentos duplicam-se dos anos 1840 a 1870. nesse período a cidade vê ser construído o primeiro hospital municipal, pois a saúde, até então, estava nas mãos da igreja. uma rede sanitária também foi planejada para adequar uma ci- dade com vocação para metrópole. o Danúbio foi canalizado a fim de salvar a cidade das frequentes inundações. o abaste- cimento de água foi viabilizado para que todas as residências e comércios pudessem usufruir dele. Viena ainda conservava as fortificações militares em seu en- torno, lembrando a cidade feudal em luta permanente contra os invasores, e possuía um enorme corredor para expansão caso renunciasse e demolisse essas fortificações. As forças armadas imperiais resistiam em abdicar delas, alegando possíveis ataques revolucionários socialistas. As necessidades de expansão econô- mica (e também espaciais), porém, venceram as paranoias dos generais antirrevolucionários; como não poderia deixar de acon- tecer, entretanto, o exército foi compensado com a construção de dois quartéis e um arsenal bélico, localizado perto da estação ferroviária (Francisco José não poderia ser ingrato a quem ape- nas queria dar-lhe segurança). o decreto imperial de 20 de dezembro de 1857 cria a co- missão de Expansão da Cidade, transformando-a para sempre (schorske, 1988, p.48). uma nova Viena desponta, com ares dos novos tempos: é criada a ringstrasse, ruas em anéis, e um com- plexo de edifícios públicos e privados (estes últimos dividindo- -se em residências e comércios) foram construídos. uma nova 26 José Artur MolinA concepção urbana estava sendo criada, na qual os comércios não serviriam mais de residência para seus donos ou empregados na parte superior: a construção de edifícios comerciais, alheios às residências, é a nova ordem. E, dessa forma, os artesãos come- çam a se sentir excluídos dessa nova lógica. A nova Viena, a partir da perspectiva liberal, torna-se uma cidade monumental: a igreja de Votivkirche, o Parlamento, a ra- thaus, a universidade e o teatro são bons exemplos dessa grande transformação de uma cidade de província para uma metrópole. na tradição liberal, a política, a cultura e a igreja deveriam estar devidamente distantes; de ruas e casas espremidas passa-se para uma cidade de espaços amplos, na qual o cidadão vienense sen- te-se pequeno, mas orgulhoso. Essas largas avenidas (por onde iriam circular carros, bondes e pessoas em movimento frenético) agradaram bastante aos militares, que poderiam, em caso de ne- cessidade, deslocar tropas com facilidade. A Viena dos liberais é uma cidade moderna, com passos lar- gos no que diz respeito à economia, mas, ao mesmo tempo, sem um estilo arquitetônico que a sintetizasse. Do clássico grego, passando pela renascença e com presença gótica e, principal- mente barroca, essa é a “cara” dessa nova Viena. nela os homens de negócio acabam de aportar, exigindo, com discrição, um lu- gar de poder junto ao império absolutista e pedindo à aristocra- cia permissão para sua entrada na corte. seguindo o lema iluminista de que o conhecimento liberta, os liberais incluem a universidade no complexo da ringstras- se, apesar da relutância da aristocracia, pois, afinal, a comu- nidade universitária tinha sido a única frente organizada na revolução de 1848. Em razão disso o projeto de construção foi tratado de forma bastante parcimoniosa; com o fim do libera- lismo, contudo, ela torna-se vítima do nacional-socialismo e de todos os antissemitas. é na cultura, porém, que o liberalismo espera circular pelos mesmos ambientes dos aristocratas, sobretudo no teatro. A pai- o que Freud diziA sobre As Mulheres 27 xão de Viena pela arte teatral é única quando comparada a ou- tras capitais europeias (lembremo-nos do quadro de Klimt, ao retratar a burguesia no templo da cultura). A ringstrasse é um exemplo do clima de mudanças que o império exigia. tomados em conjunto, os edifícios monumentais da rings- trasse expressavam bem os valores mais elevados da cultura li- beral reinante. sobre os remanescentes de um champ de Mars, seus devotos tinham erigido as instituições políticas de um es- tado constitucional, as escolas para educar a elite de um povo livre, e os museus e teatros que levariam a todos a cultura que redimiria os novi homines de suas baixas origens. se era difícil o ingresso na velha aristocracia dos livros genealógicos, já a aristo- cracia do espírito estava teoricamente aberta a todos, através das novas instituições culturais. Elas ajudavam a forjar o elo com a cultura mais antiga e a tradição imperial, para fortalecer aque- la “segunda sociedade”, às vezes chamada “o mezanino”, onde os burgueses em ascensão encontravam-se com os aristocratas dispostos a se adaptar a novas formas de poder social e econô- mico, um mezanino onde a vitória e a derrota se transmutavam em compromisso social e síntese cultural. (schorske, 1988, p.63, grifos nossos) nunca Viena havia assistido a uma transformação dessa en- vergadura. A cidade velha ficara encurralada e excluída do novo complexo, e os proprietários dos imóveis antigos temiam pela desvalorização de suas propriedades (tinham razão de sobra para isso!). Havia uma demanda para a construção de residências e a ringstrasse veio para atendê-la. o império seduziu-se com a ha- bilidade liberal para fazer a gestão do empreendimento, e os lo- tes residenciais foram logo vendidos. Com o dinheiro das vendas foram construídos prédios públicos e vias, além de demais obras de infraestrutura. Essas residências, evidentemente, foram fei- 28 José Artur MolinA tas para atender à aristocracia e aos industriais burgueses e, em imóveis “mais modestos”, a grande classe média exultante. não havia, portanto, um planejamento urbano global, no qual esti- vessem incluídas as classes operárias, artesãs, além de pequenos comerciantes. nas ideias iniciais da ringstrasse, pensou-se no modelo ur- bano inglês, com sobrados geminados com uma área de jardim privativa. na inglaterra, porém, já estava instituído pela revo- lução industrial a separação entre local de trabalho e moradia, mas como Viena nessa época ainda era pré-capitalista (além de ser uma sociedade arcaica) a ideia inglesa naufragou. Acaba, assim, prosperando a ideia da venda de lotes gran- des, com tamanho suficiente para a construção de palácios; al- guns até foram feitos, mas o objetivo dessa urbanização era a construção de edifícios residenciais com uma série de unidades para abrigar famílias. o pavimento térreo, entretanto, fora des- tinado ao comércio. A ringstrasse era o lugar de aristocratas, capitalistas e fun- cionários públicos, e teve um sucesso comercial nunca visto. Era frequente também que uma família proprietária de um edifício habitasse um dos apartamentos e alugasse os demais. A guerra de ideias circulava até mesmo entre os arquitetos, es- pecialmente na concepção do espaço urbano. Camilo sitte, tra- dicionalista por vocação, defendia que a estética clássica deveria ser predominante na construção de uma cidade; já otto Wagner, funcionalista por pragmatismo, defendia que uma cidade deveria atender às necessidades de seu povo. Como podemos constatar, a estética e a função foram as categorias dominantes na concep- ção da ring. A primeira venceu no que diz respeito às fachadas (sempre opulentas e aristocráticas), e a segunda nos interiores dos edifícios e apartamentos (bem mais modestos do que os pa- lácios que a Viena imperial estava habituada a ver). sitte era adepto de uma organização espontânea da cidade, a exemplo daquelas que haviam sido criadas durante a idade Mé- o que Freud diziA sobre As Mulheres 29 dia. Ele mostrava-se refratário com relação às inovações que a modernidade exigia, e acreditava que faltavam valores aos no- vos tempos. Por outro lado, otto Wagner personificava a figura do empreendedor: um engenheiro na era da matemática! Para ele, ser funcional era uma necessidade que precisava ser atendi- da tendo em vista a comunidade (moradia) e o município (rede comercial). E tudo isso era altamente sedutor, não somente pela necessidade social (da classe média), mas também por ser algo que se revela altamente lucrativo: como resistir? sitte era um he- rói da estética; Wagner um pragmático compulsivo; o velho e o novo, outra vez, em questão na Viena do século XiX. tal como enfatiza Berman (1998, p.16) a modernidade, so- bretudo em seu período áureo (fins do século XViii e século XiX), exibia toda sua constituição ambivalente. Junto com o ideário revolucionário e de transformações e ebulições sociais, ela trouxera um profundo sentido de ordem e estabilização; com a propalada liberdade, criaram-se instituições fechadas e cons- tritoras, tendo a prisão e a fábrica como seus ícones principais; com a promessa de fartura, viera também a pobreza dos operá- rios; com a racionalidade, a democracia e a lei, prometidas à so- lução serena dos conflitos, vieram as guerras em escala mundial, com sofisticadas tecnologias de matar. Com os antagonismos entre tradição e vanguarda, Viena vai se transformando