UNESP UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” INSTITUTO DE ARTES SÃO PAULO ALEXANDRE CERQUEIRA DE OLIVEIRA RÖHL A FUGA DUPLA LUSO-BRASILEIRA DURANTE OS SÉCULOS XVIII E XIX SÃO PAULO 2010 1 UNESP UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” INSTITUTO DE ARTES SÃO PAULO ALEXANDRE CERQUEIRA DE OLIVEIRA RÖHL A FUGA DUPLA LUSO-BRASILEIRA DURANTE OS SÉCULOS XVIII E XIX Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Música do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista – UNESP, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em Música. Orientador: Prof. Dr. Paulo Augusto Castagna. SÃO PAULO 2010 2 Ficha catalográfica preparada pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da UNESP (Fabiana Colares CRB 8/7779) R738f Röhl, Alexandre Cerqueira de Oliveira. 1979- A fuga dupla luso-brasileira durante os séculos XVIII e XIX / Alexandre Cerqueira de Oliveira Röhl. - São Paulo : [s.n.], 2010. 155 f. + anexo Bibliografia Orientador: Prof. Dr. Paulo Augusto Castagna Dissertação (Mestrado em Música) – Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. 1. Fuga dupla (Música). 2. Contraponto. 3. Estilo musical. 4. Música – História e crítica – Brasil – Portugal – Séc. XVIII-XIX. I. Castagna, Paulo Augusto. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título CDD – 781.42 3 ALEXANDRE CERQUEIRA DE OLIVEIRA RÖHL A FUGA DUPLA LUSO-BRASILEIRA DURANTE OS SÉCULOS XVIII E XIX Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Música do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista – UNESP, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em Música. BANCA EXAMINADORA Presidente: Prof. Dr. PAULO AUGUSTO CASTAGNA 2º. Examinador: Prof. Dr. Vitor Gabriel de Araújo 3º. Examinador: Profa. Dra. Carin Zwilling São Paulo, 22 de setembro de 2010 4 À memória de meus pais Ruth e Peter 5 Agradecimentos Agradeço toda minha família pelo incentivo e apoio nos últimos anos. Ao meu irmão Pedro Paulo e minha tia Brigitte. Ao Prof. Dr. Paulo Augusto Castagna, pela orientação deste trabalho e paciência. Aos professores que fizeram parte do exame de qualificação e banca final: Profa. Dra Mônica Luccas, Profa. Dra. Carin Zwilling e Prof. Dr. Vitor Gabriel de Araújo. À Profa Dra Carin Zwilling gostaria de agradecer também pelas longas conversas que tivemos sobre este trabalho em meio a aulas de alaúde e cafezinhos. À Profa Dra Dorotéa Kerr. À Profa. Dra. Maria de Lourdes Sekeff pelo incentivo em seguir a carreira acadêmica. À CAPES. Aos funcionários das bibliotecas nacionais de Portugal e Espanha. Às arquivistas da biblioteca do Real Conservatório Superior de Música de Madrid. À equipe da biblioteca do Instituto de Artes. À Marisa e os demais funcionários da seção de pós graduação do Instituto de Artes da Unesp. Aos professores do curso para “protección y difusión del patrimonio musical iberoamericano”, em especial Don Ismael Fernández de la Cuesta, José (Pepe) Sierra e José Carlos Gosálvez. Aos meus colegas de Espanha: Aida, Zoila, Daniel, Omar e Rolando. Aos meus amigos e colegas brasileiros que acompanham o meu trabalho. Ao Diogo e Isabel. À minha esposa Ana, por todo o trabalho de diagramação, pela compreensão e por estar ao meu lado durante todo esse tempo. À minha mãe pelo exemplo de pesquisadora que ela é para mim. 6 Resumo A fuga dupla foi um fenômeno essencialmente do século XVIII até meados do século XIX, introduzido em Portugal, e conseqüentemente no Brasil, a partir da italianização da cultura musical portuguesa promovida por D. João V. Encontra-se em arquivos brasileiros e portugueses fugas duplas de diversos compositores italianos como Domenico Scarlatti (1685 – 1757), Giovanni B. Pergolesi (1710 – 1736), David Perez (1711 – 1778), Niccolò Jommelli (1714 – 1774) e Giuseppe Totti (? - 1832). Também compuseram fugas duplas músicos portugueses como José Joaquim dos Santos (1747 – 1801), João José Baldi (1770 – 1816), André da Silva Gomes (1752 – 1844) e Marcos Portugal (1762 – 1830); e brasileiros como Luiz Álvares Pinto (1719 – 1789) e José Maurício Nunes Garcia (1767 – 1830). O objetivo desta pesquisa é demonstrar a evolução desta forma musical no repertório luso-brasileiro dos séculos XVIII e XIX. Para isso, além de serem analisadas uma série de vinte e cinco obras compostas pelos músicos acima mencionados, também foram estudados nove tratados musicais dos seguintes autores: Friedrich Wilhelm Marpurg (1718 – 1795), Giambattista Martini (1706 – 1784), Francisco Ignacio Solano (1720 – 1800), Johann Georg Albrechtsberger (1735 – 1809), Angel Moriggi (? - ?), André da Silva Gomes, Antonin Rejcha (1770 – 1783), Luigi Cherubini (1760 – 1842) e Hilarión Eslava (1807 - 1878). Esta forma fugal, presente no repertório luso-brasileiro, de extrema importância para a nossa história musical, permanece, até hoje, pouco conhecida, existindo poucos estudos modernos e até mesmo edições críticas de música portuguesa e brasileira onde ela esteja presente. Palavras-chave: Fuga dupla, Brasil, Portugal, Séculos XVIII e XIX Área de conhecimento: Música 7 Abstract The double fugue was essentially a phenomenon of the 18th to the middle 19th centuries, introduced in Portugal, and consequently in Brazil, since the Italianization of the Portuguese musical culture promoted by Don João V. Double fugues from several Italian composers such as Domenico Scarlatti (1685 – 1757), Giovanni B. Pergolesi (1710 – 1736), David Perez (1711 – 1778), Niccolò Jommelli (1714 – 1774) and Giuseppe Totti (? - 1832), can still be found in Brazilian and Portuguese archives. Also composed double fugues Portuguese musicians like José Joaquim dos Santos (1747 – 1801), João José Baldi (1770 – 1816), André da Silva Gomes (1752 – 1844) and Marcos Portugal (1762 – 1830); and Brazilians like Luiz Álvares Pinto (1719 – 1789) and José Maurício Nunes Garcia (1767 – 1830). The aim of this research is to demonstrate how this musical form evolved in the Portuguese and Brazilian repertoire during the 18th and 19th centuries. For this purpose, besides of analyzing twenty five musical works from the above mentioned composers, nine musical treatises were studied from the following authors: Friedrich Wilhelm Marpurg (1718 – 1795), Giambattista Martini (1706 – 1784), Francisco Ignacio Solano (1720 – 1800), Johann Georg Albrechtsberger (1735 – 1809), Angel Moriggi (? - ?), André da Silva Gomes, Antonin Rejcha (1770 – 1783), Luigi Cherubini (1760 – 1842) and Hilarión Eslava (1807 - 1878). This musical form, found in the Portuguese and Brazilian repertoire, of extreme importance for our musical culture, remains, even now, little known, existing just a few modern studies and critical editions of Portuguese and Brazilian music where it can be found. Keywords: Double Fugue, Brazil, Portugal, 18th and 19th Centuries 8 Sumário Introdução ......................................................................................................... 9 Capítulo 1. A fuga no repertório ocidental ..................................................... 17 1.1 A fuga em textos teóricos dos séculos dezoito e dezenove ...... 18 1.2 A fuga e a retórica................................................................. 25 Capítulo 2. A fuga dupla em tratados musicais dos séculos dezoito e dezenove ........ 30 2.1 Século Dezoito ...................................................................... 31 2.1.1 Abhandlung von der Fuge, F.W. Marpurg ................... 31 2.1.2 L’Esemplare, o sai saggio fondamentale pratico di contrappunto fugato, G. Martini ................................. 35 2.1.3 Novo Tratado de Música, Métrica e Rítmica, F. I. Solano .... 39 2.1.4 Collected Writings on Thorough-Bass, Hamony, and Composition, for Self-Instruction, J. G. Albrechtsberger....... 41 2.2 Século Dezenove ................................................................... 47 2.2.1 Tratado de Contrapunto Fugado, A. Moriggi.............. 47 2.2.2 Arte Explicada do Contraponto, A. S. Gomes ............. 49 2.2.3 Tratado de Contraponto e Fuga, A. Rejcha.................. 50 2.2.4 A Treatise on Counterpoint and Fughe, L. Cherubini .. 61 2.2.5 Escuela de Composición, tratado segundo del contrapunto y fuga, H. Eslava .................................... 64 Capítulo 3. Análise de fugas duplas dos séculos XVIII e XIX ................................. 69 3.1 Exposição ............................................................................. 71 3.2 Desenvolvimento..................................................................105 3.2.1 Exposição do temas no desenvolvimento ......................113 3.3 Conclusão da Fuga ...............................................................125 3.3.1 Coda ........................................................................135 Considerações finais .......................................................................................145 Referências Bibliográficas ..............................................................................151 Anexos.............................................................................................................155 9 Introdução O século dezoito foi caracterizado por uma música com forte influência italiana em Portugal. Este processo de italianização se inicia com a ascensão de D. João V ao trono português, no ano de 1707. Com o intuito de elevar a qualidade musical de sua Capela Real, o monarca passa a contratar músicos de alto nível especialmente vindos da Itália e, em pouco tempo, já em 1730 contava com vinte e seis cantores italianos em sua Capela (Nery, 1991: p. 88). Com o intuito de apoiar as mudanças realizadas na Capela Real foi fundado, em 1713, o Seminário da Patriarcal, uma escola de música com base religiosa (CRANMER, 1994: p. 692). Esta instituição foi a mais importante na formação musical portuguesa até ser substituída pelo atual Conservatório, em 1835, e tinha seu ensino focado especialmente na música religiosa de estilo concertante (NERY, 1991: p. 89). Também eram concedidas bolsas aos alunos mais dotados para aprimorarem seus estudos na Itália, mais precisamente em Roma, como, por exemplo, Antônio Teixeira (1707 – 1769), Joaquim do Vale Mexelim, Rodrigues Esteves (1700-1751) e Francisco Antônio de Almeida (1702-1755) (BRITO, 1989: p. 109). Um dos músicos que participou deste processo foi o compositor italiano Domenico Scarlatti (1685-1757), que em 1719 foi nomeado Mestre da Capela Real de Portugal. Em 1728 o compositor dispunha de sete violinos, duas violas, dois violoncelos e um contrabaixo (todos estrangeiros); trinta a quarenta cantores e um vice-mestre da capela e organista, o conhecido português Carlos Seixas (1704 – 1742) (NERY, 1991: p. 88-89). Em 1750, com a ascensão ao trono de D. José I, o modelo musical que antes era Roma passa a ser Nápoles. Compositores como David Perez (1711-1778) e Niccolò Jommelli (1714- 1774), passam a atuar em Portugal, o primeiro vivendo em Portugal desde 1752 até 1778, ano de sua morte. Quanto a Jommelli, no ano 1762, lhe foi oferecida uma pensão para escrever duas óperas por ano, sendo uma séria e outra Buffa, para os teatros portugueses. Apesar de a ópera ser a maior razão dessas mudanças, os compositores napolitanos também foram conhecidos por sua produção religiosa. Tanto o Mattutini dei Morti quanto a Missa de Réquiem compostas por Perez e Jommelli, respectivamente, foram executadas com freqüência 10 em Portugal (NERY, 1991: p. 105). Ambas as composições mencionadas possuem fugas duplas. Seguindo a política do Reinado anterior, são enviados para estudar na Itália compositores como João de Souza Carvalho (1745-1798), Jerônimo Francisco de Lima (1741- 1822) e Braz Francisco de Lima (?