UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA JULIO DE MESQUITA FILHO FACULDADE DE CIÊNCIAS E LETRAS ANA PAULA SARAIVA DE FREITAS A PRESENÇA FEMININA NO CANGAÇO: PRÁTICAS E REPRESENTAÇÕES (1930-1940). ASSIS 2005 ii ANA PAULA SARAIVA DE FREITAS A PRESENÇA FEMININA NO CANGAÇO: PRÁTICAS E REPRESENTAÇÕES (1930-1940). Dissertação apresentada a Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP, para a obtenção do título de Mestre em História (Área de conhecimento: História e Sociedade) Orientadora: Profª Dra. Zélia Lopes da Silva ASSIS 2005 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) F936p Freitas, Ana Paula Saraiva de A presença feminina no cangaço : práticas e representações (1930-1940) / Ana Paula Saraiva de Freitas . Assis, 2005. 242 f. : il. Orientador : Zélia Lopes da Silva. Dissertação(Mestrado)- Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho . Faculdade de Ciências e Letras de Assis, 2005. Bibliografia : f. 1. Mulher no Cangaço. 2. Mulher no Cangaço - Década de 1930 a 1940. 3. Mulher Sertaneja. 4. Mulher no Cangaço - Vivências interpessoais. 5. Mulher no Cangaço - Vestimentas. 6. Banditismo Rural. 7 Mulher Cangaceira. I. Silva, Zélia Lopes da. II. Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Faculdade de Ciências e Letras de Assis. III. Título. CDU 396:301.17(091) iii ANA PAULA SARAIVA DE FREITAS A PRESENÇA FEMININA NO CANGAÇO: PRÁTICAS E REPRESENTAÇÕES (1930-1940) Dissertação apresentada a Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP, para a obtenção do título de Mestre em História (Área de conhecimento: História e Sociedade) Orientadora: Profª Dra. Zélia Lopes da Silva DATA DE APROVAÇÃO: BANCA EXAMINADORA ______________________________________________________ Presidente: Profª Dra. Zélia Lopes da Silva – UNESP/ Assis _______________________________________________________ Dra. Tania Regina de Luca - UNESP/Assis _______________________________________________________ Dra. Janete Leiko Tanno – IESPP/Presidente Prudente _______________________________________________________ iv DADOS CURRICULARES ANA PAULA SARAIVA DE FREITAS DATA DE NASCIMENTO: 01/05/1978 FILIAÇÃO: Emilia Saraiva de Freitas Mário Leonardo de Freitas 1999-2002 Curso de Graduação em História Faculdade de Ciências e Letras – UNESP/Assis 2003-2005 Curso de Mestrado em História Faculdade de Ciências e Letras – UNESP/Assis v DEDICATÓRIA Dedico este trabalho a Marcos Nardelli, pelo amor, pela cumplicidade e paciência, sentimentos sem os quais eu não teria conseguido chegar até o fim. Com amor. vi AGRADECIMENTOS Agradeço aos meus pais Mário Leonardo de Freitas e Emília Saraiva de Freitas, que sempre torceram por mim, as minhas irmãs Michele e Maria Carolina, as minhas adoráveis avós, em especial a Maria Martins de Freitas. Agradeço ao meu esposo Marcos Nardelli, por acreditar no meu trabalho e por participar das mais diferentes etapas de minha vida, do cursinho à Pós-Graduação, disposto à apoiar-me incondicionalmente, com amor e muita paciência. Sou grata por seus conselhos, pelas palavras de incentivo e até mesmo pelas críticas. Manifesto minha gratidão à professora e amiga Zélia Lopes da Silva, presente nos diversos momentos de minha vida acadêmica e pessoal. Devo a ela a realização deste trabalho e todos os méritos que ele possa ter. Sou grata por sua orientação ao longo de toda a graduação, desde o projeto para Bolsa Bae até a Iniciação Científica/FAPESP, etapas fundamentais de minha formação. Na Pós-Graduação lá está Zélia, me orientando, argüindo, apontando as falhas e indicando caminhos. A ela minha admiração enquanto pessoa e profissional, será sempre meu ponto de referência. No difícil percurso da pesquisa e da elaboração desta dissertação contei também com o apoio de amigos e instituições. Agradeço aos colegas e amigos da graduação e da pós- graduação, que torceram por mim, em especial às amigas Barbara Fernandes Lopes, Sheila do Nascimento Garcia e Eliane P. Fonseca. Sou grata ao casal de amigos Rogério e Adriana pela amizade, pelo apoio e hospedagem em Recife/PE. vii Agradeço ao CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico pelo apoio financeiro, sem o qual seria impossível realizar as pesquisas nos Arquivos e Instituições do Estado de Pernambuco. Meus sinceros agradecimentos aos funcionários das diferentes Instituições pesquisadas, que abriram as portas dos acervos, auxiliram a pesquisa, viabilizaram materiais, e reproduziram documentos, enfim, colaboraram de alguma forma com esse trabalho. No Estado de Pernambuco pesquisei os diversos acervos da FUNDAJ – Fundação Joaquim Nabuco – Recife/PE (agradeço em especial aos funcionários da Iconografia e da Biblioteca); Arquivo Público do Estado – Recife/PE, UFPE - Universidade Federal de Pernambuco, (agradeço o apoio do Dr. Carlos Miranda, docente do Depto. de Graduação e Pós-Graduação em História e à Carmem, da Biblioteca de Teses e Dissertações do Depto. de História da UFPE, que viabilizaram o acesso aos acervos no período em que a Universidade encontrava-se em greve), Museu do Cangaço em Triunfo-PE (recebi apoio da diretora Zilma, e da Sra. Diana Rodrigues) e o Centro Cultural de Serra Talhada-PE. No Rio de Janeiro, pesquisei os diferentes acervos da Biblioteca Nacional e da Academia Brasileira de Literatura de Cordel (sou grata ao Sr. Gonçalo Ferreira da Silva, cordelista e presidente da instituição). Em São Paulo, consultei os acervos do Arquivo do Estado, da Biblioteca Mário de Andrade e do Centro Cultural de São Paulo (recebi apoio da bibliotecária Sebastiana Lopes da Silva), aproveito para agradecer mais uma vez a todos os funcionários destas Instituições. No interior de São Paulo, realizei grande parte da pesquisa no CEDAP - Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa, localizado no campus da UNESP de Assis. Nele pude acompanhar os debates sobre o cangaço a partir da leitura dos periódicos O Estado de S. Paulo e Correio da Manhã, microfilmados e disponibilizados aos pesquisadores pelo centro. Agradeço a todos funcionários do Cedap pela dedicação e seriedade com que tratam a viii pesquisa e os pesquisadores, em especial à Marlene de Souza Gasque, Isabel Mano Neme e Camila Matheus, sempre prontas à ajudar. Aos professores da Banca de Qualificação Tania Regina de Luca e Janete Leiko Tanno pelas leituras e contribuições no melhoramento deste trabalho. Aos professores Yara Aun Khoury e José Carlos Barreiro, coordenadores do projeto PROCAD/CAPES, realizado na UNESP/Assis em 2002, cujos estudos e discussões sobre História Oral foram significativos para o encaminhamento de minha pesquisa Agradeço também, a Sra. Ilda Ribeiro de Souza (Sila) pela entrevista concedida em janeiro de 2001, no Centro Cultural de Rio Claro/SP, na qual narrou alguns momentos de sua experiência no cangaço. Sou grata à Marilene Lucena pela elaboração da ficha catalográfica e a Andrea Monzón pela revisão do texto e elaboração do Abstract. Por último, gostaria de agradecer à Sra. Vera Ferreira, por permitir a reprodução e utilização das imagens de seus avós – Lampião e Maria Bonita – e por compreender a importância desse material para a elaboração dessa dissertação. ix SUMÁRIO LISTA DE FOTOGRAFIAS xi LISTA DE QUADROS xii LISTA DE MAPAS xii LISTA DE APÊNDICES xii RESUMO xiii ABSTRACT xiv INTRODUÇÃO 15 CAPÍTULO 1. O CANGAÇO NA PERCEPÇÃO DA IMPRENSA 53 1.1. O ESTADO DE S. PAULO 54 1.2. CORREIO DA MANHÃ 72 1.3. LITERATURA DE CORDEL 105 CAPÍTULO 2. PRÁTICAS E REPRESENTAÇÕES DO FEMININO 117 NO CANGACEIRISMO BRASILEIRO – 1930-1940 x 2.1. A INCORPORAÇÃO FEMININA NO CANGAÇO: ABORDAGENS 117 SOBRE O ASSUNTO 2.2. REPRESENTAÇÕES DO FEMININO NA IMPRENSA 125 2.3. CANGACEIRAS: QUEM ERAM ESTAS MULHERES? 