UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Instituto de Geociências e Ciências Exatas Campus de Rio Claro EXPANSÃO URBANA E PLURIFUNCIONALIDADE NO ESPAÇO PERIURBANO DO MUNICÍPIO DE ARARAQUARA (SP) Ana Rute do Vale Orientadora: Profª Drª Lúcia Helena de Oliveira Geradi Tese de Doutorado elaborada junto ao Programa de Pós-Graduação em Geografia - Área de Concentração em Organização do Espaço, para obtenção do Título de Doutor em Geografia. Rio Claro (SP) 2005 Ficha catalográfica 910h.3 Vale, Ana Rute do V149e Expansão urbana e plurifuncionalidade no espaço periurba- no do município de Araraquara (SP) / Ana Rute do Vale. – Rio Claro : [s.n.], 2005 214 f. : il., figs., gráfs., tabs., fots. + mapas Tese (doutorado) – Universidade Estadual Paulista, Institu- to de Geociências e Ciências Exatas Orientador: Lúcia Helena de Oliveira Gerardi 1. Geografia urbana. 2. Cidade. 3. Campo. 4. Plano diretor. 5. Periurbanização. 6. Lazer. I. Título. Ficha Catalográfica elaborada pela STATI – Biblioteca da UNESP Campus de Rio Claro/SP Comissão Examinadora ____________________________________ ____________________________________ ____________________________________ ____________________________________ ____________________________________ ____________________________________ - aluno(a) - Rio Claro, ______ de __________________________ de _______ Resultado: ________________________________________________________________ À minha querida família e aos amigos que me acompanharam e me apoiaram durante mais essa trajetória, dedico. AGRADECIMENTOS Não poderia deixar de agradecer às pessoas que foram de essencial importância para que esse trabalho fosse realizado, em especial à minha orientadora Lucia Helena de Oliveira Gerardi, a qual admiro pela profissional humana e ética que ela representa. Pelos muitos momentos de troca de informações e amizade, e pela paciência e compreensão das minhas dificuldades em conciliar o magistério e a pesquisa. À minha família, principalmente à minha mãe, Olinda, pela força de sempre e por entender que, às vezes o trabalho nos afasta temporariamente das pessoas que amamos. Tudo que sou hoje também devo a vocês, que serão sempre o “meu refúgio preferido”, meu porto seguro, nos momentos de tempestade. Aos amigos e amigas que compartilharam comigo os momentos de desânimo e os de entusiasmo, mesmo que fosse à distância, como foi o caso do Paulo, que sempre tinha uma palavra para me encorajar. Valeu, meu amigo-irmão! E por falar, nos amigos eternos, mais distantes, não posso esquecer da Rose (pelo empréstimo da câmera digital também), do Pedro e da Kiko. Tem também o Marcos, amigo querido da graduação e da vida toda. Enfim, que sempre torceram por mim. Ah, tem também aqueles amigos do dia-a-dia, do trabalho, dos almoços dos finais de semana, do cineminha do domingo e principalmente os que me apoiaram nos momentos de dificuldades. Obrigada Mônica, Roseli, Adriana (que também formatou este trabalho) e Silvio. Nunca esquecerei dessa fase da minha vida com vocês. Aos colegas-amigos da Transcolina e da São Luís, com quem dividi as angústias e alegrias dessa vida de professor/pesquisador durante as viagens Araraquara-Jaboticabal e no ambiente de trabalho. São tantos que eu gosto e admiro, que não daria para citar todos, mas sintam-se representados pelas Márcias (Onofre e Argenti), Sônia, Raquel, Júnior, Silvia, Betânea, Bia, José Vicente, Rosane, Lia, Ismail, Diego... E, especialmente à Vera, amiga e coordenadora da pós, pela extrema compreensão em segurar a barra nos momentos em que eu precisava me ausentar das aulas para escrever a tese. Não poderia esquecer também da querida amiga Juliana, que compartilhou comigo sua experência sofrida no mestrado e seu recente sucesso na defesa tão esperada. Parabéns, Ju! E da Gláucia cuja ajuda profissional e amizade foram essenciais para que eu acreditasse em minha capacidade de realizar esse trabalho, entre outras coisas importante da minha vida, que conquistei nesse último ano. Aos colegas do doutorado que, apesar de ter perdido o contato com a maioria, não esqueci vocês, sobretudo da Rosane Balsan, que formou comigo a dupla das “orientandas complicadas da Lúcia”. Não foi fácil, mas conseguimos terminar, amiga. Boa sorte de agora em diante! Aos funcionários da seção de pós-graduação em Geografia, sobretudo, a Eliana e a Valéria, pela atenção e dedicação em resolver nossas dúvidas e problemas, e aos do prédio da pós, representados pelo Arnaldo e Maíca, com os quais tive maior contato durante o doutorado. E às meninas da biblioteca, Nilza, Mônica e Meire, sempre tão prestativas. Aos funcionários da Prefeitura Municipal de Araraquara, em especial ao Secretário de Desenvolvimento Urbano, Luís Antônio Nigro Falcoski pela entrevista e pela atenção dispensada em todas as vezes que precisei de informações sobre a cidade. Aos funcionários do DAAE, representados por Welington Cyro de Almeida Leite e José Braz Scognamiglio, que me disponibilizaram cópias das fotos aéreas de Araraquara. A Profª Darlene, pela amizade, atenção em indicar e disponibilizar materiais úteis à temática pesquisa, e a seus orientados Lucelina e José Carlos, por terem me enviado seus trabalhos de monografia. À agrônoma da CATI, Maria Claudete Viesi Rezende, pelas informações a respeito da agricultura de nossa área de estudo e as proprietários rurais pelas entrevistas. A senhor Norberto de Freitas pelas informações sobre o processo histórico de constituição do bairro Chácara Flora. Às arquitetas Alexandra Lima, Renata Barbugli e Luciana Cintrão que, gentilmente me cederam os materiais de suas pesquisas, que muito contribuíram para me ajudar a compor a história da expansão urbana e da forma atual da cidade de Araraquara. À Alessandra e ao Vitor, pela arte gráfica que em muito contribuíram para o enriquecimento visual desse trabalho e para o início de novas amizades. Ao Prof. Vitório Barato Neto pela disposição na revisão da redação do trabalho e ao Ricardo Maria pelo abstract. Se me esqueci de alguém, me desculpem. Certamente precisaria de páginas e páginas para agradecer a todos que, de alguma forma, contribuíram para que este trabalho fosse concretizado. Assim, só posso dizer muito obrigada! Eu vejo o futuro repetir o passado Eu vejo um museu de grandes novidades. (Cazuza) S U M Á R I O ÍNDICE...................................................................................................................................... I ÍNDICE DE TABELAS ..........................................................................................................II ÍNDICE DE FIGURAS ......................................................................................................... III RESUMO.................................................................................................................................. V ABSTRACT ........................................................................................................................... VI INTRODUÇÃO ......................................................................................................................12 1. A DIFÍCIL TAREFA DE DEFINIÇÃO E DELIMITAÇÃO DO RURAL/RBANO...20 2. A BUSCA PELO SIGNIFICADO DO CONCEITO DE ESPAÇO PERIURBANO ...64 3. EXPANSÃO URBANA E ESPAÇO PERIURBANO NO MUNICÍPIO DE ARARAQUARA ...................................................................................................................104 CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................186 REFERÊNCIAS ...................................................................................................................192 ANEXOS ...............................................................................................................................202 i Í N D I C E INTRODUÇÃO ......................................................................................................................12 1. A DIFÍCIL TAREFA DE DEFINIÇÃO E DELIMITAÇÃO DO RURAL/RBANO...20 1.1. UMA BREVE ANÁLISE DAS CARACTERÍSTICAS DO MEIO RURAL .......................................21 1.2. AS NOVAS RELAÇÕES CAMPO-CIDADE E O SURGIMENTO DE UMA NOVA RURALIDADE.....32 1.3. A DEFINIÇÃO DE CIDADE NO BRASIL ...............................................................................44 1.3.1 Decreto-Lei 311/1938, ocupação e ordenamento do solo urbano e taxa de urbanização ......................................................................................................................46 1.3.2 O Estatuto da Cidade e os planos diretores ...........................................................57 2. A BUSCA PELO SIGNIFICADO DO CONCEITO DE ESPAÇO PERIURBANO ...64 2.1. CRESCIMENTO URBANO E TEORIAS SOBRE O ESPAÇO PERIURBANO .................................65 2.1.1 Cidade difusa ou contra-urbanização .....................................................................68 2.1.2 Suburbanização ......................................................................................................73 2.1.3 Periurbanização ou rururbanização / espaço periurbano ou franja urbana.........75 2.2. A DINÂMICA DO ESPAÇO PERIURBANO: SEUS DIVERSOS USOS E CONSEQÜÊNCIAS ...........88 2.3. O LAZER PERIURBANO....................................................................................................97 3. EXPANSÃO URBANA E ESPAÇO PERIURBANO NO MUNICÍPIO DE ARARAQUARA ...................................................................................................................104 3.1. CARACTERIZAÇÃO GERAL DO MUNICÍPIO......................................................................105 3.2. HISTÓRICO DO PROCESSO DE OCUPAÇÃO URBANA DO MUNICÍPIO .................................113 3.2.1 A forma urbana atual a questão dos vazios urbanos ...........................................123 3.3. O PLANO DIRETOR COMO ESTRATÉGIA DE DIRECIONAMENTO DO USO DO SOLO............137 3.4. O ESPAÇO PERIURBANO DE ARARAQUARA ...................................................................156 3.4.1. Caracterização da área selecionada para estudo de caso...................................157 3.4.2 Chácara Flora: o bairro “urbano” mais próximo................................................162 3.5. A PLURIFUNCIONALIDADE DO USO DO SOLO NO ESPAÇO PERIURBANO DE ARARAQUARA ............................................................................................................................................166 3.5.1 Outros usos do solo periurbano ............................................................................180 CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................186 REFERÊNCIAS ...................................................................................................................192 ANEXOS ...............................................................................................................................202 ANEXO 1. MACROZONEAMENTO URBANO...........................................................................203 ANEXO 2. EVOLUÇÃO DOS LOTEAMENTOS ..........................................................................204 ANEXO 3. MAPA ÍNDICE DOS BAIRROS DE ARARAQUARA (SP). ..........................................205 ANEXO 4. BAIRROS E CÓDIGOS. ...........................................................................................206 ANEXO 5. ROTEIRO DAS QUESTÕES - ENTREVISTAS COM OS PROPRIETÁRIOS RURAIS. ..........210 ii Í N D I C E D E T A B E L A S TABELA 1. DEFINIÇÕES NORMATIVAS OFICIAIS DOS PAÍSES LATINO- AMERICANOS. .....................................................................................................................45 TABELA 3. EVOLUÇÃO DO NÚMERO DE EMPREGOS OCUPADOS NA INDÚSTRIA, COMÉRCIO E SERVIÇOS NO MUNICÍPIO DE ARARAQUARA. ...111 TABELA 4. EVOLUÇÃO DA POPULAÇÃO URBANA E RURAL DO MUNICÍPIO DE ARARAQUARA (SP). ...................................................................................................115 TABELA 5. LOTEAMENTOS E LOTES APROVADOS