Maria Clara Helena do Couto Qualidade do sono de crianças com gagueira Marília 2023 Maria Clara Helena do Couto Qualidade do sono de crianças com gagueira Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Fonoaudiologia como parte das exigências para a obtenção do título de Mestre em Fonoaudiologia pela Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista (UNESP), Campus de Marília. Área de Concentração: Distúrbios da Comunicação Humana Orientadora: Profª. Drª. Luciana Pinato Coorientadora: Profª. Drª. Cristiane Moço Canhetti de Oliveira Apoio: Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior – CAPES Marília 2023 C871q Couto, Maria Clara Helena do Qualidade do sono de crianças com gagueira / Maria Clara Helena do Couto. -- Marília, 2023 76 f. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Filosofia e Ciências, Marília Orientadora: Luciana Pinato Coorientadora: Cristiane Moço Canhetti de Oliveira 1. Distúrbios do sono. 2. Gagueira. 3. Sono. 4. Estudos de avaliação. 5. Actigrafia. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca da Faculdade de Filosofia e Ciências, Marília. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. Impacto potencial desta pesquisa O presente estudo mostrou de forma inédita a presença de distúrbios de sono e parâmetros objetivos da qualidade de sono em um grupo de crianças com gagueira, o que contribui para a caracterização e planejamento terapêutico desta população, promovendo importante avanço científico nas áreas de conhecimento das neurociências e da fonoaudiologia. Potential impact of this research The present study showed, for the first time, the presence of sleep disorders and objective parameters of sleep quality in a group of children who stutter, which contributes to the characterization and therapeutic planning of this population, in addition to promoting important scientific advances in the areas of knowledge neurosciences and speech language and hearing Sciences. Maria Clara Helena do Couto Qualidade do sono de crianças com gagueira Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Fonoaudiologia da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Fonoaudiologia. Área de concentração: Distúrbios da Comunicação Humana Linha de pesquisa: Bases biopsicossociais da comunicação humana em Fonoaudiologia Banca Examinadora Profª. Drª. Luciana Pinato UNESP – Câmpus de Marília Orientadora Prof. Drª. Denise Brandão de Oliveira e Britto UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais Profª. Drª. Célia Maria Giacheti UNESP – Câmpus de Marília Marília, 27 de outubro de 2023. Aos meus pais que, apesar de todas as dificuldades, sempre acreditaram que eu poderia atingir meus objetivos. Vocês me amaram incondicionalmente e nunca me deixaram desanimar! AGRADECIMENTOS Agradeço a Deus primeiramente por ter colocado em minha vida cada oportunidade para que eu pudesse seguir até aqui. Com certeza, minha fé e esperança são renovadas diariamente pelo seu amor e por sua infinita misericórdia. Em todas as minhas dificuldades, físicas e emocionais, sempre tive a certeza de que não estava sozinha. Com a intercessão de Maria, pude chegar até aqui, enfrentando todos os desafios que me possibilitaram construir quem sou hoje, inspirada na humildade, perseverança, doçura e fé, da minha Mãezinha! Agradeço também ao programa de pós-graduação em fonoaudiologia, bem como aos funcionários e servidores que me auxiliaram nesse processo. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001. À minha orientadora, Profª. Luciana Pinato, que me encantou desde a primeira disciplina e acreditou nessa parceria. Obrigada por todos os desafios, pelo carinho e pela confiança! Quando eu crescer, quero ser como você! Desde a primeira monitoria dada, no laboratório de Anatomia, você me encorajou a crescer nesse ambiente acadêmico. Obrigada por tudo! Estendo meus agradecimentos à minha coorientadora, Profª. Cristiane Moço Canhetti de Oliveira, que me acolheu no Laef desde o começo da graduação e me estimulou a sempre buscar novas respostas e novos desafios. A senhora sempre foi exemplo de profissional e mãe para mim. Obrigada pelos seus conselhos! Agradeço também aos professores do Departamento de Fonoaudiologia, de modo especial às professoras: Viviane Marino, Célia Giacheti e Simone Capellini, e a professora Mahara Proença do Departamento de Fisioterapia e Terapia Ocupacional que ao longo deste percurso deram suporte e compartilharam comigo diversas experiências e ensinamentos que contribuiram para minha formação. Obrigada pelo carinho e atenção! À Universidade Estadual Paulista - Unesp, de modo particular à Faculdade de Filosofia e Ciências - FFC, por me abrigar, há quase 6 anos. Ao Centro Especializado de Reabilitação II (CER II) – Campus Marília, e a todos os funcionários, especialmente à Andrea, à Carla, à Elaíne, à Cecília, à Sheila e à Larissa que se tornaram colegas e conselheiras, na correria do dia a dia. Obrigada por todo suporte e carinho! Aos pais e crianças que confiaram nesse projeto, na nossa equipe, e que se dispuseram durante o período de coleta de dados, para contribuir com os achados deste trabalho. De modo muito especial, agradeço aos meus pais, Belmira e Geraldo, que me ensinaram os detalhes mais simples da vida e me proporcionaram o maior sonho de todos: estudar! Vocês além de exemplos, são também o meu porto seguro. Não foi necessário muitas teorias para me ensinarem e respeitar o próximo e o significado do que é amor. Obrigada por serem os meus mestres! Não consigo descrever em palavras a emoção de estar concluindo mais uma etapa que eu tanto sonhei e que vocês não mediram esforços para me apoiar, mesmo estando tão distante e às vezes não entendendo o que eu estava fazendo. Essa conquista é nossa, amo vocês! Além dos meus pais, gostaria de agradecer também a todos os familiares que estiveram envolvidos nesse processo. Meu avô, meu irmão Samuel e minha cunhada Mônica, meu primo Lucas, tios, madrinha, padrinho e seus companheiros. Nesses anos, senti muita falta de vocês! Continuo contando com suas orações e com a torcida de vocês por mim! Agradeço também às fonoaudiólogas Luana por ser minha vizinha de quarto, minha companheira para todos os dias e por todos os puxões de orelhas, sentirei sua falta! Obrigada Isabella (Jade), por estar comigo para tudo e sempre me ouvir! Aos membros do Laboratório de Estudos em Neuroinflamação e do Laboratórios de Estudos da Fluência de Fala, em especial à Stephanie, Carine e Luana Altran, por todo apoio e aprendizado. Às meninas do sono: Ana Luiza (quase fono), Isabella, Kriscia, Nathani, que permitiram que esse processo fosse mais leve. Sorte a minha ter encontrado vocês ao longo desses anos. Vocês foram mais que colegas de laboratório. Vocês sempre me incentivaram a crescer e me deram modelos práticos para ser uma amiga, colega, monitora, supervisora e cientista melhor. Obrigada por acreditarem que eu conseguiria! Agradeço também a família da Nathani que muitas vezes foram refúgio e aconchego, quando a saudade de casa apertava. Agradeço ainda à Nathalia, Luciana Mika e à Carine, que seguem me estimulando a buscar meus sonhos na fonoaudiologia, sinto muita falta de vocês! Aos queridos: Aline, Tomás, Willians, Luísa e meus amigos de Borda da Mata, que eu não poderia deixar de agradecer. Sei da torcida de cada um de vocês por mim! Vocês me conhecem muito bem e sempre me surpreendem. Vocês foram essenciais para me alegrar e me incentivar nessa trajetória. Trazer a fonoaudiologia comigo, em cada roda de conversa e no cotidiano fora do ambiente profissional, me fez acreditar que muita coisa ainda precisa ser explorada e divulgada. Vocês são especiais, obrigada por todos os questionamentos, brincadeiras e risadas! Individualmente, gostaria de agradecer ao meu namorado, Tomás, que cada dia mais me encoraja a correr atrás dos meus sonhos e a ser uma pessoa melhor. Agradeço também aos seus familiares que sempre participaram desse processo para me ajudar. Sou apaixonada por você há muitos anos. Agradeço a Deus por todo companheirismo que Ele nos permite e por você sempre estar disposto a se arriscar comigo, Te amo! Obrigada por toda companhia e por todo apoio, mesmo longe. Obrigada pelas horas de serviço compartilhadas, pelos jogos ou de comemorações. Dividir a vida com você é mais leve! Não poderia deixar de agradecer também a todos os alunos e colegas que eu auxiliei, seja nas monitorias, aulas ou nos estágios. Vocês me animam todos os dias a continuar fazendo o que eu mais amo, a estudar e desse modo buscar novos conhecimentos! “Ama e faz o que quiseres. Se calares, calarás com amor; se gritares, gritarás com amor; se corrigires, corrigirás com amor; se perdoares, perdoarás com amor. Se tiveres o amor enraizado em ti, nenhuma coisa senão o amor serão os teus frutos.” (Santo Agostinho) RESUMO Introdução: Estudos anteriores têm destacado a alta prevalência de distúrbios do sono (DS) em indivíduos com gagueira, os quais já enfrentam desafios significativos em termos de qualidade de vida, abrangendo áreas como vitalidade, dor, cognição, funcionamento social e emocional, que, por sua vez, podem ser agravados pela presença de DS. Até o momento, os estudos que investigaram os problemas de sono em crianças com gagueira basearam-se em dados populacionais, revelando um risco considerável de distúrbios do sono. Apesar da relevância dessas descobertas, ainda não foram utilizadas nesta população escalas validadas ou instrumentos objetivos para avaliar de forma abrangente os parâmetros e distúrbios do sono. Objetivo geral: Investigar características do sono de crianças com gagueira e possíveis relações com a fluência de fala e com a gravidade da gagueira. Método: Estudo transversal, no qual participaram 51 crianças divididas em dois grupos: Grupo Comparativo (GC) composto por 21 crianças com desenvolvimento típico, e Grupo Pesquisa (GP) composto por 30 crianças com gagueira. A presença de distúrbios de sono foi investigada por meio da Escala de Distúrbios de Sono em Crianças (EDSC) e os parâmetros de sono: Tempo de sono, Latência, Eficiência de sono e tempo de microdespertares foram investigados por meio do uso de actígrafos. No GP os participantes foram submetidos à avaliação da fluência e classificação da gravidade da gagueira por meio do SSI - (Stuttering Severity Instrument). Para a análise dos dados foi utilizado o software estatístico SPSS Statistics 28.0 (SPSS Inc., Chicago, IL, EUA). Resultados: O GP apresentou maiores escores de indicativo de distúrbios de sono do que o GC no Escore total da EDSC, e nas subescalas distúrbio de início e manutenção do sono (DIMS), distúrbio respiratório do sono (DRS), distúrbio de transição sono-vigília (DTSV) e sonolência excessiva diurna (SED). O grupo pesquisa apresentou maiores percentuais de indivíduos com indicativo de distúrbios de sono (43%), incluindo o DRS e a hiperidrose do sono (HS). A análise por actigrafia mostrou que o GP apresentou maior tempo de latência de sono e menor eficiência de sono do que o GC. Não foram encontradas correlações entre os parâmetros de sono e os de gravidade da gagueira. Por outro lado, a latência de sono apresentou correlação com as outras disfluências. Houve baixa confiabilidade na comparação do tempo de sono entre o relato dos responsáveis pela criança e a actigrafia. Conclusões: Os resultados deste estudo destacam a presença significativa de distúrbios de sono em crianças com gagueira. Os indicativos de distúrbios, especialmente o distúrbio respiratório do sono (DRS), hiperidrose do sono (HS) e distúrbio de início e manutenção do sono (DIMS), frequentes nessa população, ressaltam a importância de avaliar e abordar questões de sono em crianças com gagueira. Além disso, a análise por actigrafia demonstrou que essas crianças experimentam uma maior demora para iniciar o sono e uma menor eficiência de sono. Não foram encontradas correlações significativas entre os parâmetros de sono e a gravidade da gagueira. No entanto, observou-se uma correlação entre a latência de sono e outras disfluências. O estudo também revelou uma baixa concordância entre o tempo de sono relatado pelos responsáveis das crianças e as medições da actigrafia. Palavras-Chave: Distúrbios do Sono, Sono, Gagueira, Estudos da Avaliação, Actigrafia. ABSTRACT