aos poucos num lugar propício para o advento da psicanálise. Com ela surge uma vanguarda na afirmação da sexua- lidade e seu papel principal nas formações das histerias. o espírito vitoriano (que ali ainda pulsa) e o universo masculino, porém, co- mandam Freud na reificação do falocentrismo. Para Bertin (1990, p.82), Freud foi filho de seu tempo ao “levar em consideração as raízes sociais da histeria [;] ele não vê que essa neurose [poderia ser encontrada tanto em mulheres] pobres, [quanto em mulheres] ricas, [dado ser] a única escapatória para as rebeldes”. A rebeldia era uma atitude emergente. otto Wagner fler- tou com o movimento secessionista de Klimt, abolindo o jeito 30 José Artur MolinA clássico de construir ambientes. Wagner abominava o renas- centismo da ringstrasse e acreditava que o homem moderno precisava visualizar um horizonte, uma vez que se encontrava perdido. o homem moderno, descrente de modelos antigos, ti- nha necessidade de encontrar uma forma de estar no mundo que fizesse frente aos desafios da modernidade. Berman (1998, p.17) recorre a um personagem da novela Heloísa, de rousseau, para descrever a sensação provocada pela modernidade num jovem que saíra do campo para morar na cidade. Dizia ele, em carta à namorada, que se sentia em meio a um turbilhão de aconteci- mentos, inebriado pela agitação e fascinação urbanas que o dei- xavam atordoado. tratava-se de um novo mundo no qual “tudo que é sólido desmancha no ar”: crescimento urbano, industrial, comercial, mudanças sociais põem fim aos modelos feudais, pois os impérios intransigentes não conseguem mais administrar as constantes contradições e demandas do corpo social. Essa é a transição vivida por Viena no final do século XiX, uma transformação que se dá inicialmente do sistema feudal para um liberalismo laissez-faire, e deste para modelos ditato- riais encampados pelo nacional-socialismo (mais para o final do século). Viena não teve tempo de se preparar para evitar essa tragédia. os liberais bem que tentaram se mostrar como uma possibi- lidade política institucional para gerir esse mundo em transfor- mação, mas fracassaram. talvez porque tenham defendido uma política burguesa de caráter narcisista, produzindo uma legião de excluídos e alimentando espíritos intolerantes. Viena vivia sobressaltada com seu destino próximo, e nela a democracia li- beral desfalecia, deixando um campo aberto para o retorno de absolutismos que iam conquistando o poder pelas vias que os próprios liberais haviam construído: o voto restrito. A liberdade foi perdendo o seu valor e seu perfume, para dar lugar ao amar- go hálito de ditadores, sob a promessa de serem defensores do povo. Com eles retorna o exército e a igreja católica, depois de o que Freud diziA sobre As Mulheres 31 serem deixados à margem pela vitória liberal. A obra de otto Wagner é testemunha dessa transição, sobretudo o edifício da Caixa Econômica Postal: A sede da Caixa Econômica Postal, construída por Wagner, deu provas da revitalização paralela das velhas forças religiosas sob novos disfarces sociais. A instituição fora criada para o “pe- queno poupador”, num esforço subsidiado pelo Estado de con- trabalançar o poderio das grandes casas bancárias – o “partido rothschild”. Ela fora adotada pelo partido social-cristão como resposta institucional para a classe média baixa ao poder dos banqueiros judeus e dos liberais: muitos pequenos correntistas uniriam seus recursos para compensar o poder dos poucos po- derosos. o burocrata que criou a Caixa Econômica Postal nos anos de 1880, Georg Coch, tornou-se um herói mártir dos an- tissemitas cristãos. seus adeptos não conseguiram pôr seu bus- to no edifício da nova sede, supostamente devido à influente oposição judaica. o prefeito Karl lueger assumiu a causa como uma questão política. seu governo municipal social-cristão deu o nome de Coch à praça em frente da Caixa Econômica e, com a concordância expressa de otto Wagner, colocou o busto de Coch num pedestal da praça – o primeiro monumento a um herói da cultura antissemita na ringstrasse. Já vimos como a Votivkirche simbolizara o poder da reação tradicionalista ca- tólica, numa das extremidades da ringstrasse, justamente no início da era liberal; a Caixa Econômica Postal marcou seu ressurgimento como força populista na outra extremidade da rua – em frente de um novo Ministério da Guerra –, com o encerramento da era liberal. (schorske, 1988, p.105) Assim, otto Wagner – apaixonado por Klimt e pela secessão, além de defensor de uma nova ordem de caráter funcional, vi- sualizando especialmente o crescimento das urbes e do desejo do homem moderno de habitá-las – constrói um templo populista, 32 José Artur MolinA mas fiel à arquitetura pragmática, deixando o tédio e a rudeza do campo para trás. Sinais do Apocalipse o liberalismo confunde-se com o capitalismo. De alguma forma a liberdade evocada pelos liberais está a serviço dos negó- cios, e para que estes evoluam bem é preciso ter poder político, tecnologia e infraestrutura. o absolutismo imperial teria, por- tanto, que dar lugar a um comando constitucionalista: império da lei. os arcaísmos e as mentes retrógradas e feudais deveriam ser banidos em favor de uma lógica racional. A escola deveria ser secular, o que significava dizer que o conhecimento científico de- veria ocupar o lugar da igreja católica. Dessa forma, é praticamente impossível não considerar que os liberais dinamitaram estruturas antigas, propondo alterna- tivas que fossem plausíveis numa sociedade que ainda estava ingressando na modernidade. Durante quase vinte anos, mui- tas transformações foram feitas e, com elas, advieram também muitas contradições. A promessa de liberdade (certamente res- trita) não seduziu as massas porque estas não puderam usufruir dela, sentindo-se órfãs – e o mundo dos liberais não pretendia reivindicar sua paternidade. A liberdade era para quem era digno dela. os liberais sabiam que os aristocratas sempre estiveram numa posição de superioridade, real ou imaginária; estavam, porém, agonizando, sofrendo “num hedonismo inofensivo e or- namental” (schorske, 1988, p.125). A sociedade deveria estabe- lecer-se sobre outros patamares, permitindo a liberdade de ação e transmitindo a cultura por todo o império, dando condições para que os que estavam “embaixo” pudessem ter oportunida- des num mundo de livre mercado. ordem e progresso (que nós brasileiros conhecemos bem) era o lema dos liberais, podendo o que Freud diziA sobre As Mulheres 33 ser desdobrado também em lei e capital, ou economia libidinal e interdito edipiano, na psicanálise. Freud é levado pelos tempos de mudança (veremos reverberações dessas transformações em suas proposições com relação à medicina tradicional), mas não se esquece da lei (do sujeito psicanalítico). Em 1828, a Áustria ganha sua primeira ferrovia por in- termédio de Mathias von schönerer. schönerer era um libe- ral típico: possuía boa visão de negócios, principalmente no que diz respeito à eminente necessidade de investimentos em infraestrutura, e era empreendedor e diplomático. Pionei- ro na implementação das estradas de ferro, tinha um dis- creto orgulho de ser uma raposa quando a situação o exigia, afinal conseguia ser conselheiro até mesmo de casas bancá- rias que eram suas concorrentes (Crédit mobiliar de sina e o oesterreichische Creditanstalt dos rotchschild). Aos vinte anos, schönerer vai aos Estados unidos aprender como cons- truir ferrovias, e volta de lá com a primeira locomotiva do im- pério. Contrata técnicos americanos para começar a fabricar, na Áustria, tanto as máquinas quanto as composições, a fim de diminuir a dependência interna do mercado estrangeiro. na época, ainda se discutia se a locomotiva deveria ser a cavalo ou a vapor. A primeira foi certamente de tração animal. Mas, com o tempo, Mathias conseguiu convencer os banqueiros a finan- ciar as máquinas a vapor. schönerer recebe o título de nobreza depois de inaugurada a Ferrovia imperatriz isabel, mantendo relações com quem pudesse alimentar suas ambições: ban- queiros, liberais, judeus, corretores e funcionários imperiais. tinha conseguido tudo o que um liberal poderia desejar – for- tuna e ares aristocráticos. tanto é assim que schönerer decide comprar um castelo numa propriedade rural (uma espécie de feudo), em rosenau, na baixa Áustria – um castelo dos tempos da rainha Maria teresa, avó do imperador Francisco José. schönerer era um novo rico, de gosto duvidoso, à maneira li- beral: um dândi vienense! 