POR DÉCADAS, EM ARARAQUARA. ..................................................................................................................120 TABELA 6. DISTRIBUIÇÃO DAS ÁREAS URBANAS DO MUNICÍPIO DE ARARAQUARA (SP)...........................................................................................................130 TABELA 7. TOTALIZAÇÃO DO NUMERO DE IMÓVEIS VAZIOS E CONSTRUÍDOS EM ARARAQUARA. ..........................................................................1366 iii Í N D I C E D E F I G U R A S Figura 1. Coroas periurbanas. ..............................................................................................80 Figura 2: Tipologias dos espaços rurais ...............................................................................86 Figura 3. Localização do município de Araraquara no Estado de São Paulo. ...............106 Figura 4. Aspectos do relevo urbano do município de Araraquara. ...............................107 Figura 5. Aspectos hídricos do município de Araraquara................................................108 Figura 6. Município de Araraquara – posição geográfica. ...............................................109 Figura 7. Áreas verdes e zonas de proteção ambiental na cidade de Araraquara. ........112 Figura 8. Conformação urbana do município de Araraquara em 1929..........................114 Figura 9. Vista aérea de Araraquara, em 1965..................................................................116 Figura 10. Mapa esquemático da Avenida Bento de Abreu. ............................................118 Figura 11. Loteamentos aprovados por década, em Araraquara. ...................................120 Figura 12. Localização dos loteamentos aprovados na década de 1970. ......................121 Figura 13. Localização dos loteamentos aprovados na década de 1980 .......................121 Figura 14. Aspectos da morfologia urbana de Araraquara. ............................................124 Figura 15. Desenvolvimento urbano de Araraquara a oeste da ferrovia. .....................125 Figura 16. Região à leste da ferrovia - Bairro: Altos da Vila Xavier. Araraquara (SP). ................................................................................................................................................126 Figura 17. Densidade demográfica. número de habitantes por região censitária. .........129 Figura 18. Avenida Manoel de Abreu e malha ferroviária...............................................132 Figura 19. Foto aérea da antiga fábrica Anderson Clayton e do Ceagesp em Araraquara, 2002. ................................................................................................................135 Figura 20. Carta imagem de Araraquara. .........................................................................141 Figura 21. Macrozoneamento Territorial do município de Araraquara (SP). ...............151 iv Figura 22. Trecho inicial da estrada vicinal Graciano da Ressurreição Affonso, que liga Araraquara ao distrito de Bueno de Andrada e ao município de Matão................158 Figura 23. Localização da área de estudo.........................................................................159 Figura 24. Imbricação do perímetro urbano no espaço periurbano. ..............................161 Figura 25. Área Urbana do município de Araraquara – SP: localização do bairro Chácara Flora. ......................................................................................................................164 Figura 26. Uso e ocupação do solo no espaço periurbano da área estudada.................167 Figura 27. Foto aérea de parte da Chácara Flora e espaço periurbano do Araraquara, destacando aspectos de algumas propriedades rurais. .....................................................169 Figura 30. Aspectos de uma pequena propriedade que se dedica....................................174 à pecuária e, ao fundo, áreas de outras propriedades ocupadas pela cana-de-açúcar. .174 Figura 31. Área de nascente com mata ciliar preservada em uma propriedade rural periurbana.............................................................................................................................176 Figura 32. Trecho da estrada onde passa a coleta de lixo das propriedades localizadas no espaço periurbano. ..........................................................................................................177 Figura 33. Chácara no espaço periurbano cercada por muros. .......................................179 Figura 34. Imagens de uma chácara com criação de cavalos para lazer no espaço periurbano.............................................................................................................................181 Figura 35. Aspectos de um haras localizado à margem da estrada Vicinal Graciano Ressurreição Affonso............................................................................................................181 Figura 36. Vista da entrada de um motel localizado à margem da estrada vicinal Graciano Ressurreição Affonso...........................................................................................182 v R E S U M O Procurando desvendar a dinâmica do espaço periurbano, este trabalho tomou como exemplo o município paulista de Araraquara. O entendimento do conceito de espaço periurbano deve ter como base a origem do processo que levou ao seu surgimento, ou seja, o crescimento urbano de forma difusa, ocupando as áreas periféricas da cidade. No espaço periurbano convivem agricultura, residências (principal ou secundária) e atividades urbanas. O processo de urbanização e modernização tecnológica transformou as relações campo-cidade e pressionou o meio rural, que cada vez mais se caracteriza pelo “novo rural” e pela “nova ruralidade”, ressaltando características rurais perdidas, principalmente a importância do contato com a natureza, difundida pelo turismo rural. Em Araraquara, o espaço periurbano é analisado a partir da expansão urbana do município que, por ser desordenada, gerou vazios urbanos, além de “engolir” os espaços rurais no entorno urbano. Esses problemas são alvo do novo Plano Diretor do município, que está em fase de votação na Câmara Municipal. Assim sendo, escolhemos uma área que representasse o espaço periurbano do município, onde procuramos destacar sua plurifuncionalidade, quer dizer, de que forma se caracterizam as propriedades rurais, a agricultura, e as formas de uso e ocupação do solo, em especial o lazer periurbano. Palavras-chave: cidade, campo, Plano Diretor, periurbanização, lazer. vi A B S T R A C T Seeking to disclose the dynamics of periurban space, this research has taken as an example the municipality of Araraquara, in São Paulo State, Brazil. The concept of periurban space must be understood in terms of the origin of its own generation process, namely, the diffuse urban growth, occupying the town peripheries. In the periurban space agriculture, households (primary or secondary) and urban activities. The process of urbanization and technological modernization transformed the town-country relationships, pressed the countyside that more and more characterized itself by the “new rural” and by the “new rurality”, by highlighting lost rural characteristics, mainly the importance of the contact with nature, increasingly spread through rural tourism. In Araraquara, the periurban space is analyzed from the start of the municipality urban expansion, which, because disordered, has generated urban empties, besides “swallowing” of rural spaces in the town surroundings. These problems are the target of the municipality’s new Town Planning, which is about to be voted at the Town Council. Thus we have chosen an area which would represent the periurban space of the municipality, where we tried to emphasize its plurifuncionality, i.e. the ways in which rural properties, agriculture, forms of soil use and occupation – particularly periurban leisure – are characterized. Key-words: town, country, Town Planning, periurbanization, leisure. INTRODUÇÃO Introdução 13 As indagações a respeito dos espaços rural e urbano, na atualidade, e o contato com alguns estudos (sobretudo europeus) sobre o espaço periurbano despertaram nossa curiosidade pela pesquisa desse tema. Vimos, então, que a geografia brasileira é carente de trabalhos sobre os espaços do entorno urbano que, a despeito de ainda não terem sido engolidos pela cidade, cada vez mais se transformam social e economicamente. Neles, atividades agrícolas e não- agrícolas misturam-se de tal forma que há dificuldade de diferenciação entre as paisagens rurais e urbanas. Esse desinteresse pelo estudo dos espaços periurbanos pode ser explicado pelo fato de que, até então, os pesquisadores não haviam percebido (ou dado conta de) que existe uma faixa territorial entre o urbano e o rural, extremamente importante por ser dinâmico e plurifuncional. Nesse sentido, nossa premissa principal era entender a dinamicidade e a plurifuncionalidade desse espaço periurbano, que possui características próprias. Buscando referênciais teóricos sobre a caracterização do espaço periurbano em outros países (principalmente, na França e em Portugal), pretendemos entender como ele se configura no Brasil. Antes de tudo, gostaríamos de mencionar ainda que, ao longo de sua história, a Geografia pouca atenção deu à questão rural propriamente dita. Na verdade, sempre houve maior preocupação dessa ciência com os estudos dos espaços agrícolas (e até mesmo com os movimentos sociais no campo), ou seja, com o cultivo da terra e a criação de animais, seus processos e resultados econômicos; enfim, mais com a economia agrária ou agrícola do que com os espaços rurais. Esse fato foi constatado por Ferreira (2002), em pesquisa realizada sobre a produção bibliográfica referente à agricultura brasileira. Nela, a autora verificou que a definição de Geografia Agrária no Brasil sofreu modificações ao longo da história, sobretudo entre as décadas de 1930 e 1990 (período pesquisado), que são o resultado do próprio dinamismo da geografia e da realidade. Assim, segundo a autora, a definição de Geografia Agrária [...] ganhou conotações diversas em períodos diferentes, espelhando os aspectos que marcavam a sociedade em determinadas circunstâncias: o valor da paisagem como reflexo da ocupação do território e a valorização dos aspectos econômicos da produção agrícola, na Geografia Agrária Tradicional; as medidas da agricultura e sua classificação, na Geografia Agrária Quantitativa; a significância social na Geografia Agrária Crítica (FERREIRA, 2002, p.333). Introdução 14 Andrade (1995) já havia ressaltado que, com o decorrer do tempo, os estudos geográficos sobre a exploração rural mostraram a presença de atividades não-agrícolas no espaço rural, como as industriais, as comerciais e as de lazer (essa, principalmente após a década de 1950), fato que levou os pesquisadores do espaço rural a questionarem a real contribuição desses estudos para uma visão totalizante da paisagem rural. Dessa forma, foi necessário que a visão fosse ampliada para que as várias formas de utilização do espaço rural fossem analisadas, o que engloba não somente os estudos da economia agrária e agrícola como também a paisagem, com a presença das mais diversificadas atividades econômicas. Daí ser mais adequada, para o autor, a designação de Geografia Rural em vez de Geografia Agrária ou Agrícola, para essa área da Geografia. Contudo, a nosso ver, o que menos importa é qual o termo mais adequado para a área da Geografia que trabalha com as questões do meio rural. de qualquer forma, preferimos utilizar a denominação de Geografia Agrária, acreditando que seus estudos possam abarcar os mais variados temas relacionados ao meio rural, nas áreas econômicas, sociais, políticas e ambientais, considerando que todas estão correlacionadas. Modernização agrícola; concentração fundiária e conflitos no campo; políticas agrárias; proletarização do trabalhador