Introduction: Previous studies have highlighted the high prevalence of sleep disorders (SD) in individuals with stuttering, who already face significant challenges in terms of quality of life, covering areas such as vitality, pain, cognition, social and emotional functioning, which in turn can be exacerbated by the presence of SD. To date, studies investigating sleep problems in children with stuttering have been based on population data, revealing a considerable risk of sleep disorders. Despite the relevance of these findings, validated scales or objective instruments to comprehensively assess sleep parameters and disorders have not yet been used in this population. General objective: To investigate the sleep characteristics of children with stuttering and possible relationships with speech fluency and stuttering severity. Method: A cross-sectional study involving 51 children divided into two groups: a Comparison Group (CG) made up of 21 children with typical development, and a Research Group (RG) made up of 30 children with stuttering. The presence of sleep disorders was investigated using the Sleep Disorders in Children Scale (SDSC) and sleep parameters: Sleep time, sleep latency, sleep efficiency and micro-awakening time were investigated using actigraphs. In the SG, the participants underwent fluency assessment and classification of the severity of stuttering using the SSI - (Stuttering Severity Instrument). SPSS Statistics 28.0 statistical software (SPSS Inc., Chicago, IL, USA) was used to analyze the data. Results: The RG had higher scores indicative of sleep disorders than the CG in the EDSC total score, and in the subscales sleep onset and maintenance disorder (SIDS), sleep disordered breathing (SDRB), sleep-wake transition disorder (SWTD) and excessive daytime sleepiness (EDS). The research group had a higher percentage of individuals with indications of sleep disorders (43%), including SDB and sleep hyperhidrosis (HS). Actigraphy analysis showed that the RG had a longer sleep latency time and lower sleep efficiency than the CG. No correlations were found between sleep parameters and stuttering severity. On the other hand, sleep latency was correlated with other disfluencies. There was low reliability in the comparison of sleep time between the report of the child's guardians and actigraphy. Conclusions: The results of this study highlight the significant presence of sleep disorders in children with stuttering. The indications of disorders, especially sleep-disordered breathing (SDB) sleep hyperhidrosis (HS) and sleep onset and maintenance disorder (SIMD), which are frequent in this population, highlight the importance of assessing and addressing sleep issues in children with stuttering. In addition, actigraphy analysis showed that these children experience a longer delay in sleep onset and lower sleep efficiency. No significant correlations were found between sleep parameters and the severity of stuttering. However, a correlation was observed between sleep latency and other disfluencies. The study also revealed a low level of agreement between the sleep time reported by the children's guardians and the actigraphy measurements. Keywords: Sleep Disorders, Sleep, Stuttering, Evaluation Study, Actigraphy. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1 – Correlação entre a latência de sono medida pela actigrafia com a porcentagem de outras disfluências no GP 44 Figura 2 – Correlações entre velocidade de fala e parâmetros da gagueira no GP. 44 Quadro 1 – Caracterização dos aspectos demográficos do GP 36 LISTA DE TABELAS Tabela 1 – Comparação dos escores da Escala de Distúrbios de Sono em Crianças 41 Tabela 2 – Correlação entre parâmetros de sono e a porcentagem de disfluências típicas da gagueira e o escore total do Instrumento de Gravidade da Gagueira 43 Tabela 3 – Correlação entre parâmetros de sono da actigrafia e da fluência de fala 43 Tabela 4 – Relação entre período escolar e parâmetros do sono alterado 45 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS CBCL Child Behavior Checklist CID-11 Classificação Internacional de Doenças DD Distúrbios do despertar DIMS Distúrbios de início e manutenção do sono DRS Distúrbios respiratórios do sono DS Distúrbio de Sono DSM-5-TR Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders DTG Disfluências Típicas da Gagueira DTSV Distúrbios da transição sono-vigília EDSC Escala de Distúrbios do Sono em Crianças GC Grupo Comparativo GP Grupo Pesquisa HS Hiperhidrose do Sono IRGD Instrumento de Rastreio para a Gagueira do Desenvolvimento NSQ Núcleo supraquiasmático OASES Overall Assessment of the Speaker's Experience of Stuttering OD Outras Disfluências PSQI Pittsburgh Sleep Quality Index SED Sonolência excessiva diurna SSI Stuttering Severity Instrument STC Sistema de temporização circadiana TALE Termo de Assentimento Livre e Esclarecido TCLE Termo de Consentimento Livre e Esclarecido TD Total de Disfluências SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO 18 2. REVISÃO BIBLIOGRÁFICA 20 2.1 Gagueira 20 2.1.1 Quadro clínico 24 2.2 Sono 27 3. JUSTIFICATIVA 31 4. OBJETIVOS E HIPÓTESES 32 4.1 Objetivos específicos 32 4.2 Hipóteses 32 5. MÉTODO 34 5.1 Aspectos éticos 34 5.2 Critérios para seleção da amostra 34 5.3 Caracterização da amostra 35 5.4 Procedimentos 36 5.4.1 Avaliação da fluência 37 5.4.2 Classificação da gravidade da gagueira 38 5.4.3 Escala de Distúrbios do Sono em Crianças - EDSC 38 5.4.4 Actigrafia 39 5.5 Análise dos dados 40 6. RESULTADOS 41 Escala de Distúrbios do Sono em Crianças - EDSC 41 Actigrafia 42 Confiabilidade das informações, tempo de sono e latência (auto-relatados pelos responsáveis) e por medida objetiva (actigrafia) 43 Período escolar e frequências de alterações de sono em crianças com gagueira 45 Correlações entre sono e parâmetros da fluência de fala 45 7. DISCUSSÃO 46 8. CONCLUSÕES 54 REFERÊNCIAS 55 APÊNDICES 66 ANEXOS 71 18 1. INTRODUÇÃO A gagueira do desenvolvimento é um distúrbio multifatorial do neurodesenvolvimento caracterizado pela diminuição da estabilidade do sistema motor da fala (Mersov; De Nil, 2021). Essa estabilidade diminuída torna a produção da fala mais suscetível a interferências de fatores linguísticos, emocionais, ambientais e psicossociais (Smith; Weber, 2017). O quadro clínico é complexo e multifatorial, e resultante de disfunções neurológicas no controle motor e temporal da fala (Vanhoutte et al., 2016). As dificuldades temporais na sequência dos movimentos necessários para a fala frequentemente têm seu início na infância, afetando de 5 a 10% dos pré-escolares (Wagovich; Hall Cliffor, 2009; Bakhtiar et al., 2010). Aproximadamente 80 a 90% dos indivíduos afetados começam a gaguejar na faixa etária dos 2 aos 7 anos de idade (American Psychiatric Association, 2014). No entanto, a recuperação espontânea da gagueira é possível e ocorre com maior frequência no sexo feminino (Walsh et al., 2018). Esse transtorno pode impactar negativamente a qualidade de vida em diversos domínios como vitalidade, dor, cognição, funcionamento social e emocional, além de atividades diárias (Craig; Blumgart; Tran, 2009; Koedoot et al., 2011). O bem-estar das crianças e adolescentes que gaguejam pode ser comprometido por problemas emocionais como autopercepção negativa, ansiedade e depressão, algumas vezes resultantes de bullying (Sander; Osborne, 2019). A ansiedade é um dos sentimentos negativos mais frequentes nesses indivíduos (Smits-Bandstra; De Nil, 2007). Considerando assim, que o desenvolvimento e a manutenção das manifestações clínicas da gagueira estão associados a processos motores, linguísticos, sensoriais, emocionais e cognitivos (Anderson; Ofoe, 2019), esta população apresenta alto risco para irregularidades nos ritmos biológicos incluindo distúrbios de sono (Anderson et al., 2003). Por outro lado, os distúrbios de sono, se presentes, poderiam resultar em diminuição da motivação e da concentração, déficit de memória, sonolência diurna, alterações de humor, declínio da imunidade e agravamento de alterações motoras (O'brien et al., 2004; Chokroverty, 2010; Fadini et al., 2015). Isso criaria um processo de retroalimentação prejudicial a estes indivíduos, já que a presença de distúrbios de sono agravaria os sintomas como ansiedade e irritabilidade e poderiam assim exacerbar as manifestações da gagueira. De fato, crianças e adolescentes com gagueira, na faixa etária entre 4 e 17 anos, segundo relatos dos pais, mostraram maior risco para problemas de sono (insônia, distúrbios 19 respiratórios do sono e sonolência excessiva diurna) em relação à crianças sem gagueira (Merlo; Briley, 2019; Briley; Merlo, 2020). Dados subjetivos, coletados em questionários também indicaram que 15% dos indivíduos com gagueira relataram dificuldades para iniciar e continuar o sono e que estes dormem em média vinte minutos a menos que os sujeitos sem gagueira (Jacobs; Merlo; Briley, 2021). Até o momento, as investigações nesta população se limitaram ao uso de dados subjetivos coletados com questionários respondidos pelos pais ou de autopercepção dos distúrbios de sono. A análise de medidas objetivas com o uso de instrumentos como actígrafos e polissonigrafos são necessários para o registro de parâmetros mais complexos e para a caracterização do padrão de sono nesta população. Para o registro contínuo por dias ou meses, a actigrafia seria a ferramenta mais indicada para esta análise (Ancoli-Israel et al., 2003). Considerando que a compreensão dos transtornos do neurodesenvolvimento e das questões relacionadas ao sono pode auxiliar no planejamento terapêutico, o objetivo geral do presente estudo foi investigar características do sono de crianças com gagueira e possíveis relações com a fluência de fala e com a gravidade da gagueira. 20 2. REVISÃO BIBLIOGRÁFICA Neste capítulo, está exposto a revisão da literatura que abordará conteúdos referentes à gagueira, quadro clínico e sono que proporcionaram os alicerces teóricos e serviram de base para a realização deste estudo. 2.1 Gagueira Na Classificação Internacional de Doenças (CID-11), a gagueira foi designada como “Distúrbio Desenvolvimental da Fluência da Fala”. A Associação Psiquiátrica Americana (APA) no Manual Diagnóstico e Estatístico de Distúrbios Mentais (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders – DSM-5-TR) (American psychiatric association, 2022) propôs o termo “Transtorno da Fluência com Início na Infância” (Gagueira). O Manual Diagnóstico e Estatístico de Distúrbios Mentais – DSM-5-TR (American psychiatric association, 2022) descreveu as seguintes características do distúrbio, sob o código 315.35 [F80.81]: “[...] perturbações na fluência normal e no padrão temporal da fala inapropriadas para a idade e para as habilidades linguísticas do indivíduo persistentes e caracterizadas por ocorrências frequentes e marcantes de um (ou mais) entre os seguintes: (1) repetições de sons e sílabas; (2) prolongamentos sonoros das consoantes e das vogais; (3) palavras interrompidas (p. ex., pausas em uma palavra); (4) bloqueio audível ou silencioso (pausas preenchidas ou não preenchidas na fala); (5) circunlocuções (substituições de palavras para evitar palavras problemáticas); (6) palavras produzidas com excesso de tensão física; (7) repetições de palavras monossilábicas (p. ex., “eu-eu-eu-eu vejo”). A perturbação causa ansiedade em relação à fala ou limitações da comunicação efetiva, na participação social ou no desempenho acadêmico ou profissional, individualmente ou em qualquer combinação. O início dos sintomas ocorre precocemente no período do desenvolvimento (Nota: Casos de início tardio são diagnosticados como F98.5 distúrbio da fluência com início na idade adulta). A perturbação não é passível de ser atribuída a um déficit motor da fala ou sensorial, à disfluência associada à lesão neurológica (p. ex., acidente vascular cerebral, tumor, trauma) ou a outra condição médica, não sendo mais bem explicada por outro distúrbio mental.” A Classificação Internacional de Doenças e Outros Distúrbios – CID 11 (2022) refere-se à gagueira no Eixo 06, englobando os distúrbios de neurodesenvolvimento, ou seja, 21 distúrbios que ocorrem durante o processo de desenvolvimento do cérebro. Nas subdivisões, o código 6A01.1 é responsável pela descrição