-1813), sendo, agora, o destino de seus estudos Nápoles (CRANMER, 1994: p. 693). Em meados do século dezoito, Nápoles já era considerada um dos principais centros musicais europeus, como escreveu Charles de Brosses em 1739, descrevendo a cidade italiana como a “Capital Mundial da Música”. Apesar da posição privilegiada ao comércio, Nápoles era reconhecida principalmente por sua produção operística. O gosto local, treinamento e mesmo a produção intelectual, incentivavam a musical vocal (ROBINSON, 1972: p. 1). A cidade também era conhecida pela excelência no ensino musical, possuindo quatro conservatórios, S. Maria di Loreto, S. Maria della Pietà dei Turchini, Poveri di Gesù Cristo e S. Onofrio a Capuana, todos fundados no século dezesseis. Era comum a nomeação dos principais compositores como mestres nessas escolas, com aulas semanais. Os conservatórios, inclusive, possuíam cláusulas contratuais, para evitar que os importantes professores faltassem às suas classes, com penas de descontos no salário dos mesmos. Apesar de serem originalmente destinados ao ensino de órfãos da cidade de Nápoles, os conservatórios progressivamente passaram a aceitar alunos de outras classes sociais, alguns pagando por seus estudos. Muitos dos estudantes pagantes vinham, cada vez mais, de fora de Nápoles e ainda no início do século dezoito alguns vinham de outros países como Espanha e Alemanha (ROBINSON, 1972: p. 13-14). Alguns dos principais compositores napolitanos surgiram desses centros de ensino, entre eles, Domenico Sarri (1679-1744), Nícollo Porpora (1686-1768), Leonardo Vinci (1690/6?-1730), Leonardo Leo (1694-1744), Giovanni Baptista Pergolesi (1710-1736), David Perez e Niccolò Jommelli (ROBINSON, 1972: p. 17). Estando os três últimos presentes nessa pesquisa. A influência italiana não se manteve somente em Portugal, mas chegou ao Brasil, não apenas por meio de cópias de obras dos autores já mencionados, mas também com a vinda de compositores portugueses como André da Silva Gomes (1752-1844), Mestre da Capela da Sé de São Paulo, no período de 1774 a 1823 e autor de um dos mais importantes tratados de música brasileiros, a “Arte Explicada de Contraponto”. Desta obra, originalmente escrita em três volumes, apenas um deles sobreviveu aos anos. Gomes teve sua formação musical no Seminário da Patriarcal em Lisboa, onde teve aulas com compositores como José Joaquim dos 11 Santos (1748?-1801), o qual é mencionado em seu tratado, na Lição No 16, especificamente no parágrafo onde trata das fugas com dois motivos ou passos. Também importante foi a atuação de compositores nascidos no Brasil e que estudaram em Portugal, como o pernambucano Luiz Álvares Pinto (1719-1789) que estudou em meados do século dezoito em Lisboa e chegou a tocar violoncelo na Capela Real portuguesa (DINIZ, 1969: p. 44-45). A fuga dupla, objeto deste estudo, foi um fenômeno especialmente setecentista, introduzido em Portugal e conseqüentemente no Brasil, possivelmente pelos músicos italianos que atuaram em Portugal nesse período. Essa forma teve uma grande aceitação na vida musical portuguesa. Encontram-se em arquivos portugueses fugas duplas de diversos compositores italianos como Domenico Scarlatti, Andrea Basili (1705-1777), Giovanni Baptista Pergolesi, David Perez, Niccolò Jommelli e Giuseppe Totti (? – 1832), além de serem conhecidas fugas duplas de Antonio Vivaldi (1680-1743), Giovanni B. Samartinni (1700-1775). Também compuseram fugas duplas, autores portugueses como António Teixeira (1707-1770), José Joaquim dos Santos, João José Baldi (1770-1816), André da Silva Gomes e Marcos Portugal (1762-1830); e brasileiros como Luiz Álvares Pinto e José Maurício Nunes Garcia (1767-1830). Durante a exposição das fugas duplas, presentes no repertório luso-brasileiro, os temas são apresentados juntos desde o início, ao contrário do praticado nas conhecidas fugas de Johann Sebastian Bach (1685-1750) em sua “Arte da Fuga”, onde os temas são apresentados separadamente. Esta forma é representada em diversos tratados do século dezenove, não somente italianos ou portugueses, como do compositor tcheco, naturalizado francês Antonín Rejcha (1770-1783) e do espanhol Hilarión Eslava (1807-1878). O tratado de contraponto de Rejcha encontra-se traduzido em um manuscrito de meados do século dezenove na Biblioteca Nacional de Lisboa: “(...) um dos dois sujeitos entra sempre um pouco mais tarde, ordinariamente é o contra-sujeito que deve ter uma diferença sensível entre os dois sujeitos do modelo” (REJCHA, primeira metade do século XIX: fólio 13, verso). “(...) o segundo motivo se une ao principal desde que este entra (...) o segundo motivo pode estar precedido de até um ou dois compassos, ou mais se o motivo é longo” (ESLAVA, 1864: p. 121).1 1 Do original: “(...) el 2o motivo se une al principal desde que este entra (...) el 2o motivo puede estar precedido de los que valgan 1 ó 2 compases, ó mas si el motivo es largo” (ESLAVA, 1864: p. 121) (N. do Autor: tradução própria). 12 No tratado de André da Silva Gomes, a exposição da fuga dupla é descrita da seguinte forma: “Levanta primeiro a primeira Voz um motivo e, depois que ela entra, principia outra Voz outro motivo diferente” (Gomes in LANDI, 2006: p. 210). Apesar de ser elogiada pelo próprio Rejcha, a forma utilizada na “Arte da Fuga” por J. S. Bach ocupa menos que um parágrafo e muitas vezes não é sequer mencionada em outros escritos teóricos ibéricos. “Poder-se-há também modificar uma fuga a dois sujeitos da maneira seguinte: 1o A exposição com o sujeito principal só, como na fuga simples, um episódio segue esta exposição. 2o A contra-exposição com o contrasujeito só, seguido de um episódio em seguida. 3o A reunião dos dois sujeitos (sem fazer uma terceira exposição) em que a repercussão se fará em alguns tons relativos (…) Esta versão expondo cada sujeito isoladamente antes de os reunir tem mais variedade na fuga dobrada.” (REJCHA, primeira metade do século XVIII: fólio 16, verso). É importante frisar que, apesar da pesquisa focar o repertório italiano e luso-brasileiro, essa forma era conhecida nos demais estados europeus, especialmente entre os germânicos, onde foi utilizada por importantes compositores como Georg Friedrich Haendel (1685-1759), Georg Philipp Telemann (1681-1767) e Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791), além de ser mencionada nos tratados Abhandlung von der Fuge de Friedrich Wilhelm Marpurg (1718- 1795), Der vollkommene Capellmeister de Johann Mattheson (1681-1764) e o tratado de composição de Johann Georg Albrechtsberger (1735- 1809) escrito em 1790. Os textos teóricos, em sua maioria, costumam reservar um espaço limitado para a descrição das fugas duplas, devido à diferença entre fugas simples e duplas ser especialmente na exposição. Por essa razão, o primeiro capítulo tratará não especificamente da fuga dupla, mas sim das fugas de uma forma ampla, com intuito de fornecer subsídio teórico para a compreensão dos capítulos seguintes. O primeiro capítulo também tratará, mesmo que brevemente, do estudo da fuga e da retórica. O primeiro capítulo também abordará aspectos históricos da forma fuga e as partes musicais que a compõem. Para isso, serão utilizados cinco tratados musicais dos séculos dezoito e dezenove, cada um de uma nacionalidade distinta, sendo todos representativos para o estudo da fuga no repertório ocidental e especialmente luso-brasileiro, a saber: 13 1. Friedrich Wilhelm Marpurg, Abhandlung von der Fuge, 1752; 2. Giambattista Martini, L’Esemplare, o sai saggio fondamentale pratico di contrappunto fugato, 1775; 3. Francisco Ignacio Solano, Novo Tratado de Música, Métrica e Rítmica, 1779; 4. André da Silva Gomes, Arte Explicada do Contraponto, início do século dezenove; 5. Luigi Cherubini, A Treatise on Conterpoint and Fuge, tradução inglesa de 1854. O segundo capítulo tratará da fuga dupla diretamente, sendo abordados tratados de diversas nacionalidades e períodos. Além dos tratados utilizados no primeiro capítulo, serão incluídos textos dos seguintes autores para a anális: Johann Georg Albrechtsberger, Angel Morrigi, Antonín Rejcha e Hilarión Eslava. Como existem poucos estudos modernos sobre essa forma musical específica, os tratados desempenham papel de extrema importância. A análise dos textos teóricos não somente atesta a importância dessa forma no repertório ocidental, mas também fornece subsídios para a compreensão dos exemplos musicais estudados no terceiro capítulo. Os exemplos musicais são todos provenientes de arquivos e bibliotecas ibéricas e brasileiras. O método de análise utilizado é baseado fundamentalmente na obra “Análise do Estilo Musical” de Jan LaRue, também aproveitando os exemplos de análise de fugas dos seguinte livro: “Lições de contraponto segundo a Arte Explicada de André da Silva Gomes” (2005) de Márcio Spartaco Landi, onde é apresentada em apêndice a análise do Christe da Missa a Oito Vozes de André da Silva Gomes. Apesar das fugas serem composições com características puramente musicais, quanto ao desenvolvimento dos temas e motivos apresentados na exposição, o que pode erroneamente levar a impressão de que o texto pode ter uma função secundária, a análise textual nas fugas duplas foi incluída por causa de características próprias dessa forma. Como também apresentado por Eslava em seu tratado, a fragmentação do texto cantado entre os temas na exposição, ocorre não somente no repertório musical. Essa questão também será abordada nos capítulos subseqüentes. Essa não parece ser a única importância referente ao texto cantado nas fugas duplas, como pode ser percebido na freqüente utilização dessa forma em específicos momentos da missa cantada, como o Christe Eleison e Cum Sancto Spiritu, além do segundo caso freqüentemente possuir uma pequena introdução coral, como acontece nas missas de Pergolesi, Totti, Marcos Portugal e Nunes Garcia. As composições musicais italianas foram incluídas nas análises com a intenção de demonstrar características comuns entre a música dos países estudados, mas mantendo-se 14 somente em obras presentes em arquivos portugueses e brasileiros. O que inclui não somente obras de Perez e Jommelli, mas também Pergolesi e Domenico Scarlatti. De Pergolesi, serão incluídas além das duas fugas presentes em sua Missa a 5 Vozes, também as duas presentes no seu, mais conhecido, Stabat Mater, que apesar de menos ortodoxas podem ser consideradas fugas duplas. O repertório de fugas duplas é bastante vasto, incluindo tanto obras vocais quanto instrumentais, corais, solistas e obras didáticas. Por essa razão foi necessário limitar esse estudo, focando as análises musicais especialmente nas fugas duplas presentes no repertório litúrgico italiano e luso-brasileiro. Foram selecionadas para análise vinte e cinco fugas de onze diferentes compositores, sendo que somente dois deles não viveram em Portugal ou no Brasil (Jommelli e Pergolesi), como segue: 1. BALDI, João José. Matinas da Immaculada Conceição: Per quem salus mundi. Partitura manuscrita, s.d. Cabido Metropolitano do Rio de Janeiro; 2. BALDI, João José. Matinas da Immaculada Conceição: Quia fecit mhi Dominus. Partitura manuscrita, s.d. Cabido Metropolitano do Rio de Janeiro; 3. GARCIA, José Maurício Nunes. Missa de São Pedro de Alcântara: Cum Sancto Spiritu. Rio de Janeiro: Funarte, 2002; 4. GARCIA, José Maurício Nunes. Missa de Nossa Senhora da Conceição: Christe eleison. Rio de Janeiro: Funarte, 2002; 5. GARCIA, José Maurício Nunes. Missa de Nossa Senhora da Conceição: Cum Sancto Spiritu. Rio de Janeiro: Funarte, 2002; 6. GARCIA, José Maurício Nunes. Ofício 1816: Nec aspiciat. Rio de Janeiro: Funarte, 1982; 7. GARCIA, José Maurício Nunes. Ofício 1816: Dum veneris. Rio de Janeiro: Funarte, 1982; 8. GOMES, André da Silva. Missa a 5 vozes: Christe eleison. São Paulo: Edusp, 1999; 9. GOMES, André da Silva. Missa a 5 vozes: Cum Sancto Spiritu. São Paulo: Edusp, 1999; 10. JOMMELLI, Niccolò. Messa pro Defunctis: Pie Jesu. Paris: Auguste Le Due e Compagnia Editori e Mercanti di Musica, s.d.; 11. JOMMELLI, Niccolò. Messa pro Defunctis: Quando caeli movendi. Paris: Auguste Le Due e Compagnia Editori e Mercanti di Musica, s.d.; 12. PEREZ, David. Mattutino dei Morti: Tu eis Domine. Londres: Presso Roberto Brenner, 1774; 13. PEREZ, David. Mattutino dei Morti: Quia peccavi nimis in vita. Londres: Presso Roberto Brenner, 1774; 14. PEREZ, David. Mattutino dei Morti: Miserere mei Deus. Londres: Presso Roberto Brenner, 1774; 15. PERGOLESI, Giovanni Baptista. Missa a 5 vozes: Christe eleison. Partitura manuscrita, s.d. Biblioteca Nacional de Lisboa; 16. PERGOLESI, Giovanni Baptista. Missa a 5 vozes: Cum Sancto Spiritu. Partitura manuscrita, s.d. Biblioteca Nacional de Lisboa; 15 17. PERGOLESI, Giovanni Baptista. Stabat Mater: Fac, ut ardeat cor meum. Londres: Edition Eulenburg. 