rural; agricultura familiar; agronegócio; agricultura sustentável; pluriatividade e relações cidade-campo são alguns dos muitos assuntos tratados por esse ramo da Geografia. Voltando ao tema da nossa pesquisa, sua realização consistiu, em termos gerais, em definir e compreender o conceito de espaço periurbano como uma categoria de análise geográfica. Todavia, para chegar ao espaço periurbano, é preciso, inicialmente, discutir a questão da definição e delimitação dos espaços rural e urbano, bem como as novas relações cidade-campo, face ao intenso processo de urbanização no país. Afinal, o espaço periurbano, pela sua plurifuncionalidade, acaba resumindo características dessas duas realidades. Partindo desse pressuposto, escolhemos o município de Araraquara (SP) como estudo de caso por ser considerada como uma das cidades mais prósperas da Região Central do Estado de São Paulo, uma vez que, de acordo com os estudos sobre as cidades médias brasileiras, realizado pelo IPEA (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas), publicado pela revista Exame (dezembro de 2002), ela é considerada como um subcentro regional (até porque polariza muitos municípios no seu entorno) e aparece entre os 111 municípios brasileiros com maior participação no PIB nacional. Além disso, vários estudos de órgão de Introdução 15 pesquisa público apontam essa região como uma área de potencial investimento (ROSA, 2005). Araraquara destaca-se também como importante entroncamento ferroviário, rodoviário e infoviário. Isso significa que o município representa um significativo centro de desenvolvimento de novos negócios e de escoamento de mercadorias, pela possibilidade de utilização multimodal dos meios de transporte. Economicamente, podemos afirmar que o processo de industrialização do município desenvolveu-se concomitantemente com a intensa urbanização a partir da década de 1970. Entretanto, não há como negar a vocação agrícola de Araraquara, que se divide entre a cana- de-açúcar (ocupa atualmente o segundo lugar no estado, em volume de produção) e a laranja (presença da Cutrale, que é uma das maiores exportadoras mundiais de suco cítrico). Por isso, acreditamos que certamente o espaço periurbano de Araraquara poderia ter muito a acrescentar em nossa compreensão geral do mesmo. Especificamente com relação a esse município, tínhamos como objetivos específicos: o resgate histórico de sua expansão urbana, procurando mostrar suas conseqüências sobre a ocupação do espaço periurbano; a análise da situação da agricultura periurbana no município diante do crescimento das atividades não-agrícolas, dentre elas as atividades de lazer (sobretudo as chácaras de recreio) neste referido espaço. Enfim, compreender a plurifuncionalidade e a dinâmica do espaço periurbano de Araraquara. O presente trabalho foi realizado, então, utilizando como método de investigação: a) documentação indireta: levantamento bibliográfico, teórico relativo ao tema. Nesse caso, utilizamos obras produzidas em diversas áreas (sobretudo sociologia, economia e arquitetura), além da geografia. Sobre a definição e a delimitação do rural-urbano, propriamente dita, não houve problemas em encontrar material, pois as referências bibliográficas brasileiras são vastíssimas, uma vez que esse assunto parece ter virado “moda”, principalmente quando se trata do “novo rural brasileiro”. Sobre a expansão urbana de Araraquara, também encontramos monografias, dissertações e teses, em geral, produzidas por sociólogos e arquitetos. Entretanto, constatamos que, quando o tema é o espaço periurbano, a maior parte da produção literária vem dos geógrafos europeus, sendo que utilizamos mais aqueles produzidos por franceses, portugueses e espanhóis. A preocupação principal desses estudos diz respeito à degradação (ambiental, cultural e social) dos espaços periurbanos nas cidades Introdução 16 européias e a necessidade de políticas de planejamento para conter a invasão urbana; b) documentação direta: observações, coleta de dados (estatísticos e cartográficos) e informações empíricas, por meio de entrevistas. Nessa fase da pesquisa, procuramos ouvir os atores sociais envolvidos e participantes tanto na expansão urbana do município como na ocupação do espaço periurbano. Assim, realizamos entrevistas com o Secretário de Desenvolvimento Urbano1, com a engenheira agrônoma da CATI (Coordenadoria de Assistência Técnica Integral) 2, com um diretor-gerente de uma imobiliária3 e com alguns proprietários rurais de nossa área de estudo. Convém ressaltar que a base para a elaboração do material cartográfico da área de estudo foram as foto aéreas do município, cedidas pelo DAAE (Departamento de Planejamento e do Departamento Autônomo de Água e Esgoto) de Araraquara. A partir da fundamentação teórica, desenvolvemos os conceitos que dão embasamento à analise e os métodos utilizados para a realização do nosso trabalho. Procuramos, então, ao longo dos capítulos, discutir os temas necessários para compreendermos que o espaço periurbano representa apenas uma porção da totalidade do espaço geográfico, mas que deve ser inserido nos estudos dos espaços rural e urbano. Com isso, será mais fácil adequar políticas públicas para atender às necessidades da população de cada um desses espaços, que ,apesar da contigüidade espacial, possuem configurações paisagísticas e funcionais diferentes. No primeiro capítulo, discutimos as dificuldades encontradas para definir e delimitar os espaços rural e urbano. Apresentamos, inicialmente, uma análise das características do meio rural, para entendermos, até que ponto, a urbanização as tem afetado. Sabemos que o discurso geral é de que o campo deverá, cada vez mais, sucumbir-se diante da força do urbano, principalmente em termos de cultura, valores, modo de vida e até mesmo com relação à presença das atividades não-agrícolas, que acabam por configurar um “novo rural”. Esse termo, utilizado sobretudo por José Graziano da Silva e os demais pesquisadores participantes do Projeto Rurbano4, merecia uma análise também. Enveredamos, dessa forma, pelo caminho 1 Luís Antônio Nigro Falcoski foi entrevistado em julho de 2004, e os trechos principais serão reproduzidos no capítulos 3. 2 Maria Claudete Viesi Rezende concedeu uma entrevista sobre as propriedades rurais da área de estudo, em agosto de 2005, que foram utilizadas no capítulo 3. 3 Norberto de Freitas foi entrevistado em setembro de 2005. 4 Maiores informações sobre esse núcleo de pesquisa podem ser encontradas no site http://www.eco.unicamp.br/nea/rurbano/ Introdução 17 da discussão sobre as novas relações cidade-campo e o possível surgimento de uma nova ruralidade. Do lado urbano, procuramos resgatar a questão das metodologias utilizadas para definir cidade no Brasil, para tentarmos responder à indagação: será que nosso País é menos urbano do que se calcula, conforme afirma José Eli da Veiga? Tendo em vista os problemas relacionados ao uso e à ocupação do solo, inclusive as dúvidas surgidas sobre as cobranças do IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano) e do ITR (Imposto Territorial Rural), decidimos verificar até que ponto o Estatuto da Cidade e os planos diretores, elaborados a partir dele, poderão contribuir para solucionar tais questões. Partimos então para o segundo capítulo com a intenção de buscar o significado do conceito de espaço periurbano, por meio da relação entre crescimento urbano e as teorias desenvolvidas sobre o periurbano. Em geral, os pesquisadores do espaço periurbano consideram-no como um resultado da cidade difusa (ou contra-urbanização), cujo crescimento espraiado permitiu a ocupação das áreas rurais próximas à cidade, sem que elas tenham sido incorporadas ao perímetro urbano. O processo de ocupação periférica da cidade recebe diversas denominações, como suburbanização, periurbaninação, rururbanização, sendo que a diferenciação entre esses termos, quando existe, é bem sutil. Esse espaço, por sua vez, também recebe nomes diferentes, mas optamos por explicar apenas as designações espaço periurbano e franja urbana ou rural urbana para vermos se realmente possuem o mesmo significado. Terminada a análise conceitual, nós nos voltamos para a compreensão da dinâmica do espaço periurbano, procurando mostrar como se dá a utilização do solo, seja pela agricultura, seja por atividades urbanas, e as conseqüências dessa mistura, tanto em termos espaciais como socioeconômicos. Dentre esses usos não-agrícolas do espaço periurbano, optamos por destacar o lazer, uma vez que vem crescendo no mundo e no Brasil a procura por áreas no entorno urbano, onde os citadinos podem encontrar entretenimento e descanso junto à natureza. Em geral, predominam nessas áreas as residências secundárias, construídas com equipamentos de lazer (piscinas, churrasqueira, etc.), que são utilizadas pela família nos finais de semana e feriados. No terceiro capítulo, chegamos à investigação relacionada ao município de Araraquara, sobre o qual pretendíamos entender como se deu sua expansão urbana e como ela se reflete na plurifuncionalidade e a dinâmica do espaço periurbano. Para isso, procuramos caracterizar o município, mostrando sua importância no estado e no País, principalmente por conta do setor citro-sucroalcooleiro, que representa hoje uma das maiores fontes de divisa brasileiras. Além disso, os setores secundários e terciários também vem crescendo no Introdução 18 município em termos de geração de renda e empregos. Levando em consideração que o município possui hoje uma taxa de urbanização de 95% (Censo Demográfico de 2000), era preciso entender o desenrolar desse processo de ocupação urbana para chegarmos à sua forma urbana atual, caracterizada pela presença de vazios intersticiais na malha urbana, os chamados vazios urbanos. Levantamos dados estatísticos, históricos e cartográficos para compor essa história que, a nosso ver, não se difere muito de outras cidades brasileiras, cuja expansão urbana foi direcionada principalmente pela especulação imobiliária. Procuramos, então, saber quais as medidas que vêm sendo estudadas pela administração municipal para conter essa expansão e resolver os problemas decorrentes dela. Nós nos deparamos com a elaboração de um novo Plano Diretor, que foi encaminhado pelo prefeito à câmara de vereadores, onde se encontra em processo final de votação. A despeito de ainda não estar vigorando, esse documento significa um grande avanço para o município, ao menos em termos de propostas. Dentre elas, selecionamos aquelas referentes aos seguintes assuntos: questões ambientais (já o que objetivo principal dele é o desenvolvimento sustentável), os vazios urbanos, os condomínios horizontais fechados, a delimitação do perímetro urbano e as áreas rurais. A partir daí, escolhemos uma área que representasse parte do espaço periurbano do município, a qual procuramos caracterizar, mostrando sua localização e as atividades econômicas presentes. Dentro dessa caracterização, destacamos o bairro Chácara Flora, o mais próximo da área de estudo que, apesar de ter sido incorporado ao perímetro urbano desde 1979, possui características do meio rural, uma vez que é composto por chácaras de recreio, onde geralmente as práticas agrícolas e a criação de animais se fazem presentes e as ruas não são asfaltadas. Além disso, por estar situado no caminho de uma estrada vicinal que liga Araraquara a Matão, existem ali diversos equipamentos de lazer (clubes de associações, restaurante, clube de rodeio, etc.) freqüentados pela população do próprio município e pelos seus vizinhos. Consideramos, então, que nossa área de estudo representa uma contigüidade do Chácara Flora, pois, apesar de não ser área urbana também possui várias chácaras de recreio e alguns equipamentos de lazer (motel e haras). Nesse sentido, passamos a analisar a plurifuncionalidade da área, inicialmente pesquisando como é vista a agricultura pelo poder público. Mais uma vez, recorremos ao novo Plano Diretor, haja vista que será a partir dele que o município terá um macrozoneamento, dividindo o município em: zona urbana, zona rurbana e zona rural. É importante ressaltar que agricultura rurbana, para nós, é sinônimo de agricultura periurbana. A comprovação empírica foi realizada por meio de visitas a algumas propriedades rurais da área de estudo, onde as observações e as entrevistas nos ajudaram a Introdução 19 traçar um perfil das mesmas. As entrevistas foram feitas sem preocupações quantitativas, já que nosso objetivo era a qualificação dessas propriedades, sobretudo com relação ao tamanho das propriedades e quem residia nelas; à ocupação funcional do proprietário (para saber se havia pluriatividade); ao tempo de aquisição da propriedade; a preocupação de seus donos com a preservação ambiental, e às vantagens e desvantagens da proximidade urbana. Terminamos o terceiro capítulo discutindo as conseqüências atuais e futuras de outros usos do solo, além do agrícola na área. Acreditamos que a presença dessas “novas” atividades no espaço periurbano nos permite refletir sobre a plurifuncionalidade deste e seu relacionamento com os espaços rural e urbano, uma vez que a cidade, o espaço rural e o espaço periurbano são elementos de um sistema único e que necessitam de uma análise geográfica mais apurada. 