dos distúrbios do/no desenvolvimento da fluência fala: “Distúrbio desenvolvimental da fluência da fala que é caracterizado por rupturas persistentes, frequentes ou pervasivas do fluxo da fala que surge durante o período do desenvolvimento e está fora dos limites das variações normais esperadas para idade e nível de funcionamento intelectual e resulta em redução da inteligibilidade e afeta significativamente a comunicação. Pode envolver repetições de sons, sílabas ou palavras, prolongamentos, quebra de palavras, bloqueios, uso excessivo de interjeições e quebras abruptas e rápidas da fala”. A gagueira desenvolvimental é um transtorno da fluência da fala caracterizado por repetições involuntárias, prolongamentos e bloqueios silenciosos, principalmente nas partes iniciais dos enunciados (Sato et al., 2011). Presente em cerca de 5% dos pré-escolares (Andrews et al., 1983; Maguire et al., 2004; Onslow; O´brian, 2013; Cai et al., 2014; Daliri et al., 2014), com maior prevalência do sexo masculino (Yairi; Ambrose, 2005; Juste; Andrade, 2006; Merlo; Jacobs; Briley, 2022), esse distúrbio desenvolvimental da fluência da fala pode persistir na fase adulta (Logan; Mullins; Jones, 2008; Arcuri et al., 2009) atingindo 1% da população em geral (Bloodstein et al., 2021). No Brasil, estima-se que 10 milhões de brasileiros experienciaram um período de gagueira durante a vida (IBGE, 2022). Considerada um transtorno de origem multifatorial e complexa, uma vez que a interação de vários fatores pode justificar o seu surgimento (Smith; Weber, 2017), a gagueira é resultante de disfunções neurológicas no controle motor e temporal da fala (Vanhoutte et al., 2016; Chang et al., 2019). Assim como a gagueira, a taquifemia é um transtorno da fluência (CID- 10). A Associação Internacional de Taquifemia (International Cluttering Association, ICA), por meio de um grupo de expertises, desenvolveu um texto no qual explicam que estão trabalhando em uma conceituação clínica da taquifemia que considera a descrição verbal dos sintomas, a análise audiovisual da fala do indivíduo com taquifemia, bem como a sua percepção e de seus familiares (Myers et al., 2018). A respeito da descrição verbal dos sintomas foram enumerados os seguintes tópicos: velocidade de fala percebida como rápida e/ou irregular, excesso de outras disfluências, dificuldades na articulação e na pragmática, uso inadequado de padrões prosódicos, problemas na organização da linguagem e/ou do pensamento. A análise do registro audiovisual da fala propicia a avaliação das manifestações clínicas da taquifemia. 22 Relatos a respeito da autopercepção da taquifemia do falante e da percepção de outros ouvintes revelam dificuldades de controlar a velocidade do pensamento com a velocidade de fala, impulsividade na fala e problemas na troca de turnos comunicativos, entre outros aspectos (Myers et al., 2018). Apesar de uma crescente base de conhecimento empírico de contribuintes para a gagueira do desenvolvimento, há a necessidade de uma compreensão multifatorial da persistência da gagueira consistente com a especulação teórica sobre os fatores precipitantes e exacerbadores da gagueira (Smith; Weber, 2017; Walsh; Christ; Weber, 2021). Segundo a teoria de vias dinâmicas multifatoriais da gagueira, o início do transtorno ocorre quando as redes neurais que sustentam a fala (aspecto motor), a linguagem (aspecto linguístico) e as funções emocionais (aspecto psicossocial) produzem sinais de controle instáveis e assíncronos, que influenciam na expressão da carga genética da gagueira e nos setores responsáveis pelos sistemas da fala; estes também interferem nas respostas comportamentais e fisiológicas da criança (Smith; Weber, 2017). Segundo essa teoria, neste quadro ocorreria uma interação dinâmica e não linear entre fatores genéticos, neurológicos, linguísticos, motores, auditivos, cognitivos e emocionais (Smith; Weber, 2017). Há evidências científicas da predominância da origem genética como a principal causa do transtorno (Oliveira et al., 2012; Frigerio-Domingues; Drayna, 2017), e quatro genes que predispõem à gagueira já foram identificados: GNPTAB, GNPTG, NAGPA e AP4E1 (Kang et al., 2010; Raza et al., 2015; Raza et al., 2016). Estudos de herdabilidade estabeleceram que existe um componente genético para a gagueira, com estimativas de herdabilidade de até 84% (Below et al., 2023). No entanto, acredita-se que trabalhos futuros sobre a base genética/epigenética da gagueira irão focar não apenas nos genes que estão envolvidos na transmissão através das gerações de uma família, mas também na forma como os processos epigenéticos, influenciados por fatores ambientais, contribuem para uma maior probabilidade de surgimento de gagueira persistente (Smith; Weber, 2017). Portanto, a compreensão dos fatores que podem influenciar na cronicidade do transtorno é fundamental no sentido de favorecer tanto o diagnóstico como a intervenção clínica. Dentre os fatores neurológicos encontra-se a lateralização atípica dos processos de fala e de linguagem, que desempenham importante papel nas disfluências da fala de indivíduos com gagueira (Sato et al., 2011). A presença no hemisfério esquerdo do processamento prosódico pode estar relacionado à má percepção que esta população apresenta de estímulos linguísticos com informação prosódica (Blood, 1996). Além disso, crianças com gagueira não apresentam maior atividade do hemisfério esquerdo no processamento de contraste fonêmico 23 em relação ao processamento de contraste prosódico como ocorre em crianças com desenvolvimento típico (Sato et al., 2011). Estudos de neuroimagem revelaram que indivíduos que gaguejam apresentam anormalidades em redes cerebrais de larga escala envolvendo o córtex motor/pré-motor, o giro frontal inferior, o giro temporal superior, os gânglios da base e o cerebelo (Fox et al., 1996; Sommer et al., 2002; Lu et al., 2010; Budde; Barron; Fox, 2014; Chang et al., 2015; Neef et al., 2015). Estudos de conectividade funcional com base em dados de ressonância magnética funcional (fMRI) demonstraram conectividade funcional alterada em indivíduos que gaguejam dentro do loop gânglios da base-talamocortical (Lu et al., 2010; Chang; Zhu, 2013), o loop auditivo-motor (Chang; Zhu, 2013), a alça frontal pré-motora inferior esquerda (Chang et al., 2011) e a alça cerebelo-cerebral (Lu et al., 2012). Esses achados sugerem que a gagueira está associada a déficits tanto na ativação regional quanto na interação inter-regional necessária para a produção da fala (Yang et al., 2018). Há muito tempo está claro que a gagueira envolve problemas no planejamento e na execução motora da fala, com falhas evidentes nos processos motores da fala, resultando em disfluências perceptíveis que variam em duração e forma (Smith; Weber, 2017). No entanto, as autoras descreveram que, o surgimento, a persistência e a gravidade da gagueira ao longo da vida são fortemente condicionados por fatores linguísticos e emocionais (Smith; Weber, 2017). Um recente estudo sobre os aspectos linguísticos da gagueira, aponta para uma análise integrada da parte linguística e motora, uma vez que os estudos de função cerebral nesta população sugerem função atípica de áreas tipicamente associadas ao processamento da linguagem, bem como ao processamento motor da fala (Brundage; Ratner, 2022). Para estas autoras, a maior ocorrência de gagueira em determinadas palavras deve ser analisada a partir de parâmetros linguísticos e motores, pois estes fatores podem não ser independentes uns dos outros. A relevância da audição para a fluência é incontestável, pois assegura a retroalimentação auditiva adequada, favorecendo o monitoramento e controle da própria fala. A literatura aponta em indivíduos que gaguejam: presença de déficits de percepção auditiva, em virtude da incapacidade de ativar ou a ativação insuficiente do córtex auditivo durante a fala (Hudock et al., 2011); maior prevalência de alterações do processamento auditivo quando comparados a indivíduos sem gagueira (Arcuri, 2017) e, redução das disfluências típicas da gagueira com o uso da retroalimentação auditiva atrasada, mascarada e amplificada (Fiorin et al., 2021). 24 Em relação aos aspectos cognitivos em indivíduos que gaguejam, um tema muito discutido na literatura é a memória de trabalho. Ela está relacionada às funções executivas, e representa uma memória de curto prazo e envolvida na manipulação das informações, de modo a permitir a execução de tarefas cognitivas complexas (Baddeley et al., 2003). Há evidência de déficits de memória de trabalho na gagueira, tanto de crianças quanto de adultos (Pelczarski; Yaruss, 2016; Coalson; Byrd, 2017; Arongna et al., 2020). Indivíduos que gaguejam frequentemente experimentam reações emocionais elevadas, como medo, vergonha, raiva, culpa, preocupação, entre outras (Alm, 2004; Conture; Kelly; Walden, 2013; Tichenor; Yaruss, 2019). Uma pesquisa realizada por Giorgetti e colaboradores (2014) analisou o perfil comportamental e de competências sociais de 64 indivíduos, sendo 32 com gagueira e 32 sem gagueira, de 6 a 18 anos por meio do inventário comportamental CBCL - Child Behavior Checklist (Santos; Silvares, 2006). As autoras concluíram que medo, nervosismo/tensão, culpa, ansiedade, perfeccionismo e preocupação foram as alterações mais frequentes relacionadas ao comportamento de crianças que gaguejam, enquanto prejuízos no domínio social e nas situações comunicacionais rotineiras caracterizaram a competência social destes indivíduos (Giorgetti et al., 2015). Essas experiências emocionais são individualizadas para cada falante, e se desenvolvem ao longo do tempo conforme as pessoas lidam com a gagueira ao longo de suas vidas (Tichenor; Yaruss, 2018). Neste sentido, uma temática relevante e muito investigada em indivíduos que gaguejam é a regulação emocional, tendo em vista que ela é um fator significativo relacionado ao impacto adverso da gagueira (Tichenor et al., 2022). 2.1.1 Quadro clínico O quadro clínico da gagueira é complexo, variável e pode afetar diversas áreas da vida do falante. A gagueira é caracterizada principalmente por interrupções involuntárias no fluxo da fala, que podem ser classificadas em disfluências típicas da gagueira (DTG) ou outras disfluências (OD), segundo Yairi e Ambrose (1992). O principal marcador clínico do transtorno é o excesso de disfluências típicas da gagueira (Maguire et al., 2010; Ambrose et al., 2015; Tichenor; Yaruss, 2019; Marconato et al., 2020). Portanto, um dos critérios diagnósticos da gagueira amplamente utilizado é a presença de no mínimo 3% de disfluências típicas da gagueira presentes na fala espontânea (Gregg; Yairi, 2012; Tumanova et al., 2015). Há três tipos de disfluências consideradas como marcadoras da gagueira: a repetição de sons e/ou sílabas; os prolongamentos de sons; e os bloqueios (Lu et al., 2022). Estas 25 disfluências são frequentemente descritas como disfluências que ocorrem dentro da palavra (intrapalavras) e são rotuladas de disfluências motoras, devido à presença de tensão muscular (Oliveira et al., 2020). As outras disfluências são rupturas comuns a todos os falantes e refletem principalmente, as incertezas e imprecisões linguísticas, visando ampliar a compreensão da mensagem (Seno; Giacheti; Moretti-Ferreira, 2014). Neste sentido, elas são normalmente utilizadas para: resolver dificuldades momentâneas relacionadas ao conteúdo ou à forma da mensagem que o falante deseja transmitir (Celeste; Russo; Fonseca, 2013); reparar erros (Steinberg et al., 2013); e, refletem o planejamento linguístico (Wexler; Mysak, 1982; Ganthous; Rossi; Giacheti, 2013). Elas também podem resultar de situações de estresse comunicativo, de imprecisão na mensagem formulada ou do desejo de enfatizar algo na fala (Mercon; Nemr, 2007). Os diferentes tipos de outras disfluências são: hesitação, interjeição, revisão, repetição de palavra não monossilábica, repetição de segmento, repetição de frase e palavra não terminada (Yairi; Ambrose, 1992, 1999; Pinto; Schiefer; Ávila, 2013). Em indivíduos que gaguejam as outras disfluências mais frequentes são as hesitações, revisões e repetições de palavras inteiras (Campanatti-Ostiz; Andrade, 2001; Andrade, 2004; Mercon; Nemr, 2007). Vários autores relataram que tanto as disfluências típicas