1992; 18. PERGOLESI, Giovanni Baptista. Stabat Mater: Amen. Londres: Edition Eulenburg. 1992; 19. PINTO, Luis Álvares. Te Deum: In te Domine. Rio de Janeiro: Funarte, 2002; 20. PORTUGAL, Marcos. Missa a 4 concertada: Cum Sancto Spiritu. Partitura manuscrita, s.d. Biblioteca Nacional de Lisboa; 21. SANTOS, José Joaquim. Stabat Mater: Fac, ut ardeat cor meum. Musica manuscrita, s.d. Biblioteca Nacional de Lisboa; 22. SANTOS, José Joaquim. Stabat Mater: Amen. Musica manuscrita, s.d. Biblioteca Nacional de Lisboa; 23. SCARLATTI, Domenico. Stabat Mater: Fac ut anima; 24. TOTTI, Giuseppe. Messa a 8 voci: Christe eleison. Partitura manuscrita, 1793. Cabido Metropolitano do Rio de Janeiro; 25. TOTTI, Giuseppe. Messa a 8 voci: Cum Sancto Spiritu. Partitura manuscrita, 1793. Cabido Metropolitano do Rio de Janeiro. O terceiro capítulo foi desenvolvido de forma similar ao que acontece na maioria dos tratados de fuga, demonstrando os procedimentos fugais a partir de suas partes separadamente, ou as dimensões medianas, como exposto por Jan LaRue, exposição (apresentação dos temas e material motívico a ser trabalhado na fuga), desenvolvimento (episódios, strettos, desenvolvimento motívico), e conclusão (pedal, coda). A análise do repertório musical será apresentada como exemplos descritivos de cada parte, separadamente, da fuga dupla. As análises fraseológicas e motívicas, descritas por LaRue como pequenas dimensões, serão apresentadas a partir dos exemplos musicais. Para LaRue a função da análise musical de estilo é obter interpretações significativas ao identificar os aspectos importantes de cada peça em relação ao compositor da mesma e do estilo do compositor em relação ao seu meio (LARUE, 1989: p. 2). No terceiro capítulo serão primeiramente analisadas as exposições de cada uma das fugas relacionadas acima. Na análise das exposições procurará demonstrar a forma de criação dos temas e sua relação com as respectivas respostas. Poderá se perceber a estrutura tonal presente em temas de maior comprimento, normalmente divididos em duas partes, a primeira delas confirmando a tonalidade da exposição ou resposta e a segunda em progressão normalmente à tônica ou dominante. Também se compararão as premissas expostas no segundo capítulo pelos textos teóricos com a prática musical, relacionando regras que são comumentes ignoradas pelos compositores. No estudo do desenvolvimento e conclusão das fugas, as análises musicais servirão para exemplificar procedimentos recorrentes e excepcionais utilizados nas obras. Recursos estes comuns tanto em processos fugais como provenientes da influência da ópera italiana, 16 como dobramentos, paralelismos, texturas homofônicas, uníssonos corais e maior liberdade da instrumentação. No caso especifico dos Stabat Mater compostos por Pergolesi e José Joaquim dos Santos é possível perceber, a partir da análise comparada, como Santos utiliza a obra de Pergolesi como exemplo para a sua própria, onde a influência não se manifesta somente de forma técnica, ou seja, quanto à utilização de fugas duplas, inclusive nos mesmos trechos do texto, mas também se manifesta em relação à orquestração e forma da exposição dos temas, mantendo traços característicos existentes na obra de Pergolesi. Não é a intenção do terceiro capítulo apresentar uma análise exaustiva de cada uma das vinte e cinco obras relacionadas, e sim utilizá-las como exemplos para o estudo desse processo musical conhecido como fuga dupla, podendo-se assim manter um maior número de exemplos, representando diversos compositores italianos e luso-brasileiros, de maior e menor renome e também demonstrando como a fuga dupla estava presente no repertório português e brasileiro, além do italiano, comprovando a necessidade de um estudo a respeito dela. O objetivo do segundo e terceiro capítulos é analisar comparativamente tanto textos teóricos quanto musicais, abrangendo questões de harmonia, contraponto e fraseologia, sem perder de vista o período e estilo das composições. A partir das análises realizadas, poder-se- há demonstrar o desenvolvimento da fuga dupla luso-brasileira nos séculos XVIII e XIX. Esta forma fugal, presente no repertório luso-brasileiro, de extrema importância para a nossa história musical, permanece, até hoje, pouco conhecida, existindo poucos estudos modernos e até mesmo edições críticas de música portuguesa e brasileira onde ela esteja presente. Razão pela qual essa pesquisa está fundamentada principalmente sobre fontes primárias, tratados, partituras e materiais didáticos levantados em arquivos e bibliotecas européias (especialmente na Península Ibérica e Itália) e brasileiras. 17 Capítulo 1. A fuga no repertório ocidental O termo fuga é utilizado na música ocidental desde o final da Idade Média, sendo que o seu sentido variou consideravelmente durante a história. Existe uma grande dificuldade em delimitar de forma temporal o surgimento da fuga. O termo fuga surgiu na música ocidental ainda no final da Idade Média, mencionado pela primeira vez no tratado Speculum Musicae de Jacobus de Liège, escrito por volta de 1330 (MANN, 1987: p. 9). Neste período, o termo fuga era relacionado com formas musicais canônicas e imitativas, como a caccia e o rondelus. Foi durante a Renascença que fuga, imitação e cânone passaram a ter significados distintos. Neste período, a fuga era tratada como um processo composicional e não uma forma musical como acontecerá posteriormente na segunda metade do século dezenove (LEVARIE, MERRICK, 1943: p. 16). Procedimentos de imitação podiam ser genericamente chamados de fuga. Como processo composicional, a fuga por via de regra era relacionada à sua exposição imitativa, onde o teórico Bartolomeu Ramos de Pareja, ainda no século quinze, sugere o uso de intervalos perfeitos, quarta, quinta e oitava, para a introdução dos temas. Nicola Vicentino, no século seguinte, coloca os intervalos de uníssono e oitava como pouco interessantes por não fornecer variedade à composição. Ramos de Pareja também demonstrava a possibilidade do uso da imitação livre além da estrita (MANN, 1987: p. 11-17). A utilização da imitação livre, também preferida por outros teóricos do mesmo período como Adam Von Fulda auxiliou na separação entre fuga e cânone, o segundo sendo considerado limitado, em virtude de sua rigidez. A diferenciação entre fuga e imitação veio primeiro com Gioseffo Zarlino, onde somente a exposição em intervalos perfeitos passa a ser considerada como fuga, enquanto os demais intervalos são característicos somente de imitações, não de fugas (MANN, 1987: p. 19). Durante o século dezesseis, a fuga passa a ter uma importância maior nos textos teóricos recebendo inclusive capítulos exclusivos para ela. Também foi nesse século que o termo fuga passou a ser associado às formas musicais instrumentais de caráter imitativo como a Canzona, Fantasia e Ricercare. A terminologia utilizada na fuga também surgiu de uma forma progressiva na Renascença. O primeiro termo utilizado podendo ser associado à idéia moderna de sujeito foi “ponto”, por Nicola Vicentino em seu tratado L’Antica Musica ridotta allá moderna prattica 18 de 1555. Gioseffo Zarlino em Instituitioni Harmoniche, de 1558, sugere os termos “guia” e “conseqüência” (sujeito e resposta). O Frei Tomás de Santa Maria em Arte de Tañer Fantasia, por outro lado utiliza o termo “passo” (MANN, 1987: p. 17-27). Os termos guia e passo ainda foram utilizados na virada dos séculos dezoito para o dezenove por André da Silva Gomes no Brasil. Importante para esse trabalho é o fato de que, ainda no início do século dezessete, a fuga dupla é primeiramente mencionada por Giovanni Coperario em Rules for Composing. Para Coperario, a criação de um segundo tema se torna necessário quando o tema original é demasiado longo. Ele também sugere a diferenciação entre eles por tema e contra-tema (MANN, 1987: p. 33). 1.1 A fuga em textos teóricos dos séculos XVIII e XIX Johann Josef Fux inicia sua descrição de fugas em Gradus ad Parnassum de 1775, exatamente diferenciando-as de simples imitações, utilizando o mesmo pensamento de Zarlino, onde somente intervalos perfeitos são próprios da fuga, enquanto a imitação pode começar em qualquer intervalo (Fux in MANN, 1987: p. 81-82). Por outro lado, Friedrich Wilhelm Marpurg em Abhandlung von der Fuge, descreve a fuga como uma composição onde a imitação periódica é utilizada formalmente ao contrário de incidentalmente. Segundo Marpurg, há dois tipos de fuga, a canônica e a periódica, sendo a segunda forma a que será referenciada nessa pesquisa. Apesar de utilizar o termo “forma”, para Marpurg a fuga não pode ser divida em duas ou três partes como outras formas musicais, mas deve ser contínua, do início ao fim (Marpurg in MANN, 1987: p. 153-154). A fuga também é tratada como processo e não por forma por Luigi Cherubini, no tratado Cours de Contrepoint et de la Fugue de 1835, onde se refere à fuga como um complemento do contraponto (LEVIARE, MERRICK, 1943: p. 16). Apesar de simplificada, Francisco Ignácio Solano, em seu “Novo Tratado de Música Métrica e Rítmica” de 1779, apresenta a fuga de maneira formal, no caso tripartida e conforme a progressão harmônica, onde na parte final a tonalidade retorna à do sujeito inicial. 19 “As fugas, de qualquer qualidade que sejam, sempre tem princípio, meio e fim. O princípio pela maior parte é no Tom, ou 5a. o meio. Umas vezes é da mesma qualidade, assim na primeira Voz, como na resposta da 2a , e outras é diferente. O fim é no Tom, ou na 5a, e algumas ocasiões na 4a,ou 2a. Ele deve corresponder em uma, e outra Voz. Em suma, o fim, o meio, e principio hão de ser de uma própria quantidade, ou qualidade na resposta da segunda Voz, que era, no passo da primeira, conforma a Classe de que for a Fuga” (SOLANO, 1779: p.225). A exposição fugal é tratada de forma detalhada pelos teóricos dos séculos dezoito e dezenove. A terminologia varia conforme cada um e suas nacionalidades, termos como “tema”, “sujeito”, “passo”, “guia” ou “motivo” são utilizados para se referir ao sujeito da fuga, como utilizado atualmente. A divisão de tipos de fugas segundo suas respostas é comum entre os teóricos. Segundo o Padre Giambattista Martini, em L’Esemplare, o sai saggio fondamentale pratico di contrappunto fugato de 1775, a fuga é dividida entre: fuga real, do tom e de imitação. A mesma divisão é proposta por Luigi Cherubini. Fuga real é aquela onde a resposta é idêntica ao sujeito, respeitando-o em cada intervalo. Enquanto a fuga do tom é semelhante ao sujeito de forma que ambos se limitem à oitava do tom onde a fuga é composta. Fuga de imitação é aquela onde a resposta é semelhante ao sujeito, mas não totalmente, as diferenças se apresentam com qualquer liberdade e variação (MARTINI, 1775: p. XVIII). Para os teóricos Solano e Gomes, a fuga real é o equivalente à fuga do tom de Martini. A resposta é alterada de forma a respeitar a oitava do tom (SOLANO, 1779: p. 225-226). Para Gomes: “A Fuga Real é aquela que atende mais às Cordas do Tom do que a Imitação das Distâncias, isto é, atende mais a conter-se dentro das Cordas do Tom do que a arremedar e imitar a fiel demarcha da Guia, da qual ela se caracteriza Competidora” (Gomes in LANDI, 2005: p. 209). Com a intenção de uniformizar a terminologia, chamaremos esse tipo de reposta de “tonal”. Sua função é de impedir que a exposição module para tonalidades distantes da original, evitando a necessidade de pequenos trechos para adequação tonal ao retornar ao sujeito da exposição após a primeira resposta. Neste caso, quando o sujeito termina sua parte na dominante da tonalidade, ao invés da resposta se dirigir à tonalidade de sua própria dominante, esta por sua vez retorna à tônica. Esse procedimento é chamado por Marpurg como ajuste na linha melódica. 