34 José Artur MolinA Ao contrário do que acontecia com os jovens burgueses, o fi- lho de schönerer, Georg, não foi para o Gymnasium (no qual o aluno recebia fortes conhecimentos clássicos como filosofia, literatura, artes, línguas e matemática), mas para uma escola técnica. Pode-se intuir que seu pai queria vê-lo, o quanto antes, seguindo seus passos na construção de ferrovias ou na área in- dustrial. Georg, contudo, frustra a ambição paterna: depois de perambular em várias escolas, acaba numa escola técnica rural e herda o castelo do pai. na contramão paterna e de toda a alta burguesia da época, o filho migra da metrópole para o campo, e com ele vai-se também o título de nobreza com o brasão que representa a tecnologia (a roda alada azul e prata). seria talvez mais adequado que o brasão apresentasse um arado para o filho schönerer. Georg schönerer abraça, no campo, todas as forças mais rea- cionárias que se poderia encontrar no império austro-húngaro. E, por ironia, vai combater tudo o que seu pai defendia como um liberal legítimo: ordem e progresso, lei e desenvolvimento. Está claro que Georg espera o pai morrer para começar sua arrancada ao mundo do terror: antissemita convicto, ele leva para suas filei- ras até os estudantes nacionalistas da universidade. o filho de Mathias schönerer, contudo, soube andar muito bem acompanhado: era aliado do Príncipe de schwarzenberg, um aristocrata convicto das virtudes do conservadorismo social e adepto do liberalismo para aumentar seu capital. o príncipe é um grande homem de negócios, ou melhor, agronegócios – e Georg estava ao seu lado para administrar suas fazendas. Dessa forma, schönerer filho começa a encontrar um es- paço político que lhe daria condições de defender sua política num futuro próximo. Ele ajuda a fundar bases para os traba- lhadores do campo, mas, ao mesmo tempo, defende métodos científicos para a maior absorção dos potenciais da terra. Dis- simula apoio ao imperador colocando cartazes com Francisco segurando um arado. o que Freud diziA sobre As Mulheres 35 Georg inicia sua carreira parlamentar associando-se a uma ala liberal rural de esquerda. logo perde a paciência com esses grupos políticos, que trabalhavam com mãos débeis o afã sepa- ratista dos eslavos. os liberais queriam negociar para não perder os dedos, já que a instabilidade política era péssima para os ne- gócios. Além dessa questão, schönerer não podia aceitar a in- sensibilidade liberal com respeito aos problemas sociais, pois ele defendia reformas sociais contra a exploração do campesinato e dos artesãos. os liberais não tinham nenhuma posição certa a respeito de seu nacionalismo e, muito menos, nenhum plano que pudesse se transformar em algo parecido com distribuição de renda. o austro-liberalismo começa a fraquejar, debilitando-se e dei- xando um vazio político que outros ocupariam, cada qual a sua maneira; com ele o império austro-húngaro despenca em queda livre no abismo que redundaria na Primeira Guerra Mundial. A universidade começa a abandonar sua devoção pela razão e abraçar a paixão do sectarismo e, como se não bastasse, nas mãos de um novo rico e aristocrata por herança – não por direito – e levanta sua última bandeira: o antissemitismo. Aliás, para quem queria destruir o Estado Multinacional austríaco, o liberalismo e os banqueiros, um único alvo seria suficiente: os judeus. Eles foram assimilados pelo império, trabalhando em pequenos co- mércios ou na rua como camelôs, e também eram proprietários de indústrias, jornais e casas bancárias. tratava-se de um povo supranacional, que para sobreviver submetia-se, dentro de suas possibilidades, às forças políticas locais e vigentes. schönerer defende os aristocratas (donos de uma antiga for- ma de produção) e seus funcionários (massas de trabalhadores); ele e seus partidários atacam os pequenos comerciantes judeus e defendem os artesãos – atacando violentamente os judeus (che- gavam a afirmar que eles eram vampiros, sugadores das econo- mias dos menos privilegiados). Foi em sua luta pela nacionaliza- ção da nordbahn (ferrovia dos rothschild, aliados de seu pai), 36 José Artur MolinA entretanto, que Georg mostrou sua face de filho inconformado. A rede era lucrativa e o contrato tinha que ser renovado. Para ele, contudo, era preciso extirpar esses usurpadores da sociedade – e nem o imperador escapou de suas acusações: o nacionalismo compunha o núcleo positivo da fé de schö- nerer; mas, como o nacionalismo poderia ser satisfeito sem uma desintegração total, schönerer precisava de um elemento nega- tivo que desse coesão ao sistema. Esse elemento foi o antisse- mitismo, que lhe permitiu ser simultaneamente antissocialis- ta, anticapitalista, anticatólico, antiliberal e anti-habsbúrgico. (schorske, 1988, p.137) schönerer deixou admiradores: lueger e Hitler. Karl lueger não tinha a vocação rural de schönerer, e muito menos aspiração à nobreza. Embora fosse filho de um modesto funcionário públi- co, estudou numa escola de jovens aristocratas (o theresianum), e era um homem da cidade, motivo pelo qual não compartilhava com schönerer o empenho nacionalista e o feroz antissemitis- mo. Apesar de democrata, lueger associou-se com quem em seu tempo lhe convinha. sensível às causas sociais, nunca deixou de seduzir as massas, trabalhando para estender a elas o direito ao voto. Assim, ele conseguiu galgar posições que lhe dariam poder para desenvolver sua trajetória política; sem romper com o im- pério, lueger resgatou sem dificuldades aliados poderosos que haviam sido depostos pelo liberalismo (os católicos) e, a partir daí, alçou voo político como social-democrata-cristão. os liberais acreditaram que, aliando-se ao rei, poderiam manter-se no governo livrando-se do poder da aristocracia feudal, querendo manter dela, porém, uma distância amisto- sa. instituindo um Estado secular, eles retiram o ensinamento do catolicismo das escolas e promovem uma nova lógica de co- mando, baseada na racionalidade. A igreja percebeu que havia perdido o terreno que fora seu nos últimos séculos e apelou o que Freud diziA sobre As Mulheres 37 para o imperador, que não conseguiu defendê-la com energia, deixando que os liberais transformassem tudo com tecnologia, cultura, modernizando a sociedade e criando, assim, o concei- to de Viena como uma urbe do século XX. Além disso, os li- berais não se opunham ao Estado Multinacional de Francisco José i. o grande pecado dos liberais foi sua insensibilidade com respeito aos cidadãos de “segunda classe” – artesãos, operários e pequenos comerciantes. Eles ignoraram tanto aqueles que estavam acima quanto abaixo; no imaginário liberal, aliás, era preciso dar condições para que aqueles que galgassem posições acima, e fizessem por merecer, passassem também a fazer parte da exitosa classe média vienense. Foi justamente nesse vácuo de representação política que lueger se instalou para ocupar a li- derança, aglutinando forças políticas díspares como católicos e antiliberais. A aristocracia estava ressentida; a igreja percebe que não bas- tava sentar-se ao lado do rei para estar no poder, e alinha-se com a social-democracia católica, acrescentando-se a isso também, o sentimento de orfandade das massas: está montado o cenário do ocaso do pensamento liberal e o nascimento de nacionalismos intolerantes – um neofeudalismo que tramava pelo fim da mo- narquia, propalando um certo socialismo que tentava salvar os operários massacrados por capitalistas inclementes. Eis as bases do partido social-cristão. é preciso ressaltar que lueger tem sua origem política no liberalismo; ele une-se a ignaz Mandl (que era judeu) no con- selho municipal defendendo os alfaiates e verdureiros, para que eles tivessem direito a voto. os liberais dividiram-se sobre essa questão, o que provocou a ira dos chamados “cidadãos de cinco florins”, como eram conhecidos aqueles trabalhadores.. lueger defende uma ideologia de esquerda, mas simulta- neamente alinha-se com a direita, unindo-se também a schö- nerer contra a concessão da ferrovia do norte, oferecida aos 38 José Artur MolinA rotchschild para que fosse nacionalizada. lueger, passo a passo, migra do capitalismo para sua antítese e, por último, cede ao furor antissemita das massas: “lueger, em suas posi- ções públicas nos fluidos anos de 1880, refletia a sombria tran- sição da política democrática para o protofascismo” (schorske, 1988, p.145). Embora o eleitorado de lueger fosse crescendo, o habili- doso político ainda enfrentava rejeições do alto clero (que des- confiava da euforia do baixo clero), e também dos influentes liberais. tanto é assim que lueger foi eleito prefeito em 1895, e o imperador não o empossou – para a alegria dos liberais, en- tre eles, Freud. Dois anos depois, porém, Francisco José não resistiu e acabou assumindo o poder da capital do império (hoje, a avenida principal da ringstrasse chama-se lueger, e o número 1 da mesma avenida é a universidade – algo bastante sintomático!). Freud hoje também está presente na universi- dade (representado num busto), ao lado de uma lixeira. Cha- ma a atenção que um bonito jardim, situado em frente à igreja de Votivkirche, no começo da ringstrasse, receba o nome de Freud. A universidade, pela qual Freud tinha enorme apreço (e na qual desejou ingressar como docente, mas que o rechaçou junto com sua psicanálise), acabou se curvando tardiamente a ele, ainda que essa melancólica homenagem o representasse por um busto, pétreo e emudecido. A falência do liberalismo