da gagueira, como as outras disfluências, ocorrem em maior quantidade em indivíduos que gaguejam, quando comparadas com fluentes, pois essas manifestações constituem-se como características essenciais do distúrbio (Yairi; Ambrose, 1999; Andrade, 2000; Brabo; Schiefer, 2009; Picoloto; Oliveira, 2016). Além das disfluências na fala, até 30% das crianças com gagueira podem apresentar também o transtorno fonológico, no entanto a frequência com que as tipologias de disfluências ocorrem é um marcador significante para auxiliar na identificação e diagnóstico diferencial desses transtornos (Blood., et al 2003; Alencar., et al 2020). Uma investigação analisou as outras disfluências em diferentes ciclos de vida de indivíduos com gagueira, e concluiu que elas devem ser consideradas no processo diagnóstico e terapêutico desta população (Alonso, 2021). Esta pesquisa acrescentou um efeito adverso que a gagueira pode ocasionar na vida das pessoas que gaguejam, e tal fato ainda não fora relatado na literatura, isto é, o aumento das outras disfluências em adultos que gaguejam. Os achados relatados por Alonso (2021) indicam que as outras disfluências não poderiam ser simplesmente classificadas, quantificadas, mas excluídas das manifestações do quadro clínico da gagueira. A autora propôs que, em uma visão mais contextualizada deste transtorno da fluência, adultos com gagueira poderiam utilizar, por exemplo, das interjeições e 26 revisões como estratégias para compensar as dificuldades inerentes ao próprio distúrbio. Sendo assim, essas disfluências podem prejudicar a espontaneidade da fala desses falantes, bem como ocasionar certo desconforto na transmissão da mensagem (Alonso, 2021). A velocidade de fala é outro parâmetro da fluência que está relacionado com as rupturas, e é um importante indicativo do desempenho do processamento motor da fala (Andrade; Cervone; Sassi, 2003; Costa; Martins-Reis; Celeste, 2016). Há evidências científicas que o excesso de disfluências em falantes que gaguejam reduz a velocidade de fala, definida como o número de sílabas ou de palavras fluentes por minuto (Andrade; Cervane; Sassi, 2003; Arcuri et al., 2009; Dehqan et al., 2008; Andrade, 2011; Logan et al., 2011; Tumanova et al., 2011; Liu et al., 2014; Edemir et al., 2018). Portanto, a velocidade de fala foi descrita como inversamente proporcional à gravidade da gagueira (Bloodstein, 2001; Cervane; Sassi, 2003; Dehqan et al., 2008; Arcuri et al., 2009; Andrade, 2011). Vale ressaltar que, uma técnica amplamente utilizada na terapia fonoaudiológica para promover a fluência é o alongamento silábico, que visa aumentar levemente a duração de cada sílaba da palavra (Marconato et al., 2020), e consequentemente favorece o controle e regularidade da velocidade de fala. Uma das justificativas para a redução da gagueira sob esta condição, é o fato de que essa técnica disponibiliza mais tempo para resolver discrepâncias entre os sinais neurais de regiões sensoriais e motoras (Frankford el al., 2022). Outras manifestações que podem acompanhar as disfluências são os concomitantes físicos. Descritos como movimentos físicos ou tensões musculares, podendo ser auditivos ou visuais, como: movimentos faciais, de cabeça ou de outras partes do corpo, estalos de língua ou sons diversos (Riley, 2009). Não são manifestações obrigatórias do transtorno, mas são consideradas na avaliação do grau da gravidade da gagueira, uma vez que sua presença agrava o quadro clínico. Além das manifestações observáveis, como as disfluências, a velocidade de fala e os concomitantes físicos, o quadro clínico da gagueira engloba sintomas não observáveis como o impacto psicossocial que pode interferir na qualidade de vida do falante a longo prazo (Lima; Cordeiro; Queiroga, 2021), sentimentos e atitudes negativas relacionadas à fala, e/ou comportamentos compensatórios, como fuga e comportamentos de evitação. A criança que gagueja desde muito cedo pode desenvolver dificuldades sociais, emocionais e comportamentais, como possuir sentimentos negativos em relação à sua fala, redução da participação social comunicativa e passar a sofrer intimidações sistemáticas (bullying) (McAllister, 2016). 27 A classificação da gravidade da gagueira é de suma importância após a confirmação da presença do quadro (Riley, 1994, 2009; Bakhtiar et al., 2010; Howell, 2013; Oliveira; Correia; Ninno, 2022). Andrade (2010) utilizou o Instrumento de Gravidade da Gagueira (Riley, 1994) para avaliar 17 crianças com gagueira falantes do Português Brasileiro, de 4 a 11 anos. Os resultados mostraram que a maioria manifestou gagueira moderada (53%), seguida da gagueira leve (29,4%) e gagueira grave (17,6%). Outra investigação realizada com 10 crianças com gagueira, com idade de 4 a 8 anos, com o mesmo instrumento também mostrou maior prevalência de crianças com gagueira moderada (70%), porém seguida de gagueira grave (20%) e leve (10%) (Rossi et al., 2014). Por fim, muitos fatores podem influenciar o surgimento e a manutenção das disfluências, por isso a gagueira é considerada um transtorno multifatorial. Entre eles estão os fatores linguísticos, motores de fala, fisiológicos, auditivos, cognitivos e emocionais, todos desempenhando papéis potencialmente significativos para o desenvolvimento da gagueira (Smith; Kelly, 1997; Yairi; Ambrose, 2005; Chang; Zhu, 2013 Guitar, 2013; Jansson-Verkasalo, 2014; Erdemir et al., 2018). 2.2 Sono O funcionamento do nosso organismo é regido por uma série de eventos periódicos que, quando se repetem em ciclos de aproximadamente 24 horas, recebem a denominação de ritmos circadianos (Moore; Robert, 1997; Czeisler; Klerman, 1999) considerados intrínsecos ao organismo. Esses ritmos envolvem desde a expressão de genes até comportamentos como o ciclo sono e vigília (Gonçalves, 2013) que, em adultos, se expressa como 16 horas de vigília durante o dia seguidos por 8 horas de sono consolidado à noite. A expressão desse comportamento de forma cíclica ocorre por conta da combinação dos processos homeostáticos e o chamado sistema de temporização circadiana - STC (Borbely, 1982). A homeostase do sono é um mecanismo que regula a sincronização das fases de sono-vigília, informa a necessidade de dormir e auxilia na manutenção do sono em tempo suficiente durante toda à noite, a fim de compensar as horas de vigília em que se realizam as atividades diárias. A pressão homeostática para iniciar e manter o sono pode acumular-se proporcionalmente ao aumento na duração da vigília. Por outro lado, o desempenho físico e mental na fase de vigília depende de um episódio de sono restaurador para o organismo (Dement, 2005). 28 A periodicidade do ciclo sono-vigília, apesar de ser influenciada por fatores ambientais, como o ciclo claro/escuro, é caracterizada como um ritmo biológico endógeno circadiano, que é capaz de se manter mesmo na ausência de pistas ambientais externas (Dijk; Czeisler, 1995). Assim, a rede neural que o determina é constituída por um oscilador circadiano endógeno, localizado no núcleo supraquiasmático (NSQ) do hipotálamo, também conhecido como relógio biológico, e por vias de entrada e de saída de informações que no conjunto formam o STC (Amir; Stewart, 1996). O sono é um processo fisiológico, fundamental em diversas funções como modulação do sistema imunológico e metabólico, funções cognitivas, emocionais, comportamentais, linguagem e aprendizado (Pace-Schott, Hobson, 2002; Pinato et al., 2019). Distúrbios do sono são preocupações globais de saúde, já que a má qualidade do sono tem resultados adversos significativos para a saúde como diminuição da motivação e da concentração, déficit de memória, sonolência diurna, alterações de humor, declínio da imunidade e agravamento de alterações motoras (O'brien et al., 2004; American Academy of Sleep Medicine, 2005; Chokrovery et al., 2010; McGregor; Alper., 2015; Garayzábal et al., 2022). Especialmente em crianças, os distúrbios de sono trazem consequências negativas para o desenvolvimento (Bathory; Tomopoulos 2017; Lamônica et al., 2021). Na gagueira, o primeiro indicativo de que essas crianças poderiam apresentar alterações rítmicas veio dos resultados de um questionário aplicado aos pais sobre características comportamentais de 62 crianças de 3 a 5 anos, sendo 50% com gagueira e 50% sem gagueira, onde verificou-se maior indicativo de irregularidades em alguns ritmos biológicos de crianças com gagueira (Anderson et al., 2003). Em 2019, Briley e Merlo descreveram que 25% das crianças com gagueira investigadas apresentaram problemas como insônia, distúrbios respiratórios do sono e sonolência excessiva diurna, e 15% apresentaram dificuldade para iniciar e manter o sono quase todos os dias, além de dormirem menos horas por noite, segundo relato dos responsáveis. Os mesmos autores demonstraram em estudos posteriores que tais queixas de sono estão presentes em maior frequência nos indivíduos com gagueira do que em crianças com desenvolvimento típico, mesmo excluindo problemas como alergias, asma e outras condições comuns nesta população (Briley, Merlo, 2020) e que adolescentes e jovens com gagueira relatam dormir em média 20 minutos a menos que os sujeitos sem disfluências e 15% destes indivíduos relatam dificuldade para iniciar e manter o sono quase todos os dias (Jacobs; Merlo; Briley, 2021). 29 Estes dados são relevantes se considerarmos que menor tempo ou qualidade de sono à noite pode piorar o tempo de reação nas atividades e aumentar as consequências negativas durante o dia (Mah et al., 2017). Tais consequências podem prejudicar a capacidade de consolidar os novos padrões de fala, afetando o acesso e a execução de planos motores recém-aprendidos pelos indivíduos que gaguejam, comprometendo o prognóstico individual do tratamento dessa população (Druker et al., 2019). Dentre os possíveis distúrbios de sono presentes em jovens com gagueira, há indicativos de que ocorra a apneia obstrutiva do sono (AOS), apesar da mesma só ter sido investigada por meio de questionários. Neste caso a AOS apresentaria relação com dificuldade para permanecer dormindo e com dificuldades para se concentrar no dia seguinte (Merlo; Jacobs; Briley, 2022). Adultos com gagueira relataram uma duração de sono mais curta, menor qualidade de sono, maior uso de medicamentos promotores do sono e uma pontuação global mais elevada para distúrbios de sono no questionário de autorrelato que avalia a qualidade do sono - PSQI - Pittsburgh Sleep Quality Index (Mohammadi et al., 2023). Não há na literatura estudos com relação ao tratamento de distúrbios do sono nesta população, mas em diversos quadros de transtornos do neurodesenvolvimento, cujos distúrbios do sono já foram descritos por ferramentas objetivas de avaliação, a melhora da qualidade do sono resulta em melhora comportamental, da interação social e das alterações de cognitivas (Schwichtenberg et al., 2013; Zuculo; Knap; Pinato, 2014; Fadini et al., 2015; Mcgregor; Alper, 2015; Santoro et al., 2016; Zuculo et al., 2017; Franklin et al., 2018). Distúrbios do sono infantil podem ser eficazmente tratados, com taxas significativas de sucesso na redução de suas implicações negativas tanto para a criança quanto para a família, quando programas de prevenção e intervenção precoce são implementados (Sadeh, 2004; Richdale; Schreck, 2009). Isso destaca a importância crucial da integração de cuidados entre o tratamento fonoaudiológico e o gerenciamento do sono, particularmente no caso das crianças com gagueira. Essa abordagem integrada tem o potencial de ir além de aliviar o sofrimento social associado à gagueira, oferecendo benefícios substanciais a essa população. A relevância de investigar a ocorrência e as principais características dos distúrbios do sono em crianças com gagueira reside na contribuição que esses achados podem oferecer ao processo diagnóstico e terapêutico, bem como ao prognóstico ao longo da vida dessas crianças (Van der Heijden et al., 2018). Os métodos de avaliação da qualidade do sono têm sido convencionalmente realizados em ambientes clínicos, monitorando os sinais biológicos dos usuários. A polissonografia 30 (PSG), método padrão-ouro, é possibilitada pelo monitoramento contínuo de diferentes indicadores cardiorrespiratórios e neurofisiológicos (Berry; Wagner, 2014). Entretanto, devido à coleta de dados complexa e multicanal do PSG, esse método é limitado a monitoramento hospitalar ou laboratorial de curto prazo. A actigrafia, por outro lado, é um método bem estabelecido habilitado por um acelerômetro 3D que captura os movimentos de um membro para monitorar a atividade e o repouso e seus dados podem ser utilizados inferencialmente para se estudar parâmetros do ciclo sono-vigília (Ancoli-Israel et al., 2003). A actigrafia é assim, uma ferramenta de avaliação não invasiva, indicado para qualquer idade, que permite uma avaliação confortável para o indivíduo, sem necessidade de deslocamento para uma clínica especializada, além de permitir registros contínuos por dias ou meses. No entanto, a fim de tornar esse método uma escolha viável para profissionais clínicos, é imperativo conduzir estudos adicionais com um alto grau de rigor científico para estabelecer parâmetros de referência em crianças típicas, bem como em diferentes condições, como, por exemplo, crianças com gagueira. 