1. A DIFÍCIL TAREFA DE DEFINIÇÃO E DELIMITAÇÃO DO RURAL/RBANO Estudiosos das mais diversas áreas (inclusive da Geografia) têm-se dedicado à tentativa de definição e delimitação do rural e do urbano. No entanto, acreditamos que esse ainda representa um longo caminho a ser percorrido, tendo em vista que a definição exata e precisa de ambos é cada vez mais difícil e sutil. Apesar disso, estamos dispostos a desenvolver nesse capítulo a árdua tarefa de definir e delimitar os espaços rural e urbano e os processos históricos que modificaram as relações entre eles. Para tanto, seremos auxiliados por alguns referenciais teóricos que serão apresentados mais adiante. Antes de tudo, porém, é imprescindível que partamos do princípio de que o espaço geográfico organizado se divide entre rural e urbano, cada qual com características específicas, não obstante, muitos autores considerem a homogeneização do espaço geográfico por conta do atual período que vivenciamos, denominado por Milton Santos de meio técnico- científico-informacional, ou, simplesmente, globalização. 1.1. UMA BREVE ANÁLISE DAS CARACTERÍSTICAS DO MEIO RURAL Poderíamos definir o espaço rural e o espaço urbano simplesmente pelas atividades que os caracterizam. Assim, diríamos que no campo predominam as atividades agropecuárias e outras "novas" funções, enquanto na cidade concentram-se atividades de produção industrial e serviços específicos. Todavia, a realidade mostra que essa delimitação carece de uma reflexão mais ampla o que nos leva à discussão da atual configuração do espaço rural. Quando se fala do mundo rural, não é tão difícil elencarmos algumas características que o diferenciem do urbano. São elas: a) baixa densidade de população, residências e outros prédios, contribuindo para a predominância de uma paisagem natural; b) uso econômico predominantemente agropastoril; c) os habitantes possuem um modo de vida que se caracteriza pelo pertencimento a pequenas coletividades bem como relações particulares com o espaço; d) a cultura camponesa identifica e representa especificamente o meio rural (KAYSER, 1990, citado por MOTA; SCHMITZ, 2002); e) os habitantes relacionam-se com a natureza por meio de práticas e representações particulares com relação ao espaço, ao tempo, à família e outros (bem diferentes dos citadinos); f) a vivência coletiva resulta em relações sociais de interconhecimento (WANDERLEY, 1997); g) menor diferenciação social; h) 1. A difícil tarefa de definição e delimitação do rural/rbano 22 menor mobilidade social e espacial; i) posse da terra como o centro convergente do sistema político-econômico (DICIONÁRIO DE CIÊNCIAS SOCIAIS, FGV, p.1090, citado por KAGEYAMA, 1998). Ao examinar tais características atribuídas ao meio rural brasileiro, lançamos a seguinte questão: será que elas permanecem inalteradas nos dias atuais? Primeiramente nos reportaremos à questão do predomínio da paisagem natural no meio rural. Se levarmos a definição de paisagem natural ao pé da letra, logo constataremos que no campo a vegetação natural foi substituída por plantações, pastagens e até mesmo construções, ou seja, a natureza foi modificada por ação antrópica, obviamente de maneira menos intensa que no espaço urbano. Serra (1987), citado por Santos (2001), afirma que, em sua luta cotidiana e apropriação do produto do seu trabalho, o homem transforma o ambiente em que vive, seja ele urbano, seja rural. O autor apenas acrescenta que no espaço urbano são construídas edificações que possuem várias funções. Entretanto, sabemos que não é difícil encontrar também no espaço rural, atualmente, edificações com funções tipicamente urbanas (sobretudo industriais e de serviços), o que significa que o meio rural também sofre as conseqüências da vida moderna. A alteração na paisagem natural no meio rural também se dá pela utilização de tratores, colhedeiras nas plantações nas fazendas com levado grau de modernização; pelos desmatamentos e pelo reflorestamento com espécies não-nativas que repercutem na flora e fauna em seu entorno, e ainda pela reprodução artificial dos animais com vistas ao incremento da produtividade que aumenta o número de animais por metro quadrado, interferindo na paisagem natural. Assim sendo, a nosso ver, a paisagem natural foi e continua sendo alterada no campo ou na cidade, mas ainda figura como predominante no meio rural. Até porque, apesar das modificações, ela ainda é um atrativo para os citadinos carentes de espaços que permitam maior contato com a natureza. No caso da predominância das atividades agropastoris em termos de uso econômico no campo, podemos até concordar que seja verdadeira. Todavia, não se pode perder de vista que as transformações recentes comprovam que o espaço rural não pode mais ser definido como exclusivo das atividades agrárias, mas sim por atividades econômicas as mais variadas. 1. A difícil tarefa de definição e delimitação do rural/rbano 23 Consequëntemente, cada vez mais diminui no espaço rural o número de pessoas ocupadas na agricultura, aumentam os residentes no campo que exercem atividades não- agrícolas, além dos pequenos agricultores que continuam dedicando-se à atividade agrícola, mas também buscam outras fontes de rendimento (agricultura em tempo parcial). A esse respeito, Veiga (2003) nos chama a atenção para a realidade dos Países desenvolvidos, onde mais da metade dos empregos rurais está concentrada nos serviços, enquanto mais de um terço está na agropecuária e um quinto na indústria. Isso, segundo ele, não significa que os agricultores tenham se tornado mero resíduo, já que as famílias mantêm os laços com o meio rural, mesmo dedicando-se a outras atividades na unidade familiar de produção. São, portanto, "famílias rurais cada vez mais pluriativas e multifuncionais" (VEIGA, 2003, p.88). Teceremos maiores comentários a respeito da agricultura familiar em momento propício. Essa realidade também está ocorrendo no Brasil. Basta constatar, conforme coloca Scussel (2002), que o meio rural brasileiro assume novas características tanto por conta dos novos hábitos dos citadinos como pela busca de alternativas para complementar a economia da população rural. Nesse sentido, a autora destaca as seguintes características que compõem esse "redesenho" do rural: a opção de moradia da classe média, que busca no campo, fugir dos problemas das grandes cidades - seja em residências próximas às cidades, que permitem o trajeto diário ao trabalho e à escola, seja em situações de aposentados, que já podem se localizar mais distantes das facilidades da cidade, por não demandarem com a mesma freqüência certos serviços urbanos; alternativas de lazer em moradias de fim-de-semana (sítios, chácaras) e centros de recreio do tipo hotel-fazenda, pesque-pague, trecking, etc.; o provimento de infra-estrutura física e mão-de-obra às novas atividades. São os novos serviços, tipicamente urbanos, que passam a ocupar o trabalhador rural, para prover a demanda decorrente da instalação dessas funções imputadas ao campo - trabalhadores domésticos, faxineiros, motoristas, mecânicos, secretárias, marceneiros, etc. (SCUSSEL, 2002, p.67). A existência concomitante de atividades agrícolas e não-agrícolas no espaço rural é um fenômeno que muitos autores denominam de pluriatividade, mas embora possa ter várias definições, optamos por essa elaborada por Schneider (2001) para quem a pluriatividade 1. A difícil tarefa de definição e delimitação do rural/rbano 24 [...] refere-se a situações sociais em que os indivíduos que compõem uma família em domicílio rural passam a se dedicar ao exercício de um conjunto de atividades econômicas e produtivas, não necessariamente ligadas à agricultura e ao cultivo da terra, e cada vez menos executadas dentro da unidade de produção (SCHNEIDER, 2001, p.3). Carneiro (1997, p.152) ressalta que, apesar de ser um fenômeno antigo, a pluriatividade assume dimensões novas no meio rural brasileiro, por isso existe "a possibilidade de novas formas de organização de a produção vir a se desenvolver no campo ou de antigas práticas assumirem novos significados5". Esse seria o que muitos autores, dentre eles, Graziano da Silva (1999) e outros pesquisados que integram o Projeto Rurbano (como já mencionamos na introdução), denominam de "novo rural brasileiro". A pluriatividade também é o exemplo utilizado por Carlos (2004) para explicar que a diferenciação entre campo e cidade está no conteúdo das relações sociais que cada um deles contém, as quais, em sua articulação com a construção da sociedade urbana, acabam por ganhar conteúdo. No Brasil, segundo ela, a pluriatividade seria uma forma de articulação do campo com o urbano "de um outro modo, redefinindo a antiga contradição campo/cidade" (CARLOS, 2004, p.130). Todavia, não podemos perder de vista que a situação no meio rural é bastante diversa, conforme comentam Teixeira e Lages (1997): O espaço rural não é mais o que ele era, daí a pertinência de nos referirmos a espaços rurais, pois existe uma gama de estruturas agrárias e níveis tecnológicos, evocando formas de agriculturas das mais "primitivas" até outras ligadas às técnicas mais modernas do mundo contemporâneo. Existem espaços rurais diversificados, dinâmicos e em permanente mutação. As paisagens e as populações rurais se transformaram profundamente. O rural torna-se polifuncional, daí rural polissêmico. A imagem do rural associado e confundido à imagem do agrícola (em virtude do peso da agricultura) não mais se aplica hoje em dia, sobretudo nos Países industrializados da Europa (TEIXEIRA; LAGES, 1997, p.14). Assim, fica claro que a atividade agrícola não reina soberana no meio rural. Contudo, há que se considerar a diversidade do campo brasileiro. Em determinadas regiões do País, impera mais do que nunca o “velho rural”, com características muitas vezes até feudais, sobretudo no que diz respeito à concentração fundiária. Aliás, uma das características do meio 5 Blume (2004, p.39) cita como exemplo a criação de peixes em açudes que se transformam em pesque-pague. 