20 Gomes descreve seis tipos de fuga, real (tonal), de imitação regular, de imitação irregular, inversa ou contrafuga, do tom e puramente irregular. Segundo ele, a fuga real (tonal) e do tom são semelhantes por manter suas respostas dentro do tom: “As fugas do Tom são assim chamadas porque respondem dentro do mesmo, como a Fuga Real; mas tem a precisão nos Tons da 3a menor, quando a primeira Voz expressar na cláusula fá-mi da 6a do Tom para a 5a, a segunda deve responder mi-ré para descer ao Tom, e daqui lhe provém sua própria denominação” (Gomes in LANDI, 2005: p. 210). A fuga de imitação regular para Gomes, mesma terminologia utilizada por Solano, é aquela onde todos os intervalos do sujeito são invariavelmente respeitados, como a fuga real descrita por Cherubini e Martini. A fuga de imitação irregular, diferente da anterior, apesar de responder pelos mesmos intervalos, ao final da resposta modula para uma nova tonalidade (Gomes in LANDI, 2005: p. 210). Fuga inversa ou contrafuga é aquela onde a resposta caminha por movimento contrário em relação ao sujeito (Gomes in LANDI, 2005: p. 210). Essa espécie de fuga é descrita por Marpurg como pertencendo à segunda classe de fugas, onde as fugas são classificadas conforme o tipo de movimento melódico da resposta. A fuga puramente irregular é descrita por Gomes como a resposta fora das cordas principais do tom. Ou seja, a resposta pode ser realizada em outros intervalos que não os perfeitos (Gomes in LANDI, 2005: p. 210). A mesma possibilidade também é descrita por Marpurg, porém o autor germânico deixa claro que nesses casos são fugas extraordinárias e devem ser utilizadas não na exposição inicial da fuga, mas no decorrer de fugas “ordinárias”, essas iniciando com intervalos de quinta, quarta e uníssono (Marpurg in MANN, 1987: p. 158-159). Para Marpurg, as fugas podem ser subdivididas em seis classes: A primeira onde as fugas recebem o nome dos intervalos onde se inicia a resposta (ex. fuga na quinta, fuga na segunda e assim por diante). Como descrito acima, apesar de considerar fugas em intervalos além os perfeitos, considera esses casos como procedimentos a serem utilizados no decorrer de fugas ordinárias (Marpurg in MANN, 1987: p. 158). Como já mencionado, a segunda classe de fugas descritas por Marpurg são classificadas conforme o movimento melódico da resposta, podendo ser divididas em três: 21 “a) fugas com movimento similar – fuga recta ou aequalis motus; b) fugas com movimento distinto ou invertido, usualmente chamadas de contra-fugas – fuga contratia ou per motum contrarium; c) fugas com movimento retrógrado e invertido – fuga retrograda e fuga retrograda per motum contrarium” (Marpurg in MANN, 1987: p. 158).2 A terceira classe é a das fugas que recebem seus nomes segundo a mudança dos valores de duração das notas da resposta, fugas por aumentação ou diminuição (augmentationem ou diminutionem). A quarta classe é a em que a resposta é em ritmo contrário (fuga per arsin et thesin). Na quinta classe, a resposta surge de forma interrompida (fuga per imitationem interruptam). E a sexta classe é a qual todos os procedimentos mencionados são combinados (fuga mixta) (Marpurg in MANN, 1987: p. 158). O desenvolvimento das fugas é dividido por Gomes entre diminuições do motivo ou passo e digressões imitadas. A fuga é dividida em cinco partes, sendo a primeira à exposição do tema; o desenvolvimento inicia com a primeira digressão imitada, seguida da diminuição do motivo ou passo. A última parte, a conclusão, ainda é precedida pela segunda digressão imitada (Gomes in LANDI, 2005: p. 204-207). Esta divisão rígida da composição fugal propõe uma compreensão da fuga, por Gomes, como forma e não somente processo. Para Gomes, na definição de digressão imitada, o compositor tem a liberdade de utilizar fragmento do tema ou mesmo criar motivos inteiramente novos, com a intenção de “recrear o ouvido com alguma variedade” (Gomes in LANDI, 2005: p. 205-206). A diminuição do motivo ou passo representa um retorno ao tema inicial, não de forma literal, ainda criando alguma variedade. A segunda digressão imitada se assemelha em tudo à primeira, exceto o tom que deve ser distinto. O material temático deve ser mantido o mesmo que o da primeira digressão imitada (Gomes in LANDI, 2005: p. 206). A conclusão da fuga pode ser realizada de forma livre, não tendo a necessidade de retornar ao tema inicial. Gomes também menciona a possibilidade da utilização de um baixo pedal na dominante, além da possibilidade de formar pequenos duetos (Gomes in LANDI, 2005: p. 206-207). “ele, se quiser, pode descair no fim das modulações da Parte antecedente na 4ª abaixo ou 5ª acima da Tônica, prendendo aí o baixo firme e formar sobre ele uma apinhoada e Espécies Falsas em que umas com outras vão 2 Do original: “a) fugues in similar motion – fuga recta or aequalis motus; b) fugues in dissimilar or inverted motion , usually called counter-fugues – fuga contraria or per motum contrarium; c) fugues inretrograde and inverted retrograde motion – fuga retrograde and fuga retrograde per motum contrarium.” (Marpurg in MANN, 1987: p. 158) (N. do Autor: tradução própria) 22 empregando as três condições de Prevenção, Ligadura e Resolução, até descair na última e ajustada Conclusão , digo Cláusula, ou formando alguns pequenos duetos Levantados por uma das Vozes e respondidos por outras; mas tudo isto muito breve e concluindo com figuras soltas e cadências Mediais, na inteligência de que uma Cadência forte, repetida e estrondosa é a própria de concluir este gênero de Composição.” (Gomes in LANDI, 2005: p. 214-215). A segunda digressão imitada e a conclusão, segundo Gomes, são arbitrárias, podendo elas ser maiores ou menores, mais ou menos variadas, seguindo o gosto do compositor. Isso para evitar que a fuga se torne uma rigorosa e repetitiva imitação do tema (Gomes in LANDI, 2005: p. 205). Marpurg menciona o retorno ao tema ao tratar das re-exposições e como proceder ao criá-las. Seis são as regras descritas por ele: “1) Após o tema ter aparecido em todas as vozes, a textura contrapontística pode continuar por diversos compassos de acordo com as regras concernentes aos episódios e então seguindo uma cadência, ou, especialmente se a linha melódica do tema sugerir, a cadência pode ser formada imediatamente após a primeira exposição (...) 2) Enquanto a cadência é formada, tanto o sujeito quanto a sua resposta deve entrar em uma voz distinta da qual o tema tenha aparecido imediatamente antes. Se nenhum episódio precede a cadência, pode-se introduzir um episódio ao invés de uma entrada temática, com a intenção de aumentar a antecipação do ouvinte da nova entrada temática (...) 3) Se a natureza do tema permite respostas em diferentes partes, ou se a fuga não deve ser demasiada comprida, a nova entrada do tema pode ser respondida com uma distância menor que a da primeira exposição. (...) 4) A segunda exposição pode ser continuada com entradas em parte ou todas as vozes (...) e com diversos episódios, enquanto pausas devem ser colocadas na voz antes de introduzir a terceira exposição. (...) 5) Agora o tema deve aparecer em uma tonalidade, e provavelmente em uma nota, totalmente diferente daquelas da primeira exposição. (...) 6) O tema deve continuamente reaparecer nas tonalidades relativas possíveis tanto de forma completa ou reduzida. As entradas temáticas devem ser acompanhadas de diversas mudanças harmônicas adequadas. Finalmente, a tonalidade original deve ser retomada novamente com uma modulação cuidadosamente arranjada, usando de forma completa ou abreviada o tema em diferentes formas de imitações periódicas e canônicas. A fuga deve ser terminada com uma cadência final que pode ser estendida ou enfatizada por um pedal” (Marpurg in MANN, 1987: p. 179-180).3 3 Do original: “1) After the theme has appeared in all voices, the contrapuntal fabric may be continued for several measures according to the rules governing the episodes and then led into a cadence; or else; especially if the melodic line of the theme suggest it, the cadence may be formed immediately after the first exposition (…) 2) While the cadence is formed, either the opening statement or the answer should enter in a voice in which the theme did not appear immediately before. If no episode precedes the cadence, one may 23 Gomes também menciona a terceira regra de Marpurg em seu único preceito acerca da diminuição do motivo ou passo: “De dois modos se pode diminuir o Motivo ou Passo: ou diminuindo o valor de algumas Figuras que entram no Motivo, ou fazendo entrar as Partes ou Vozes mais cedo do que entraram na primeira Intenção de estabelecimento e primeiras Respostas do Motivo, sendo muito conveniente à diminuição dos Motivos cada vez mais e mais; não só para ficarem Menos extensas as Fugas, mas também para se mostrar neste Lugar o primor da Arte; porém note-se que a última Voz que expressa a última resposta é obrigada a dizer o Motivo inteiro” (Gomes in LANDI, 2005: p. 214-215). Esse procedimento de reduzir a distância entre as entradas do sujeito e sua resposta é chamado também de stretto. Cherubini além de considerar o stretto como parte fundamental de uma fuga, apesar do repertório musical demonstrar o contrário, descreve da seguinte forma: “Stretto é uma palavra italiana significando próximo; ela foi adotada em nosso idioma, e é utilizada para descrever a técnica que consiste em aproximar, tão próximo quanto possível, a entrada da resposta do sujeito” (CHERUBINI, 1854: p. 65).4 Os episódios já mencionados por Marpurg, são trechos livres que devem ser relacionados ao tema e as demais “contra-partes” utilizadas durante a exposição, podendo ser inclusive considerado como uma continuação dessas “contra-partes”. Marpurg, ao contrário de Gomes, que oferece uma maior liberdade na criação de digressões imitadas, considera essa possibilidade somente no caso do tema não oferecer material motívico suficientemente introduce an episode rather than a thematic entrance on the cadence in order to increase the listener’s anticipation of the new thematic entrance (…) 3) If the nature of the theme admits answers at different points or if the fugue is not to assume great length, the new entrance of the theme may be answered earlier than the distance between the entrances of the first exposition would suggest (…) 4) The second exposition, which is thus begun, may be continued with the entrances in some or all of the voices (…) and with various episodes, while rests are placed in that voice which is to introduce the theme in the third exposition (…) 5) Now the theme appears at a tone, and probably also in a key, totally different from those of its first entrance (…) 6) The theme should continually reappear in as many related keys as possible both in complete and shortened statements, The thematic entrances should be accompanied with various suitable harmonic changes. Finally, the original key should be approached again with a carefully arranged modulation, using the complete or abbreviated theme in different forms of periodic and canonic imitation. The fugue should be ended with a final cadence which may possibly be extended or emphasized by a so-called pedal point. (Marpurg in MANN, 1987: p. 179-180) (N. do Autor: tradução própria) 4 Do original: “Stretto is an Italian word, signifying close; it has been adopted into our language, and is employed to indicate a device which consists in approaching, as closely as possible, the entrance of the response to that of the subject.” (CHERUBINI, 1854: p. 65) (N. do Autor: tradução própria) 24 interessante para utilizar na fuga. Nos demais casos, os episódios devem ser relacionados ao tema e suas “contra-partes” (Marpurg in MANN, 1987: p. 202-203). Segundo Marpurg, “contra-partes” são trechos melódicos que sucedem ao sujeito, em contraponto com a resposta, durante a exposição, preenchendo as vozes com “melodias bem construídas” (Marpurg in MANN, 1987: p. 199-200). Adiante retornaremos a esse tema ao tratarmos dos contra-sujeitos. Ao descrever as digressões imitadas, equivalentes aos episódios de Marpurg, Gomes demonstra três tipos de imitações possíveis de ser utilizadas pelo material motívico criado pelo compositor, imitação por movimento, por sílabas ou nomes e por figuras. “3º. A imitação por Movimentos é quando uma Voz sobe ou desce de Grau, isto é, à Nota imediata ou no ascenso ou descenso ou de 4a ou 5a, etc. a outra Voz depois dele faz os mesmos trânsitos, isto é, faz a mesma Qualidade de Trânsitos. 