31 3. JUSTIFICATIVA Sob a perspectiva da avaliação fonoaudiológica, a relevância deste estudo é respaldada por evidências que demonstram que indivíduos afetados por distúrbios do sono frequentemente manifestam déficits em funções neurocognitivas que desempenham um papel crucial na aquisição e expressão da linguagem. Paralelamente, indivíduos com transtornos do neurodesenvolvimento, em especial aqueles que possuem manifestações de natureza neurológica ou psicológica, frequentemente exibem uma alta prevalência de distúrbios do sono. Portanto, é de extrema importância considerar a possível presença de distúrbios do sono e compreender suas características em populações que requerem terapia fonoaudiológica, como é o caso das crianças com gagueira. Pouco se sabe em relação aos distúrbios de sono nesta população, quais distúrbios de sono são mais comuns e sobre a qualidade do sono, a partir de uma análise objetiva. Esse conhecimento pode contribuir significativamente para a abordagem clínica e o desenvolvimento de intervenções mais eficazes, melhorando o atendimento e a qualidade de vida dessas crianças. 32 4. OBJETIVOS E HIPÓTESES O presente estudo teve como objetivo geral investigar características do sono de crianças com gagueira e possíveis relações com a fluência de fala e com a gravidade da gagueira. 4.1 Os objetivos específicos foram: 1. Investigar a presença ou não de distúrbios de sono e parâmetros do ritmo sono/vigília em crianças com gagueira por meio da Escala de Distúrbios de Sono em Crianças (EDSC) e da actigrafia; 2. Comparar a frequência de distúrbios de sono e parâmetros do sono entre crianças com gagueira e crianças com desenvolvimento típico; 3. Investigar a relação entre as alterações na qualidade do sono mais frequentes em crianças com gagueira e parâmetros da fluência de fala e a gravidade da gagueira. 4. Comparar as informações de tempo de sono e latência relatados pelo responsável pela criança com os mesmos parâmetros medidos pela actigrafia; 5. Investigar se há relação entre alterações de sono encontradas e o período escolar em crianças com gagueira. 4.2 Hipóteses Considerando-se dados da literatura que indicam que indivíduos com gagueira apresentam alto risco para distúrbios de sono, nossa primeira hipótese é de que as crianças com gagueira a serem investigadas no presente estudo apresentarão piores parâmetros de qualidade de sono, quando comparadas com a população na mesma faixa etária, com desenvolvimento típico. Assumindo-se que tanto a quantidade de sílabas gaguejadas como o grau de gravidade da gagueira podem refletir o comprometimento dos fatores fisiológicos correlatos, a segunda hipótese do estudo é de que haverá correlação entre a avaliação da fluência de fala e da gravidade da gagueira com os parâmetros do sono das crianças com gagueira. No que diz respeito à comparação entre os instrumentos objetivos e subjetivos para análise do tempo de sono e da latência, nossa terceira hipótese, é de que esses instrumentos 33 não sejam consistentes em suas medições, destacando, assim, a importância da utilização complementar de ambos para uma avaliação abrangente do perfil de sono. 34 5. MÉTODO 5.1 Aspectos éticos O presente estudo foi delineado mediante os princípios éticos de pesquisas envolvendo seres humanos do Conselho Nacional de Saúde nos termos da Resolução nº 466/2012. O trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Filosofia e Ciências – CEP/FFC/UNESP sob o número 5.732.246. Todos os convidados e seus representantes legais receberam as informações pertinentes ao projeto, objetivos da pesquisa, procedimentos, resguardo da privacidade, consentimento sobre a sua participação na pesquisa e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e Termo de Assentimento para a utilização dos dados com fins científicos. Trata-se de um estudo transversal observacional com comparação entre grupos, realizado no Laboratório de Estudos da Fluência (LAEF), alocado no Centro Especializado em Reabilitação – CER-II, credenciado no Sistema Único de Saúde (SUS) e vinculado ao Departamento de Fonoaudiologia da Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC) da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de Marília. 5.2 Critérios Para Seleção da Amostra Os critérios de inclusão para o GP foram: crianças com idade entre 4 e 12 anos (Lei nº 8.069/1990); diagnóstico de gagueira desenvolvimental persistente por profissional da área; apresentar no mínimo de 3% de sílabas gaguejadas ou disfluências típicas da gagueira (Gregg; Yairi, 2012; Tumanova et al., 2015), a classificação do transtorno foi no mínimo leve no Instrumento de Gravidade da Gagueira (descartando assim os casos de gagueira muito leve), e não estavam participando de nenhum programa de terapia para gagueira na época da avaliação. Os critérios de inclusão para o GC foram: crianças com idade entre 4 e 12 anos (Lei nº 8.069/1990) e não apresentar queixas de disfluências na fala, atual ou pregressa. Os critérios de exclusão para ambos os grupos foram: apresentar alterações neurológicas, síndromes genéticas, deficiência mental, transtorno do déficit de atenção e hiperatividade, taquifemia, uso de medicamentos e/ou outras condições pertinentes que poderiam gerar erros no diagnóstico. 35 5.3 Caracterização da amostra de acordo com os dados de identificação Após a aplicação dos critérios de elegibilidade, a amostra foi composta por 51 indivíduos de ambos os sexos, na faixa etária de 4 a 12 anos. Os participantes foram divididos em 2 grupos: Grupo Pesquisa (GP) composto por 30 crianças com gagueira (indivíduos em atendimento no Laboratório de Estudos da Fluência – LAEF do Centro Especializado em Reabilitação – CER II, do Centro de Estudos da Educação e da Saúde – CEES (UNESP – Marília) e Grupo Comparativo (GC) composto por 21 crianças sem queixas de disfluências recrutados na população local. A amostra foi selecionada a partir dos 4 anos, a fim de que o diagnóstico da gagueira desenvolvimental persistente fosse realizado com maior precisão. Durante a história clínica das crianças do GP, foi realizado o heredograma e a investigação dos fatores de risco que contribuem para a ocorrência do transtorno da fluência de fala. Do total das crianças do GP 90% apresentaram histórico familiar positivo para a gagueira. No entanto, não foi identificada uma causa específica para a gagueira. A avaliação foi realizada qualitativamente e quantitativamente, de modo individual. Com o intuito de confirmar o pareamento entre os dois grupos foi realizada a comparação das idades entre eles, as quais não apresentaram diferença (GP 8 [6-11] vs. GC 10 [7-11], p= 0,14). A amostra foi composta predominantemente por meninos e sem diferença (p= 0,88) nos dois grupos: 22 meninos e 8 meninas no GP (respectivamente 73% vs. 27% ), com uma razão sexual de 2,75 meninos: 1 menina, e 15 meninos e 6 meninas (respectivamente 71% vs. 29%) no GC, sendo a razão sexual do GP: 2,50 meninos: 1 menina. No quadro 1 apresenta-se dados de caracterização dos aspectos demográficos do GP. A faixa etária variou de 4 a 12 anos, com uma mediana de idade de 8 [6-11] para os dois grupos. Quanto ao período em que as crianças estudam, no GP 54% frequentam a escola no turno matutino (N=16), 23% vespertino (N=7) e 23% deles estão na escola em período integral (N=7). Uma limitação do estudo é de que essas informações sobre as crianças do GC não foram coletadas. A amostra também não foi avaliada em relação ao período de puberdade dos participantes mais velhos, sendo considerados no mesmo grupo de crianças, segundo ECA 2022. A maioria das crianças do GP apresentaram, no instrumento de gravidade da gagueira, a classificação de gagueira moderada (43%, N= 13), seguida da gagueira grave (30%, N= 9) e gagueira leve (27%, N= 8). 36 Quadro 1. Caracterização dos aspectos demográficos do GP. Nº Idade Sexo Escolaridade Gravidade da Gagueira Turno 1 11,8 M 7º ano Grave Matutino 2 10,8 M 6º ano Moderada Matutino 3 10 M 4º ano Moderada Matutino 4 10,5 F 5º ano Leve Matutino 5 9 M 4º ano Moderada Matutino 6 11,4 F 5º ano Grave Vespertino 7 11 F 6º ano Leve Matutino 8 9,2 M 4º ano Moderada Matutino 9 10,8 M 4º ano Leve Matutino 10 9,2 M 5º ano Grave Integral 11 8,1 M 3º ano Grave Integral 12 6,4 M 1º ano Moderada Integral 13 9,9 M 4º ano Moderada Vespertino 14 6 M 1º ano Grave Matutino 15 5,7 M Infantil Grave Vespertino 16 5,7 M Infantil Moderada Integral 17 7,7 F 3º ano Grave Matutino 18 4,8 M Infantil Moderada Vespertino 19 6,4 M 1º ano Grave Vespertino 20 7 M 2º ano Moderada Matutino 21 4,8 M Infantil Leve Matutino 22 7 F 1º ano Leve Matutino 23 7,1 M 1º ano Moderada Integral 24 11,8 M 6º ano Leve Matutino 25 7,1 F 1º ano Leve Vespertino 26 5,7 M Infantil Moderada Vespertino 27 9 M 5º ano Moderada Matutino 28 11,1 M 7º ano Moderada Integral 29 8 F 4º ano Grave Matutino 30 6,1 F 1º ano Leve Integral Legenda: Nº = participante Número; GP = Grupo Pesquisa; F = Feminino; M = Masculino. Fonte: Elaborada pela autora. 5.4 Procedimentos Para a seleção, os responsáveis pelos participantes foram questionados oralmente sobre seus dados de identificação para que fossem selecionados por meio da aplicação dos critérios de inclusão e de exclusão. Após a assinatura do Termo de Consentimento Livre e 37 Esclarecido (TCLE) e do Termo de Assentimento Livre e Esclarecido (TALE), os participantes do GP foram submetidos à avaliação da fluência da fala, classificação da gravidade da gagueira (Stuttering Severity Instrument, SSI-4, Riley, 2009) e os responsáveis ou pais dos participantes, tanto do GP como do GC, responderam ao questionário do sono (EDSC). Após os esclarecimentos, o actígrafo foi posicionado no braço não dominante de cada participante por um período de 14 dias de uso contínuo. 5.4.1 Avaliação da fluência O registro audiovisual da fala espontânea dos participantes do GP foi realizado durante a avaliação inicial. Sabe-se que a fala espontânea é uma tarefa de maior complexidade motora, sendo a mais adequada para avaliar a fluência de indivíduos com gagueira (Costa et al., 2016). A sala onde foi realizada a gravação apresentava iluminação e acústica adequada, a fim de minimizar a interferência de ruídos externos e favorecer a observação de concomitantes físicos. Considerando a quantidade necessária de sílabas para a análise, cada participante foi filmado, no mínimo, 5 minutos (os casos com maior frequência de disfluências falaram por um tempo maior), sobre o tema-estímulo “rotina e atividades de lazer”. A avaliadora realizou perguntas amplas e comentários para incentivar a continuidade do discurso, quando necessário. Os registros audiovisuais foram transcritos na íntegra com o auxílio de um computador e fones de ouvido supra-aurais, considerando um total de 200 sílabas fluentes (Yairi; Ambrose, 1992). As disfluências foram registradas e codificadas no texto por meio de um protocolo específico utilizado na instituição - PROTRAF - Protocolo de Transcrição da Fala (Oliveira et al., 2020). Em seguida, essas disfluências foram analisadas e caracterizadas quanto às tipologias: Disfluências Típicas da Gagueira (DTG): bloqueio, prolongamento, pausa, intrusão, repetição de som, repetição de sílaba e repetição de palavra monossilábica – acima de três; Outras Disfluências (OD): interjeição, hesitação, revisão, palavra incompleta, repetição de frase e repetição de palavra – até duas (Yairi; Ambrose, 1992; Pinto; Schiefer; Ávila, 2013). Mediante ao propósito de manter o rigor dos dados da pesquisa, foram convidados dois avaliadores voluntários para averiguar a confiabilidade e a concordância das transcrições e da caracterização da tipologia das disfluências de cada participante. Foram adotados como critérios de inclusão: ser fonoaudiólogo(a) com no mínimo cinco anos de experiência e ter 38 desenvolvido ou estar desenvolvendo pesquisas na área da fluência e seus transtornos. Para que as amostras fossem validadas, foi obtido um índice geral de concordância maior que 85% entre os juízes. 