1. A difícil tarefa de definição e delimitação do rural/rbano 25 rural que não sofreu nenhum tipo de modificação, foi a posse de terra, que se mantém como o centro convergente do sistema capitalista. Após as considerações sobre o "novo rural", não há como negar que o perfil da população residente no campo também se modificou. Quer dizer, o modo de vida rural tradicional6 e a forma como as pessoas se relacionam com o espaço, tendem a se adequar cada vez mais ao modo de vida urbano, especialmente sobre a influência do consumo, que caminha cada vez mais no sentido da generalização, seja no campo, seja na cidade. Trata-se do mundo do consumo conforme explicam Siqueira e Osório (2001): O universo do consumo constrói-se enquanto instância legitimadora da transnacionalização que se contrapõe cada vez mais a outras instâncias, tais como o Estado, a escola, a família. O mundo do consumo está em cada país, mas de maneira vinculada à “modernidade do mundo”. O consumo poderia ser definido como uma nova territorialidade transncionalizada e simultaneamente diferenciada: universo de consumo e universo de estilos de vida (SIQUEIRA; OSÓRIO, 2001, p.68). Segundo Marques (2002), no passado, a população rural possuía sistemas de valores assinalados por solidariedades coletivas, enquanto hoje predomina a “cultura do zapping7” e o individualismo. Dessa forma, o povoado passa a ser composto por “uma coleção de indivíduos, de famílias que rejeitam assumir qualquer responsabilidade na vida coletiva” (MARQUES, 2002, p.102-3). Como a cidade perdeu seu significado como lugar da política e tornou-se o centro privilegiado do consumo, a autora argumenta, baseada nas idéias de Lefebvre (1969) que a natureza passou a ser vista pelos citadinos como “gueto de lazeres”, onde o campo é integrado ao modo de vida dos urbanos. Assim, o campo, sendo colonizado pelos urbanos, acaba por perder suas qualidades, portanto “seu modo de vida particular” (MARQUES, 2002, p.108). É importante ressaltar, contudo, que tal situação se aplica com maior intensidade às localidades próximas aos grandes centros urbanos, onde o processo de urbanização se apresenta de forma mais concreta. 6 Aqui consideraremos a situação em que os costumes e valores ainda guardam características do passado, em que as relações pessoais são mais próximas e intensas, e baseiam-se na afetividade (SOLARI, 1979). 7 A autora está fazendo uma alusão àquela mania compulsiva de trocar rapidamente de programas televisivos por meio do controle remoto. 1. A difícil tarefa de definição e delimitação do rural/rbano 26 Além disso, Alves (2001) argumenta que o processo de urbanização do campo é bem mais intenso nos Países desenvolvidos, enquanto nos Países em vias de desenvolvimento (como é o caso do Brasil) ocorre a ruralização das cidades. Esse fenômeno é facilmente percebido nas médias cidades brasileiras, onde boa parte da população que migra do campo se instala em bairros periféricos. Nesses espaços certamente será possível manter durante um determinado tempo práticas do modo de vida rural, principalmente nos relacionamentos interpessoais entre vizinhos e até mesmo no cultivo da terra (por meio de hortas e jardinagem) e criação de animais de pequeno porte nos quintais. Vale lembrar também que muitas festas religiosas de origem rural se mantêm em algumas dessas cidades. A grande mistura de culturas e a complexa relação entre o urbano e o rural são observadas nas áreas mais pobres das cidades, em suas periferias. São nesses locais que grande parte dos migrantes convivem com suas tradições. E é exatamente aí que eles se reconhecem uns nos outros. Muitos que também abandonaram sua terra natal, que moram ao lado de conterrâneos, recriam vínculos de vizinhança. A ameaça que a cidade traz com a violência força-os a recriarem práticas anteriores, criando associações, grupos de oração, e outras ações comunitárias (ZABOTTO; OLIVEIRA, 2004). No caso dos habitantes rurais dos pequenos municípios, Wanderley (2000) adverte que o processo de urbanização não chega a interferir no modo de vida rural, uma vez que [...] o contato intermitente ou permanente dos "rurais" com cidades desse tipo nem sempre significa o acesso a uma efetiva e profunda experiência urbana, que se diferencie ou mesmo se oponha ao seu modo de vida rural, mas pode significar, simplesmente a reiteração de uma experiência de vida rural menos precária que, por sinal, nem toda cidade brasileira consegue assegurar aos seus moradores, urbanos ou rurais [...] (WANDERLEY, 2000, p.32). No mesmo sentido caminha a cultura camponesa que, podemos dizer, ainda caracteriza o meio rural em muitas regiões do País, resistindo às influências do capital urbano- industrial. Todavia, é fundamental enfatizar que, com o crescimento das áreas monocultoras (agricultura de exportação), houve uma expulsão maciça de trabalhadores rurais que, em sua maioria, migraram para os grandes centros urbanos. Nesse caso, houve um esvaziamento da vida social, que gerou um enfraquecimento nas relações de vizinhança e conseqüentemente na cultura camponesa. 1. A difícil tarefa de definição e delimitação do rural/rbano 27 Ao contrário da tão propagada idéia marxista de que o camponês8 desapareceria frente ao desenvolvimento capitalista, vemos que ele continua persistindo. Isso porque, segundo Chayanov (1974) citado por Siqueira e Osório (2001), a vantagem da agricultura familiar com relação ao capitalismo reside no fato de que nela, por exemplo, o trabalho empregado é contínuo, independentemente da garantia de lucro9. Kautsky (1980), por sua vez, considerava que, a despeito do desenvolvimento capitalista, a pequena exploração agrícola não desapareceria nem atingiria a máxima eficiência, mas coexistiria com a grande exploração, exatamente como temos hoje na realidade brasileira. Nesse sentido, autores como Wanderley (2000) acreditam na sobrevivência da cultura camponesa. Para a autora, vivenciamos um período de reconhecimento oficial da agricultura familiar como ator social no Brasil10, uma vez que os agricultores "são hoje percebidos como portadores de uma outra concepção de agricultura, diferente e alternativa à agricultura latifundiária e patronal no País" (WANDERLEY, 2000, p.36). Para Carneiro (1998, p.9), o agricultor familiar destaca-se como sendo o agente integrador das relações sociais no interior das pequenas propriedades agrícolas11, onde ocorrem a produção e a reprodução de valores, que possuem significados que vão muito além da lógica de parentesco e da racionalidade econômica. Por outro lado, há autores como Graziano da Silva (2002) que advertem que são cada vez mais freqüentes os casos de estabelecimentos agropecuários que são dirigidos por um ou alguns membros e não mais pela família como um todo. "Isso coloca por terra a idéia de uma 8 Aqui estamos tratando o camponês e o agricultor familiar como sinônimos. Carneiro (1998) adverte, no entanto, que a partir do memento em que o agricultor familiar incorpora os avanços tecnológicos e responde às políticas governamentais, ele não deve mais ser chamado de camponês. 9 Apesar das especificidades locais, a produção familiar é definida, segundo a FAO\INCRA (1994), pelas seguintes características: a) trabalho e gestão intimamente relacionados; (b) direção do processo produtivo assegurada diretamente pelos proprietários; (c) ênfase na diversificação; (d) trabalho assalariado complementar; (e) decisões imediatas, adequadas ao alto grau de imprevisibilidade no processo produtivo; (f) tomada de decisões in loco, condicionada pelas especificidades do processo produtivo, e (g) ênfase no uso de insumos internos. 10 Um dos principais responsáveis por tal mudança, segundo Wanderley (2000), foi o PRONAF (Programa de Apoio à Agricultura Familiar), implantado na década de 90. 11 Essa força da agricultura familiar inclui não apenas os agricultores que herdaram a terra da família, como também os assentados pela reforma agrária. Obviamente que estamos nos referindo àqueles que já possuíam algum tipo de ligação com o meio rural. 1. A difícil tarefa de definição e delimitação do rural/rbano 28 divisão social do trabalho assentada na disponibilidade de membros da família, distinta de uma divisão do trabalho capitalista, ainda que não invalide o caráter familiar do empreendimento" (GRAZIANO DA SILVA, 2002, p.163). Essa situação, sem dúvidas, poderá interferir na cultura camponesa, uma vez que os membros da família que continuam a residir na unidade de produção familiar (ou residem na cidade e retornam periodicamente à casa dos pais) e se deslocam diariamente para cidade onde trabalham, estão totalmente predispostos a se "contaminarem" pela cultura urbana. Nesse caso, esses membros poderão até mesmo desprezar a cultura camponesa, considerada como atrasada, retrógrada pelos citadinos. Em estudo realizado sobre o meio rural português, Ferreira (1999) constatou que o êxodo rural provocou naquele País um esvaziamento do campo, principalmente nos estratos da população ativos e férteis. Dessa forma, permaneceram no espaço rural os grupos etários com idade mais avançada. Situação essa que, segundo o autor, compromete não apenas o desenvolvimento econômico como também a instabilidade sociocultural das regiões rurais, tendo em vista que contribui para o enfraquecimento das relações de vizinhança e, por conseguinte, para o desmembramento das redes de solidariedade informal. A separação geográfica das diferentes gerações, inseridas em espaços de vivências e com estilos de vida distintos, é também uma separação de valores societais e culturais que se torna, nos momentos de reencontros, quando das deslocações temporárias dos migrantes e seus descendentes aos locais de origem familiar, um potencial choque geracional que vai permitindo a miscigenação entre o urbano e o rural, entre a tradição e o moderno (FERREIRA, 1999, p.315). Carneiro (1997), no entanto, não vê essa miscigenação como algo ruim para a cultura camponesa. Para ela, a aproximação entre os ambientes culturais rural e urbano não necessariamente gera mudanças na identidade sociocultural dos habitantes rurais. Ao ontrário, pode realçar as especificidades do rural, reestruturando as identidades e fortalecendo a ruralidade12. As relações dos habitantes do meio rural com a natureza são muito mais estreitas do que aquelas estabelecidas pelos citadinos. Acreditamos que o motivo principal seja o próprio respeito que os rurais têm por ela. Geralmente, a vida cotidiana dos agricultores é influenciada 12 Sobre esse conceito discutiremos no próximo item. 1. A difícil tarefa de definição e delimitação do rural/rbano 29 pelos ciclos naturais, uma vez que as atividades rurais estão diretamente ligadas ao trabalho com os organismos vivos e com a natureza, que nem sempre podem ser controlados. "O homem rural depende, numa proporção muito maior que o homem da cidade, dos processos elementares da Natureza. Isto influi profundamente sobre seu trabalho e sobre a sua mentalidade" (SOLARI, 1979, p.6). Entretanto, não devemos supor que essa ligação com a natureza caracterize o espaço rural como desprotegido e desorganizado, o que o tornaria mais sujeito às forças da natureza, com uma dependência extrema das condições climáticas que interferem na produção agrícola. E a cidade, por sua vez, teria uma situação oposta, ou seja, um espaço organizado e protegido. Acontece que, segundo Costa (2002), nenhuma dessas situações é totalmente verdadeira. de um lado, o campo, atualmente, é capaz de utilizar técnicas e recursos que amenizam as influências climáticas. de outro, a cidade, a despeito de ser um espaço construído, também sofre influência dos azares naturais (que nem sempre podem ser controlados ou previstos). Nesse sentido, a natureza não é limitada pela cidade cujos espaços construídos cada vez mais se expandem além de seus limites geográficos (teoricamente o perímetro urbano), por meio de rodovias, ferrovias, campos cultivados industrialmente, etc. Veiga (2003) lembra que, na atualidade, as "riquezas naturais" valorizadas no espaço rural, nos países desenvolvidos, não são mais o minério, o solo fértil ou a madeira (que eram os determinantes da economia rural), mas outros tipos de "riquezas naturais". São os encantos da vida rural - beleza, tranqüilidade e segurança - muito valorizados principalmente por aposentados, turistas e alguns tipos de empresários que se tornaram a principal fonte de vantagens comparativas. E apesar dos agricultores já serem uma pequena minoria da população rural dos Países mais desenvolvidos - um décimo no caso dos EUA13 - é principalmente deles que depende o maior trunfo de seu meio: a qualidade do ambiente natural (VEIGA, 2003, p.95). Partindo desse pressuposto, além de ser considerado como espaço da agricultura, dependente dos recursos naturais, o espaço rural é visto pelos habitantes urbanos também 13 Nesse país, a partir da década de 1980, algumas características rurais passaram a ser consideradas como "valores de amenidades". Assim, para a sociedade, natureza possui, ao mesmo tempo, um valor ético e afetivo, sendo também a mais promissora fonte de renda rural (relação ambígua e idealizada) (GALSTON; BAECHLER, 1995 citado por ABRAMOVAY, 2000). 