4º. Imitação por Sílabas ou Nomes é quando uma Parte diz, por exemplo, mi fá ou ré fá, e outra parte na posição em que se acha, nomeia depois dela os próprios Nomes, bem entendido, não se exigindo que estas respostas sejam nos mesmos intervalos, sejam aonde que forem; porque uma Voz pode mover de 5a e outra de 8a. 5º Imitação por Figuras deve ajustar-se com as duas primeiras qualidades; porquanto logo que a Imitação é formada com próprios Movimentos e Sílabas, igualmente se deve ajustar no equivalente e Quantidade de Figuras. 6º. Das três mencionadas qualidades de Imitação são melhores duas, a que se conforma nos Movimentos, e por conseqüência na Qualidade, e a que se forma nas Figuras, e por conseqüência na Quantidade; porque a Imitação de Sílabas é menos atendível, em razão de que quando nela se ouve cantar a Letra ou se ouvem os instrumentos, não se ouvem expressar o Nomes da[s] Sílabas” (Gomes in LANDI, 2005:p .213). Cherubini utiliza a mesma terminologia que os autores anteriores, digressão e episódio e como Marpurg, considera que o material motívico deve ser retirado do sujeito e contra- sujeitos, com o qual deve se formar séries de imitações durante as quais pudesse modular, procurando reapresentar o sujeito, sua resposta e contrasujeitos em tonalidades distintas. (CHERUBINI, 1854: p. 70) Trataremos a seguir dos contra-sujeitos, essa parte das estruturas comuns em fugas foi deixada por último pela sua importância particular para esse trabalho, como será visto no próximo capítulo. Contra-sujeito é a melodia que acompanha tanto o sujeito quanto a resposta, e deve ser introduzida acima e abaixo do sujeito e sua resposta em contraponto duplo na oitava (CHERUBINI, 1854: p. 64). Cherubini também diferencia o contra sujeito de partes livres. Para o autor, a identidade dos contra-sujeitos em suas inversões e transposições não deve ser 25 alterada e somente pode haver tantos contra-sujeitos quanto vozes, subtraindo em um. Ou seja, em uma fuga a quatro vozes, somente poderão existir três contra-sujeitos. Caso haja somente um contra-sujeito, não importando o número de vozes da composição, as partes que acompanham o sujeito e o contra-sujeito juntamente são chamadas ad libitum, nas quais a melodia pode ser variada em qualquer momento que elas intervenham (CHERUBINI, 1854: p. 64). Os contra-sujeitos devem ser dispostos sucessivamente e simultaneamente ao sujeito (CHERUBINI, 1854: p. 65), no segundo caso podendo ser considerado como segundos temas em fugas duplas, como será discutido no próximo capítulo. A distinção de contra-sujeito e segundo tema é bastante complicada nos tratados, Marpurg, ao contrário de Cherubini, considera todo contra-sujeito como segundo tema, mesmo quando exposto sucessivamente ao sujeito (Marpurg in MANN, 1987: p. 192). O uso de contra-sujeitos não é uma regra restrita na composição de fugas, como é demonstrado no repertório musical onde é comum a não utilização de contra-sujeitos, mantendo as partes que acompanham o sujeito e sua resposta como partes livres ou, como descreve Cherubini, ad libitum. Isso não ocorre somente aos contra-sujeitos, mas praticamente a qualquer parte integrante de fugas, como stretto, pedal ou mesmo em casos menos comuns, o desenvolvimento motívico dos episódios ou digressões. A única parte realmente obrigatória para a criação de fugas é a exposição que no século dezoito e dezenove já aparece descrita de forma bastante característica, onde o sujeito normalmente na tônica da tonalidade é sucedido pela sua resposta no quinto grau. 1.2 A fuga e a retórica “Daqui pode concluir o Compositor instruído, não só como Filósofo, a entidade diferente de cada um dos sobreditos empregos, podendo justamente distinguir o Contraponto Harmonia Docente e a Composição Harmonia Utente, isto é, parte que dá preceitos e parte que os apresenta em execução: mas também pode observar como o Retórico a analogia da Faculdade Harmônica com a Faculdade Retórica; aqui se observa o Contraponto relativo à parte da Invenção e a Composição relativa à Disposição e Elocução. Na dissertação que serve de principio a esta obra fica após demonstrado quanto é preciosa ao compositor a Instrução Literária (Gomes in LANDI, 2005: p. 153). 26 Gomes demonstra, nesta nota inserida ainda na primeira lição de seu tratado de contraponto, o estreitamento entre as faculdades musicais e literárias. Esta aproximação não era novidade durante o século dezoito. Segundo Gregory G. Butler, já no século dezesseis surgiu nos meios musicais uma afinidade entra a música e a poesia como resultado da crescente influência do humanismo. A aproximação cada vez mais sistemática entre a retórica e a música foi uma conseqüência dessa corrente (BUTLER, 1977: p. 49). A retórica latina pode ser dividida em cinco grandes partes: invenção, disposição, elocução, memorização e enunciação (BUTLER, 1977: p. 49). Os autores do século dezessete e dezoito mencionados no artigo de Butler focam seus escritos especialmente na elocução e enunciação. Isso porque foi à elocução, a decoração ou embelezamento da fala com a utilização de diversas figuras de retórica, a principal preocupação dos teóricos do século anterior, que serviram como base para os séculos seguintes (BUTLER, 1977: p. 49-50). Gomes em sua nota deixa clara a distinção entre contraponto e composição, inicialmente ligando o contraponto à ciência que presta subsídios teóricos para a composição, relacionada essa por sua vez à execução. Em relação à retórica, Gomes classifica o contraponto como fazendo parte da inventio enquanto a composição, da dispositio e elocutio. Para Mattheson o contraponto também está ligado à invenção, relacionado entre uma série de locais comuns descritos pelo autor, loci topici, que servem de auxílio para a invenção musical (Johann Mattheson in LENNEBERG, 1958: p. 71). Butler procura responder à pergunta de como a fuga pode ser relacionada à retórica: “Primeiramente, deve-se observar que todo esse movimento [Música Poética] era altamente intelectual, mesmo acadêmico, em sua natureza, e é claro que a fuga era vista como um elemento da composição como altamente engenhoso. Em segundo lugar, a fuga era uma estrutura de grande engenhosidade e ao mesmo tempo de uma força musical altamente expressiva e afetiva, e portanto muito considerada como um forte aparato retórico-musical. Em terceiro lugar, a poesia lida com o imaginário verbal, e existe uma grande evidência de que a fuga foi pensada em termos de uma imagem musical pura (...)” (BUTLER, 1977: p. 50).5 Como os primeiros teóricos que mencionaram a fuga durante a Renascença, a retórica inicialmente tratou das fugas a partir de sua exposição, descrevendo-a por meio de figuras de 5 Do original: “First of all, it must be realized that this whole movement was largely highly learned and intellectual, even academic, in nature, and of course the fuga was looked upon as a highly learned element of composition. Secondly, the fuga was a structure of affective musical force, and therefore highly valued as a powerful musical-rethorical device. Thirdly, poetry deals largely with verbal imagery, and the is growing evidence that the fuga was thought of in terms of a highly artificial musical image (…)” (BUTLER, 1977: p. 50) (N. do Autor: tradução própria) 27 retórica como mimesis, copulatio, ploce, collatio e repetitio, sendo todas relacionadas a figuras de linguagem referentes à repetição de palavras ou frases. Essa repetição sucessiva na exposição do tema na fuga também é relacionada à emphasis, outra figura retórica (BUTLER, 1977: p. 50-54). A ênfase na retórica pode ser percebida em dois níveis distintos. De uma forma mais genérica referindo-se somente ao reforço de um tema e também pode se referir a uma figura de retórica mais específica na qual um significado mais profundo é revelado do que o atual expresso pelas próprias palavras, isso normalmente ocorre com a supressão ou omissão de determinada palavra ou grupo de palavras (BUTLER, 1977: p. 54). Joachim Burmeister (1566-1629) descreve a partir da retórica diferentes técnicas fugais como metalepsis (fuga-dupla), hypallage (fuga por movimento contrário), apocope (entrada incompleta de um sujeito) e anaphora (exposição incompleta) (BUTLER, 1977: p. 57). A primeira figura, metalepsis, de grande importância para esse estudo, é descrita por Burmeister como um estilo de fuga onde duas melodias em harmonia são transformadas em uma fuga (Burmeister in BUTLER, 1977: p. 57). A forma musical foi tratada a partir da retórica, utilizando a divisão existente da oração na retórica, presente na dispositio, em exordium, narratio, propositio, divisio, confirmatio, confutatio, peroratio. Segundo Butler o exordium é o início da oração, que deve prepararar a audiência para ouvir com interesse. A narratio consiste da exposição de tópicos, feitos e eventos pertinentes, podendo ser considerado opcional. A propositio é quebrada em partes menores relevantes para um aspecto especifico da argumentação. Na confirmatio são citados os argumentos para suportar e reforçar o tema. Na confutatio surgem argumentos contra o tema pela parte opositora. E o peroratio deve formar um encerramento convincente do tema, normalmente, reiterando os argumentos iniciais (BUTLER, 1977: p. 65-66). Ao contrário da divisão mencionada acima, a fuga, normalmente, era dividida em três partes, exordium, médium e finis. A utilização do exordium podia ser substituída pela propositio, por ele conter a introdução do tema. Mignot La Voye (?-1650) descreve a disposição da fuga como propositio, confirmatio e conclusio (BUTLER, 1977: p. 66-67). Em determinadas fugas como os cum sancto spiritu das missas de Pergolesi, Totti, Marcos Portugal e Nunes Garcia, a pequena introdução homofônica que antecede a fuga propriamente dita pode se considerada como o exordium e a exposição inicial da fuga como a propositio, essa diferenciação é mencionada por Luigi Antonio Sabbatini (1739-1809) (BUTLER, 1977: p. 72). 