133 CAPÍTULO 3. CANGACEIROS E VOLANTES: O USO COMUM 190 DA VIOLÊNCIA COMO AFIRMAÇÃO DE PODER CONSIDERAÇÕES FINAIS 218 APÊNDICE - A 222 APÊNDICE – B 225 BIBLIOGRAFIA 234 FONTES 240 ARQUIVOS PESQUISADOS 242 xi LISTA DE FOTOGRAFIAS Foto 1 – Maria Bonita em Vestido de batalha – 1936 145 Foto 2 - .Maria Bonita em Vestido Soiré – 1936 146 Foto 3 - .Maria Bonita com os cães - Guarani e Ligeiro 148 Foto 4 - .Maria Bonita e Lampião com os cães - Guarani e Ligeiro – 1936 149 Foto 5 - Neném, Maria Bonita e Lampião 150 Foto 6 - Dadá grávida 162 Foto 7 – Dadá e Corisco 163 Foto 8 - Sila nos primeiros dias do cangaço 171 Foto 9 – Sila e Dadá – 1988 171 Foto 10 - Sila – 2001 171 Foto 11 – Moça e Inacinha – 1936 181 Foto 12 – Neném –1936 185 Foto 13 – Neném, Luiz Pedro e Maria Bonita – 1936 186 Foto 14 – Cabeças dos cangaceiros mortos em Angicos-SE – 1938 209 Foto 15 – Cabeças dos cangaceiros Mariano, Pai Véio, Zepellim – 1936 211 xii LISTA DE QUADROS Quadro 1 - Mulheres que integravam o cangaço 122 Quadro 2 – Cangaceiras presas no período de 1930-1940 205 Quadro 3 – Cangaceiras mortas no período de 1930-1940 212 LISTA DE MAPA Mapa do percurso das cangaceiras na década de 30 124 LISTA DE APÊNDICES APÊNDICE - A 222 Participação feminina no cangaço, matérias de O Estado de S. Paulo, 1930-1940. APÊNDICE - B 225 Participação feminina no cangaço, matérias do Correio da Manhã, 1930-1940. xiii RESUMO Esta dissertação tem por objetivo discutir as práticas e representações femininas no interior do cangaço, no período de 1930/1940, década que inaugura a incorporação de mulheres nos bandos. Considerando-se as formas de inserção (voluntária e involuntária), procuramos compreender e discutir os papéis atribuídos as cangaceiras e sua condição específica de “ser mulher” num espaço permeado pela violência. Neste sentido, será relevante considerar o desempenho com armas de fogo e a atuação de cada uma delas nos embates violentos em que estiveram envolvidas. E ainda, a preocupação com o embelezamento do corpo, o apreço por jóias e apetrechos diversos, identificados sobretudo, na composição de suas vestimentas que, traduzem um determinado perfil de mulher. Tomando por base este tipo de problemática, uma das preocupações desta pesquisa é analisar as vivências interpessoais no interior dos grupos a partir da bibliografia especializada, de obras de memorialistas que trabalharam o tema, e de outras fontes como: depoimentos orais, entrevistas, documentários, fotografias, imprensa e literatura de cordel. Palavras chaves: Cangaço, Cangaceira, Mulher Cangaceira, Mulher Sertaneja, Banditismo Rural. xiv ABSTRACT This dissertation has the aim to discuss the women’s practices and representations in the cangaço from 1930 to 1940, time that started their incorporation in the bands. Considering the ways of joining them (volunteer or not), we searched the comprehension and discussion of the roles given to the cangaceiras and their specific condition of “being a woman” in a space characterized by the violence. In this sense, it will be relevant to consider the performance with guns and the deeds of each of them in the violent fights in which they were involved. Also, the worry about the beauty of the body, the liking for jewels and several accessories identified, specially, in the combination of their clothing, which translates a determined profile of woman. Basing ourselves on this kind of problem, one of the concerns of this research is to analyze the interpersonal experiences inside the groups from specialized bibliography of memoir authors that worked on the topic and other sources, such as: oral testimonies, interviews, documentaries, photos, press and cordel literature. Key words: cangaço, cangaceira, cangaceira woman, sertaneja woman, rural banditry. 15 Introdução Discorrer sobre o cangaço não é uma tarefa fácil, pois se constitui num fenômeno complexo que divide a opinião dos vários estudiosos que se debruçaram sobre o tema. Este nos remete à algumas questões fundamentais de definição e significação que implicam na compreensão de sua emergência. Ao refletir sobre o cangaço imediatamente nos vem à mente três palavras: Lampião, banditismo e Nordeste brasileiro. Ao indagar as pessoas sobre o tema em questão, a resposta recorrente é a associação de cangaço à idéia de “banditismo nordestino”. Este se caracteriza como um fenômeno regional, no qual os indivíduos organizados em grupos praticavam uma série de crimes: roubos, assassinatos, violações, enfim, espalhavam o medo e o terror entre os sertanejos e usavam a força para subjugar o outro. Na etimologia da palavra, cangaceiro se configura em “bandido do sertão nordestino, que anda sempre fortemente armado”, ou seja, um “bandoleiro”1. O termo cangaço caracteriza o “gênero de vida dos cangaceiros”, ou seja, destes indivíduos que vivem da prática do crime. Esta denominação o caracteriza como um fenômeno regional, específico dos sertões nordestinos e compõem a percepção do senso comum em relação ao tema. Esta definição também é debatida pela socióloga Maria Isaura Pereira de Queiroz2, que ao problematizar o cangaço enfatiza que ele é perfeitamente delimitado no tempo (de fins do século XIX a 1940) e no espaço (interior do sertão nordestino). Deixa claro que esta delimitação cabe ao “cangaço independente” existente apenas no Nordeste brasileiro. 1 Conforme definição do Dicionário Aurélio Buarque de Holanda Ferreira - Básico da Língua Portuguesa/Folha de S. Paulo, São Paulo: 1995, p. 123. 2 QUEIROZ, Maria Isaura P. de. Os cangaceiros, São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1977 e História do Cangaço. São Paulo: Global, 1986. 16 Maria Isaura P. de Queiroz em sua obra História do Cangaço3, discute a diferença existente entre o cangaço subordinado e o cangaço independente. No primeiro caso, os cangaceiros eram sustentados por chefes políticos ou grandes fazendeiros, que em troca da proteção oferecida por aqueles homens, pagavam e forneciam-lhes domicílio. De acordo com Queiroz, este tipo de banditismo existiu em todo o país, e ainda existe na atualidade. No segundo caso, o grupo era formado por homens armados, liderados por um chefe que se mantinha errante, isto é, sem domicílio fixo, vivendo de assaltos e saques. Não se ligavam efetivamente a um chefe político ou fazendeiro. Na concepção da socióloga, o termo “cangaço” é antigo, e foi empregado no século XIX para definir indivíduos que “andavam debaixo do cangaço” . Designava, particularmente, os que ostensivamente se apresentavam muito armados “de chapéu de couro, clavinotes, cartucheiras de pele de onça-pintada, longas facas enterçadas batendo nas coxas”, conforme descreveu o escritor cearense Gustavo Barroso.4 Os termos cangaço e cangaceiro eram empregados para definir os homens que viviam fortemente armados na região das caatingas áridas, que formavam o chamado “polígono das secas”, no interior de sete Estados brasileiros. Talvez isto explique a 3 A socióloga Maria Isaura P. de Queiroz salienta que há indícios da existência do cangaço independente no século XVIII, cujo principal expoente, teria sido o cangaceiro Cabeleira, imortalizado pela literatura no romance de Franklin Távora em 1876. No século XIX destaca-se João Calangro, de acordo com ela, a emergência desses bandos estava diretamente associada aos períodos críticos de seca, e se dissolviam quando a situação se normalizava. QUEIROZ, Maria Isaura P. de. Os Cangaceiros. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1977, p. 59-66. Em fins do século XIX cresce a prática do cangaço independente, cuja emergência não se vincula aos ciclos das secas, mas a vingança da honra. O cangaceiro Jesuíno Brilhante (Jesuíno Alves de Melo Calado) é um exemplo claro deste tipo de cangaço. Representa o típico bandido social, ou seja o “ladrão nobre” ou “Robin Hood” – conforme definição de Eric Hobsbawm. Outro cangaceiro deste período foi Antônio Silvino (Manoel Baptista de Moraes) que também ingressou no cangaço com o intuito de vingar uma afronta sofrida, ou seja, o assassinato de seu pai por inimigos políticos. Este cangaceiro também se enquadra na definição de bandido social. Foi preso em 1914, condenado a 32 anos de reclusão na Penitenciária de Recife, local em que cumpriu mais de 20 anos da pena em função do indulto recebido do presidente Getúlio Vargas em 1937. Silvino faleceu em 1944, aos 69 anos de idade. Sobre esse assunto consultar FERREIRA, Vera. De Virgolino a Lampião. São Paulo: Idéia Visual, 1999, p. 41. No início do século XX, destacam-se Sinhô Pereira (Sebastião Pereira da Silva) e Lampeão (Virgolino Ferreira da Silva), ambos se incorporaram ao cangaço com o desejo de vingança. O primeiro pelo assassinato de seu irmão, e o segundo pelo assassinato do pai. Vale destacar que esses cangaceiros inauguram uma nova fase do cangaço, destacando-se, sobretudo, por suas ações violentas e pela disseminação do terror. 4 QUEIROZ, Maria Isaura P. de. História do Cangaço. São Paulo: Global, 1986, p.15. 17 denominação aleatória de cangaceiro a todo e qualquer criminoso. É sabido, porém, que o termo cangaço associado a “bandos independentes” foi largamente difundido. O fenômeno do banditismo foi abordado, no meio acadêmico, a partir de duas perspectivas, enquanto banditismo social, configurando-se numa forma de revolta contra a opressão imposta pela elites locais, e como profissionalização do crime, traduzindo-se num meio de vida. Tais interpretações despertaram amplos debates entre historiadores, sociólogos, antropólogos, literatos e outros intelectuais ligados às ciências humanas. Cabe ressaltar que este tema também foi amplamente discutido fora do circuito acadêmico, sobretudo por memorialistas. No campo acadêmico destacamos os trabalhos do historiador Eric J. Hobsbawm5, um dos pioneiros a estudar esta temática sob a perspectiva da História Social, da socióloga Maria Isaura P. de Queiroz6, da historiadora Maria Christina Matta Machado7, da antropóloga Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros8, entre outros. Nessas abordagens, a emergência do cangaço está intimamente relacionada ao “meio social” sertanejo, ou seja, resulta da “injustiças sociais”. Dissemos anteriormente que as percepções sobre o cangaço no meio acadêmico dividem as opiniões dos estudioso entre: banditismo social e profissionalização do crime. Dentro dessas linhas interpretativas existem algumas especificidades e peculiaridades de cada acepção, conforme discutiremos a seguir. Eric J. Hobsbawm em Rebeldes Primitivos9 e Bandidos10 qualifica esse fenômeno e os sujeitos nele envolvidos de “banditismo social primitivo”, e atribui sua emergência as 5 HOBSBAWM, E. J. Bandidos. Rio Janeiro: Ed. Forense, 1975 e Rebeldes Primitivos. 2ª ed., Rio Janeiro: Zahar, 1978. 6 QUEIROZ, Maria Isaura P. de. Os cangaceiro. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1977 e História do Cangaço. São Paulo: Global, 1986. 7 MACHADO, Maria C. M. As táticas de guerra dos cangaceiros.2ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1978. 8 BARROS, Luitgard Oliveira C. A derradeira gesta: Lampião e Nazarenos guerreando no Sertão. Rio de Janeiro: Faperj/Mauad, 2000. 9 HOBSBAWM, E. J. Rebeldes Primitivos. 2ª edição. Rio Janeiro: Zahar, 1978. 10 HOBSBAWM, E. J. Bandidos. Rio Janeiro: Ed. Forense, 1975. 18 transformações culturais e socio-econômicas ocorridas no campo com o advento da economia moderna11. Ao abordar a problemática do banditismo social a partir da perspectiva da História Social, Hobsbawm, amplia os debates sobre este fenômeno. Em suas análises concebe o banditismo como um fenômeno universal12 que ocorreu em experiências histórias diversas. Trata o tema a partir de um viés macro histórico, e procura discutir os elementos comuns que caracterizam este tipo de comportamento humano nas mais diferentes regiões13 em que ocorreu. O historiador destaca, sobretudo, a invenção do mito do bandido social como uma forma de reagir às transformações introduzidas na sociedade a partir do advento do capitalismo e das transformações nas relações de convívio e nas formas de trabalho. Sua abordagem, portanto, é ampla e generalizante. Cabe lembrar que seus interesses em discutir esta temática voltam-se especificamente para as relações de trabalho no campo, ou seja, para a reação da população rural frente às mudanças introduzidas pelo novo modo de produção. Em seu entendimento, o banditismo social se configura num protesto camponês voltado contra a opressão e a pobreza e, florescia quase invariavelmente em áreas remotas e de difícil acesso14. Ressalta que ele tendia a aumentar nos períodos de pobreza e crise 11 Hobsbawm esclarece que:“O advento da economia moderna pode, e provavelmente o fará romper o equilíbrio social da sociedade consangüínea, transformando alguns grupos de parentescos em famílias “ricas” e outras em famílias “pobres”, ou rompendo o próprio grupo.” HOBSBAWM, E. J. Rebeldes Primitivos. Rio Janeiro: Zahar, 1978, p 14. 12 O autor enfatiza que “O banditismo social (...) é um dos fenômenos sociais mais universais da História, e um daqueles de mais impressionante uniformidade. Praticamente, todos os casos pertencem a dois ou três tipos correlatos, e suas variações são relativamente superficiais”. HOBSBAWM, E. J. Bandidos. Rio Janeiro: Ed. Forense, 1975, p. 11. 13 O historiador salienta que a uniformidade que caracteriza o banditismo social decorre de situações semelhantes vivenciadas nas mais diferentes sociedades camponesas, como na “ China, no Peru, na Sicília (...). Geograficamente, o banditismo social se encontra em todas as Américas, na Europa, no mundo Islâmico, na Ásia meridional e oriental, e até na Austrália”. HOBSBAWM, E. J. Bandidos. Rio Janeiro: Ed. Forense, 1975, p. 11-12. 