1. A difícil tarefa de definição e delimitação do rural/rbano 30 como um espaço de modificações e adaptações e, ao mesmo tempo, de liberdade do homem14. Por isso, estamos assistindo, sobretudo nos países desenvolvidos, a um processo denominado “renascimento rural”, ou seja, uma volta ao campo pelos citadinos que procuram fugir dos problemas ditos urbanos (congestionamento, violência, falta de moradias, degradação ambiental, etc.). Lefbreve (1969, p.160) acredita que essa reivindicação da natureza pelo homem, seu desejo de aproveitar tudo que ela oferece, significa uma forma de fuga da cidade já deteriorada, bem como da alienação da vida urbana. Esse modo de vida seria totalmente diferente daquele que é mediado pelo valor de uso, em que se crê que uma vida plena consiste no atendimento não apenas das necessidades básicas socialmente elaboradas bem como as de atividade criadora de obra, informação, atividades lúdicas, imaginário, entre outras. Sobre tal assunto, Abramovay (2000, p.10), citando Ortega (1996), prenuncia uma redefinição do rural voltada para a vinculação da sociedade "com os recursos naturais, o manejo dos mesmos e, concretamente, a vinculação da sociedade com a própria natureza". Na realidade, a paisagem rural, de acordo com Kayser (2001) lembrado por Marques (2002), transformou-se em objeto de consumo, e o que vemos cada vez mais, é a elaboração e/ou a valorização de identidades rurais com vistas aos interesses do mercado. Na França, por exemplo, ocorreu uma passagem da imagem do campo voltada à produção agrícola para a imagem-consumo. Entretanto, não podemos confundir campo com natureza. “O campo é obra secular dos homens: ele é cultivado, artificializado” (MARQUES, 2002, p.103). Freyre (1982) acrescenta ainda que essa "volta" do homem à natureza também está sendo feita por meio da crescente procura pela medicina natural (uso de ervas medicinais, da homeopatia) e dos alimentos orgânicos. Contudo, essa visão romântica dos citadinos com relação à vida no campo precisa ser repensada. Pelo menos para os habitantes do meio rural nem tudo são flores, já que eles continuam enfrentando grandes dificuldades de sobrevivência. O trabalho é árduo e nem sempre compensatório. 14 É interessante atentarmos para o fato de que na fase inicial do capitalismo, a cidade é que era considerada como o "lócus da liberdade", sendo utilizado como principal argumento para atrair as populações rurais. 1. A difícil tarefa de definição e delimitação do rural/rbano 31 Falando sobre o fato de a diferenciação social ser menor no campo do que na cidade, podemos encontrar em Solari (1979) uma explicação razoável. Segundo ele, a população rural possui uma origem mais homogênea, enquanto a urbana é originária de processos migratórios (internos e internacionais). O mesmo ocorre com a mobilidade social, que é maior na cidade que no campo. Isso porque, de acordo com o autor, na cidade, em geral, os filhos não seguem a profissão dos pais como acontece com os filhos dos agricultores. Assim, para os jovens urbanos, a chance de ocupar empregos com melhores salários e obter um padrão de vida superior ao dos seus pais é bem maior. Além do mais, a cidade oferece mais oportunidades (universidades, atividades culturais, acesso a informações, etc.), que são fatores que podem contribuir largamente para a ascensão social. Todavia, não podemos esquecer que essa realidade se aplica mais adequadamente aos agricultores familiares, já que as referidas oportunidades oferecidas pela cidade, geralmente, estão ao alcance dos filhos dos grandes proprietários rurais residentes no campo. Esses, além do acesso às “maravilhas” do mundo moderno, possuem condições financeiras para deslocar- se até as cidades mais próximas em busca de tais oportunidades. É importante enfatizar também que hoje, em muitas regiões do País, a população rural possui um perfil social diferente daquelas populações tradicionais rurais. Conforme já colocamos, cresce a cada dia o número de novos moradores oriundos da cidade que buscam certa qualidade de vida, construindo residências definitivas ou segundas-residências no meio rural. Apesar disso, Wanderley (2000) adverte que tanto os ocupantes de residências- secundárias15 como os visitantes que procuram o campo somente pelo lazer, não podem ser caracterizados como pertencentes à população rural, apesar de terem sua importância. [...] Porém, sua presença marcante, em uma determinada área rural, modifica profundamente não só a paisagem como também a natureza da vida social local, ao provocar o surgimento de novas ocupações (como caseiros e jardineiros, cuja "reconversão" tem sido pouco estudada no Brasil) freqüentemente recrutados entre os antigos moradores, e, ainda, ao afetar o ritmo de vida local, agora determinado pelo fluxo da população "de fora" nos finais de semana, nos feriados prolongados e nas férias, fluxo esse gerador e multiplicador de novas atividades econômicas e de experiências de vida social que repercutem sobre o conjunto do município e não apenas sobre sua área rural diretamente beneficiada (WANDERLEY, 2000, p.32). 15 Esse tema será melhor abordado no capítulo 2. 1. A difícil tarefa de definição e delimitação do rural/rbano 32 Quanto à questão da mobilidade espacial, não há dúvidas de que, no campo, ela é bem menor que na cidade. Porém, também não há como negar que a intensidade do desenvolvimento dos meios de transporte e comunicação contribuiu em grande parte para a mobilidade espacial das áreas rurais, permitindo, inclusive, um maior intercâmbio (espacial, social e econômico) entre cidade e campo. Pelo menos, não é mais possível caracterizar o espaço rural pelo isolamento total como já o foi no passado16. de acordo com Ferreira (1999, p.315), “as novas e acrescidas mobilidades das sociedades modernas – geográfica, social, residencial, laborial, etc. – prenunciam um conhecimento mais exaustivo do território, aos quais os espaços da ruralidade que subsistem não ficam à margem”. Pelo que foi exposto, acreditamos que algumas das características creditadas ao meio rural permanecem praticamente inalteradas somente naquelas regiões onde o espaço rural é denominado por Cavaco (1996), mencionada por Alves (2001), de "profundo", cuja referência são as áreas pouco povoadas, em que a influência urbana é mínima e a acessibilidade é reduzida. Exatamente por isso, são áreas com tendência à perda de população e atividades. A menos que elas possuam recursos locais específicos e os proprietários saibam como aproveitá- los. De qualquer modo, não podemos perder de vista que a complexidade da realidade que nunca se mostra homogênea, seja no campo, seja na cidade. 1.2. AS NOVAS RELAÇÕES CAMPO-CIDADE E O SURGIMENTO DE UMA NOVA RURALIDADE Pelo que foi exposto até aqui, ficou claro que o meio rural sofreu transformações ao longo do tempo e que estamos diante do "desabrochar" de um "novo rural" e, conseqüentemente, de uma nova ruralidade. Antes de tudo, é preciso advertir que os termos rural e ruralidade não são sinônimos. Segundo Brunet et al. (1992) lembrado por Teixeira e Lages (1997), o termo rural é relativo a tudo que pertence ao campo, seja agrícola, seja não-agrícola (população, habitat, espaço), enquanto a ruralidade diz respeito às características de tudo que está relacionado com a vida 16 Esse assunto voltará à pauta quando discutirmos a respeito da globalização e o meio rural. 1. A difícil tarefa de definição e delimitação do rural/rbano 33 rural, sobretudo as condições materiais e morais necessárias para a existência dos habitantes rurais. Nessa perspectiva, Teixeira e Lages (1997, p.11) concluem que "é um certo tipo de relação (de produção) entre uma população e seu meio o que caracteriza a ruralidade ou a urbanidade, e não as características do meio natural". Pelo seu grau de abrangência, Saraceno (1996) julga que a ruralidade é [...] um conceito territorial que pressupõe a homogeneidade dos territórios agregados sob essa categoria analítica, e isto naturalmente vale também para o conceito de urbano. Ainda que não contíguos, os territórios rurais compartem, de fato, algumas características comuns que no entanto não foram definidas de maneira clara nem no que concerne aos indicadores que devem ser utilizados, nem no que se refere ao limite que deveria distinguir o rural do urbano. Na maior parte dos casos, o que é rural e o que é urbano vem intuitivamente reconhecido e depois medido. Com freqüência tem-se sustentado que a diferença é de natureza social e relativa ao modo como estão distribuídas as populações e as cidades no território, ou francamente cultural, tanto que nenhum órgão oficial empenhado nessa tarefa (Nações Unidas, OCDE, UE, Escritórios de Estatística) tem conseguido encontrar uma definição que satisfaça a todos, ainda que por tempo limitado. (SARACENO, 1996). Abramovay (2000, p.7) concorda com essa afirmativa e, utilizando a definição Divisão de Desenvolvimento Rural da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura para a América Latina (FAO/DAS), diz que as áreas rurais não deveriam ter uma definição setorial (agricultura) e sim espacial. Por isso, conclui que "unidade de análise não são os sistemas agrários nem os sistemas alimentares, mas as economias regionais e, mais especificamente, aquelas onde as pessoas vivem em áreas de povoamento menos denso que o restante do País” (ABRAMOVAY, 2000, p.6). Para o autor, é preciso entender que a agricultura é somente parte do desenvolvimento rural, que "é um conceito espacial e multissetorial" (ABRAMOVAY, 2000, p.7). Tendo em vista as transformações recentes tanto no meio rural quanto no urbano (leia- se modernização), podemos verificar que as relações campo-cidade, na atualidade, também se modificaram. Ferreira (2002) explica que, no Brasil, após a década de 1980, os estudos de geografia agrária passaram a destacar as questões da relação cidade-campo, uma vez que houve uma clara ruptura espacial entre ambos, separando campo e cidade, trabalhadores e meios de produção. 