fez também outra vítima: theodor Herzl (1860-1904). Judeu, filho de comerciante rico e mãe apaixonada pelas artes, Herzl teve uma formação elitista: estu- dou no Gymnasium (a escola secundária dos “bem-nascidos”). sua família pertencia a uma classe empresarial hegemônica que se identificava com a cultura alemã, e a ambição de Herzl era ser escritor, embora o pai quisesse que ele se tornasse advoga- do. não conseguiu o almejado êxito como escritor, mas ganhou um presente: foi convidado pelo Neue Freie Presse para ser seu correspondente em Paris. o cargo era honroso, pois o jovem, o que Freud diziA sobre As Mulheres 39 na capital francesa, teria acesso aos acontecimentos mais im- portantes da Europa: meca dos direitos dos cidadãos, Paris era a vanguarda de uma nova política, quiçá de uma nova ordem social. E theodor Herzl estava bem relacionado com as forças liberais da época: Quando theodor nasceu, em 1860, sua família estava bem longe do gueto: economicamente estabelecida, religiosamente “es- clarecida”, politicamente liberal e culturalmente germânica. seu judaísmo ia pouco além do que theodor Gomperz, o helenista ju- deu assimilado, gostava de chamar “un pieux souvenir de famille” [uma devota recordação de família]. (schorske, 1988, p.153) Essa parecia ser a tendência daquele que ia “para frente” e estava “em cima”. Como não lembrar de Freud em vista da se- melhança de suas posições com as de Herzl? Para a decepção de Herzl, o que ele assiste é o desmorona- mento dessa nova ordem liberal, um grande retrocesso político, uma vez que as massas ambicionam um “Pai” que as levará a um lugar sonhado: cai o imperador e nasce o ditador. não poderia a lei do Pai freudiana ter sido construída diante do caos que a opressão representa? Esse terreno é preparado pela extensa lista de escândalos – ocorridos longe dali, mas que produziram efeitos devastadores, envolvendo o parlamento francês. A corrupção foi minando a casa legislativa de forma tão grave, a ponto de o desejo de entre- gar a nação a um novo imperador ser senso comum nas diferen- tes fileiras sociais do país. A democracia tinha-se esvaziado, e sua essência passara a ser o anseio pela monarquia. A sociedade “está novamente madura para um salvador”, alguém que assumisse em sua pessoa toda a responsabilidade a que os cidadãos cumpridores das leis se recu- sam por medo. (schorske, 1988, p.159) 40 José Artur MolinA theodor tenta convencer o jornal do qual era corresponden- te a defender uma postura mais à esquerda do liberalismo. Pro- gramas com sensibilidade social poderiam acalmar a fúria das massas; a posição titubeante dos liberais com respeito à defesa do sufrágio universal, entretanto, estava municiando o inimigo e afundando a burguesia. Questionava-se, dentro das alas liberais, se ignorantes tinham direito a voto, pois havia naquele momento a crença de que só o conhecimento libertava. Dentro desse lema, Herzl sempre defendeu que a cultura dignifica o homem e, com isso, não haveria raças ou guetos, mas espíritos cativos da ambi- ção pelo saber. A bandeira da cultura unificaria os povos, e, ob- viamente, apenas a Alemanha poderia ser portadora dela. nesse sentido, Herzl é um assimilacionista, ou seja, os judeus deve- riam ser incorporados à comunidade onde vivem como cidadãos e, com ela, desaparecer a religião que segrega. Ele estava sendo coerente com o pensamento do liberalismo: um Estado laico, de- mocrático, embora com voto restrito, com tecnologia e cultura não vinculadas a conceitos transcendentais. Foi na França onde Herzl assistiu, melancolicamente, a derro- cada dessa ordem, e por motivos muito bem definidos: a corrupção. [...] o escândalo do Panamá foi fundamental, uma prova da falência do parlamentarismo francês. o peculato e o suborno político foram desmascarados na investigação da péssima admi- nistração do grande projeto do canal, que custara milhares de vidas e milhões de francos. A responsabilidade viera abaixo; os parlamentares não “representavam” o povo em nenhum sentido moral. A corrupção minou o domínio da lei e liberou o poder irracional das massas. Finalmente, irromperam à superfície os mais novos inimigos da república: os antissemitas. (schorske, 1988, p.161) o caso do capitão Dreyfus ilustra bem o clima que reinava na capital das luzes e do mundo. Militar, judeu, altamente con- o que Freud diziA sobre As Mulheres 41 decorado pelos serviços prestados à nação, Dreyfus fora alvo de uma armação maquiavélica: em 1894 acusaram-no de cons- piração, espionagem e traição. Condenado à prisão perpétua, o militar perdeu patente e honrarias, amargando durante anos de cativeiro na ilha do Diabo, na Guiana Francesa. émile Zola, ao lado de Herzl, saiu em sua defesa no jornal literário L’Aurore, re- digindo uma carta aberta ao Presidente da república. Em 1906, Dreyfus foi absolvido e, apesar disso, nunca teve plenamente de volta seus direitos como militar (os heróis judeus deveriam ser “desmascarados” pela fúria dos “esquecidos”). o caso foi uma comoção mundial e dividiu a França entre os que estavam “a fa- vor” ou “contra” Dreyfus. Diante do crescimento do antissemitismo, mesmo na Fran- ça, cada vez mais Herzl sente-se solitário em suas posições. Consequentemente, reacende-se nele o espírito judaico, na forma de um salvador: num delírio desesperado, Herzl con- sidera a possibilidade de uma conversão coletiva de todos os judeus ao catolicismo (prática comum quando era convenien- te). Ele chegava mesmo a imaginar-se conversando com o Papa para negociar a questão. outra possibilidade que ele aventara seria convocar os detratores dos judeus a duelos individuais, à moda feudal. Certamente isso não acalmaria os apóstolos do antissemitis- mo, porque a razão da fobia não era religiosa, e muito menos ra- cial, mas econômica. Havia muitos banqueiros judeus, grandes intelectuais judeus, empresários judeus, mas a ira também era dirigida do pequeno comerciante ao camelô judeu: a intolerância é sempre oportunista, hipócrita e interesseira. A desapropriação e confisco de numerários era iminente, e algo precisaria ser feito. theodor Herzl perde as esperanças de que a razão pudesse salvar a população do caos que se avizinhava e, cansado de ser estrangeiro desde sempre, Herzl advoga pela criação de um Estado judeu. As sementes do sionismo começam a ser plantadas. 42 José Artur MolinA Herzl entra em contato com a força das massas enfurecidas na miséria. Conhece-as em seu ímpeto socialista, nacionalista, cris- tão e antissemita – aprendendo a temê-la também. Por ironia, é a partir dessa experiência que ele pretende montar o Estado judeu. A população dos guetos seria a vanguarda do movimento, tanto na conquista de um território quanto no convencimento de judeus ricos a patrocinarem essa empresa. A habilidade de Herzl estava em considerar que os guetos não iriam se dedicar a causa apenas por dinheiro, pois era preciso mais. Assim como um árabe vai à Meca, um judeu deveria caminhar em direção à terra prometida, um lugar onde poderiam existir sem pedir li- cença ou se converter em algo que não podiam ser. Acreditar e sonhar com esse lugar era mais importante do que benefícios fi- nanceiros, embora sempre fosse levada em consideração a justiça social. o civilizado Herzl não hesitaria em utilizar o potencial ex- plosivo das massas para convencer judeus ricos como os Hirsch e os rothschild a colaborar com a causa sionista. Ele acreditava que, em virtude da ameaça de explosão, conseguiria obter o po- der necessário para seus objetivos. Herzl, dessa forma, alinha-se a seus próprios antagonistas, schönerer e lueger: Em seu apelo às massas, Herzl combinou elementos arcaicos e futuros tal como schönerer e lueger antes dele. os três líderes abraçaram a causa da justiça social e fizeram-na o centro de suas críticas às deficiências do liberalismo. os três uniram essa as- piração moderna a uma tradição arcaica: schönerer à das tribos germânicas, lueger à da ordem social católica medieval, Herzl à do reino pré-diáspora de israel. os três fundiram o “para a fren- te” e o “para trás”, a recordação e a esperança, em suas ideolo- gias e assim franquearam o presente insatisfatório a seguidores que eram vítimas do capitalismo industrial antes de serem a ele integrados: a artesãos e quitandeiros, a ambulantes e moradores de guetos. (schorske, 1988, p.171) o que Freud diziA sobre As Mulheres 43 Por necessidade, justiça ou conveniência, os polos antagôni- cos da política vienense guardam semelhanças. A baixa de Herzl é definitiva para a satanização do liberalismo: todos os seus fi- lhos se levantaram contra o pai, mas não sem encontrar fortes resistências. schönerer enfrenta o liberalismo germânico; lue- ger, os liberais católicos e o alto clero, sempre reticentes; e Herzl, os judeus ricos. Fora isso, a aristocracia, no topo da escala social, era sempre pouco amistosa com todos. As fantasias de Herzl, de violentas reações contra os judeus abastados, acabaram por não se concretizar; porém, o “Embai- xador” era um