14 Argumenta que “basta a construção de estradas modernas, que permitam viagens fáceis e rápidas, para reduzir bastante o nível de banditismo. Favorecem-no a ineficiência administrativa e a burocracia”. HOBSBAWM, E. J. Bandidos. Rio Janeiro: Ed. Forense, 1975, p. 14 19 econômica, impulsionando “homens fisicamente aptos, a passar fome” a “tomar pelas armas aquilo de que necessitam” 15. O bandido social que descreve não desejava um mundo novo e perfeito, e sim um mundo tradicional no qual os homens eram tratados com justiça16, inscrevendo-se numa perspectiva que o aproximava de um reformista. Ou seja, aquele que aceitava a estrutura geral de uma instituição ou disposição social, mas a considerava passível de melhoria. Nesse sentido, o bandido social não poderá ser definido como um revolucionário. Argumenta que “(...) o bandoleiro social só surge antes que os pobres tenham adquirido consciência política ou meios mais eficazes de agitação social”17 assim, a ausência de um ideal político caracteriza este tipo fenômeno como reformista. Salienta que apesar de ser “um protesto modesto e não revolucionário”, revela que os “heróis-bandidos” (qualificação que atribui ao bandido social) se comportaram como reparadores de injustiças mostrando, desta forma, que o “ processo de opressão é reversível” 18. Em suas interpretações, afirma que o bandido social era, em geral, membro de uma sociedade rural, e por razões várias encarado como proscrito ou criminoso pelo Estado19. Este qualificava qualquer pessoa que praticasse roubo, homicídio, que usasse qualquer forma de violência individualmente ou em grupo como bandido, desde aquele que roubasse dinheiro até aquele que fizesse parte da guerrilha organizada. O Estado, na visão de Hobsbawm, manipulava esta noção vaga e ampla de bandido para marcar um grupo de pessoas como inimigas da sociedade e perseguí-las implacavelmente. Ressalta que embora o bandido social 15 Para Hobsbawm este comportamento reflete a: “desagregação de toda uma sociedade, a ascensão de novas classes e o surgimento de novas estruturas sociais, a resistência de uma comunidade inteira ou de povos à destruição de suas maneiras de viver”. HOBSBAWM, E. J. Bandidos. Rio Janeiro: Ed. Forense, 1975, p. 15-17. 16 Diz o autor:”Os bandidos corrigem os erros, desagravam as injustiças, e ao assim proceder aplicam um critério mais geral de relações justas e eqüitativas entre os homens em geral, em particular entre ricos e os pobres, os fortes e os fracos” HOBSBAWM, E. J. Bandidos. Rio Janeiro: Ed. Forense, 1975, p. 19 17 Idem 18 Op. cit , 1978, p. 32-33. 19 Referindo-se ao bandido social, afirma que “Ele se torna bandido porque pratica uma ação considerada criminosa não pelas convenções locais, mas pelo Estado ou governantes locais” HOBSBAWM, E. J. Rebeldes Primitivos. Rio Janeiro: Zahar, 1978, p. 24. Ressalta que, geralmente, “ a ‘carreira’ do bandido começa, quase 20 pudesse se enquadrar nesta categoria geral de inimigo do Estado tinha que distinguí-lo do bandido comum, pois o diferencial entre ambos era o fato do primeiro receber apoio da população, o que não acontecia com o segundo, que era entregue à polícia.20 Hobsbawm divide o banditismo social em três categorias: o Ladrão Nobre ou Robin Hood (aquele que tirava dos ricos e dava aos pobres e era visto por esses como um defensor do povo, reparador de injustiças, herói idealizado, um mito), os Haiduks (combatente primitivo pela resistência ou a unidade de guerrilheiros) e o Vingador (aquele que semeia o terror). Seguindo essa tipologia, a imagem do cangaceiro continha nessa acepção, tanto os valores do ladrão nobre quanto as de um vingador (que ele chama de “monstro público”)21, argumenta que num sentido mais amplo: “a imagem do cangaceiro combina os dois tipos”22. Referindo-se à Lampeão destaca que apesar de espalhar o terror pelo interior do Nordeste brasileiro era admirado por sua gente e se constituía num “herói ambíguo”. O historiador salienta que as necessidades e atividades dos bandidos sociais fazem com que eles estabeleçam relações com o sistema econômico, social e político convencional23. Enfatiza que movimentam a economia por meio da comercialização de produtos necessários à manutenção do grupo, dentre eles destaca: a alimentação, a compra de armas, munições e vestimentas. Ressalta a ambigüidade que reveste o bandido social: sempre, com um incidente que em si não é grave, mas que o coloca fora da lei: uma acusação policial que visa mais a ele, pessoalmente, do que à punição de um crime...”. Idem, p. 25. 20 Observou o autor, que “Quase todos os que enfrentam os opressores e o Estado são considerados como vítimas, como heróis, ou ambas as coisas. Portanto, quando ele passa a ser perseguido é protegido naturalmente pelos camponeses e pelo peso das convenções locais, (...)”. HOBSBAWM, E. J. Rebeldes Primitivos. Rio Janeiro: Zahar, 1978, p.25 21 HOBSBAWM, E. J. Bandidos. Rio Janeiro: Forense, 1975, p. 55. 22 Idem, p. 55 23 Hobsbawm afirma que: “(...) normalmente possuem muito mais dinheiro do que os camponeses locais, suas despesas podem constituir elemento importante no setor moderno da economia local, sendo redistribuídas, através de vendeiros, donos de pensões ou estalagens, às camadas médias comerciais da sociedade rural; e essa distribuição é mais efetiva na medida em que os bandidos (...) gastam a maior parte de seus recursos na região e são muito orgulhosos e pródigos para barganhar. ‘O comerciante vende suas mercadorias a Lampião por três vezes o preço normal’, dizia-se em 1930”. Destaca o papel dos intermediários, que auxiliavam nas transações comerciais dos bandidos. HOBSBAWM, E. J. Bandidos. Rio Janeiro: Forense, 1975, p. 83 21 Ele é um marginal e um rebelde, um homem pobre que se recusa a aceitar os papéis normais da pobreza, e que firma sua liberdade através dos únicos recursos ao alcance dos pobres – a força, a bravura, a astúcia e a determinação. Isto o aproxima dos pobres: ele é um deles também (...) Ao mesmo tempo, porém, o bandido é inevitavelmente arrastado à trama da riqueza e do poder, porque, ao contrário dos outros camponeses, ele adquire a primeira e exerce o segundo. Ele é “um de nós”, constantemente envolvido no processo de associar-se a “eles”.24 O banditismo, segundo o autor, extrapola a esfera econômica, pois, ao formar um “núcleo de força armada”, configura-se numa força política, uma vez que emerge nas áreas em que não há nenhum “mecanismo regular e eficiente para manutenção da ordem pública”. Por segurança, é melhor manter um bom relacionamento com os bandidos, o que em seu entendimento indica que “eles se acham integrados na sociedade estabelecida”25. Assim, para que essa relação fluísse, inúmeros acordos ocorreram entre populares e bandidos e entre estes e as autoridades. Ou seja, o estabelecimento de alianças entre políticos e bandidos constituiu-se num fator fundamental para a sobrevivência destes últimos. Hobsbawm identifica no coronelismo brasileiro estas prática e acrescenta que em função delas os bandidos mais famosos dos sertões nordestinos “conseguem sobreviver por períodos surpreendentemente longos. Lampião durou quase vinte anos”26, indicando que o cangaceiro se constituía no próprio poder. Ao longo de sua obra Hobsbawm discute os papéis sociais, o mito e o significado do bandido social. Acrescenta que Robin Hood mesmo depois de extinto continua a exercer forte influência no surgimento de novos “ladrões nobres”, o que sugere a força e a permanência deste mito por várias gerações nos mais diferentes continentes. Nesse sentido, o “mito do bandido” estende-se muito além do meio ambiente nativo, e sobrevive até a 24 A expressão “Ele é “um de nós”, constantemente envolvido no processo de associar-se a “eles”, traduz claramente a relação ambígua que envolvia este tipo de bandido, pois, ao mesmo tempo que se identificava com os populares, também desfrutava da “riqueza” e do “poder”, elementos representativos dos privilégios das elites locais. HOBSBAWM, E. J. Bandidos. Rio Janeiro: Forense, 1975, p. 86. 