28 Tanto Mattheson quanto Sabbatini vêem a propositio como a exposição inicial do tema da fuga. Mattheson traça um paralelo ainda mais profundo entre tema e propositio. Para ele, o tema deve ser tratado com uma thesis geral para sintetizá-lo em uma série de elementos menores. Para isso o tema deve ser composto de pequenas partes que possibilitem um tratamento musical separadamente. Essa idéia é ligada pelo autor ao procedimento da dialética de caminhar do especial ao geral (specialia ad generalia ducenda) (BUTLER, 1977: p. 73- 75). Esse tratamento do tema, como Mattheson descreve, também tem relação com a segunda parte da forma fugal , a confirmatio e a confutatio, onde o tema é fragmentado em pequenas partes motívicas para a realização dos diferentes episódios. Esse procedimento de fragmentação motívica é descrito pela retórica musical também como distributio (BUTLER, 1977: p. 83). Em uma carta escrita por Johann Cristoph Schmidt (1664-1728) endereçada a Mattheson pode-se ver uma sugestão de descrição de processos fugais mais elaborada a partir da retórica: “Com o objetivo de tratar uma fuga, eu tenho que utilizar artifícios tanto da oratória quanto do estilo moderno, apesar da música dominar mais nesse [fuga] do que a oração. Para o dux [tema] é propositio; o comes [resposta], aetilogia. Oppositum é a variedade de inversões da fuga. Similia indicam as notas alteradas da propositio de acordo com o valor. Exempla podem referir- se às propositiones da fuga em outras tonalidades com aumentação e diminuição do sujeito. Confirmatio seria quando trato o sujeito em cânon, e conclusio, quando faço o sujeito ser ouvido in imitatione sobre uma longa nota em direção às cadências (Schmidt in BUTLER, 1977: p. 69).6 A aetiologia prevista em segundo lugar é o processo de descrever causas para efeitos dados, com a função de esclarecer e elaborar a probatio, figura perfeitamente compatível com a idéia de resposta ou conseqüência. É interessante mencionar a utilização do stretto durante a confirmatio descrita por Schmidt e também o pedal para a finalização na conclusio. Schmidt também se refere à propositio, não como sendo a exposição da fuga em sua totalidade, mas somente à primeira entrada do tema. A exposição se torna completa somente com a combinação da propositio e aetiologia, onde tanto o tema como suas respostas são 6 Do original: “For in order to treat a fugue, I must take artifice just as much from oratory as from the modern style, although music dominates more in this than does oration. For the dux is proposition; the comes, aetiologia. Oppositum is the varied inversion of the fugue. Similia indicates the altered propositio according to value. Exempla can refer to the propositiones of the fugue in other keys with augmentation and diminution of the subject. Confirmatio would be when I treat the subject in canon, and conclusio, when I cause the subject to be heard in imitatione over a long held note toward the cadences (…) (Schmidt in BUTLER, 1977: p. 69) (N. do Autor: tradução própria) 29 ouvidas. Segundo o conceito de aetiologia, a relação tema e resposta são de causa e conseqüência enquanto Mattheson trata os dois como elementos opositores, oposição principalmente tonal: “Cada fuga possui (...) dois combatentes principais (...). O primeiro é chamado dux, o outro comes (...) O líder ou dux acompanha o seu seguidor ou comes. (...) essa sucessão ou acompanhamento ocorre em diferentes tonalidades, portanto expressa uma certa rivalidade, uma aemulatio ou uma disputa acalorada (...)” (Mattheson in BUTLER, 1977: p. 76).7 Mattheson também descreve o possível ajuste tonal entre a reposta e o re-aparecimento do tema em uma exposição utilizando um procedimento retórico da conciliatio, em que duas partes distintas e opositoras chegam a uma concordância (BUTLER, 1977: p. 77). A terminologia emprestada da retórica na compreensão dos processos fugais descritos pelos teóricos, determinando uma lógica no seu discurso desde a introdução do tema até sua conclusão. A propositio contendo o material temático e motívico a ser trabalhado na obra, a confutatio descrevendo demonstrando como o material escolhido deve se contrapor de forma a demonstrar todas as capacidades de invenção do compositor, a confirmatio retornando ao tema, podendo ser em forma de stretto, criando um clímax no discurso, seguido da peroratio, ou a conclusão da fuga, com seu pedal e cadências elaboradas. Essa divisão das partes das fugas se assemelha à idéia de Gomes, considerando cinco partes comuns nas fugas, com exceção da segunda digressão imitada, já que a confirmatio, equivalente à diminuição do motivo ou passo, é seguida na retórica pela peroratio. 7 Do original: “Each fugue has (…) two principal combatants (…) The one is called dux, the other, comes (…) The leader or dux accompanies its follower or comes (…) this succession or accompaniment occurs in different keys, thereby expressing a certain rivalry, an aemulatio or a heated dispute (…)” (Mattheson in BUTLER, 1977: p. 76) (N. do Autor: tradução própria) 30 Capítulo 2. A fuga dupla em tratados musicais dos séculos XVIII e XIX O presente capítulo tem como intenção demonstrar como a fuga dupla foi descrita em alguns tratados dos séculos XVIII e XIX. Foram escolhidos tratados representativos de diferentes localidades da Europa e Brasil, buscando uma maior abrangência do tema. Na forma musical que trataremos, os dois temas são expostos ao mesmo tempo desde o início, com uma pequena diferença de tempo entre as entradas de cada um deles, onde o segundo tema se inicia logoo após o primeiro. Como a principal diferença entre as fugas duplas e as simples está precisamente no início da fuga, a maioria dos tratados não descreve mais do que a exposição, já que os procedimentos para o desenvolvimento das fugas foram ou serão descritos ao tratar das fugas simples. Exceção a este caso é o compositor Antonín Rejcha, que como será demonstrado adiante, descreve diversas formas de combinar os dois diferentes temas durante o desenvolvimento fugal. Os tratados escolhidos perfazem um período de cento e seis anos, sendo o mais antigo escrito por Marpurg e publicado em 1753 e o mais recente de Eslava, publicado entre 1857 e 1859. Este capítulo, para melhor compreensão do texto, foi dividido em duas partes, conforme os séculos, e subdividido por títulos e autores. A primeira parte, reservada aos tratados do século XVIII, apresenta quatro tratados, sendo dois germânicos, um italiano e um português: 1. Friedrich Wilhelm Marpurg, Abhandlung von der Fuge. Trechos extraídos do livro The Study of Fugue de Alfred Mann, 1987; 2. Giambattista Martini, L’Esemplare, o sai saggio fondamentale pratico di contrappunto fugato. Bolonha, 1775; 3. Francisco Ignácio Solano, Novo Tratado de Música, Métrica e Rítmica. Lisboa, 1779; 4. Johann Georg Albrechtsberger, Collected Writings on Through-Bass, Harmony, and Composicion, for Self-Instruction. Tradução inglesa de 1885. São cinco tratados do século XIX descritos na segunda parte do capítulo, dois franceses, um espanhol, um italiano e um brasileiro: 31 1. Angel Morrigi, Tratado de Contrapunto Fugado. Tradução para o espanhol de 1831; 2. André da Silva Gomes, Arte Explicada de Contraponto. Edição moderna e estudo de Márcio Spartaco Landi, 2005; 3. Antonín Rejcha, Tratado de Contraponto e Fuga. Tradução manuscrita de meados do século XIX presente na Biblioteca Nacional de Lisboa; 4. Luigi Cherubini, A Treatise on Counterpoint and Fuge. Tradução inglesa de 1854; 5. Miguel Hilarión Eslava, Escuela de Composición, tratado Segundo del contrapunto y fuga. Madrid, 1864 2.1 Século XVIII 2.1.1. Abhandlung von der Fuge, F. W. Marpurg. Nascido em Brandenburgo em 1718 e falecido em Berlim em 1795, Marpurg foi crítico musical, teórico e compositor. Além dos três periódicos musicais que possuiu, “Der critische Musicus an der Spree” (1749-50), “Historisch-kritische Beyträge zur Aufnahme der Musik” (1754-62, 1778) e “Kritische Briefe über die Tonkunst” (1760-64), também foi autor do prefácio da primeira edição da “Arte da Fuga” de J. S. Bach. Segundo Mann, a maneira como Marpurg assumiu o papel de defensor da “Arte da Fuga”, conferiu-lhe um lugar único entre os poucos contemporâneos de Bach que reconheciam a importância do seu trabalho. (MANN, 1987: p. 139) O Tratado “Abhandlung Von der Fuge” teve seu primeiro volume publicado em 1753 e o segundo volume um ano após, em 1754. O prefácio do primeiro volume é dedicado a Telemann e Carl Philipp Emanuel Bach, e o prefácio do segundo a Wilhelm Friedmann Bach e C. P. E. Bach novamente. No prefácio do segundo volume Marpurg volta a defender o trabalho de J. S. Bach, como fez na “Arte da Fuga”. (MANN, 1987: p. 140) “Eu tomo a liberdade de demonstrar diante dos senhores os princípios de uma arte que deve o seu aperfeiçoamento particularmente aos esforços de seu famoso pai (...)” (Marpurg in MANN, 1987: p. 140)8 8 Do original: “I take the liberty of laying before Your Honors the principles of an art which owes its improvement particularly to the excellent efforts of your famous father...” (Marpurg in MANN, 1987: p. 140) (N. do Autor: tradução própria) 32 No tópico de número dezessete Marpurg menciona pela primeira vez a possibilidade de combinar mais de um sujeito na mesma fuga: “Ao invés de utilizar somente um tema, o compositor pode utilizar diversos temas em uma composição. Daí surge a distinção entre fugas simples e múltiplas. Fugas simples são baseadas em um único tema; fugas múltiplas são, por regra geral, chamadas fugas duplas (...)” (Marpurg in MANN, 1987: p. 157)9 Em nota, Marpurg se refere à terminologia utilizada para nomear os temas e, brevemente, como eles devem ser trabalhados simultaneamente durante a fuga: “1) O sujeito que inicia uma fuga dupla é usualmente designado como tema, os demais são chamados de contra-sujeitos ou temas secundários (...) 2) Em uma fuga dupla os diferentes temas devem ser trabalhados simultaneamente (...) Esse desenvolvimento simultâneo não é possível sem o uso de contraponto duplo, como em uma fuga simples não é possível fazer a exposição e resposta em diferentes vozes sem o conhecimento da técnica.” (Marpurg in MANN, 1987: p. 157)10 No capítulo referente à exposição e desenvolvimento da fuga Marpurg retorna ao tema da fuga dupla, descrevendo em nove itens como deve um compositor proceder na utilização de múltiplos temas. Os tópicos descritos por Marpurg, transcritos a seguir, incluem todas as fugas com diversos temas independente de suas respostas serem por aumentação, diminuição, movimento direto ou contrário. “1) Os temas devem diferenciar-se um do outro tanto ritmicamente como melodicamente, de forma que o movimento de um contra o outro será mais facilmente compreendido” (Marpurg in MANN, 1987: p. 191)11 9 Do original: Instead of using merely one theme, a composer will often use several themes in one composition. Thus there is a distinction between simple and multiple fugues. Simple fugues are based on a single theme; multiple fugues are as a rule summarily called double fugues (…)” (Marpurg in MANN, 1987: p. 157) (N. do Autor: tradução própria) 10 Do original: 1) The opening subject of a double fugue is usually designated as the theme; the others are called countersubjects, or secondary themes (…) 2) In a double fugue, the different themes have to be developed simultaneously (…) This simultaneous development is not possible without the use of double counterpoint, just as in a simple fugue it is not possible to place the opening and answering statements in different voices without a thorough knowledge of this technique.” (Marpurg in MANN, 1987: p. 157) (N. do Autor: tradução própria) 11 Do original: “ 1) The themes should be distinguished one from another both rhythmically and melodically, so that the movement of one against the other will be more easily understood.´ (Marpurg in MANN, 1987: p. 191) (N. do Autor: tradução própria) 33 Como será visto adiante, outros teóricos, como Albrechtsberger e Eslava mencionam esta regra de Marpurg, onde os dois temas devem ter caráter distinto. “2) Para a construção de uma fuga dupla é melhor que o número de vozes exceda o número de temas por um. Essa medida, não somente permite formas mais complicadas de imitações e um tratamento mais adequado de cada tema, como também torna mais fácil que uma voz possa descansar e recomeçar o tema com uma nova entrada (...) 3) Os temas nem sempre deverão ser utilizados integralmente. 4) Os temas não devem acabar juntos. 5) Para prevenir que os temas de uma fuga sejam confundido entre eles, os temas devem ser distinguidos no primeiro rascunho por figuras. 6) Não é necessário que o tema e o contra-sujeito sempre acompanhem um ao outro (...) É comumente possível utilizar um ou o outro separadamente antes de combiná-los de novo. 7) Depois da exposição inicial dos temas, tanto o tema principal ou o contra- sujeito pode ser finalizado antes. 8) Todos os sujeitos que serão combinados devem ser testados em contraponto duplo antes de começar a composição da fuga (...) Além disso, os sujeitos devem ser examinados separadamente como em fugas simples (...) Finalmente, deve-se investigar se cada sujeito possibilita imitações por aumentação ou diminuição, em imitação por ritmo contrário, imitação interrompida, ou em imitação em diversos movimentos (...) 