5.4.2 Classificação da gravidade da gagueira A classificação da gravidade da gagueira foi realizada por meio do Instrumento de Gravidade da Gagueira (Stuttering Severity Instrument – SSI-4) (Riley, 2009) que tem por objetivo mensurar o grau de acometimento do transtorno. A aplicação é baseada na avaliação do percentual da frequência, duração média das três maiores disfluências típicas da gagueira e presença de concomitantes físicos. Cada item obtém um escore individual, cuja soma resulta em um escore total e classifica a gagueira em níveis de gravidade: muito leve, leve, moderada, grave ou muito grave. 5.4.3 Escala de Distúrbios do Sono em Crianças (EDSC) A Escala de Distúrbios do Sono em Crianças (EDSC) é um instrumento proposto por Bruni et al. (1996) com 26 itens para a avaliação do sono em crianças e adolescentes com idades entre 3 e 18 anos. Neste estudo foi utilizada a versão brasileira, publicada por Ferreira et al. (2009). Cada item é numerado em um escore de 1 (nunca) a 5 (sempre), pela frequência nas últimas 6 semanas. Os escores da escala foram agrupados em seis fatores, segundo a proposta do instrumento, com um valor de corte para cada subscala, a saber: Distúrbios de Início e Manutenção do Sono - DIMS, ponto de corte de 21 pontos (duração do sono - questão 1, latência do sono - questão 2, ir para a cama sem relutância - questão 3, dificuldade em adormecer - questão 4, adormecer sem ansiedade - questão 5, despertares noturnos - questão 10 e dificuldade em adormecer - questão 11); Distúrbios Respiratórios do Sono – DRS, ponto de corte de 6 pontos (dificuldades respiratórias - questão 13, apneia do sono - questão 14 e ronco - questão 15); Distúrbios do Despertar - DD, ponto de corte de 11 pontos (sonambulismo - questão 17, terror noturno - questão 20 e pesadelos - questão 21); Distúrbios da Transição Sono-Vigília – DTSV, ponto de corte de 23 pontos (abalos - questão 6, distúrbios rítmicos do movimento - questão 7, alucinações hipnagógicas - questão 8, movimentação noturna - questão 12, sonilóquio - questão 18 e bruxismo - questão 19); Sonolência Excessiva Diurna – SED, ponto de corte de 19 pontos (dificuldade em acordar - questão 22, acordar cansado - questão 23, paralisia do sono - questão 24, sonolência diurna - 39 questão 25); Hiperhidrose do Sono – HS, ponto de corte de 7 pontos (adormecer suado - questão 9 e transpirar durante a noite - questão 16) e Ecore Total da EDSC, ponto de corte de 39 pontos. Além de aplicar a EDSC, os pesquisadores investigaram a percepção por parte dos responsáveis a respeito do tempo de sono e a latência para iniciar o sono das crianças. Para isso, as duas primeiras perguntas da escala também geraram dados sobre o tempo de horas de sono a noite e sobre a latência do sono das crianças de ambos os grupos. Estes dados foram posteriormente comparados com os mesmos dados obtidos pela actigrafia. 5.4.4 Actigrafia A actigrafia é um modelo de avaliação objetiva do ciclo atividade e repouso e do ciclo sono e vigília, que registra a atividade motora por um sistema de acelerômetro (detector de movimento), a temperatura corporal e a exposição à luz durante o período de uso (Ancoli-Israel et al., 2003; Gonçalves et al., 2014). O actígrafo (Act Trust, Condor, Brasil) foi utilizado por 14 dias consecutivos no pulso do antebraço não dominante, por no mínimo 22 horas por dia. Esta metodologia tem sido usada no nosso grupo de pesquisa desde 2015 e tem proporcionado resultados relevantes sobre o padrão do ciclo sono-vigília ou de atividade e repouso em diferentes populações (Brites et al., 2017; Zuculo et al., 2017). No presente estudo foram utilizados os parâmetros de: Tempo de Sono, que corresponde a somatória dos períodos de sono durante a noite, Latência para iniciar o sono, que compreende o intervalo de tempo entre o horário em que a criança deita para dormir e quando ela cessa suas atividades, Eficiência do Sono, calculada a partir da relação entre o tempo de sono e o período que ela está repousando, e Microdespertares que corresponde ao tempo em minutos da somatória dos microdespertares depois do início do sono, no inglês descrito como WASO - Wake after sleep onset (Pedrazzoli; Gonçalves, 2021). Os dados da actigrafia foram retirados e ajustados, pelo software ActStudio a partir do algoritmo do fabricante (Condor, Brasil), dia por dia, manualmente, permitindo maior precisão nos dados exportados. A latência foi definida, baseada no momento em que cessava a luz e a partir do último pico de atividade até o momento em que a criança não apresentava mais atividade, por no mínimo quatro minutos. Os valores dos pontos de corte ou parâmetros determinados como "esperado para a idade" da actigrafia para eficiência do sono e microdespertares não são estabelecidos na literatura. Considerando que, estes parâmetros podem variar entre diferentes faixas etárias, sexo e características socio demográficas, no 40 presente estudo, os pontos de corte foram calculados a partir da mediana do grupo comparativo. No parâmetro tempo total de sono, foi utilizado o valor de 8 horas de sono como sendo o tempo de sono recomendável (Hirshkowitz et al., 2015; Paruthi et al., 2016) e na variável latência para iniciar o sono foi considerado o valor de 15 minutos como latência normal (Jung et al., 2013). 5.5 Análise dos dados A avaliação do sono foi realizada de forma subjetiva por meio da EDSC e de modo objetivo pela actigrafia. Os dados serão apresentados na próxima sessão comparando os dois grupos em cada instrumento. Também serão apresentados a comparação de acordo com o ponto de corte estabelecido para cada variável analisada, a correlação entre os parâmetros de sono alterados no GP e a avaliação da fluência de fala e da gravidade da gagueira. Por fim, será demonstrada a confiabilidade das informações que se repetem nos dois instrumentos de avaliação da qualidade do sono. Para a análise dos dados, o software estatístico SPSS Statistics 28.0 (SPSS Inc., Chicago, IL, EUA) foi utilizado. A normalidade na distribuição dos dados foi verificada com o teste de Shapiro-Wilk. Os dados da EDSC e Actigrafia foram expressos como mediana (intervalo interquartil 25-75%), devido à distribuição não-normal ter sido encontrada na grande maioria das variáveis. Para as variáveis contínuas foi utilizado o teste t não pareado ou o teste de Mann-Whitney para comparar os grupos. Dentre os valores da actigrafia como a eficiência do sono e microdespertares não apresentaram pontos de corte ou parâmetros determinados como "esperado para a idade" na literatura, foi calculada e definida como ponto de corte para ambos os grupos, a mediana do grupo comparativo. No parâmetro tempo total de sono foi utilizado o valor de 8 horas de sono como sendo o tempo de sono recomendável (Hirshkowitz et al., 2015; Paruthi et al., 2016) e na variável latência para iniciar o sono foi considerado o valor de 15 minutos como latência normal (Jung et al., 2013). Para as variáveis categóricas, devido à distribuição não normal dos dados, o teste do qui-quadrado foi utilizado para comparar grupos e/ou as proporções de indivíduos classificados de acordo com o ponto de corte de cada variável. Para verificar a concordância entre os instrumentos foi aplicado o Coeficiente de Correlação Intraclasse (ICC). As correlações foram verificadas por meio dos coeficientes de Pearson ou Spearman e o p≤ 0,05 foi estabelecido para significância estatística. 41 6. RESULTADOS Neste capítulo serão apresentados os resultados obtidos nas avaliações dos parâmetros do sono dos 51 participantes, sendo 30 pertencentes ao Grupo Pesquisa (GP), composto por crianças com gagueira, e 21 ao Grupo Comparativo (GC), composto por crianças com desenvolvimento típico. Também serão descritos os dados relacionados à avaliação da fluência da fala e da gravidade da gagueira no GP e suas correlações com os parâmetros do sono. Escala de Distúrbios do Sono em Crianças - EDSC A análise dos distúrbios do sono realizada por meio da EDSC mostrou que o GP apresentou maiores escores do que o GC no Escore total da EDSC, e nas subescalas DIMS, DRS, DTSV e SED, indicando a presença de distúrbio de sono nesta população (Tabela 1). Tabela 1. Comparação dos escores da Escala de Distúrbios de Sono em Crianças EDSC GP (N=30) GC (N=21) DIMS 16 (11-21)** 10 (8-12) DRS 3 (3-7)* 3 (3-3) DD 5 (3-6) 4 (3-4) DTSV 13 (10-18)* 10 (9-13) SED 9 (5-13)* 5 (5-8) HS 3 (2-8) 2 (2-3) Escore Total 55 (40-67)** 37 (33-42) Legenda: Dados apresentados em mediana (Intervalo interquartil 25%-75%); GP - Grupo Pesquisa; GC - Grupo Comparativo; DIMS - Distúrbios de Início e Manutenção do Sono; DRS - Distúrbios Respiratórios do Sono; DD - Distúrbios do Despertar; DTSV - Distúrbios da Transição Sono-Vigília; SED - Sonolência Excessiva Diurna; HS - Hiperhidrose do Sono. * p< 0,05; ** p< 0,001 com relação ao comparativo. Fonte: Elaborada pela autora. Ao aplicar os pontos de cortes pré-determinados na EDSC quanto aos indicativos de distúrbios de sono (Ferreira et al., 2009), 43% das crianças do GP e 5% no GC (p= 0,002) apresentaram distúrbios de sono segundo o Escore Total. Quando analisadas as subescalas, foram encontrados maiores percentuais de indivíduos no GP do que no GC com indicativo de DRS (27% GP vs. 5% GC; p= 0,04), de HS (27% GP vs. 5% GC; p= 0,04) e DIMS (17% no GP vs. 0% GC; p=0,05). Não houve diferença entre os grupos para SED e DTSV (em ambos 42 7% no GP vs. 0% no GC, p= 0,23); e nenhum indivíduo apresentou DD, tanto no GP quanto no GC. Analisando-se ainda os relatos dos responsáveis pelas crianças na EDSC, não houve diferença no tempo de latência para iniciar o sono (em minutos) do GP (20 [15-60]) em relação ao GC (15 [15-30]; p= 0,12), assim como para o parâmetro tempo de sono (8 [8-9] hrs. GP vs. 9 [8-10] hrs. GC; p= 0,16). Também não foram encontradas diferenças entre os grupos quanto ao percentual de crianças com tempo de latência para iniciar o sono maior que o aceitável (considerado 15 min) (60% GP vs. 33% do GC; p= 0,06), assim como com relação ao percentual de crianças com tempo de sono menor que o aceitável (8h) (17% GP vs. 10% GC, p= 0,46). Actigrafia A análise por actigrafia mostrou maior tempo de latência de sono no GP (24 [17-29] minutos) do que no GC (9 [8-12] minutos, p< 0,001). Além disso, as crianças do GP apresentaram menor eficiência de sono (%) quando comparadas às crianças do GC (87 [84-90] GP vs. 90 [87-93] GC, p= 0,01). Não foi encontrada diferença entre os grupos em relação aos parâmetros tempo de sono (horas) (8 [7-9] GP vs. 8 [7-9] GC, p= 0,26) e microdespertares (min) (38 [29-65] GP vs. 44 [25-55] GC, p= 0,83). Quando consideramos o percentual de crianças com sono alterado em cada grupo, 87% das crianças do GP e 10% das crianças do GC (p< 0,001) apresentaram latência de sono acima do estabelecido como normal (considerado 15 min). Quanto à eficiência de sono, considerando-se o ponto de corte estabelecido a partir do valor da mediana do GC (valores de eficiência abaixo de 90% seriam considerados sono ineficiente), 83% das crianças com gagueira (GP) apresentaram sono ineficiente, enquanto apenas 48% das crianças com desenvolvimento típico (GC) apresentaram essa alteração (p= 0,007). Não foi encontrada diferença entre os dois grupos no percentual de crianças com tempo de sono abaixo do esperado (considerando 8 horas de sono), sendo 53% do GP e 48% do GC (p= 0,69). Quanto ao microdespertares (min), o ponto de corte também foi determinado pelo valor da mediana do GC (valores acima de 44 minutos seriam considerados inadequados). Não houve diferença entre os grupos (p= 0,76), com 43% das crianças do GP e 48% das crianças do GC com microdespertares, em minutos, considerado inadequado. 