25 Idem, 1975, p. 87-88. 26 O historiador destaca: “(...) a estrutura da política rural nas condições que produz o banditismo exerce dois efeitos. Por um lado, ela gera, protege e multiplica os bandidos; por outro, integra-os no sistema político. (...) é provável que ambos os efeitos sejam mais fortes onde a máquina do Estado se encontra ausente ou é ineficiente, 22 moderna revolução industrial da cultura. O banditismo social em sua concepção se reveste de “liberdade, heroísmo e o sonho de justiça”27. Conclui afirmando que: “(...) quase nenhum dos grandes bandidos da História sobrevive ao translado da sociedade agrária para a sociedade industrial, exceto quando são praticamente contemporâneos dela, ou quando já foram previamente embalsamados naquele meio resistente para a viagem no tempo – a literatura. Exemplifica com Lampião que apesar de morto continua inspirando toda uma literatura a seu respeito, produzida inclusive nos grandes centros urbanos do país, como São Paulo e Rio de Janeiro, regiões distantes dos locais do fenômeno, mas que alimentam este tipo de literatura por meio das memórias dos migrantes nordestinos. O historiador Norberto O. Ferreras28 salienta que as fontes e o mito são centrais na análise de Hobsbawm. Ao retomar os seus pressupostos, destaca alguns elementos que caracterizam o bandido social: a aptidão para integrar este tipo de vida e o folclore. De acordo com esta interpretação havia condições específicas para a aceitação do bandido social, ou seja, não podia ser simplesmente um criminoso comum, tinha que possuir motivos convincentes - como vingar uma ação sofrida - para justificar sua inserção no banditismo. Além disso, seus laços familiares deveriam ser suficientemente fortes para protegê-lo nessa nova atividade. Ferreras destaca que Hobsbawm preocupa-se em analisar a invenção do mito do bandido social engendrado com o advento do capitalismo e com as transformações nas relações de trabalho. Salienta que a “criminalização - ou - não do banditismo está relacionada à forma como o Estado se defrontou com a questão. Em algumas ocasiões, os bandidos passaram a fazer parte de grupos legais, ou passaram a integrar as milícias do ou onde os centros regionais de poder são instáveis, como ocorre (...) no sertão agreste”. HOBSBAWM, E. J. Bandidos. Rio Janeiro: Forense, 1975, p. 93. 27 Idem, p. 133 28 FERRERAS, Norberto O. Bandoleiros, cangaceiros e matreiros: revisão da historiografia sobre o Banditismo Social na América Latina. História, São Paulo: Editora Unesp, 22 (2), 2003, p. 211-226. 23 Estado (...), ou sendo anistiados quando se combateram ao lado da lei, como foi oferecido a Lampião para lutar contra a coluna Prestes”29. A socióloga Maria Isaura Pereira de Queiroz30 discorda das acepções de Eric Hobsbawm ao argumentar que o cangaço não se configura num “movimento social” camponês de caráter pré-político, como defende o historiador. Para a socióloga, tal denominação supõe a consciência dos problemas sócio-econômicos e políticos vivenciados no interior de uma sociedade, o que não se aplicava aos cangaceiros. A autora justifica que o cangaço foi uma resposta à miséria, associando a sua emergência aos períodos de seca e seu desaparecimento com a chegada das chuvas que normalizavam a então desorganizada sociedade sertaneja. No entanto, há evidências na imprensa e na bibliografia especializada, que em tempos de chuvas os cangaceiros continuavam sua vida errante. A seca não representava para estes um problema, pois estavam acostumados a viver grandes períodos no Raso de Catarina, região árida e de difícil acesso do sertão baiano, onde há poucos recursos para sobrevivência. Em nosso entendimento, a justificativa da autora para a emergência do cangaço não condiz com o caráter dos bandos independentes, e sim com os bandos de retirantes que se movimentavam de acordo com as secas. Em sua explanação, a socióloga deixa claro que a emergência do cangaço deve-se essencialmente a fatores econômicos, embora, destaque a importância das condições sociais e políticas. Para ela, os fatores estruturais e conjunturais, explicam o aparecimento dos bandos de cangaceiros. No primeiro caso encontram-se: as relações de vizinhança e parentela no interior da sociedade sertaneja, limitação profissional, a distribuição de cargos públicos a pessoas não qualificadas (apadrinhamento). No segundo, o empobrecimento da população em 29 Idem, p. 211. 30 QUEIROZ, Maria Isaura P. de. Os cangaceiros, São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1977 e História do Cangaço. São Paulo: Global, 1986. 24 função das crises do açúcar e do algodão e melhoria das condições sanitárias locais, geradora de um crescimento populacional. O sertão das primeiras décadas do século XX caracteriza-se por uma economia baseada fundamentalmente na exploração extensiva da pecuária, numa agricultura de subsistência e com um sistema de exploração de terras de grandes latifúndios. A “lei” no sertão era dirigida pelos grandes latifundiários e políticos da região favorecendo aos mesmos. A população sertaneja, além de sofrer com as constantes secas, estava espremida entre as disputas dos chefes locais. A solução para muitos sertanejos era o ingresso no cangaço ou nas fileiras policiais. A miséria do sertão e o descaso das autoridades públicas criaram um terreno propício para o desenvolvimento do banditismo. Corroborando esta perspectiva, o historiador Francisco Roberto P. Monteiro, em dissertação intitulada O outro lado do cangaço: As forças volantes em Pernambuco 1922- 193831 acrescenta que o coronelismo associado ao descaso governamental foram ingredientes que completaram a receita do cangaço. Salienta que: [...] o Estado negou-se a exercer o que lhe cabia nos setores administrativo e judicial, entregando-os aos donos do poder sertanejo. Estava completa a receita para o Cangaço, manifestado pela inexistência do governo formal, acrescido pela permanência dos interesses do governo latifundiário, violento e dono de interesses mesquinhos. Monteiro afirma que o “... cangaço provocou a quebra de poder do coronel do Sertão”32, que segundo ele, reagiu de diversas maneiras ora aliando-se às forças legais do Estado-Protetor, ora aos cangaceiros, com o intuito de garantir seus privilégios. Para ele, o cangaço floresceu em função das circunstâncias sociais e geo-físicas, que aliados aos problemas políticos da região criaram um terreno propício para o desenvolvimento do cangaço.33 31 MONTEIRO, Francisco Roberto Pedrosa. O outro lado do cangaço: As forças volantes em Pernambuco 1922- 1938. Recife/PE: Universidade Federal de Pernambuco, UFPE, 2002, p. 10. Dissertação (Mestrado em História). 