9) A combinação de diversos temas seguem dois padrões gerais: a) Um tema é desenvolvido por um tempo, como em uma fuga simples, e uma cadência adequada à entrada do segundo tema é formada. (...) Então o segundo tema é desenvolvido com vária respostas e tonalidades. Finalmente os dois temas são introduzidos inesperadamente em sucessão imediata (...) Muitas fugas de Battiferri e o jovem Muffat são escritas nesse estilo. (...) b) Todos os temas devem ser expostos simultaneamente, sem exposições distintas para cada um deles. i) Não é necessário esperar que o primeiro sujeito esteja completo na voz de abertura; o segundo sujeito pode entrar mais cedo. Dessa forma estão escritas a maioria das fugas duplas de Haendel. ii) O segundo tema pode ser introduzido com a entrada da segunda voz, assim que a primeira tiver completado o primeiro tema. iii) A primeira voz pode começar o segundo tema assim que encerrar o primeiro tema, enquanto a segunda voz responde o primeiro tema. Essa introdução do segundo tema deve, por regra, iniciar após uma pequena pausa, assim sendo a diferença entre os dois temas é claramente perceptível. Esse estilo é seguido em muitas fugas duplas de Kuhnau e J. S. Bach” (Marpurg in MANN, 1987: p. 191 - 192)12 12 Do original: “2) For the construction of a double fugue it is the best to have the number of voices exceed the number of themes by one. Not only does this provision allow the use of more intricate forms of imitation and a more adequate treatment of each theme but also it will make it easier to let one of the voices rest and resume the theme with a fresh entrance (…) 3) The themes do not always have to be used in their entirety. 4) The themes should not end together. 5) To prevent the themes of a double fugue from being confused with each other they should be distinguished in the first draft by figures. 6) It is not necessary that theme and countersubject always accompany each other (…) It will often be possible to treat one or the other separately before they are combined again. 7) After the initial exposition of the themes, either the principal theme or the countersubject may be resumed first. 8) All the subjects which are to be combined should be tried in a double counterpoint before the composition of the fugue is begun (…) Besides, the subjects should be examined separately as is done in single fugues (…) Finally, one should investigate whether these 34 O primeiro, segundo e oitavo tópicos discutem a preparação de uma fuga dupla antes do processo de composição propriamente dito, referindo-se à diferenciação, qualidade e possibilidades contrapontísticas e de desenvolvimento de cada tema e o número de vozes recomendado para cada fuga, em relação ao número de temas. O quinto tópico indica uma preocupação com a compreensão da fuga, ainda no processo da composição, evitando que os temas possam ser confundidos ou despercebidos, com a marcação de figuras. O terceiro, quarto e sexto referem-se à exposição e desenvolvimento da fuga, demonstrando diferentes formas de tratar os temas simultaneamente e isoladamente. O nono e último tópico, explica duas possibilidades distintas de se proceder na construção da exposição de uma fuga dupla. A primeira, onde os temas são apresentados isoladamente, também é demonstrada em outros tratados, como de Rejcha e Albrechtsberger. A descrição da segunda forma é subdividida em três partes, a primeira delas é a que mais se assemelha com a forma fugal encontrada mais comumente em Portugal e Brasil e também descrita nos demais tratados estudados. A terceira parte é dificilmente encontrada em tratados, referindo-se a fugas duplas, e confunde-se com a descrição moderna de sujeito e contra- sujeito de uma fuga simples, sendo o único diferencial o pequeno tempo de pausa antes da entrada do segundo tema. Marpurg claramente considera o contra-sujeito como funcionando como um segundo tema, ao contrario da percepção de Cherubini, que descreve os segundos temas, independentemente da forma da exposição como contra-sujeitos. Marpurg segue o tratado com alguns exemplos musicais referentes às regras descritas anteriormente. São cinco exemplos, sendo os dois primeiros de Telemann, o terceiro e quinto de J, S. Bach e o quarto de J. C. Pepusch No capítulo seguinte, sobre “contra-partes” (partes livres) na fuga, Marpurg separa um breve texto sobre a fuga dupla, especificamente aquela onde os dois temas iniciam subjects will lend themselves to imitation in augmentation or diminution, to imitation in contrary rhythm, to interrupted imitation, or to imitation in various motions (…) 9) The combination of several themes follows either of two general patterns: a) One theme is developed at some length, as in a simple fugue, and a cadence suitable for the entrance of the second is formed (…) Then the second theme is developed in various answers and keys. Finally the two themes are unexpectedly introduced in immediate succession (…) Many double fugues by Battiferri and the younger Muffat are written in this style (…) b) All subjects may be introduced together, without separate expositions for any of them. i) One need not wait until the first subject is completed in the opening voice; the second subject may enter earlier. In this manner are written most of Handel’s double fugues. ii) The second theme may be introduced with the entrance of the second voice, as soon as the first voice has completed the first theme. iii) The first voice may take up the second theme as soon as it has completed the first theme, while the second voice answers the first theme. This introduction of the second theme should, as a rule, follow after a short rest, so that the difference between the two themes is clearly perceptible. This style is followed in many double fugues by Kuhnau and J. S. Bach.” (Marpurg in MANN, 1987: p. 191-192) (N. do Autor: tradução própria) 35 simultaneamente, referindo-se ao fato que não existe nesse caso dificuldade para construir uma “contra-parte” já que um tema serve de “contra-parte” para o outro. (Marpurg in MANN, 1987: p. 201) O texto é encerrado com a análise integral de um exemplo musical de uma fuga tripla escrita por J. S. Bach, para quatro vozes e instrumentos com o texto Kyrie eleison. 2.1.2 L’Esemplare, o sai saggio fondamentale pratico di contrappunto fugato, G. Martini. O Padre Giambattista Martini nasceu em Bolonha no ano de 1706 e faleceu na mesma cidade em 1784. Foi um dos principais teóricos italianos de seu período, ficou famoso como professor e teve como alunos Mozart, Jommelli, e J. C. Bach, entre outros, Seus principais trabalhos didáticos publicados são os dois volumes do “L’Esemplare, o sai saggio fondamentale pratico di contrappunto”, sendo o primeiro publicado em 1774, sobre contraponto sobre cantus firmus e o segundo, publicado em 1776, sobre contraponto fugado. Além dos tratados também existem uma série de cartas endereçadas e escritas pelo Padre Martini, publicadas no livro de mesmo título (L’Esemplare, o sai saggio fondamentale pratico di contrappunto) de Elisabetta Pasquini, em 2004, sobre a obra de Martini. O tratado de contraponto fugado do Padre Giambattista Martini não se refere, na sua primeira parte, onde trata dos preceitos teóricos das fugas, à fuga dupla. É somente com três exemplos musicais que o Padre Martini descreve essa forma. O primeiro exemplo a três vozes, escrito por Cristoforo Caresana, apresenta dois temas sendo introduzidos simultaneamente, com uma pequena pausa antes da entrada do segundo tema. O primeiro tema é formado por notas longas sobre uma escala ascendente e descendente. 36 Figura 1 O próprio Padre Martini refere-se a ela como sendo uma fuga com dois sujeitos. O exemplo sexto a quatro vozes, composto por Antonio Pacchioni Modanese, também é considerado como uma fuga dupla, onde existe uma pausa maior antes da entrada do segundo tema, praticamente simultaneamente à resposta do primeiro tema apresentado pelo soprano. 37 Figura 2 Outro exemplo de fuga dupla proposto pelo Padre Martini é o caso do número nove a quatro vozes, composto por Orazio Benevoli, onde como o anterior os temas são propostos simultaneamente, sendo o primeiro no contralto e o segundo no soprano, o primeiro tema com texto “Sicut erat in principio” e o segundo “et nunc et semper”. A fragmentação do texto, como será demonstrado adiante, é mencionada por Eslava ao tratar de fugas com três sujeitos. 38 Nesse exemplo a resposta inicia antes da conclusão dos temas expostos. Esse procedimento também poderá ser visto no Te Deum de Álvares Pinto. Figura 3 No caso do exemplo acima a resposta do primeiro tema é realizada na mesma tonalidade do início, mi maior, ao invés da resposta do segundo, que antecede a do primeiro, que foi realizada três compassos antes em lá maior. 39 Pelos exemplos demonstrados no tratado de Padre Martini, é possível perceber a forma mais livre como o autor trata a exposição da fuga dupla, as únicas características comuns dos exemplos é a apresentação simultânea dos temas e a distinção entre os temas por diferenciação rítmica, melódica, e textual, deixando claros os temas propostos. Sobre o Padre Martini é importante mencionar uma das cartas endereçadas a ele, escrita por Francesco Capalti, presente hoje na Biblioteca Del Cívico Museo Bibliografico Musicale de Bolonha. O autor da carta pede a opinião do Padre Martini sobre uma fuga composta por ele. Trata-se, no caso, de uma fuga dupla similar às encontradas em Portugal e Brasil, onde os dois temas são apresentados simultaneamente e com suas respectivas respostas na tonalidade da dominante. 2.1.3. Novo Tratado de Música, Métrica e Rítmica, F. I. Solano. Francisco Ignacio Solano nasceu em Coimbra em 1720, e faleceu em Lisboa no ano de 1800. Foi um dos principais teóricos portugueses do século XVIII. Seus três principais tratados publicados foram “Nova instrucção musical, ou Theorica pratica” em 1764, “Novo tratado de musica métrica, e rythmica” em 1779 e “Exame instructivo sobre a musica multiforme, métrica e rythmica” em 1790. O “Novo tratado de musica métrica e rythmica” foi publicado em Lisboa pela Regia Officina Typografica, e dedica-se especialmente à arte de acompanhar ao cravo ou órgão. O tratado é dividido em 46 demonstrações, sendo as de números 39 e 40 referentes às distintas espécies de fugas. O tratado de Solano não se refere especificamente à fuga dupla, apesar disso, na demonstração 39, onde descreve a diferença entre os diversos tipos de fuga (Real, de Imitação regular ou irregular , do Tom), Solano apresenta dois exemplos de exposição de fugas reais com dois motivos. Nos exemplos é possível verificar a principal característica da forma, onde os motivos iniciam-se juntos. 40 Exemplo 1 Solano também menciona na introdução da demonstração 39 como as fugas poderiam ser utilizadas por organistas após acompanhamento de uma parte, mostrando como a improvisação de fugas fazia parte da rotina dos instrumentistas, incluindo a fuga dupla, mesmo utilizando breves exemplos: “A este sucede muitas vezes, tangendo de capricho, ou acabando de acompanhar qualquer Papel, ser preciso valer-se da sua própria Fantasia. E que deve então fazer? Seguir algum Passo. Ou expresso na obra já executada, ou deduzido da mesma? Certamente. Ele há de idear Intento, ou Motivo, sobre o qual trabalhe uma Fuga com primor, gosto, e ciência.” (SOLANO, 1779: p. 224) José Joaquim dos Santos, no exercício número 27 da segunda parte de seu livro de “Solfejos para Acompanhar”, também apresenta o que provavelmente é uma fuga dupla reduzida para somente à parte de contínuo, ficando a cargo do intérprete resolver as partes superiores, normalmente dobradas pelo contínuo, quando não acompanhadas das vozes graves, progressivamente até a entrada do baixo. Figura 4 41 Outros exemplos de solfejos para acompanhamento sobre fugas também podem ser encontrados no “Muzica Universale, Armonico, Pratica Dettata dall’istinto, e dalla Natura” de Andrea Basili (1705 – 1777), composto para instrumentos de tecla, encontrado em forma de manuscrito na Biblioteca Nacional de Lisboa. A obra é formada por 24 partes, uma para cada tonalidade, e cada uma contendo um exercício de solfejo para acompanhar, uma fuga e uma composição livre. As doze primeiras fugas são apresentadas como exercícios de solfejo e entre as doze últimas encontram-se duas fugas duplas. 