1. A difícil tarefa de definição e delimitação do rural/rbano 34 A agricultura ou meio rural, como vinha sendo designado, ganhou uma nova conotação espacial diferenciada e passou a ser tratada como espaço agrário, diferente do urbano, e local onde um conjunto de relações, principalmente de trabalho e comerciais, passou a determinar as funções da atividade agrícola (FERREIRA, 2002, p.288). Tais mudanças nada mais são do que obra do capitalismo, que ao operar tranformações entre a cidade e o campo, acaba por alterar as relações entre eles, de forma praticamente unilateral. Explicando melhor, com processo de urbanização, o que se prentende é uma relação em que o campo cada vez mais se submete às vontades da cidade. Para Reis (1999), as alterações nas relações rural-urbano não se explicam simplesmente pelo fato de os espaços rurais terem criado empregos ou porque são lugares privilegiados para algumas empresas, ou, ainda, porque os produtos locais, diferenciados e com qualidade, produzidos pelo meio rural, são valorizados. Segundo o autor, o que ocorre de fato é o seguinte: Essas relações alteram-se porque os modos de formação de rendimentos das famílias, a sociabilidade, a reprodução social conheceram rápidas mudanças. Mas nem por isso todos os problemas ficaram resolvidos: assim o mostra a exclusão social que está ligada aos lugares remotos e às regiões com menor capacidade de afirmação perante as políticas hoje existentes (REIS, 1999, 1999). Há quase três décadas Queiroz (1978) já afirmava que, no Brasil, tais relações se apresentavam mais complexas que no passado, dada a presença de processos antigos e recentes no meio rural, além de prenunciar o processo atual de globalização. A autora atentava para o fato de que, diferentemente do passado, as relações campo/cidade ocorrem [...] numa sociedade cada vez mais marcada por caracteres urbanos, isto é, em que cidade tende cada vez mais a dominar o campo, reduzindo-o a uma posição não apenas de subordinação como também de inferioridade. É esse, a nosso ver, o perfil atual da sociedade global brasileira, do ponto de vista sociológico e em suas relações campo/cidade que cumpre não esquecer ao empreendermos qualquer pesquisa no meio rural ou urbano, pois tal perfil pesa decisivamente nos processos em curso (QUEIROZ, 1978, p.64). Cabe lembrar que, se, por um lado, no espaço rural o desenvolvimento urbano- industrial afetou as atividades rurais por meio tanto da demanda crescente por produtos agrícolas como do crescimento da oferta de serviços voltados para a produção da agricultura, no espaço urbano, o desenvolvimento agrícola provocou estímulos nas atividades urbanas 1. A difícil tarefa de definição e delimitação do rural/rbano 35 (comerciais, bancárias, saúde, educação, etc.). Portanto, está claro que a cidade também mantém sua dependência como relação ao campo. No caso da agricultura brasileira, Graziano da Silva (1998, p.27) lembra que a modernização pós-década de 1970, além de modificar a estrutura fundiária, também repercutiu sobre o espaço urbano por meio da geração de empregos indiretos tanto nas agroindústrias, indústrias de insumos químicos, máquinas e equipamentos e outros, quanto em segmentos do setor terciário (além da comercialização, atividades bancárias e financeiras, transporte e armazenagem, assistência técnica e pesquisa). Além disso, o autor lembra ainda que existe outra forma de repercussão, que está ligada à função do espaço urbano como local de residência dos trabalhadores rurais (sobretudo nas cidades menores) e que é um reflexo dos processos de tecnificação, concentração fundiária e crescimento do trabalho temporário no campo. Mais recentemente, o mesmo autor alertou que "está crescendo o número de pequenas glebas (em geral com menos que 2 ha, tamanho do menor módulo rural) que têm muito mais a função de residência rural que de um estabelecimento agropecuário produtivo" (GRAZIANO DA SILVA, 2002, p.154- 155). Não há dúvidas que o processo de modernização (baseada na ciência e na tecnologia) que atingiu o espaço urbano, promoveu a ampliação dos serviços bancários e do setor de investimentos, aplicações e transferências de remessas de lucros17. Contudo, tais serviços, de acordo com Graziano da Silva (1998), também são utilizados pelos empresários agrícolas, que estão conectados à rede via computador e na qual obtêm informações sobre os negócios rurais, independentemente do local onde se encontram, seja no campo, seja na cidade. Simplificadamente, podemos dizer que tudo isso é conseqüência da globalização que, por meio das redes, permite a integração produtiva, comercial, financeira e informacional. Assim sendo, também provoca uma maior intensificação nas relações campo-cidade, inclusive no Brasil. O processo de globalização certamente é responsável também pela dependência que atinge tanto o espaço urbano quanto o rural. Segundo Costa (2002), do lado urbano, a vida se 17 Na verdade, o que existe é uma transferência de capitais entre os setores. O agricultor investe na produção ou permite que outros invistam no seu território. A origem dos investimentos pode ser do Estado, de centros urbanos maiores, do próprio campo ou, ainda, de herança familiar. 1. A difícil tarefa de definição e delimitação do rural/rbano 36 desenvolve com uma dependência cada vez maior de recursos e informações exteriores, enquanto do lado rural, essa dependência se manifesta com relação às regulamentações nacionais e internacionais, para o escoamento, transporte e aumento da produtividade. A expansão do capital urbano também teve grande influência na relação cidade- campo. Assim sendo, a cidade tornou-se o centro da acumulação capitalista e, conseqüentemente, é tida como sinônimo de desenvolvimento, enquanto o campo continuou sendo visto como tradicional e atrasado. Ocorreu, então, um aprofundamento nas relações capitalistas, o que acabou por inserir o espaço agrário na lógica capitalista. Penalva Santos (1995), citado por Costa (2002, p.41), acredita, porém, que o mais importante nesse processo é a homogeneização espacial que ocorre por conta da apropriação, visando à geração de lucros, o que tende a suprir as distinções entre campo-cidade. Enfim, conforme sinaliza Carlos (2004), a globalização se impõe no lugar, independentemente de ser campo ou cidade, e transforma a vida, provocando separações, contradições, enfrentamentos. Para a autora, vivemos em um período caracterizado [...] pela constituição da sociedade urbana realizando-se num espaço mundial, articulado, mas profundamente hierarquizado, o que não quer dizer que o campo deixe de existir, mas que ele se articula agora num outro plano ao conjunto do território, com outras particularidades. As atividades voltadas ao turismo no campo [...] encaminham nessa direção, o que não quer dizer que vivemos em todos os lugares a sociedade urbana - mas esse é o caminho que toma o processo de reprodução hoje, constituindo novos ramos da atividade, (como o turismo) novas relações entre áreas, novos conteúdos para as relações sociais, profundamente articuladas a expansão do mundo da mercadoria (CARLOS, 2004, p.133). Dessa forma, segundo a autora, a generalização do processo produtivo torna o espaço uma mercadoria que, por sua vez, generaliza a propriedade privada sobre os espaços urbanos e rurais, gerando uma nova articulação. Passa a existir uma nova contradição (centro- periferia), substituindo a antiga (cidade-campo), e as estratégias de sobrevivência no campo e na cidade são representadas por movimentos sociais articulados. No caso específico do Brasil, Carlos (2003, p.135) lembra ainda que cidade e campo refletem a forma "como se realiza a inserção do Brasil no quadro da economia mundial, na divisão socioespacial do trabalho, revelando a nacionalidade imposta pela globalização do capital reproduzindo na escala internacional a hierarquização do espaço dominados/dominantes. [...]". 1. A difícil tarefa de definição e delimitação do rural/rbano 37 Concordamos com Milton Santos (1996, p.68), que a questão não se deve mais à simples distinção entre espaços rurais e urbanos ou entre cidades grandes e pequenas. Nas regiões agrícolas, o campo é quem comanda a vida econômica e social da cidade, enquanto, nas regiões urbanas, esse comando é representado pelas atividades secundárias e terciárias. Esse fato vem reforçar a idéia de que o espaço geográfico mantém-se heterogêneo, apesar da globalização. É por isso que, a nosso ver, os espaços rural e urbano continuarão apresentando paisagens e funções distintas. Alencar e Moreira (2003), por sua vez, apregoam que o processo de globalização tende a homogeneizar o espaço, mas de maneira em que promove o desaparecimento do campo e do rural tradicional, mas faz surgir um outro. Esse novo rural é ao mesmo tempo urbano e global. Já tecnificado, industrializado, urbanizado e civilizado, a imagem desse rural na atualidade estaria ressignificando o campo e reconstruindo o agricultor como o jardineiro da natureza e como guardião do patrimônio natural e das tradições culturais, agora a serem preservadas. Nessa imagem o rural já não se diferencia do urbano, unifica campo-cidade, em especial nas regiões metropolitanas impõe uma sobredeterminação do campo. O campo como natureza ecossistêmica se impõe com as questões do ar, água, verde, estilo de vida, poluição e descontroles sazonais e climáticos. A imagem de natureza associada ao campo e ao rural contemporâneo nos remeteria ao ser natural humano, universal, e de sua existência no planeta (ALENCAR; MOREIRA, 2003, p.8-9). Já Siqueira e Osório (2001, p.68), afirmam que é possível falar em hegemonia da tecnologia, mas não da cultura, ou seja, a economia se globaliza e a cultura se mundializa. No caso da agropecuária, os autores acreditam que o processo de globalização ocorre de forma irregular, uma vez que nem todos os seus setores econômicos são atingidos do mesmo modo. “Afinal, intervêm fatores específicos que dificultam ou retardam a sua internacionalização. A agropecuária possui formas complexas de funcionamento que estorvam sua transformação em um regime aberto, tal como é requerido pelas empresas cada vez mais globalizadas” (SIQUEIRA; OSÓRIO, 2001, p.68). De acordo com Mota e Schmitz (2002), o rural pode ser visto como uma categoria de análise do social e que possui particularidades constatadas por meio das atividades econômicas, de relações de trabalho, de representações sociais bem como da ocupação espacial, da paisagem e de outros. Assim, os referidos autores destacam pontos relevantes sobre as transformações no meio rural nos últimos anos: em função de suas relações com o 1. A difícil tarefa de definição e delimitação do rural/rbano 38 espaço nacional e global (fluxo de informações, pessoas, materiais, energia, a diversidade de atividades econômicas entre as diferentes áreas geográficas); novas políticas públicas voltadas para os habitantes rurais; busca do campo como moradia pelo citadino (melhor qualidade de vida); resgate de muitas representações do mundo rural (música sertaneja, festas de rodeio, vaquejadas, etc.). Isso tudo, no entanto, segundo os autores, não significa uma homogeneização do meio rural com relação às políticas modernizadoras da agricultura, sobretudo no caso do Brasil, onde a reação de cada grupo é específica. Explicando melhor, embora a modernização agrícola, calcada no padrão de produção urbano-industrial, tenha influenciado na população local, o modo de incorporação é heterogêneo, da mesma forma que a intensidade e proporção com que tais medidas atingem categorias diferentes de produtores também o são. A ruralidade, por assim dizer, se "expressa de formas diferentes em universos culturais, socais e econômicos heterogêneos" (CARNEIRO, 1997, p.149). É por isso que acreditamos que o mais correto seria falar em "ruralidades" no campo brasileiro, conforme apregoam Mota e Schmitz (2002). Falar do rural não é reportar-se apenas a um espaço geográfico, mas às relações que são desenvolvidas ali e como estão inseridas em um todo envolvente. Falar do rural é pensar em “rurais”, colcha de retalhos que constitui o mundo agrário brasileiro sujeito às tensões crescentes da competitividade e da urgência de preservação dos recursos naturais. Mas falar do rural é também apontar as pistas que nos conduzam à melhor compreensão do mesmo. (MOTA; SCHMITZ, 2002, p.397). Muitos estudiosos (sociólogos, historiadores, geógrafos), porém, preferem analisar as relações campo-cidade sob o ponto de vista da dicotomia rural/urbana18, acreditando na existência de espaços distintos, com características próprias e opostas. Seus trabalhos baseiam-se nas seguintes idéias: a) existe uma dualidade do rural e do urbano, no sentido filosófico específico do termo “dual”, que exprime a existência, lado a lado, de dois termos, que embora interagindo, são absolutamente irredutíveis um ao outro; b) o rural é concebido como “atrasado” em sua evolução, em relação ao urbano, e sua influência sobre esse é tida como “sobrevivência tradicional”; c) a penetração de elementos urbanos no campo - “inovações” – passa a ser imediatamente considerada como um avanço “benéfico” para esse; 18 Nos estudos sociológicos, especialmente os norte-americanos, o enfoque dicotômico clássico surgiu em 1900 e sua preocupação maior era distinguir a realidade rural da urbana com base na polarização “comunidade/sociedade”, desconsiderando as relações de influência entre elas (BLUME, 2004). 