homem de relações e encontrou mais apoio entre príncipes e realezas do que com seus próprios irmãos. A ideia de sionismo de Herzl tinha um espírito liberal em quase todos seus aspectos, exceto o da sensibilidade social. Quanto ao idioma, pensava que o hebreu era pouco conhecido, além de faltarem palavras para nomear a modernidade como, por exemplo, bilhete de trem. o iídiche era a língua vulgar das ruas do gueto, e os judeus, para ele, deveriam falar a língua que melhor os definisse como povo e lugar. no que diz respeito à religião, ela deveria manter-se nas sinagogas, já que a palavra de ordem era “a fé nos une, a ciência nos liberta” (schorske, 1988, p.175); e com relação aos militares, eles deveriam permanecer nas casernas. E Herzl também não abandona sua atração pela lei, uma das prerrogativas do liberalismo. Enfim, o sionismo de Herzl não é propriamente uma reação ao liberalismo, mas ao antissemitismo. Ele flexibiliza suas posições para atrair as massas, seduz com discursos inflamados de espe- rança da terra natal, que não deveria ser necessariamente a Pales- tina, mas a política deveria ser conduzida pelos “bem-nascidos”. é no Congresso sionista em Basileia (1897) que Herzl revela seu pecado latente: o desejo aristocrata. Muda o evento na últi- ma hora para o suntuoso Cassino Municipal de Basileia, e obriga o povo a vestir black-tie, alegando que o Congresso merecia um luxo proporcional à sua importância. o saldo de todo esse movi- 44 José Artur MolinA mento foi que Herzl passa a ser o rei dos judeus. Houve gritos no Congresso, e ele torna-se mais importante que a torá! o século XiX é o século de avanços e retrocessos, um século que titubeia entre o conservadorismo e as forças progressivas e reluta em manter privilégios feudais. Ao mesmo tempo, sofre pressões de um exército de famintos e enfermos, agravados pela presença de camponeses exilados em decorrência de uma suces- são de colheitas desastrosas. o problema é que as urbes também sofriam com um processo de industrialização que criava uma massa de proletários, mas também desalojava os artesãos de seus ofícios. o resultado disso, naturalmente, era o desemprego. Além do mais, pressões da burguesia, que começa a aprender a fortalecer-se com o capital, exigem mudanças naquilo que as impedem de acumular numerários e propriedades, e a manter a ordem para a manutenção dessa lógica. é um período vivido como um grande turbillon social (Berman, 1998, p.17), que ia das tensões e embates nas ruas parisienses à tagarelice dos sinos e das máquinas nas fábricas e oficinas, ambos tematizados por Baudelaire em seus textos e poemas (Augé, 1994, p.23). A revolução de 1848 eclode em toda a Europa. As rebeliões erigem-se contra monarquias inadimplentes e absolutistas, con- seguindo por vezes aglutinar forças antagônicas: burgueses, pe- quenos burgueses, excluídos e socialistas. A insatisfação era co- mum; entretanto, as soluções políticas para cada uma eram bastante díspares. o fracasso da revolução de 1848 no império austro-húngaro apresenta os mesmos motivos dos demais impérios, mas guar- da uma especificidade: é um império multinacional, constituído por poloneses, tchecos, romenos, croatas, húngaros e italianos do norte. E um consenso entre tantas forças antagônicas só seria conseguido à força. As forças democráticas no século XiX naufragaram sob as águas da tradição bélica do continente; não surpreende, portan- to, a declaração de otto Bismark: “os problemas de hoje não se o que Freud diziA sobre As Mulheres 45 decidem com discurso, nem tampouco com voto das maiorias. Esse foi o grande erro de 1848 e 1849. Decidem-se com ferro e sangue” (Kent, 1982, p.53). Quando a palavra termina, a violência começa; essa é uma das marcas do século XiX. As forças políticas aprenderam algo que não imaginavam um dia poder realizar: derrubar ditadu- ras! Entretanto, achavam que seria mais fácil a segunda tarefa, ou seja, o que fazer depois – uma falsa ilusão, e o fracasso das revoluções de 1848 é a prova cabal disso. Para se ter uma ideia da dificuldade desse processo, a acomodação geopolítica da re- gião aconteceu cem anos depois, com o fim da segunda Guerra Mundial. A modernidade, na efervescência de seu apogeu, carregou o signo da destruição, da violência e do conflito (Harvey, 1993). As lutas e embates políticos, a renovação das cidades e da pró- pria subjetividade foram fortemente marcados por imagens de destruição e reconstrução. no fundo, a modernidade pretendia erradicar qualquer sinal do antigo regime e substituí-lo pelos novos sinais, que eram suas marcas de um novo tempo. tratava- -se de desmanchar os sólidos pilares do Antigo regime para co- locar em seu lugar outros talvez ainda mais resistentes ao tempo. Maria Antonieta é um bom exemplo desse espírito violen- to e destrutivo da modernidade. A cidade de Paris é outro bom exemplo, na arquitetura e urbanismo. Haussman conduziu a re- volução urbana de Paris, principalmente no segundo império, iniciado por napoleão iii, em 1851, com um agressivo planeja- mento que colocou abaixo bairros inteiros, cortou a cidade com grandes avenidas, implantou redes de água e esgoto e mudou radicalmente a fisionomia de Paris. Freud incorporou o espírito guerreiro e demolidor da moder- nidade trazendo para o âmago de sua teoria a noção de conflito. trouxe para o psíquico, à semelhança do que ocorria na socie- dade da época, imagens de uma vida anímica em ebulição, em revolta, marcada por desavenças e contradições. 46 José Artur MolinA Desde o início de suas especulações teóricas, o psiquismo foi retratado como um campo de forças em oposição, em con- fronto e com conflitos insolúveis. um verdadeiro estado de guerra entre a consciência e o inconsciente, entre as pulsões e as interdições, entre o princípio do prazer e o da realidade, entre o processo primário e o secundário, e assim por diante. se depois de cem anos as placas tectônicas do império austro- -húngaro já haviam se acomodado razoavelmente num estado e numa sociedade relativamente estáveis, o mesmo não se pode dizer do sujeito freudiano, que continuou imerso em ebulições ainda maiores, com outros abalos sísmicos como o da falência da imago do pai e do falo. Por outro lado, abriga o contraditó- rio, ao abraçar o falocentrismo. Mas o que nos interessa mais diretamente, no panorama da Viena mergulhada no processo de modernização, é tentar enten- der os movimentos de Freud em relação às tendências diversas que se colocavam diante dele, na ebulição do seu tempo. As mulheres do imperador e do império A política matrimonial, que habitualmente abrigava inte- resses de Estado, produzia uma sucessão de relações infelizes. não se pode dizer que Francisco José i e Elizabete tenham en- contrado a felicidade, mas não foi por falta de amor. Francisco, assim como todo o império, era fascinado por Elizabete. Bela, sensível, interessada nas questões cotidianas de seus súditos. sissi, como era conhecida, encarnava um anjo que protegia o seu povo: Ela é ao mesmo tempo graciosa e altiva, mas apesar de seus trajes suntuosos, de suas joias maravilhosas, ela não pertence ao mundo deles, nem mesmo àquela época. Criada por pais generosos, fora das regras de sua casta, ela ignora a hipocrisia o que Freud diziA sobre As Mulheres 47 e os preconceitos. Possui aquilo que os cortesões mais temem: o sentido de independência. rejeitam-na de imediato e vincu- lam-se ao clã da arquiduquesa sofia. (Bertin, 1990, p.26) sofia era mãe e conselheira de Francisco. Havia preparado seu adorado Franz para herdar o fabuloso império austro-hún- garo. Aos 18 anos assume o poder e dá adeus à juventude. o imperador não tomava nenhuma atitude de Estado sem antes consultá-la. Mulher de braço forte, tentava isolar sissi, para que não pudesse influenciar seu filho nas questões de governo. Por mais que a amasse, Francisco não conseguia saber da infelicidade de sua esposa, a ponto dela ser chamada de “imperatriz da so- lidão”. Entre o casal encontrava-se a arquiduquesa, o alter ego de Francisco. o império tinha muitos problemas para manter-se coeso, e sissi defendia uma gestão de governo menos absolutista. Fran- cisco deveria dar mais autonomia às regiões que compunham o império por direito, e não por estratégia. Mas, naqueles tempos, quem poderia ouvir uma mulher – salvo a arquiduquesa? “As mulheres mais desfavorecidas não são as menos fiéis a essa sis- si longínqua que parece tão boa quanto magnificamente infeliz: veneram a imagem romântica” (Bertin, 1990, p.31). As mulheres não tinham voz. rodolfo, sucessor ao trono, fi- lho de sissi e Francisco, também defendia a causa da mãe. Mas sua fragilidade era patente quando tinha que defendê-la. A tra- gédia abate-se sobre o império, e rodolfo, em comum acordo, mata sua acompanhante e suicida-se. A tragédia acontece em seu pavilhão de caça em Mayerling, nos bosques de Viena, a poucos quilômetros da cidade. Esse fato ainda teve implicações na linha sucessória do im- pério, pois o arquiduque Francisco Ferdinando, sobrinho do imperador, é o sucessor natural. Essa situação desagrada Fran- cisco, a ponto de ele se sentir aliviado quando o sobrinho e sua esposa são assassinados em sarajevo. A miopia de Francisco 48 José Artur MolinA José i não lhe permitia ver o fim dos Habsburgos no final da Primeira Guerra Mundial. sissi não pode superar essa tristeza, afastando-se de Fran- cisco, não sem antes deixá-lo na companhia de Katarina, uma atriz. Ele continua amando sissi, mas quem é sua companheira é a atriz. o imperador pergunta para sua esposa o que ela gos- taria de ganhar de presente e ela responde: um manicômio! Ele é construído de forma monumental como uma homenagem de Viena à loucura. otto Wagner é o encarregado da obra e convi- da vários artistas para ajudá-lo. no centro do asilo, é construída uma igreja espetacular. Bettelheim (1990) não se engana quando afirma nunca ter visto uma cidade empenhar-se com tanto esme- ro para a construção de um asilo. Hoje podemos ver Elizabete pelo que era, histérica, narcisista e anoréxica. À época, porém, foi aclamada, com muita justiça, a mulher mais bela da Europa [...]