32 Idem, p.10 33 Diz o autor: “Foi atrelado a todas essas circunstâncias sociais e físicas que o cangaço floresceu com força, inicialmente carregado de pouca destruição, para depois, com o passar dos anos, tornar-se forte e violento, 25 A questão do coronelismo foi abordada pela historiadora Maria de Lourdes M. Janotti34. Ela enfatiza que as raízes deste fenômeno estavam sedimentadas no Império, e que na República o coronel ampliou seu papel dentro da nova estrutura política. Chama atenção para o período de 1940, momento em que este fenômeno começa a entrar em declínio em função da urbanização e industrialização. A historiadora critica o estereótipo veiculado pelos meios de comunicação, que apresenta o coronel como um “fazendeiro rústico, autoritário, brutal, ignorante, dispondo da vida dos demais habitantes do lugarejo em que reside”35. Em sua concepção, todo estereótipo é restritivo e empobrecedor, entretanto, admite que carrega um conteúdo de verdade. Traduz o coronelismo como uma política de compromissos, na qual Estado e a oligarquia agrícola-mercantil mantém uma mútua aliança para assegurar seus interesses. O raio de ação do coronel é local (municipal) e a do Estado é nacional. O primeiro se responsabiliza pela vitória dos candidatos do Governo. Esse, garante total poder ao coronel ao fechar os olhos para seus mandos e desmandos. Ressalta que na República, o coronelismo recebe uma roupagem estadualista dirigida pela burguesia rural e financeira, assentada no mandonismo local. Adverte ainda, que “O coronel nem sempre era um grande fazendeiro. Mas, um chefe político, de reconhecido poder econômico, que conseguiria prestígio junto ao governo estadual, na razão direta de sua competência em garantir eleições situacionistas”36. A autora caracteriza o coronel como um tipo social, que tinha sua autoridade reconhecida pela comunidade em função seu papel “protetor”. Aquela, abandonada pelos poderes públicos no que diz respeito “à saúde, à justiça, e a instrução”, via o coronel como envolvendo, em seu redemoinho de morte, a desgraça de famílias inteiras, entre elas a de Virgulino Ferreira.” Ibidem, p.53. 34 JANOTTI, Maria de Lourdes M. O coronelismo uma política de compromissos. 3ª edição, São Paulo: Brasiliense, 1984. 35 Idem, p.8 36 Ibidem, p. 41. 26 “protetor natural”37. Lembra algumas funções exercidas por ele: “Comumente o Coronel era procurado para resolver questões referentes a limites de propriedades, a heranças, a pagamentos atrasados, à venda de animais, a casamentos complicados, à educação das crianças, e tantas outras que lhe aparecessem.”38 A prática da violência pelo coronel é recuperada pela historiadora ao enfatizar que: (...) ele possuía uma polícia própria, denominados seus membros, segundo a região, de capangas, jagunços, “gente do Coronel”, camaradas ou cabras (...) aos desejos do mandatário aplicavam penas diversas: a expulsão das terras da fazenda, destruição de bens, espancamentos e até a morte.39 No trecho acima fica explícito que o coronel poderia representar o bem ou o mal, dependendo das circunstâncias e de seus interesses. O bem se traduzia em sua função “protetora”, enquanto o mal na violência que praticava contra a comunidade. Salienta, ainda, que o homem comum não tinha muita saída. Quando possível ligava-se a outro coronel, ou então, ingressava no cangaço ou no misticismo religioso. O tema do banditismo sertanejo no Nordeste do Brasil, conforme assinalamos anteriormente, também despertou interesse em pesquisadores de outras áreas das ciências humanas. O advogado Frederico Pernambucano de Mello40 se especializou no tema e publicou alguns artigos e dois livros sobre o assunto. Em Guerreiros do Sol. Violência e 37 Idem, p. 57. 38 Op. Cit, 1984, p. 59. 39 Ibidem, p.60-61. 40 Frederico Pernambucano de Mello, nasceu no Recife em 2 de setembro de 1947. Formou-se em Direito na Universidade Federal de Pernambuco, e tem especialização em Administração de Assuntos Culturais (Política e Gerência) pela Organização dos Estados Americanos/Universidade de Brasília/Centro Nacional de Referência Cultural. Foi Superintendente do Instituto de Documentação da Fundação Joaquim Nabuco. Membro e ex- participante da União Brasileira de Escritores – Seção de Pernambuco, é sócio efetivo do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano e sócio correspondente dos Institutos de Geografia e História Militar do Brasil, no Rio de Janeiro, Histórico e Geográfico de Alagoas e do Rio Grande do Norte, além de membro do Conselho Estadual de Cultura de Pernambuco. Na Academia Pernambucana de Letras é titular da cadeira nº 36. Estudioso do cangaço publicou diversos trabalhos sobre o assunto, entre eles destacamos os seguintes artigos: Aspectos do Banditismo Rural Nordestino. Ciência &Trópico, Recife: Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, nº 1, v. 2, jan/jun/1974, p. 4-47, O Ciclo do Gado no Nordeste do Brasil: Uma Cultura da Violência? Ciência & Trópico, Recife: Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, nº 2 , v. 7, 1979, Rota Batida. Recife: Edições Pirata, 1983, p. 23-45 e os livros Guerreiros do Sol. Violência e banditismo no Nordeste do 27 banditismo no Nordeste do Brasil, publicado em 1985 e reeditado em 2004, tece uma longa análise sobre as condições climáticas, sócio-econômicas e políticas da região sertaneja infestada pelo banditismo. Além desses elementos, também considera as questões culturais. Mello divide o cangaço em três categorias: “Cangaço-Vingança, Cangaço- Refúgio e Cangaço-meio-de- vida.”41 No primeiro caso, o que motiva o sertanejo é o desejo de vingar uma ofensa sofrida (estupros, espancamentos ou assassinatos de pessoas da família; enfim, qualquer ação que resulte na necessidade de vingar a honra e fazer justiça), este parece ter sido o caso de parcela significativa de cangaceiros. A segunda tipologia Cangaço-Refúgio refere-se ao caso de homens que buscavam neste meio de vida uma proteção, pois eram criminosos que tinham suas ações descobertas pela polícia, vingadores fugitivos. Enfim, homens que tinham alguma pendência com a justiça ou com famílias poderosas. No último caso, o cangaço se configura num meio de vida, ou seja, numa profissão geradora de considerável lucro. De acordo com sua tipologia Mello, salienta que o “cangaço-meio de vida” se configurou numa “modalidade profissional”42, tendo Lampião e Antonio Silvino como maiores expoentes. Em seu livro, Quem foi Lampião, discute algumas peculiaridades da indumentária do cangaceiro e atribui as causas do cangaço às “(..) Administrações ineficazes, corrompidas ou viciadas politicamente (...) o fenômeno acha-se ligado a fatores naturais e sócio-culturais (...) exacerbadas pelo mandonismo aldeão e seu maior aliado, a guerra ou a vingança privada...”43. Esclarece que para se compreender o fenômeno do banditismo no Nordeste, é necessário considerar a existência de áreas geográfica e culturalmente opostas. Ou seja: “ a Brasil, publicado em 1985 em Recife pela editora Massangana, reeditado no corrente ano pela editora Girafa, e Quem foi Lampeão. Recife/Zürich: Editora Stahli, 1993. 