43 Correlações entre sono e a fluência de fala As análises de correlação mostraram que não houve relação entre os parâmetros de sono alterados no GP e os parâmetros da porcentagem de disfluências típicas da gagueira e do Escore total do Instrumento de Gravidade da Gagueira (Stuttering Severity Instrument), (Tabela 2). Tabela 2. Correlação entre parâmetros de sono e a porcentagem de disfluências típicas da gagueira e o escore total do Instrumento de Gravidade da Gagueira. Legenda: DIMS - Distúrbios de Início e Manutenção do Sono; DRS - Distúrbios Respiratórios do Sono; SED - Sonolência Excessiva Diurna; EDSC - Escala de Distúrbios de Sono em Crianças; DTG - Disfluências Típicas da Gagueira; SSI - Stuttering Severity Instrument. Fonte: Elaborada pela autora. Considerando que o GP apresentou maior tempo de latência e menor eficiência de sono do que o GC, foram realizadas análises de correlação entre estes dois parâmetros e os dados da fluência da fala. Não foi encontrada relação entre a eficiência de sono e os dados da fluência da fala (Tabela 3). Foi encontrada correlação positiva moderada entre a latência de sono e as outras disfluências (Figura 1). Tabela 3. Correlação entre parâmetros de sono da actigrafia e da fluência de fala Legenda: DTG - Disfluências Típicas da Gagueira; OD - Outras Disfluências; TD - Total de Disfluências; SPM = Sílaba por minuto. *p< 0,05. Fonte: Elaborada pela autora. % DTG Escore SSI p (r) p (r) DIMS 0,75 (-0,06) 0,91 (-0,02) DRS 0,90 (0,02) 0,64 (0,09) SED 0,35 (-0,18) 0,58 (-0,10) Escore Total EDSC 0,54 (0,12) 0,61 (0,10) Latência (Actigrafia) 0,57 (-0,11) 0,54 (-0,12) Eficiência do Sono (Actigrafia) 0,41 (0,15) 0,14 (0,28) % DTG % OD %TD SPM p (r) p (r) p (r) p (r) Latência (Actigrafia) 0,57 (-0,11) 0,00 (0,59)* 0,30 (0,20) 0,25 (-0,22) Eficiência do Sono (Actigrafia) 0,41 (0,15) 0,35 (-0,18) 0,71 (0,07) 0,20 (-0,24) 44 Figura 1. Correlação entre a latência de sono medida pela actigrafia com a porcentagem de outras disfluências no GP. N=30. Legenda: OD - Outras Disfluências. Fonte: Elaborada pela autora. Com relação aos parâmetros da avaliação da fluência de fala, foram avaliadas a porcentagem de outras disfluências e a velocidade de fala medida em palavras por minuto e sílabas por minuto. Foi encontrada correlação negativa do percentual de DTG com a quantidade de sílabas fluentes por minuto - SPM (p= 0,002, r= -0,542) (Figura 2A); e correlação negativa entre o escore do SSI, que investiga a gravidade da gagueira e a SPM (p= 0,005, r= -0,499) (Figura 2B). Figura 2. Correlações entre velocidade de fala e parâmetros da gagueira no GP. Em A - correlação entre a quantidade de sílabas fluentes por minuto e a porcentagem de DTG no GP. Em B - correlação entre a quantidade de sílabas fluentes por minuto e o Escore do SSI no GP. N=30. Legenda: SPM - Sílabas por minuto; DTG - Disfluências Típicas da Gagueira; SSI - Instrumento de gravidade da gagueira. Fonte: Elaborada pela autora 45 Comparação das informações do tempo de sono e latência para iniciar o sono relatados pelos responsáveis (EDSC) e por medida objetiva (actigrafia). Com relação ao tempo de sono e latência para iniciar o sono, neste estudo obtivemos dados resultantes de perguntas feitas aos responsáveis pelas crianças e também dados resultantes da actigrafia. O objetivo foi avaliar se os dois modos de avaliação apresentavam concordância. Entretanto, o coeficiente de correlação intraclasse (ICC) indicou que há baixa confiabilidade na descrição do tempo de sono (horas) entre os valores relatados pelos responsáveis e os valores da actigrafia (ICC= 0,216 [IC= -0,41 - 0,458]; F= 1,757; p= 0,031). Já a latência, a concordância entre a medida subjetiva e a objetiva não pôde ser avaliada, pois, apesar de tentativas de transformação dos dados, eles não passaram no pré-requisito do teste, sendo dados não paramétricos. Período escolar e frequência de alterações de sono em crianças com gagueira Não foi encontrada relação entre os parâmetros de sono avaliados e o período escolar nas crianças do GP. Nota-se maior porcentagem de DS ou alterações na actigrafia nos indivíduos que estudam em período matutino, mas não houve relação estatisticamente significante. Tabela 4. Relação entre período escolar e frequência de alterações em parâmetros do sono Matutino (%) Vespertino (%) Integral (%) Horas de Sono - EDSC 60 40 0 Latência - EDSC 55 17 28 DIMS 60 40 0 DRS 38 38 24 DD 0 0 0 DTSV 50 50 0 SED 50 0 50 HS 38 38 24 Escore Total - EDSC 47 30 23 Tempo de Sono - Actigrafia 69 12 19 Latência - Actigrafia 50 23 27 Eficiência do Sono - Actigrafia 60 20 20 Microdespertares (Min) - Act. 54 23 23 Legenda: EDSC - Escala de Distúrbio de Sono em Crianças; DIMS - Distúrbios de Início e Manutenção do Sono; DRS - Distúrbios Respiratórios do Sono; DD - Distúrbios do Despertar; DTSV - Distúrbios da Transição Sono-Vigília; SED - Sonolência Excessiva Diurna; HS - Hiperhidrose do Sono; Act. - Actigrafia.. * p< 0,05. Fonte: Elaborada pela autora 46 7. DISCUSSÃO Os resultados do presente estudo de que as crianças com gagueira avaliadas, apresentaram maior risco de problemas de sono em comparação com um grupo comparativo pareado por sexo e faixa etária, confirmaram a primeira hipótese proposta. Por meio da EDSC, 43% das crianças com gagueira apresentaram indicativo para distúrbios de sono, sendo os mais frequentes os DRS, a HS, o DIMS, a SED e o DTSV. Não há na literatura compilada outros estudos utilizando-se a EDSC em crianças com gagueira, porém quando consideradas populações de crianças brasileiras, com altos índices de problemas de sono encontramos que no TEA 60% das crianças apresentaram indicativo de distúrbios de sono, 38% apresentaram DRS, 24% DIMS, 20% DTSV, 13% HS; 5,6% DD e 3,4% SED (Fadini et al., 2015). Em crianças com transtornos de aprendizagem, 51,7% apresentaram DTSV. Na Síndrome de Smith Magenis foi encontrado que 60% dessas crianças tinham indicativo de DS, sendo os mais frequentes DTSV e DIMS (Garayzabal et al., 2022). Na Paralisia Cerebral, cerca de 47% das crianças com apresentaram indicativo de distúrbios de sono segundo o escore total da EDSC. O percentual de DRS varia de 25,6% a 65,6% e o de HS de 34,9% a 37,5%, 11,6% apresentam indicativo de DIMS e 2,3% SED (Zuculo; Knap; Pinato, 2014; Santos et al., 2018). Vale ressaltar que, estes dados colocam a população de crianças com gagueira dentre os transtornos do neurodesenvolvimento que apresentam maior prevalência de distúrbios de sono já descritos, como no TEA, na Síndrome de Smith Magenis, no transtorno de aprendizagem e na paralisia cerebral . Os dados sobre a qualidade de sono obtidos neste estudo (43% do GP vs 5% do CG mostraram distúrbios do sono) corroboram os dados de um estudo com indivíduos com gagueira de 4 a 17 anos obtidos por meio do levantamento de dados demográficos (Briley; Merlo, 2020) no qual o grupo com gagueira manifestou um risco 7 vezes maior para insônia e problemas para dormir quando comparados ao grupo comparativo. Os percentuais de distúrbios de sono como DIMS (17%) nas crianças com gagueira do presente estudo corroboram os resultados de Merlo e Briley (2019) nos quais 15% de crianças com gagueira, a partir de dados de uma base populacional, apresentaram dificuldade para iniciar e manter o sono quase todos os dias, além de dormirem menos horas por noite e terem maiores chances de insônia quando comparadas às crianças com desenvolvimento típico. Pesquisas anteriores também indicaram que adolescentes e jovens com gagueira relataram 47 mais sintomas de insônia e menos horas de sono do que os controles (Jacobs et al., 2021; Mohammadi et al., 2023). No presente estudo, 27% das crianças com gagueira apresentaram indicativo de distúrbios respiratórios de sono (DRS). Embora este seja o primeiro estudo a investigar este distúrbio de sono nestas crianças, adultos com gagueira relataram, em estudo anterior, que roncam ou param de respirar durante o sono relacionados à fragmentação do sono e dificuldade de concentração (Merlo; Jacobs; Briley, 2022). Outra subescala que apresentou maior frequência no grupo de crianças com gagueira do que no grupo comparativo foi o distúrbio de sonolência excessiva diurna (SED). A sonolência excessiva durante o dia é um sintoma esperado de distúrbios do sono, já que este é um dos critérios para se considerar a presença de problemas de sono (American Psychiatric Association, 2013), pois essa dificuldade é uma consequência esperada do sono ruim persistente durante a noite. Deve-se notar que 7% do GP apresentou a SED em comparação com nenhuma criança do GC, um achado que pode ilustrar como as crianças com gagueira devem apresentar pior qualidade de sono mesmo sem distúrbios coexistentes. Ainda sobre os resultados da EDSC, o grupo comparativo do presente estudo apresentou diferenças quanto aos resultados de crianças com desenvolvimento típico publicados em diferentes países. No presente estudo 5% das crianças com desenvolvimento típico avaliadas apresentaram indicativo para distúrbios de sono segundo o escore total da EDSC, 5% apresentaram indicativo para DRS e 5% para HS. Quando analisados os dados de grupos cmparativos de estudos anteriores com crianças brasileiras verifica-se que os percentuais de crianças com desenvolvimento típico varia de 0 a 7% (Fadini et al., 2015; Franklin et al., 2018; Garayzabal et al., 2022). Esses achados estão abaixo do que é relatado como prevalência mundial, que varia de 20 a 40% (Romeo et al., 2013) e abaixo dos valores encontrados em um estudo com crianças brasileiras (23%) segundo o escore total da EDSC, 22,7% DIMS, 17,1% DRS, 10,4% DD, 18,4% DTSV, 9,3% SED e 9,1% HS (Almeida; Nunes, 2019). No entanto, nos dois estudos da literatura, não há distinção entre crianças com transtornos do neurodesenvolvimento e crianças com desenvolvimento típico, o que pode justificar essa diferença, já que no presente estudo foram excluídas da amostra do grupo comparativo as crianças com quaisquer queixas ou sinais de problemas de neurodesenvolvimento. É importante salientar que no presente estudo utilizou-se os pontos de cortes para indicar a presença de distúrbios de sono estabelecidos em crianças brasileiras (Ferreira et al., 48 2009). Isto deve ser considerado ao se comparar os dados do presente estudo com dados da literatura, que em sua maioria utilizam os pontos de cortes sugeridos no trabalho original de Bruni (1996) estabelecido em crianças italianas ou em alguns casos calculados para a população do país (Huang et al., 2014; Jacquier; Newman, 2019). Além da diferença entre os pontos de corte verifica-se diferenças relacionadas a fatores socioculturais, climáticos e individuais ou familiares. Por exemplo, crianças chinesas apresentam maior duração de sono, menor tempo de latência, menor dificuldade em adormecer, além de despertarem menos e terem menor prevalência de parassonias quando comparadas às italianas (Chen et al., 2022). O principal achado do presente estudo foi demonstrar a pior qualidade do sono de crianças com gagueira em relação ao grupo comparativo, por meio do relato dos pais ou responsáveis pelas crianças na EDSC e também por dados objetivos avaliados por meio de actigrafia, nos quais as crianças do GP demonstraram pior qualidade de sono quanto à latência e à eficiência do sono, em relação ao GC. Na interpretação e discussão destes resultados é importante se considerar que, embora a actigrafia tenha sido empregada neste estudo para a análise do sono infantil, os parâmetros dessa técnica são principalmente validados para a população adulta. Para mitigar possíveis imprecisões na avaliação dos parâmetros de sono em crianças, realizou-se um ajuste manual diário desses parâmetros. A definição da latência para iniciar o sono foi estabelecida com base na cessação da luz, considerando o último pico de atividade até que a criança permanecesse pelo menos quatro minutos sem atividade. Embora essas medidas tenham sido adotadas para tornar a avaliação mais precisa, é importante notar que a utilização conjunta da actigrafia com um diário de sono poderia contribuir para uma pontuação ainda mais precisa da latência do sono, essa abordagem deve ser considerada em futuras investigações para