1. A difícil tarefa de definição e delimitação do rural/rbano 39 d) aumentando cada vez mais a penetração, vão se perdendo as características peculiares à sociedade rural, que tende a se confundir cada vez mais com a sociedade urbana, e, portanto, a desaparecer. (QUEIROZ, 1978, p.265). Marques (2002, p.101) complementa o raciocínio, dizendo que “a perspectiva dicotômica permite a oscilação entre os dois pólos, ora idealizando o passado e valorizando o tradicional, ora baseando-se na idéia de progresso e valorizando o moderno”. A autora ressalta ainda que tal abordagem foi retomada no final da década de 70, tendo em vista a necessidade de redefinição da relação cidade-campo decorrente da “crise urbana” e da degradação da vida urbana. Andrade (1995, p.10) prefere acreditar que estamos diante de "um processo de ruralidade urbana e, em contrapartida, de uma urbanização rural". E lembrou que a expressão "rurbano" foi usada por Freyre (1982) para definir os espaços que não deixaram de ser rurais, mas que ainda não são urbanos. Segundo Andrade (1995), a rurbanização, no entanto, não significa somente uma situação intermediária entre a puramente rural e a exclusivamente urbana, mas uma mistura entre os valores representados pelos modos de vida rural e urbano. É um processo de desenvolvimento socioeconômico que combina, em termos de forma e conteúdo, uma única vivência regional e nacional (rurbanos). Assim sendo, a rurbanização representa uma rejeição à absoluta urbanização e, ao mesmo tempo, à idealização de camponeses vivendo arcaicamente em espaço rurais19. Podemos dizer que essa idéia está contida na concepção de que existe um continuum rural-urbano, que é defendido por autores como Graziano da Silva (1997). Para ele, espacialmente, o rural deve ser compreendido como um continuum do urbano, já que não são mais as atividades econômicas - no caso, a agricultura, que caracterizam o mundo rural. Assim, o rural e o urbano não devem ser vistos como mundos que se opõem, mas se complementam. Entre eles existe um continuum espacial tanto do ponto de vista de sua dimensão geográfica e territorial quanto de sua dimensão econômica e social. A existência de um processo renovador nas áreas rurais sem que haja uma perda total de sua identidade (agropecuária), gera, então, uma interdependência rural-urbano, fenômeno esse denominado de rururbano por Graziano da Silva (1999). Na realidade, o referido autor é tido como um dos 19 O conceito de rurbanização será retomado no próximo capítulo. 1. A difícil tarefa de definição e delimitação do rural/rbano 40 defensores da idéia de que estamos diante do processo de “urbanização do campo”, fruto de um enorme crescimento das atividades industriais na agricultura, cuja integração ao restante da economia não permite mais a diferenciação entre os setores de fornecimento de insumos ou compra de produtos. Complementando esse pensamento, Costa (2002) argumenta que um estudo sobre a situação do meio rural não exclui o meio urbano e vice-versa. Nesse sentido, muitas vezes, o espaço rural é caracterizado por condições urbanas, "numa relação de complementaridade, que interliga e, ao mesmo tempo, distingue, resultando em duas realidades paralelas, mas dependentes" (COSTA, 2002, p.32). Essa interdependência se expressa da seguinte forma: os setores urbano-industriais necessitam da produção de alimentos e matérias-primas do campo para desenvolver-se e manter sua mão-de-obra, enquanto o campo precisa de serviços e produtos industrializados urbanos. Esse fato faz com que muitas cidades, por exemplo, desenvolvam um comércio específico de insumos e equipamentos agrícolas. Solari (1976) considera que, na realidade, o termo continnum rural-urbano também é baseado na concepção dual, já que o urbano e o rural seriam pontos extremos numa escala de gradação, ou seja, se eles representam pólos diferentes de um mesmo contínuo, subentende-se que entre eles há uma diferença qualitativa. Souza (2004), por sua vez, questiona a utilização do termo continnum, afirmando que o processo urbanizatório promove a urbanização no campo e não do campo. Assim, o campo recebe as inovações típicas da cidade, mas as características rurais não desaparecem, ou seja, sua essência permanece. Ocorre que a manutenção das práticas espaciais das populações rurais, a despeito de se submeterem às lógicas urbanas, permite certa autodeterminação (RUA, 2002, p.33-34 citado por SOUZA, 2004). Analisando o caso dos países desenvolvidos, Alves (2001) mostra que cada vez mais assistimos à diminuição das diferenças rural/urbano, em que o antigo contraste é ocupado pela graduação. Neles, apesar de a população urbana ser muito superior, o espaço rural mantém sua importância em termos de superfície. Para se ter uma idéia, as áreas rurais na União Européia ocupam 80% do território (ESPD, 1998) e, apesar de a atividade agrícola não ser mais a única no espaço rural, ela apresenta elevados níveis de produtividade e competitvidade. Mas há uma diferença: nos países pouco povoados, a agricultura ocupa grandes extensões de terra, é extensiva e geralmente associada à pecuária; já nos países mais povoados, ao 1. A difícil tarefa de definição e delimitação do rural/rbano 41 contrário, a agricultura é praticada em superfícies menores, é altamente intensiva e necessita de grandes investimentos. Nesse sentido, o espaço rural complementa o espaço urbano, fato que contribui para a diminuição das diferenças entre as características de ambos: agricultura e residências-secundárias, indústrias, serviços e atividades ligadas ao ócio dividem o mesmo espaço; há diminuição das distâncias e maior integração do território (aumento dos fluxos de pessoas, bens e serviços) a partir do desenvolvimento de infra-estruturas de base e das acessibilidades. Em direção oposta, caminha Carneiro (1998) ao considerar que as transformações no meio rural não conduzem á fatalística urbanização. Ainda que os efeitos da expansão da “racionalidade urbana” sobre o campo, provocada pela generalização da lógica do processo de trabalho e da produção capitalista intensificados pelos mecanismos da globalização, não possam, de forma alguma, ser tratados com negligência, é precipitado concluir que tal processo resultaria na dissolução do agrário, e na tendência à transformação uniformizadora das condições de vida no campo (CARNEIRO, 1997, p.148). Para a autora, o rural e o urbano nada mais são do que representações sociais que podem ser reelaboradas e sofrer diversas apropriações de acordo com o universo simbólico nos quais se inserem. Portanto, na nova ruralidade, de acordo com a autora, a elite agrária brasileira procura reproduzir as práticas e hábitos "rurais" com nova roupagem mais moderna, enquanto os chamados "neo-rurais" baseiam-se em valores próprios do mundo rural20, mas reproduzem a racionalidade produtiva e tecnológica do mundo urbano (leia-se, modo de produção capitalista). Para ela, a ruralidade brasileira pode ser concebida, por assim dizer [...] como um processo dinâmico de constante reestruturação dos elementos da cultura local a partir da incorporação de novos valores, hábitos e técnicas. Tal processo implica um movimento em dupla direção no qual identificamos, de um lado, a reapropriação de elementos da cultura local a partir de uma releitura possibilitada pela emergência de novos códigos e, no sentido inverso, a apropriação pela cultura urbana de bens culturais e naturais do mundo rural, produzindo uma situação que não se traduz necessariamente pela destruição da cultura local, mas que, ao contrário, pode vir a contribuir para alimentar a sociabilidade e reforçar os vínculos com a localidade (CARNEIRO, 1997, p.161-2). 20 Entre eles, podemos citar o contato com na natureza, a simplificação das relações sociais, a tranqüilidade, a autodeterminação. 1. A difícil tarefa de definição e delimitação do rural/rbano 42 Dentre os geógrafos brasileiros preocupados com a análise desse "novo rural", destaca-se Alentejano (2000), que recomenda que devemos considerar que [...] cada realidade rural ou urbana deve ser entendida em sua particularidade, mas também no que tem de geral, sua territorialidade mais ou menos intensa. É essa intensa territorialidade que distingue, em nossa opinião, o rural do urbano, podendo-se afirmar que o urbano representa relações mais globais, mais descoladas do território, enquanto o rural reflete uma maior territorialidade, uma vinculação local mais intensa (ALENTEJANO, 2000, p.105). Visão muito semelhante possui Veiga (2002), que recomenda a abordagem territorial como uma forma diferenciada de analisar o rural e a ruralidade brasileira, uma vez que tal enfoque valoriza as dimensões espaciais. O uso dos termos espaço e território podem, segundo ele, exprimir simultaneamente as dimensões local, regional e nacional ou continental. Além disso, tal abordagem valoriza dimensões analíticas importantes, como é o caso dos fundamentos ecológicos e econômicos presentes no meio rural. O autor faz também uma crítica à visão de desenvolvimento atrelada à urbanização, ressaltando que as áreas rurais também podem apresentar elevados índices de desenvolvimento sem se tornar não-rural. Preferimos, então, crer que, mesmo havendo um "um novo rural", uma "nova ruralidade", o meio rural continuará mantendo algumas funções e agregando outras. No caso brasileiro, de acordo com Castro (1977), a agricultura não possui um papel “passivo” no desenvolvimento do País. Ao contrário, ela possui atribuições no processo de desenvolvimento, a saber: a) geração e permanente ampliação de um excedente de alimentos e matérias-primas - condição essencial para o desenvolvimento, uma vez que somente a partir do momento em que a produção ultrapassa as necessidades do agricultor, inicia-se o processo de diferenciação de atividades e se promove o surgimento da vida urbana; b) liberação de mão-de-obra – com a geração de excedentes agrícolas, existe a possibilidade de desvio de mão-de-obra para outros setores, sobretudo nas atividades urbanas; c) criação de mercado – com a melhoria dos padrões de produtividade agrícola e a “urbanização” da sociedade rural, a tendência é que cresça o mercado de produtos industrializados não apenas para a agricultura, 1. A difícil tarefa de definição e delimitação do rural/rbano 43 mas também para os habitantes do campo; d) transferência de capitais – desde os primórdios da industrialização, a agricultura transferiu recursos para esse setor21. Acreditamos que, diante desse quadro, é preciso que saibamos olhar o espaço rural com outros olhos. “Como em geral a imagem comum do campo é associada ao passado, à tradição, aos costumes humanos e naturais e a da cidade ao futuro, à modernização, ao desenvolvimento, fica faltando o presente” [...] (MARQUES, 2002, p.104). Mesmo que os dados mostrem que, em algumas regiões, a população agrícola22 diminuiu, o meio rural continua oferecendo oportunidades que fortalecem a luta contra a exclusão social. Para tanto, é importante atentarmos para as relações entre produção agrícola e vida rural. Considerando a fala de Schmidt e Turnes (2003, p.289): O que se busca, hoje, é um espaço rural vivo, dinâmico, que dê perspectivas para os jovens. Um dos componentes que é valorizado é a função "emprego" do rural. Sente-se a necessidade de preservar e de reproduzir não só os recursos naturais mas também o homem e sua cultura, pela geração de oportunidades e de condições de vida. (SCHMIDT; TURNES, 2003, p.289) Nossa conclusão é a de que, no presente, o espaço rural dever ser pensado de outra forma, buscando valorizá-lo e não simplesmente relegá-lo à condição de servidor das necessidades urbanas, que tende a incorporar cada vez mais as características urbanas, sobretudo em nome do consumismo. Por isso, acreditamos que a única maneira de valorização do espaço rural (e de certa forma as pequenas cidades e distritos), seja por meio da realidade local e regional, considerando-se as especificidades dos l