41 MELLO, Frederico Pernambucano de. Guerreiros do Sol. Violência e banditismo no Nordeste do Brasil. São Paulo: A Girafa Editora, 2004, p. 89 42 Idem. 43 MELLO, Frederico P. de. Quem foi Lampeão. Recife/Zürich: Editora Stahli, 1993, p. 55 28 de trópico úmido, expressa na exuberância da chamada mata atlântica”, cujo solo é fértil e as chuvas são abundantes, e a do “trópico semi-árido, com temperaturas tórridas, vegetação arbustiva e espinhosa – a chamada caatinga...”44, marcada pela escassez de chuvas e pela pobreza do solo. Enfatiza que “(...) São dois mundos, afinal. Duas culturas. Dois homens. Duas Sociedades”45 No entendimento de Mello, os fatores políticos, econômicos e sociais não são suficientes para explicar o surgimento do cangaço. Destaca que os valores culturais são de fundamental importância para compreendermos este fenômeno, pois revelam um modo singular da vivência do sertanejo, com seus valores e comportamentos, moldados de acordo com as adversidades de seu espaço. O autor realça dois traços que particularizam o sertão: “a indiferença em face da morte e o da insensibilidade no trato com o sangue”46. Cabe indagar que dimensões assumiram na educação e no comportamento das sertanejas, e se influenciaram direta ou indiretamente na participação de algumas delas nos grupos. Discutiremos essas questões no próximo capítulo. O historiador Francisco Roberto Monteiro47, ao analisar o fenômeno do cangaço, recupera a tese do advogado Frederico P. de Mello e ressalta que: (...) Enquanto, no Cangaço-Vingança, o bandido quase se limitava a vingar- se do opositor para logo retornar ao lar ou tomar outro destino era fácil ao cangaceiro participante do Cangaço-Refúgio, transformar-se em profissional do cangaço, praticando, então, o Cangaço-meio-de-vida. Era uma profissão escolhida (...). A vida aparentemente solta (...) também fascinava o jovem da época (...). Era uma maneira de atrair os olhares das moças da região.48 44 Op. cit, 1993, p. 56. 45 Ibidem, p. 58 46 Op cit, 1993, p. 57 47 Em sua dissertação de mestrado, o historiador Francisco Roberto P. Monteiro recupera a tipologia de cangaço definida pelo advogado MELLO, Frederico Pernambucano de. Guerreiros do sol: O banditismo no Nordeste do Brasil. Recife: Massangana, 1985, p. 38. Ver MONTEIRO, Francisco Roberto Pedrosa. O outro lado do cangaço: As forças volantes em Pernambuco 1922-1938. Recife/PE: Universidade Federal de Pernambuco, UFPE, 2002. Dissertação (Mestrado em História) 48 MONTEIRO, Francisco Roberto Pedrosa. O outro lado do cangaço: As forças volantes em Pernambuco 1922- 1938. Recife/PE: Universidade Federal de Pernambuco, UFPE, 2002, p.61-62. Dissertação (Mestrado em História). 29 O trecho acima é elucidativo ao sugerir que a sensação de liberdade, o fascínio pelo perigo e a admiração pelo cabra macho foram elementos que atraíam os olhares femininos para o cangaço, o que sinaliza para a incorporação de algumas mulheres neste meio de vida, conforme veremos no capítulo 2. Francisco Monteiro, baseado na tese de Melo, salienta que dentre estas três classificações, o Cangaço-meio-de-vida foi o que angariou maior número de voluntários, o que se justifica, em sua opinião, pela longa permanência de Lampião no banditismo. A historiadora Zélia Lopes da Silva49 recupera o posicionamento assumido na Constituinte, pelo deputado Edgar Teixeira Leite, que qualificava o fenômeno do cangaço como “crime organizado nas zonas rurais”, que deveria ser punido como tal. Apesar disso, o deputado admitia que a causa de tal fenômeno decorria do “abandono, da miséria e da falta de instrução do homem do campo, entregue à sua própria sorte”. A antropóloga Luitgarde Barros50 discorda dos estudiosos que qualificam o cangaço de banditismo social, e argumenta que Lampião escondia-se atrás da morte dos pais usando-as como um “escudo ético” 51. Em sua análise, esse “escudo ético” ocultava o desejo de enriquecimento fácil e de poder, sinalizando que se constituíam em criminosos ambiciosos e perigosos, e não em vítimas das adversidades sertanejas. Ou seja, não passavam de profissionais do crime. É significativo destacar que a partir do momento em que o governo federal se posiciona em relação ao cangaço - aparelhando as volantes com armamentos, liberando verbas para a contratação de homens para integrar o corpo das Forças de Combate ao Cangaço, enfim, fornecendo todo aparato burocrático e financeiro necessário à intensificação 49 SILVA, Zélia Lopes da. A República dos anos 30. A sedução do Moderno. Novos Atores em Cena: Industriais e Trabalhadores na Constituinte de 1933-1934. Londrina: UEL, 1999, p. 112-115. 50 BARROS, Luitgarde O. C. A derradeira gesta. Lampião e Nazarenos guerreando no Sertão. Rio de Janeiro: Mauad/Faperj, 2000, p.210. 51 Termo definido pelo advogado Frederico Pernambucano de Mello, e incorporado pela autora em sua obra. BARROS, Luitgarde O. C. A derradeira gesta. Lampião e Nazarenos guerreando no Sertão. Rio de Janeiro: Mauad/Faperj, 2000, p.128 e 210. 30 das perseguições aos cangaceiros - os grupos começam a ser eliminados, o que evidencia que o uso da força foi a solução encontrada pelo governo para sua eliminação. Veremos no capítulo 1 que essa concepção não era compartilhada pelos diversos articulistas, que escreveram sobre o cangaço nos jornais O Estado de S. Paulo e Correio da Manhã, notadamente as matérias e os debates travados pelos articulistas e colaboradores do periódico carioca, que em sua maioria defendia a educação e o trabalho como caminhos possíveis para a construção de uma sociedade mais igualitária. Com base nos debates explicitados ao longo deste texto cabe indagar: Quais os requisitos necessários para se tornar um cangaceiro? A maioria dos homens que se alistava nas fileiras do cangaço era procedente da caatinga, de povoados sertanejos e até mesmo das cidades interioranas. Os motivos arrolados para seu ingresso no cangaço foram os mais variados. Os aventureiros buscavam o fascínio de uma vida fácil e errante. Os sedentos de justiça buscavam fazê-la com as próprias mãos (defender a honra da família, da mãe, da esposa, irmãos e outros parentes); havia os que queriam proteção porque estavam fugindo da ação da justiça; outros que fugiam da miséria e viam no cangaço a possibilidade de “ascensão” econômica. Enfim, eram inúmeros os motivos que impulsionavam os sertanejos a viver a ilegalidade. O historiador Eric. J. Hobsbawm destaca que o bandido típico era jovem e solteiro52, uma vez que a incorporação de homens casados era mais difícil em função dos compromissos familiares. Entretanto, deixa claro que esse grupo também podia incorporar-se aos bandos. Outra possibilidade de emprego para o sertanejo era o ingresso nas fileiras policiais, para a perseguição aos cangaceiros, o que significava para muitos homens a possibilidade de “melhoria” em suas condições de vida53. Ao ingressarem na polícia 52 O historiador salienta que “(...) a juventude é uma fase de independência e de rebelião em potencial...”. HOBSBAWM, E. J. Bandidos. Rio Janeiro: Ed. Forense, 1975, p. 27. 