refinamento dos resultados. Os resultados inéditos com actigrafia nesta população corroboram estudos anteriores com medidas subjetivas que já indicavam que crianças com gagueira apresentam mais problemas de sono que crianças com desenvolvimento típico (Merlo; Briley, 2019; Briley; Merlo, 2020). Adultos com gagueira avaliados pelo questionário de qualidade de sono (PSQI), mostraram duração de sono mais curta, pior qualidade de sono e maior uso de medicamentos promotores do sono (Mohammadi et al., 2023). É bem estabelecido que os problemas de sono frequentemente estão associados a condições de saúde, como alergias, bem como a outros transtornos do neurodesenvolvimento, 49 incluindo Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), Transtorno do Espectro Autista (TEA) e Transtorno de Aprendizagem, como indicado por vários estudos (Zuculo et al., 2014; Franklin et al., 2018; Becker, 2020; Liu et al., 2020). No presente estudo, tais condições foram consideradas nos critérios de exclusão, garantindo que as crianças dos grupos de pesquisa (GP) e de controle (GC) não apresentassem outras condições subjacentes que pudessem justificar os problemas de sono observados. Além disso, Briley e Merlo (2020) também sugeriram que os distúrbios de sono em crianças com gagueira não seriam atribuíveis a comorbidades, como alergias, reforçando a gagueira como a principal variável neste quadro. Com relação às implicações clínicas, estudos anteriores levantaram a possibilidade de que a menor duração do sono e a insônia poderiam afetar o quadro de gagueira (Jacobs; Merlo; Briley, 2021). No presente estudo foram investigadas as correlações entre os parâmetros de sono mais frequentes no GP e os de fluência. Não foram encontradas relações entre os parâmetros de sono: latência de sono, eficiência de sono, escore total da EDSC, DIMS, DRS e SED e os de gravidade da gagueira analisados, não confirmando assim a segunda hipótese do estudo na qual haveria relação entre os distúrbios de sono e a gravidade da gagueira. Deve-se considerar neste caso que, o instrumento utilizado para classificar a gravidade da gagueira utiliza apenas três parâmetros: frequência de disfluências típicas da gagueira, duração das três maiores disfluências típicas da gagueira e os concomitantes físicos (Riley, 2009). Há 3 possíveis explicações para este achado: (1) gagueira envolve os comportamentos observáveis, como as disfluências e os concomitantes físicos, e comportamentos não observáveis, como atitudes, sentimentos, comportamentos de evitação, antecipação da gagueira, entre outros (Briley, 2023); (2) a alta variabilidade da gagueira (Constantino et al., 2016), e; (3) o instrumento de gravidade da gagueira não abrange a experiência do falante com relação à sua gagueira, como o OASES (Overall Assessment of the Speaker's Experience of the Stuttering - Avaliação Global da Experiência do Falante em Gaguejar, Yaruss; Quesal, 2006). Esse instrumento (OASES) não apresenta a versão traduzida e validada para o português brasileiro na faixa etária dos participantes deste estudo, por isso não foi utilizado. Considerando-se que houve correlação positiva entre a latência de sono com as outras disfluências, podemos dizer que a segunda hipótese do presente estudo foi parcialmente confirmada com estes achados que mostram que quanto maior a latência de sono, maior a frequência de outras disfluências. Isto pode estar associado a reações compensatórias que o falante desenvolve como mecanismo de tentar manter o equilíbrio do que foi desestabilizado (Briley, 2023). Segundo o autor, devido à antecipação da gagueira, o falante apresenta 50 diversas reações e respostas, entre elas estão as adaptações motoras da fala, que incluem comportamentos característicos da gagueira e outras adaptações que podem contribuir para a fala percebida pelos ouvintes como fluentes. Portanto, os dados sugerem que a maior latência de sono desestabilizou de alguma forma a produção da fala, e consequentemente o falante pode ter utilizado das outras disfluências para retomar o equilíbrio. Além disso, uma amostra maior de crianças com gagueira poderá contribuir para uma investigação mais precisa dessa relação. Sabe-se que as outras disfluências têm funções de resolver dificuldades momentâneas relacionadas ao conteúdo ou à forma da mensagem que deseja transmitir (Celeste; Russo; Fonseca, 2013), reparar erros (Steinberg et al., 2013), ou podem resultar de situações de estresse comunicativo (Mercon; Nemr, 2007). Todas essas funções são coerentes com as possíveis adaptações que o falante pode ter utilizado como mecanismo de retomar o controle da fala que foi desestabilizado. Portanto, os dados sugerem que a maior latência de sono impactou negativamente na comunicação do falante. Os resultados deste estudo concordam com os relatos de Alonso (2021) de que as outras disfluências devem ser consideradas no processo diagnóstico e terapêutico desta população. Os dados sugerem que, as outras disfluências podem ser uma das características que os indivíduos que gaguejam manifestam como uma resposta à antecipação da gagueira, como um comportamento de fuga, e que tem uma grande potencial para prejudicar a espontaneidade do discurso do falante. Essa espontaneidade da fala de indivíduos que gaguejam tem sido valorizada, e Constantino e colaboradores (2020) mostraram que o aumento da espontaneidade em adultos que gaguejam está associada com a redução do impacto adverso da transtorno na vida do falante, independentemente de haver um aumento correspondente na fluência. Sendo assim, essas disfluências podem prejudicar a espontaneidade da fala desses falantes, bem como ocasionar certo desconforto na transmissão da mensagem (Alonso, 2021). De fato, sabe-se que o sono tem um efeito favorável não apenas na percepção, mas também na aprendizagem de habilidades motoras (Laureys et al., 2002) e que a insônia tem um efeito negativo no desempenho geral durante a vigília, na performance cognitiva, na memória de trabalho e no controle motor (Varkevisser; Kerkhof, 2005). Apesar da memória de trabalho não ter sido investigada nos participantes deste estudo, há evidências de que indivíduos que gaguejam apresentam prejuízos nesta habilidade (Pelczarski; Yaruss, 2016; Coalson; Byrd, 2017; Arongna et al., 2020). 51 As correlações negativas do percentual de DTG e do escore do SSI com a quantidade de sílabas fluentes por minuto - SPM corroboram afirmações prévias de que o excesso de disfluências em falantes que gaguejam reduz a velocidade de fala, ou o número de sílabas fluentes por minuto (Andrade; Cervone; Sassi, 2003; Dehqan et al., 2008; Arcuri et al., 2009; Andrade, 2011; Logan et al., 2011; Tumanova et al., 2011; Liu et al., 2014; Erdemir et al., 2018). Outro fator possivelmente associado foi a possível relação do turno de estudo com a presença de distúrbios e ou alterações de sono em crianças com gagueira. Estudos anteriores apontaram que, em adolescentes, os alunos do turno matutino e noturno eram mais propensos a apresentar uma duração de sono mais curta em comparação com os adolescentes do turno da tarde (Gomes et al., 2017). No entanto, no contexto deste estudo, essa hipótese não se confirmou. Não foram identificadas diferenças estatisticamente significativas no percentual de crianças com distúrbios do sono com base no turno escolar, apesar de uma tendência de que esses distúrbios fossem mais prevalentes em crianças que frequentavam o período matutino ou integral devido ao início mais precoce das atividades escolares. Vale ressaltar que não foram conduzidas análises separadas em relação ao padrão de sono das crianças durante os dias de semana e os finais de semana, o que poderia fornecer insights adicionais sobre as influências do ambiente escolar na qualidade do sono em crianças com gagueira. Os achados deste estudo revelam que a avaliação do tempo de sono e da latência de sono, quando baseada no relato dos responsáveis das crianças que preencheram a EDSC, demonstrou uma confiabilidade relativamente baixa em comparação com as medições objetivas obtidas por meio da actigrafia. Em ambos os cenários, a percepção dos responsáveis tendia a sugerir uma melhor qualidade de sono em comparação com as informações fornecidas pelos dados objetivos. Esses resultados corroboram a terceira hipótese do estudo, que sugeria que a combinação de medidas subjetivas e objetivas contribuiria para uma caracterização mais abrangente e precisa do perfil de sono das crianças em questão. No que diz respeito às implicações para a terapia fonoaudiológica, os resultados deste estudo destacam que os problemas de sono podem representar uma variável complicadora durante o tratamento da gagueira. Isso se deve ao fato de que, independentemente da abordagem terapêutica selecionada, a terapia da fala exige habilidades cognitivas e regulação emocional por parte das crianças (Brignell et al., 2021). Portanto, é fundamental que os fonoaudiólogos clínicos que atendem crianças com gagueira considerem a avaliação e a gestão dos problemas de sono como parte integrante do tratamento, visando aprimorar os resultados terapêuticos e a qualidade de vida dos pacientes. Nesse contexto, é relevante 52 observar que o protocolo de rastreamento mais recente para identificação de fatores de risco associados à gagueira persistente, o Instrumento de Rastreio para a Gagueira do Desenvolvimento (IRGD), publicado no Brasil (Lima; Cordeiro; Queiroga, 2021), incorpora uma pergunta específica sobre problemas de sono ("A criança apresenta algum problema no sono? Exemplo: insônia, ronco, ranger de dentes, agitação") já sugerindo ser esta uma questão a ser considerada em uma abordagem mais abrangente e integral da gagueira em crianças. Uma limitação deste estudo refere-se ao fato de que não foram consideradas as experiências do falante em relação ao seu transtorno. A pesquisa apresentou dados da avaliação perceptual da fluência, ou seja, a análise quantitativa e qualitativa das disfluências e dos concomitantes físicos. Há evidências de que a gagueira envolve muito mais do que a presença de disfluências, pois indivíduos que gaguejam referem a sensação de ficarem presos ou perderem o controle da fala, sentimento que apresenta impacto adverso em suas vidas (Tichenor; Yaruss, 2019). Portanto, a experiência do falante que gagueja em relação ao seu transtorno é também um aspecto fundamental a ser avaliado e é um dado invisível aos ouvintes, sendo geralmente avaliada por auto relatos (Hartmann-Boyce et al., 2022). Estudos futuros podem incluir medidas mais abrangentes como a Avaliação geral da experiência de gagueira do falante (OASES - Overall Assessment of the Speaker's Experience of Stuttering) (Yaruss; Quesal, 2006) com o intuito de fornecer uma melhor visão sobre a relação entre o sono e a experiência de gagueira de uma pessoa. O impacto deste estudo reside na exploração inovadora dos distúrbios de sono e os parâmetros do ciclo sono-vigília em crianças com gagueira e suas potenciais implicações no campo dos transtornos da fluência de fala. Ao revelar que crianças com gagueira enfrentam mais distúrbios do sono, especificamente relacionados a vários aspectos, como atraso no início do sono, eficiência reduzida do sono e indicadores aumentados de distúrbios do sono, esta pesquisa lança luz sobre uma área até então pouco explorada. Os resultados destacam a importância de reconhecer e abordar questões relacionadas ao sono em crianças com gagueira, uma vez que esses distúrbios podem potencialmente agravar os desafios que enfrentam em relação à fluência da fala e à qualidade de vida em geral. Além disso, o uso de escalas validadas e ferramentas objetivas de medição do sono aprimora a robustez desta investigação, contribuindo para o rigor metodológico de pesquisas futuras nesse domínio. Este estudo não apenas expande nossa compreensão da interação entre sono e transtornos da fluência de fala, 53 mas também destaca a importância de avaliações abrangentes e intervenções para crianças com gagueira, melhorando, assim, seu bem-estar e resultados terapêuticos. Para futuros estudos, uma questão ainda em aberto a ser explorada é se os distúrbios do sono agravam a fluência da fala, influenciando assim a gravidade da gagueira, ou se o próprio transtorno da fluência da fala, caracter