. A loucura exercia especial fas- cínio sobre Elizabete [...]. Exaltava a morte e a loucura em co- mentários do tipo “A ideia da morte purifica” e “A loucura é mais real que a vida”. (Bettelheim, 1991, pp.8-9) sissi viaja por vários lugares; seu coração parece procurar um lugar para serenar, mas não encontra. Em Genebra, um fanático italiano mata-a a facadas, pelas costas, quando a linda imperatriz fazia um de seus passeios a lugares distantes de Viena. o impé- rio começa a se desmantelar, e Francisco tenta dissimular a dor, trabalhando 16 horas por dia para mantê-lo unido. Apesar de todo o clima trágico de desagregação e morte, Viena insiste em conservar uma alegria para a vida. A cidade é festiva, talvez para esquecer, e, isso pode ser percebido em todas as classes sociais: As mocinhas do povo riem fácil, o que agrada aos homens, a todos os homens, os de sua condição e igualmente aos das classes o que Freud diziA sobre As Mulheres 49 ditas superiores. Em princípio, a moral é rígida, mas todos sa- bem que uma mulher que ri já está quase conquistada. E as po- bres não têm quem vele por sua virtude. Elogios, alguns doces e algumas flores produzem o efeito desejado. o amor as consola de muitas coisas; nos braços de um homem que a acha bonita, esquece que passa fome, que mora numa água-furtada imunda e que amanhã talvez perderá mais uma vez seu ganha pão. Canta- rolando as árias da moda, decerto o galante a levará para dançar ou para ouvir as cantoras e cantores populares que se apresen- tam nos cabarés, onde é quente e onde se ri bebendo-se um vinho claro como a água. (Bertin, 1990, pp.46-47) o fato é que a cidade em festa acontece em todos os lugares: os bailes da corte, os bailes da burguesia, os bailes das lavadeiras ou dos condutores de charretes. Viena curva-se à substituição do minueto (uma dança tipicamente aristocrática) pela valsa (tipi- camente burguesa), o que já havia acontecido em outras capitais europeias. As resistências e reservas em relação à valsa deviam- -se ao fato de ela ser considerada uma dança demasiadamente sensual. Mas a explosão da alegria e da diversão, pela dança e pelo teatro, não estavam imunes aos contornos políticos. o movimento cultural, nessas condições, tendeu a se des- viar da política e a se concentrar nas atividades menos compro- metedoras da música e do teatro – este voltado sobretudo para a afirmação da legitimidade da dinastia, por meio de dramas históricos então em voga. [...] é o tempo da reação política e do medo, que favorece o retorno à intimidade, à roda de amigos, às diversões que não comprometem, como a bebida e a dan- ça. [...] a valsa começa a se impor; dança burguesa, a princípio considerada escandalosa pela proximidade física entre os dan- çarinos, que contrastava com o toque de ponta dos dedos e as regras estritas do minueto, a valsa é também dança inebriante, romântica, na qual as figuras da coreografia não estão determi- 50 José Artur MolinA nadas a priori e que por isso mesmo permite à imaginação uma manifestação inesperada. refúgio do particular, evocando o amor e a interioridade [...]. (Mezan, 2006, p.38) Viena é a capital da dança e da ópera. As casas de espetáculo são construídas em diversos lugares da capital, e as operetas ga- nham o coração do público; com isso, produz-se uma verdadei- ra indústria de entretenimento ali. Boa parte das operetas pos- sui letras que rotulam as mulheres como infiéis, frívolas, que se deixam levar facilmente por pobres galanteios. o humor a res- peito delas é ácido, e todos riem como se tratasse apenas de uma burla inocente. Em Viena, mais do que em qualquer outro lugar, elas foram submetidas a uma clausura social que as manteve num isola- mento que não possibilitava pensar em sua situação de opres- são: tudo era natural para elas. talvez faça sentido a afirmação de Bettelheim (1990) de que a psicanálise não poderia ter palco mais adequado do que a capital austro-húngara. Em parte é por isso que ela surgiu ali; as histéricas acabaram por representar o sintoma, não apenas de si mesmas, mas de uma sociedade hipó- crita e decadente. Viena era uma cidade fechada sobre si mesma, e isso, para o ilustre vienense, favorecia a interioridade. Mas para as mulheres, aparentemente, essa interioridade era repre- sentada pelo sofrimento: “a servidão em que vivem as vienenses cria um terreno particularmente favorável ao desenvolvimento das neuroses. não é por acaso que os suicídios ocorrem em tão grande número na capital da Áustria-Hungria” (Bertin, 1990, p.91). Embora todo o cenário fosse muito desfavorável para a mu- lher, algumas conseguiram destaques surpreendentes: a Ba- ronesa Bertha von suttner, que recebe o Prêmio nobel da Paz em 1905, o primeiro concedido a uma mulher; Hélène Deutsch (psicanalista), Marie Bonaparte e lou Andréa salomé (discípu- las de Freud); Enrica von Handel-Mazetti; Marie von Ebner- o que Freud diziA sobre As Mulheres 51 Eschenbach, Eugéne Marlitt e Emilie Marriot (todas escritoras); Eugénie Primavesi, que se encanta com os artistas rebeldes da secessão e convence seu marido rico a lhe conceder a missão de mecenato, e, junto a ela, Editha Markhof; Alexandrine schöne- rer, inconformada com as posições antissemitas do irmão, traba- lha com paixão nas montagens de peças de teatro; Alma Mahler, mulher vibrante que, com sua beleza e dinheiro pode usufruir da liberdade que faltou às suas companheiras de sexo. Essas mulheres foram verdadeiras heroínas. o acesso à edu- cação era muito restrito a elas, principalmente no que diz respei- to aos estudos superiores. os homens, para ter acesso à universi- dade, tinham que prestar um exame chamado maturidade (uma prova do ensino médio). As mulheres, quando podiam prestar o exame, não tinham direito ao nível superior, posto que o certi- ficado não continha uma cláusula que lhes permitisse ingressar nas universidades. os professores eram todos homens; as mulheres, porém, po- deriam ser professoras do nível primário. Mas era uma luta difícil, sendo tão difícil convencer a bu- rocracia do imperador quanto à opinião pública. nessa época, em que tantas novas iniciativas vão transformar o aspecto e o espírito de Viena, permanece impossível à maioria aceitar que as moças têm direito de fazer o exame de maturidade e que têm capacidade de ser bem-sucedidas. (Bertin, 1990, p.113) só em 1919 as mulheres adquiriram o direito de estudar em ginásios junto com os homens. A data é emblemática, por tra- tar-se também do final da Primeira Guerra Mundial. Enquanto os homens foram para a guerra, as mulheres ficaram nas cida- des ocupando seus lugares. Com isso, depois da guerra, elas não quiseram ser reconduzidas à sua anterior insignificância: ganha- ram autoconfiança e provaram que poderiam ter um outro papel na sociedade. 