2.1.4. Collected Writings on Through-Bass, Harmony, and Composition, for Self- Instruction, J. G. Albrechtsberger Nascido em Klosterneuburgo em 1736 e falecido em Viena em 1809, Albrechtsberger além de ser considerado um dos principais organistas e compositores de seu tempo, foi um importante teórico e professor. Entre seus alunos figura Ludwig van Beethoven (1770 – 1827). Seu tratado de harmonia, baixo figurado e composição foi primeiramente publicado, após sua morte, em 1826 em Viena. As primeiras traduções para o francês e inglês seguiram poucos anos após, em 1830 e 1834 respectivamente. No segundo volume, intitulado “Guia para a Composição”, Albrechtsberger trata nos dois últimos capítulos das fugas (capítulos 40 e 41), mas é no terceiro volume, de mesmo título, no capítulo 46, que trata especificamente das fugas duplas. Segundo Albrechtsberger, fugas com dois sujeitos, mesmo se forem em três ou mais partes, dificilmente são distinguidas de fugas simples com duplo contraponto na oitava. A maioria das fugas duplas possui dois tipos de contra-sujeitos, o primeiro utilizado em contraponto na décima e o segundo na oitava, e as fugas devem seguir as mesmas regras de contraponto das fugas simples, de outra forma os sujeitos se tornariam incapazes de transposição (ALBRECHTSBERGER, 1885: p. 213). Albrechtsberger é mais detalhista no que se refere a fugas com três ou mais sujeitos, que possuem qualidades distintas das fugas com somente dois temas, descrevendo quatro regras básicas para sua composição: “(...) Primeiro – deve-se adicionar uma ou mais partes a mais que o número de sujeitos, para que alguma parte possa ocasionalmente descansar. Segundo 42 – deve-se utilizar, logicamente, o contraponto na oitava. Terceiro – deve-se tomar cuidado para que os sujeitos não sejam todos compostos com notas de duração equivalente, e que eles não comecem, mas terminem, simultaneamente. Quarto – Empregar triplo contraponto na oitava para uma fuga dupla com três sujeitos, e quádruplo contraponto na oitava para uma fuga dupla com quatro sujeitos.” (ALBRECHTSBERGER, 1885: p. 213)13 Essas quatro regras de Albrechtsberger se assemelham as já descritas por Marpurg, com exceção da última que trata do tipo de contraponto a ser aplicado em fugas com três ou mais sujeitos. Outro ponto de semelhança entre os dois teóricos é o fato de ambos utilizarem o termo fuga dupla mesmo para fugas com três ou mais temas. A terceira regra descreve a exposição onde os temas iniciam-se juntos com uma pequena pausa entre as entradas de cada um. Quanto à qualidade distinta de cada tema, Albrechtsberger retorna a tratar ao final do capítulo: “(...) mas os sujeitos devem ser diferencialmente caracterizados por valores de duração distintos e peculiaridades em suas melodias, de forma que a entrada de cada seja reconhecida” (ALBRECHTSBERGER, 1885: p. 219)14 Referente à quarta regra, Albrechtsberger também descreve outras quatro regras que devem ser obedecidas durante a criação dos temas, sendo referentes aos intervalos utilizados e suas possibilidades de inversão: “(...) Regra 1ª - não se deve introduzir suspensão da nona [exemplo 2]. Regra 2ª - duas partes não devem formar quartas sucessivas, o que produziria quintas na transposição [exemplo 3]. Regra 3ª - Deve-se introduzir as quintas somente por movimento obliquo ou a partir da suspensão da sexta [exemplo 4]. Regra 4ª - deve-se introduzir a sexta acompanhada da fundamental e oitava ou acompanhada e a terça do acorde por movimento obliquo. Negligenciando a primeira regra tanto a transposição quanto o contraponto serão falhos em fugas com três sujeitos; uma inversão resultaria em acorde de sétima e segunda resolvendo em um de oitava e terça, e a outra em acorde de sexta e sétima resolvendo em um de sexta. A segunda regra é clara, mas admite uma exceção; quando a segunda quarta é aumentada, o sujeito pode mantê-la, já que em uma transposição o acorde diminuto seguiria a quinta perfeita (...) Negligenciando a terceira regra é produzido o acorde de terça e 13 Do original: “(...) Firstly – to add one or two parts more than the number of subjects, in order that some of the parts may occasionally rest. Secondly – to use, as a matter of course, the counterpoint in the octave. Thirdly – to take care that the subjects be not all composed of notes equivalent in value; also that they do not commence, though they must all end, simultaneously. Fourthly – to employ triple counterpoint ad octavam for a double fugue with three subjects, and quadruple counterpoint ad octavam for a double fugue with four subjects.” (ALBRECHTSBERGER, 1885: p. 213) N. do Autor: tradução própria). 14 Do original: “(...) but the subjects must be distinctly characterized by the different value of their notes and the peculiarity of their melody, that the repercussion of each may be recognized.” (ALBRECHTSBERGER, 1885: p. 219) (N. do Autor: tradução própria). 43 sexta que é permitido, mas também o de quarta e sexta, que é proibido em estilo estrito quando não preparado (...) Negligenciando a quarta regra, a inversão pode produzir o acorde de terça e quinta, mas também o de quarta e sexta (...)” (ALBRECHTSBERGER, 1885: p. 213-214)15 Exemplo 2 Exemplo 3 Exemplo 4 15 Do original: “(...) Rule 1st – is, to introduce no suspension of the ninth. Rule 2nd – is, that two parts should not form two successive perfect fourths, which would produce fifths in the transposition. Rule 3rd – is, only to introduce the fifth in oblique movement, or suspended by the sixth. Rule 4th – is, only to introduce the sixth, accompanied by 8/8 or 3/1, in four parts, in oblique movement. By neglecting the first rule, both transpositions or the counterpoint would be faulty in fugues with three subjects; one inversion would give 2/7 3/8, and the other 7/6 6//. The second rule is clear, but admits an exception: when the second fourth is augmented, the subject may retain it, as in one transposition the chord of the diminished will follow the perfect fifth (…) By neglecting the third rule, we produce the permitted chord, 6/3, but also the chord of 6/4, which is forbidden in strict style when unprepared (…) By neglecting the fourth rule, the inversion produce once the perfect chord. 5/3, but also the chord, 6/4 (…) (ALBRECHTSBERGER, 1885: p. 213-214) (N. do Autor: tradução própria). 44 As regras descritas acima mostram uma preocupação maior de Albrechtsberger, em relação aos demais teóricos, em assinalar algumas particularidades contrapontísticas entre os temas e suas possíveis combinações de inversões. Antes de exemplificar musicalmente as fugas duplas, Albrechtsberger demonstra com exemplos as combinações mais usuais de inversões entre os sujeitos. Os exercícios de transposições propostos por Albrechtsberger também são previstos por Marpurg no oitavo tópico descrito anteriormente: “(...) As três seguintes inversões devem ser praticadas primeiramente, como elas são as principais transposições de uma fuga dupla com três sujeitos: No 1. No 2. No 3. Parte superior Parte inferior Parte intermediária Parte intermediária Parte superior Parte inferior Parte inferior Parte intermediária Parte superior Esses três principais sujeitos podem suceder da forma que mais agradar ao compositor, e os sujeitos podem entrar de acordo com No 1, No 2, No 3; resumindo, cada parte pode ser a primeira, segunda ou terceira (...)” (ALBRECHTSBERGER, 1885: p. 214)16 Cada transposição também tem a sua própria transposição subordinada, onde um dos temas, denominado por Albrechtsberger como parte fundamental estacionária, se mantém na mesma voz enquanto a transposição acontece entre os dois temas restantes, mantendo os intervalos da transposição principal. Para Albrechtsberger não é necessário utilizar todas as possíveis transposições subordinadas em uma fuga dupla (ALBRECHTSBERGER, 1885: p. 214-215). A partir de uma fuga dupla com três temas, o autor exemplifica as três principais transposições e suas transposições subordinadas (exemplo 5 a 10). 16 Do original: “(...) The three following inversions should be essayed first, as they ere the principal transpositions of a double fugue with three subjects: No. 1. No. 2. No. 3. Upper part. Lowest part. Middle part. Middle part. Upper part. Lowest part. Lowest part. Middle part. Upper part. These three principal subjects may succeed in the order best pleasing to the composer, and the subjects may enter, according to No. 1, No. 2, or No. 3; in short, each part may be the first, second, or third (…) (ALBRECHTSBERGER, 1885: p. 214) (N. do Autor: tradução própria) 45 Exemplo 5 Exemplo 6 Exemplo 7 Exemplo 8 46 Exemplo 9 Exemplo 10 Ao final do capítulo, Albrechtsberger propõe a possibilidade dos diferentes temas de uma fuga serem apresentados separadamente, como em uma fuga simples, para ao final da fuga serem expostos simultaneamente. Exemplificando essa forma de fuga dupla, Albrechtsberger analisa de forma discursiva uma fuga dupla com três sujeitos em sol menor de Mattheson. Segundo Albrechtsberger, quando uma fuga vocal é acompanhada por uma orquestra, os instrumentos devem tocar em uníssono com as vozes ou terem um contra-sujeito próprio, nesses casos, normalmente são formadas fugas duplas com dois ou mais temas (ALBRECHTSBERGER, 1885: p. 219). É possível verificar no repertório a utilização dos instrumentos para a introdução dos segundos temas nas fugas dos Stabat Mater de José Joaquim dos Santos e. Pergolesi. 47 2.2. Século XIX 2.2.1. Tratado de Contrapunto Fugado, A. Moriggi Do tratado de contraponto fugado de Angel Moriggi apenas conhecemos a tradução espanhola de 1831, realizada pelo Conde de Moretti e publicada em Madrid pela Imprenta de Sancha. Possivelmente a publicação original foi organizada por Bonifacio Asioli (1769 – 1832) e publicada entre a segunda e terceira décadas do século XIX, após Asioli ser nomeado professor e primeiro diretor do Real Conservatório de Música de Milão, fundado em 1808. Trata-se de um breve tratado de 30 páginas, dedicado aos alunos do Real e Imperial Conservatório de Milão, dividido em treze artigos e com os exemplos musicais em forma de apêndice, totalizando quarenta e sete exemplos. O oitavo artigo trata da fuga com vários temas (intentos) ou dupla. Para Moriggi, essa fuga é chamada de dupla não somente por ser composta de vários temas, mas também por sempre existir algum contraponto duplo (MORIGGI, 1831: p. 18). Para Moriggi existem duas formas de se realizar uma exposição em uma fuga dupla. Na primeira, a voz que realizaria a resposta do primeiro sujeito propõe um segundo em seu lugar. E na segunda maneira, a mesma voz que propõe o primeiro sujeito, após finalizá-lo tem um pequeno momento de pausa e inicia o segundo sujeito em contraponto duplo sobre a resposta do primeiro (MORIGGI, 1831: p. 18-19). A segunda forma de exposição também foi previamente descrita por Marpurg, como já foi visto no início do capítulo, na terceira forma de expor os temas simultaneamente. Moriggi demonstra uma predileção pela primeira forma por ser mais clara, caracterizando melhor cada tema: “(...) porque os sujeitos devem estar claros e inteligíveis. Para que assim seja é preciso que o contra-sujeito (que deve servir como segundo ou terceiro sujeito) entre depois de uma pausa, e dessa forma se faz mais perceptível ao ouvido (...) Quando se deseja compor uma fuga com dois sujeitos, sempre será melhor adotar para o segundo [sujeito] o contra-sujeito que faz contraponto com a proposta ou sujeito primitivo (...) porque o sujeito que entra antes da resposta se distingue mais claramente e se compreende com facilidade (...)” (MORIGGI, 1831: p. 19-20)17 17 Do original: “(...) porque los intentos deben estar claros é inteligibles. Para que asi sean es preciso que el contra-intento (que debe servir como segundo ó tercer intento) entre después de una espera, y por este 48 O autor critica composições anteriores com diversos temas por serem confusas e pelos temas se confundirem em meio ao contraponto, sendo impossível de distingui-los de uma parte livre composta para preenchimento harmônico, ressaltando que é melhor uma fuga simples bem feita que uma com vários sujeitos e confusa: “(...) se diz como em um refrão: mais vale e merece apreço uma fuga com um só sujeito clara e bem feita, que uma com vários sujeitos e cheia de confusão.” (MORIGGI, 1831: p. 19)18 Entre os exemplos mu