52 José Artur MolinA As famílias não estimulavam as mulheres aos estudos de nível médio e muito menos aos superiores, e as operárias não podiam estudar, uma vez que tinham que trabalhar prematuramente. Fato é que esse mundo dos homens queria não só que suas mulheres ficassem relegadas à solidão, mas também submersas na ignorân- cia. Até homens notadamente inteligentes como Freud pensavam que as mulheres deveriam ficar na esfera doméstica: elas tinham outra natureza e não deviam competir com os homens. Freud teve diante de si a senhora Emmy – um dos casos de histeria apresentados em seu trabalho com Breuer, em 1895, detalhando seus sintomas e sua história clínica. Em uma breve passagem menciona que ela, após a morte do marido, assume o comando da empresa da família, no que se saiu muito bem. é contraditório que Freud tenha conhecido mulheres tão destaca- das e tenha sido tão generoso com elas e, ao mesmo tempo, tão conservador. Ele próprio reconhece que é um homem de ciência, mas, dentro de casa, não passa de um pequeno burguês: Há, portanto, a partir dessa época, a coexistência de uma maioria que vive e raciocina como se a sociedade austríaca fos- se imutável, e de um fragmento dessa sociedade que leva em conta as reviravoltas da era industrial. Curiosamente, Freud encontra-se entre os dois grupos. Em sua vida particular, permanecerá pa- recido com o que era ao se casar, enquanto suas descobertas o classificam entre os inovadores mais ousados. [...] sobretudo as mulheres sentem-se tentadas a modificar as coisas, pois elas veem nisso um meio de suas filhas adquirirem confiança em si, confiança que, no fundo, lhes falta, mesmo às mais mimadas. to- dos elogiam sua beleza, sua elegância, suas boas-maneiras, mas ninguém quer perceber que também são um cérebro. (Bertin, 1990, pp.118-119) é notável como Freud e Breuer referem-se às suas pacientes como mulheres inteligentes e cultas, tal como no caso Anna o., o que Freud diziA sobre As Mulheres 53 Emmy e Elizabeth. no entanto, acabam tratando tais qualidades como simples adornos, que tornavam essas mulheres mais admi- ráveis, porém sem “funcionalidade” no mundo. os homens não queriam casar-se com mulheres instruídas em cursos superiores, e elas temiam que essa ousadia as conde- nassem a uma vida profissional, embora sem marido. Aquelas que ousavam fazê-lo ficavam no ostracismo, mesmo sendo mé- dicas, por exemplo. Acesso à faculdade de Direito e Ciências Políticas, só em 1919! E isso sem considerar que o mercado era generoso e que havia lugar para todos. Havia a crença de que as mulheres não deveriam percorrer os caminhos da lei e da polí- tica. Poderiam os homens, então, temer que seriam subjugados por suas mulheres? A inveja do pênis não seria uma metáfora dessa situação aviltante (o ato de pensar sendo atribuído exclusi- vamente aos homens)? Apesar disso, a posição de Freud é ambivalente, pois nin- guém pode acusá-lo de não ter ajudado, com a psicanálise, aque- las pacientes subjugadas por ordem opressora. sua filha Anna, contudo, não fez curso superior. Para ilustrar essa situação, basta observar alguns dos dados referentes a mulheres com curso superior na época: Margare- te Janke-Garzuly, a primeira doutora em ciências, formou-se em 1921; Hélène Hammermann, engenheira, apenas em 1930! o caso de Elise richter é típico e extraordinário ao mesmo tempo: Ela demonstra muita habilidade em sua tática e consegue que a autorizem a fazer uma conferência para um auditório forma- do por todos os professores da faculdade. Graças a seu discurso, julgam-na afinal de acordo com todas as exigências legais, e ela é admitida no corpo professoral por 41 “sins” contra dez “nãos”. Porém o voto só será validado dois anos depois, em 1907. Elise richter torna-se então a primeira mulher privat-dozent da Áus- tria. (Bertin, 1990, p.130) 54 José Artur MolinA Em 1938, porém, ela é enviada a Auschwitz. Viena deve muito a essas mulheres que, com sua rebeldia e inteligência, conseguiram conquistar um novo lugar para a mulher numa sociedade de homens que claudicava na deca- dência. Freud, com sua psicanálise, e apesar de seus pecados, também ajudou nessa causa. no mínimo, ele deu voz a elas por meio de sua “cura pela palavra”, depois de uma firme reivindi- cação de uma delas bramindo que se calasse e a deixasse falar. 3 aS mulhereS de Freud Freud nunca ocultou sua dificuldade em descrever o desen- volvimento psíquico ou a sexualidade feminina. isso porque o que navega em águas serenas, a tramitação edípica no menino, encontra na menina uma correnteza difícil de controlar. o pri- meiro problema que se apresenta é que um evento importante deve acontecer para romper o idílio mãe-filho. no menino, a angústia da castração o conteria em seus desejos libidinosos e o levaria para o mundo dos objetos. Assim, embora Freud defen- da que não se pode agarrar a diferença anatômica para entender a oposição masculino-feminino, claramente o pênis terá aí um papel fundamental. A diferença anatômica, para ele, poderia le- var à biologia a responsabilidade pela diferença psíquica entre os sexos. Portanto, a pergunta se a mulher nasce mulher ou se faz mulher revelaria a preocupação da gênese do ser mulher atri- buída a fatores constitucionais, hereditários ou, por outro lado, construídos a partir de uma subjetividade reinante. O feminino Que angústia teria a menina para fazê-la afastar-se da díade mortal narcísica com a mãe? A castração não funcionaria, pois 56 José Artur MolinA como pode alguém temer perder o que já teria perdido? A mu- lher seria uma castrada biológica? nesse ponto, Freud se vê com um grande problema, e esse “árduo” tema é tratado em poucos textos – a 33ª̄ Conferência: A feminilidade (1933) é o último tex- to em que aborda o assunto. num primeiro momento, ele corrige sua afirmativa nos três Ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), no qual afirmava que o par de opostos (ativo-passivo) corresponderia, respecti- vamente, a masculino-feminino. Freud confessa que essa rela- ção foi promovida pela experiência épica e primitiva do macho que ataca agressivamente a dócil e indefesa fêmea, o macho sen- do um violador e a fêmea, a violada. Freud desaconselha a se trilhar esse simplório caminho por ser inadequado e não trazer nada de novo. Ele defende que as ideias da conferência estão calcadas na ex- periência analítica, e não têm quase nenhuma especulação. seria possível, porém, isentar-se das influências subjetivas do meio na inferência conceitual da experiência? Poder-se-ia considerar característica psicológica da femi- nilidade dar preferência a fins passivos. isto, naturalmente, não é o mesmo que passividade; para chegar a um fim passi- vo, pode ser necessária uma grande quantidade de atividade. [...] Devemos, contudo, nos acautelar nesse ponto, para não subestimar a influência dos costumes sociais que, de forma semelhante, compelem as mulheres a uma situação passiva. tudo isso ainda está longe de uma elucidação. Existe uma re- lação particularmente constante entre feminilidade e vida ins- tintual, que não devemos desprezar. A supressão da agressivi- dade das mulheres, que lhes é instituída constitucionalmente e lhes é imposta socialmente, favorece o desenvolvimento de poderosos impulsos masoquistas que conseguem, conforme sabemos, ligar eroticamente as tendências destrutivas que foram desviadas para dentro. Assim, o masoquismo, como o que Freud diziA sobre As Mulheres 57 dizem as pessoas, é verdadeiramente feminino. (Freud, 1996 [1933], pp.116-117) Freud tem razão: tudo isto é muito obscuro. Mas o femi- nino é fruto de uma conjugação de normas sociais e constitu- tivas que resultam num conceito ligado à passividade, pulsão e masoquismo. Diga-se, de passagem, que o masoquismo não é atributo exclusivo das mulheres, pois homens com metas femininas também poderiam ambicioná-lo (lembremo-nos de que Freud advertira que a conferência seria muito pouco especulativa). De qualquer forma é preciso diferenciar, desde já, feminino de mulher e masculino de homem, pois feminino e masculino são conceitos e mulher e homem são posições de existência. é inegável, contudo, que os afluentes sempre de- sembocam no leito principal. Aparentemente, a psicologia não conseguira resolver o enig- ma da feminilidade, como defende Freud (1991 [1933], p.108). De acordo com sua natureza peculiar, a psicanálise não ten- ta descrever o que é a mulher – seria esta uma tarefa difícil de cumprir -, mas se empenha em indagar como é que a mulher se forma, como a mulher se desenvolve desde a criança dotada de disposição bissexual. Freud confessa que na sua posição de um pesquisador ho- mem pode ser acusado de defender ideias masculinas arraigadas sobre o feminino. Como separar o sujeito pesquisador do obje- to pesquisado? Freud tentará manter-se neutro, apesar de que a psicanálise sempre incluiu o agente mesclado em suas emoções com o agenciado. Basta lembrar do conceito de transferência e dos atropelos do mestre no caso Dora. A psicanálise surge na relação analítica e, sob essa justificati- va, Freud atribui sua proposição do feminino – a esse ambiente, e não em cima de uma especulação. Ele próprio admite, porém, 58 José Artur MolinA que a situação da mulher diante do cenário social não poderia ser desprezada. todavia, poderíamos questionar até que ponto o homem Freud, filho de seu tempo, ateve-se somente às suas observações clínicas para postular que o feminino é uma formação oriunda do masculino? Fica a impressão que ele não queria fazer com a mulher uma psicossociologia. Freud tenta construir a teoria do psiquismo alheio ao entorno social (embora não o negue), uma análise que para ele seria mais verdadeira e profunda do que aquela visível pela sociedade. Em sua visão, o social seria uma superfície que acobertaria verdades íntimas, inconfessáveis, como o desejo in- cestuoso. De certa forma poderíamos estar aí encontrando um sintoma político de Freud, uma visão de essência, que se revelou imutável ao longo do tempo. Voltando à proposta freudiana do feminino, Freud constata que o desenvolvimento da menina, até se tornar mulher, é mais complicado do que o do menino, segundo a lógica do complexo de édipo. Estamos autorizados a manter nossa opinião segundo a qual, na fase fálica das meninas, o clitóris é a principal zona erógena. Mas, naturalmente, não vai permanecer assim. Com a mudança para a feminilidade, o clitóris deve, total ou parcialmente, trans- ferir sua sensibilidade, e ao mesmo tempo sua importância, para a vagina. Esta seria uma das duas tarefas que uma mulher tem de realizar no decorrer do seu desenvolvimento, ao passo que o homem, mais afortunado, só precisa continuar, na época de sua maturidade, a atividade que executara anteriormente, no período inicial do surgimento de sua sexualidade. (Freud, 1996 [1933], pp.118-119) A menina deve trocar não só de objeto, mas também de zona erógena. A mulher madura deverá privilegiar a vagina como ór- gão regente de sua sexualidade. o que Freud diziA sobre As Mulheres 59 surge então a questão de saber como isto ocorre: particular- mente, como é que a menina passa da vinculação com sua mãe para a vinculação com seu pai? ou, em outros termos, como ela passa da fase masculina para a feminina, à qual biologicamente está destinada? (Freud, 1996 [1933] p.119). talvez não seja preciosismo afirmar que na edição das Obras Completas de Freud em espanhol1 (Amorrortu Editores), a fra- se acima citada não vai acompanhada de uma interrogação. Daí uma questão: destino biológico? Para quem fundou a psicanálise sob a égide da pulsão em detrimento do instinto parece suspeito a referência à biologia; para quem desbravou o mistério das his- terias fundando um conhecimento novo, distante da medicina, essa afirmação não pode deixar de nos surpreender. nesse as- pecto, parece que a ousadia freudiana sucumbe ao empobrecido lugar da tradição: o clitóris seria um pênis que não teria vingado, embora fosse uma fonte de prazer. A maturidade feminina acon- teceria quando se abandonasse o fracassado pênis, e se abraçasse a condição de ser uma mulher vaginal. nesse sentido, a mastur- bação seria atributo masculino, abandonado pela mulher no mo- mento de seu abraço à vida vaginal. na teoria freudiana, a supressão da sexualidade clitoridiana não era apenas parte da explicação teleológica implícita que le- vava à sexualidade genital vaginal; tinha-se tornado uma parte essencial da história de como a menina finalmente deixava de ser um homenzinho. (Appignanesi; Forrester, 2010, p.607) 1 “Así nace el problema de averiguar cómo ocurre esto y, en particular, cómo pasa la niña de la madre a la ligazón con el padre o, con otras pa- labras, de su fase masculina a la feminina, que es su destino biológico”. (Freud, 1991 [1933], p.110) 60 José Artur MolinA Freud procura, entretanto, outros indícios dessa transformação. Através da experiência com as histerias tornou-se possível construir o conceito de fantasia: o fato apenas precisava da uma materialização psíquica, e não de um acontecimento para operar como verdade – e isto porque a primeira teoria de Freud sobre a etiologia das histe- rias seria a sedução da menina pelo pai, mas, na “eterna” fase pré- -edípica da menina, ela é seduzida pela mãe. Digo “eterna” porque a menina permanece na fase pré-edípica, ou seja, de ligação com a mãe, muito mais do que o menino, o que é coerente com a suposição freudiana de que a mulher é pulsional – afinal, antes de édipo não existe o simbólico –, e pode ser que a menina nunca saia desse lugar. Mas o que poderia romper o idílio entre mãe e filha? Freud aponta para a possibilidade do ódio ter sido protagonista dessa façanha. Ódio do leite negado, da falta de amor, do nascimento de um irmão. Mas Freud não se sente convencido e continua a perseguir o verdadeiro responsável pela cisão: Acredito havermos encontrado esse fator específico, e, na verdade, no lugar onde esperávamos encontrá-lo, embora numa forma surpreendente. Eu disse onde esperávamos encontrá-lo, pois se situa no complexo de castração. Afinal, a distinção ana- tômica [entre os sexos] deve expressar-se em consequências psí- quicas. Foi uma surpresa, no entanto, constatar, na análise, que meninas responsabilizam sua mãe pela falta de pênis nelas e não perdoam por terem sido, desse modo, colocadas em desvanta- gem. (Freud, 1996 [1933], p.124) A solução é encontrada: a menina se dá conta que o menino tem algo que ela não tem. E, o que é pior, ela tem é um vazio! Assim, a menina estaria condenada a uma inveja do pênis, que a perseguiria por toda sua existência e, aliás, o ciúme seria o seu sentimento precípuo. Freud afirma, inclusive, que as mulheres que possuem um ofício intelectual estariam fazendo deste uma metáfora do pênis: o que Freud diziA sobre As Mulheres 61 é difícil duvidar da importância da inveja do pênis. os se- nhores podem imaginar como sendo um exemplo de injustiça masculina eu afirmar que a inveja e o ciúme desempenham, mesmo, um papel de relevo maior na vida mental das mulhe- res do que na dos homens. não é que eu pense estarem essas características ausentes nos homens, ou julgue que elas não te- nham nas mulheres outras raízes além da inveja do pênis; estou inclinado, no entanto, a atribuir sua quantidade maior nas mu- lheres a essa influência. (Freud, 1996 [1933], p.125) A mulher está condenada à inveja e ao ciúme e, além disso, qualquer atividade que a diferencie em sua produção será por causa de seu primitivo desejo de ter um pênis; o homem teria medo de perdê-lo e a mulher sofre por tê-lo perdido. A inveja do pênis seria, portanto, o fator determinante da virada da menina para o objeto pai. Ela descobre que a mãe também é castrada e, consequentemente, ambiciona estar com o pai para que, quem sabe, este lhe auxilie a obter um. Essa realidade levará a menina para três possíveis orientações: (1) inibição sexual ou a neurose; (2) a um complexo de masculini- dade; e, enfim, (3) a sexualidade normal feminina. A primei- ra possibilidade é a da inibida neurótica e infeliz; a segunda, a do desejo de ser homem, homossexual, ou fálica; e a terceira conduziria ao “feminino normal”, ou seja, à resignação. três destinos pouco alentadores. o conteúdo essencial da primeira é o seguinte: a menininha viveu, até então, de modo masculino, conseguiu obter prazer da excitação do seu clitóris e manteve essa atividade em relação a seus desejos sexuais dirigidos à mãe, os quais, muitas vezes, são ativos; ora, devido à influência de sua inveja do pênis, ela perde o prazer que obtinha da sua sexualidade fálica. seu amor próprio é modificado pela comparação com o equipamento muito superior do menino e, em consequência, renuncia à sa- 62 José Artur MolinA tisfação masturbatória derivada do clitóris, repudia seu amor pela mãe e, ao mesmo tempo, não raro reprime uma boa parte de suas inclinações sexuais em geral. seu afastamento da mãe, sem dúvida, não se dá de uma vez, pois, no início, a menina considera sua castração como um infortúnio individual, e so- mente aos poucos estende-a a outras mulheres e, por fim, tam- bém a sua mãe. seu amor estava dirigido à sua mãe fálica; com a descoberta de que sua mãe é castrada, torna-se possível aban- doná-la como objeto, de modo que os motivos de hostilidade, que há muito se vinham acumulando, assumem o domínio da situação. isso significa, portanto, que, como resultado da des- coberta da falta de pênis nas mulheres, estas são rebaixadas de valor pela menina, assim como depois o são pelos meninos, e posteriormente, talvez, pelos homens. (Freud, 1996 [1933], p.126) Desse comentário de Freud podemos constatar que a hiper- valorização do pênis levaria à mudança de objeto da menina em direção ao pai. Desse encontro poderia resultar um pênis sim- bólico – um filho. Mas a realidade é de desvalorização e desven- tura: o universo feminino, subalterno e humilhante, causa uma crise de autoestima. tanto os meninos quanto os adultos do sexo masculino aprendem, desde suas primeiras experiências, que aquelas que lhes acompanham são seres castrados e invejosos, embora tenham nascido desse mesmo lugar. uma ideia muito comum na medicina naqueles tempos era a de que a masturbação era um ato não só pernicioso, mas respon- sável por moléstias psíquicas. Freud acaba por defender que a inveja do pênis inibe o onanismo clitoridiano, uma busca ativa para a realização de desejos típica do mundo masculino. Mas, com a decepção da castração, a menina abandonaria sua ambi- ção masculina e se permitiria posições passivas, preparando o terreno para sua feminilidade. Freud acredita que o desejo fe- minino, por excelência, é o da maternidade; a inveja, que provo- o que Freud diziA sobre As Mulheres 63 ca o desejo de ter um pênis, se concretizaria no filho, ainda mais se fosse um menino. uma outra consequência do postulado de que a angústia de castração faria com que o menino respeitasse a interdição e se ativesse ao que é permitido, e de que a ausência desta na menina a condenaria a uma longa fase pré-edípica, é a de que o supereu feminino é permissivo e indolente. A lei, aí, é branda. nessas circunstâncias