53 Sobre este assunto consultar: QUEIROZ, Maria Isaura P. de. História do cangaço. São Paulo: Global, 1986, p- 35-39 e 54, LINS, D. Lampião - O homem que amava as mulheres. São Paulo:Annablume,1977, p.107. e NASCIMENTO, J.N. Cangaceiros, coiteiros e volantes. São Paulo: Ícone, 1998, p. 32. 31 receberiam um salário, e teriam a chance de ficar com os pertences dos cangaceiros mortos em combate. Estes últimos eram conhecidos por carregarem dinheiro e jóias em seus bornais. Além disso, era a chance de vingarem alguma ofensa sofrida por parte dos cangaceiros e, ainda, adquirir um novo status social a partir da promoção no meio policial. No decorrer de nossa pesquisa notamos que as práticas de violência cometida por policiais não se diferenciavam daquelas cometidas pelos cangaceiros e que ambos alimentavam um sentimento de vingança e ambição. Diante de tal quadro, cabe indagar: Quais as diferenças de atuação dos cangaceiros e das volantes policiais? Como estas últimas se comportavam no enfrentamento desta nova realidade? As informações enfatizam o seu despreparo para lidar com os bandos. Era formada por sertanejos comuns e sem instrução, através de recrutamento irregular. O despreparo e a falta de cooperação entre as autoridades dos diversos Estados nordestinos flagelados pelo cangaço, são elementos que sinalizam a fragilidade desta polícia frente ao banditismo que a cercava. Para minorar esta situação, em janeiro de 1925 foi firmado o convênio entre os Estados de Pernambuco, Paraíba, Ceará e Alagoas, retirando os entraves fronteiriços que impediam as polícias dos respectivos Estados capturar os cangaceiros. Esta medida possibilitou a união das forças nordestinas visando por fim ao banditismo. Essas análises demonstraram que o “banditismo social” era um fenômeno mais geral que ocorreu em experiências históricas diversas, embora tivessem algumas características em comum. O banditismo no Nordeste do Brasil teve algumas peculiaridades, e uma delas foi a incorporação de mulheres aos bandos, ao longo da década de 1930, a partir da entrada de Maria Bonita em suas fileiras, sob o beneplácito de Lampião. De acordo com as informações coletadas nas diversas fontes pesquisadas, Lampião teria ingressado no bando de Sinhô Pereira em 1918, com o intuito de vingar a morte do pai, covardemente assassinado por policiais. Em 1922 teria recebido o comando 32 do bando sob a promessa de eliminar os dois últimos inimigos de seu chefe, que cansado desta vida marginal teria se mudado para Minas Gerais com o intuito de se reintegrar a sociedade. Há um consenso entre os estudiosos do cangaço sobre o comportamento de Lampião, que teria se destacado pelo uso excessivo da violência54. Apesar disso, vigorava no interior do bando um código moral que proibia terminantemente o uso desta em famílias de coiteiros e amigos. Os cangaceiros que desobedeciam estas normas foram severamente punidos, como evidenciam os casos de Sabiá e Mourão, mortos por violentarem a filha e esposa de um coiteiro55. Este código estabelecia a sentença de morte a todo tipo de traidor. Seu bando angariava cada vez mais homens, alguns sedentos de justiça, outros atraídos pela possibilidade de enriquecimento fácil. Com o aumento do bando e das perseguições policiais, Lampião subdividiu o bando, e conferiu o comando de subgrupos aos homens que julgava aptos para esta tarefa: Corisco, Virgínio, Zé-Sereno, entre outros. Além dos homens, também houve a incorporação feminina aos bandos, o que foi uma das peculiaridades do ciclo Lampião. Diante desta nova realidade, algumas questões parecem pertinentes: Como e por que elas se integraram às fileiras do banditismo? Como foram tratadas? Quem eram estas mulheres e que papéis ocuparam no interior dos bandos? Quais as mudanças introduzidas nas relações de convívio dos grupos? Enfim, como foi o universo feminino no cangaço? As mulheres num âmbito geral, sempre ficaram à margem na historiografia, principalmente as que viveram na ilegalidade, como é o caso das cangaceiras. Os estudos sobre a mulher, geralmente recuperam os feitos das mulheres da elite que ganharam destaque nas mais diferentes sociedades por suas ações militantes e reivindicadoras como as 54 Sobre este assunto consultar a historiografia: HOBSBAWM, E. J. Bandidos. Rio Janeiro: Ed. Forense/Unb, 1975, QUEIROZ, Maria Isaura P. de. Os cangaceiros, São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1977, História do cangaço. São Paulo: Global, 1986 e BARROS, Luitgarde O. C. A derradeira gesta. Lampião e Nazarenos guerreando no Sertão. Rio de Janeiro: Mauad/Faperj, 2000. E as obras memorialísticas NASCIMENTO, J.N. Cangaceiros, coiteiros e volantes. São Paulo: Ícone, 1998, p-21 e ARAÚJO, A. A C. de. Lampião: as mulheres e o cangaço. São Paulo: Traço, 1985. p .70 33 feministas, que lutaram durante décadas para adquirir direitos como: educação, profissionalização e o exercício pleno da cidadania. Ganharam evidência ainda, as mulheres de projeção social reconhecidas por seus talentos na arte, na literatura, na pintura, na música e pelo grau de instrução (escritoras, professoras, médicas e biólogas). As mulheres dos estratos populares, ao contrário, foram sempre associadas à marginalidade e à prostituição. A negra sofreu duplo preconceito: o de ser mulher e negra. É significativo destacar que as cangaceiras nem sempre vieram dos estratos populares da sociedade sertaneja; algumas pertenceram a famílias que possuíam relativas condições financeiras. No interior dos grupos de cangaceiros destacam-se práticas que sinalizam para um certo controle e normalização do comportamento das mulheres conforme destacaremos ao longo do texto, sobretudo no capítulo 2, que intitulamos: Práticas e representações do feminino no cangaceirismo brasileiro - 1930-1940. Ao longo desta pesquisa, recuperamos a presença feminina no interior dos bandos de cangaceiros, e destacamos sua participação nas mais variadas situações. Enfatizamos sua contribuição na construção do fenômeno que marcou a sociedade brasileira, sobretudo a região sertaneja compreendida pelo agreste nordestino, que castigado pelas secas e entregue a sua própria sorte, procurou construir formas de sobrevivência naquele meio hostil. A preocupação desta dissertação é refletir sobre as diversas representações construídas sobre as mulheres que passaram a integrar os bandos de cangaceiros. Visa discutir as possíveis transformações introduzidas nas relações que se estabeleceram no interior dos grupos, decorrentes dessa presença no período que corresponde aos anos de 1930 à 1940. Neste sentido, o desafio proposto é investigar as formas de inserção feminina (voluntária e involuntária), as mudanças provocadas por esta presença no cotidiano dos 55 ARAÚJO, A. A C. de. Lampião: as mulheres e o cangaço. São Paulo: Traço, 1985. p.71-72 e LINS, D. Lampião - O homem que amava as mulheres. São Paulo: Annablume, 1977, p.94. 34 grupos, e o seu papel nos enfrentamentos violentos em que estiveram envolvidas. Nesse processo deve-se considerar que as relações entre o homem e a mulher, embora sinalizassem para mudanças em curso, estavam marcadas por definições de papéis rígidos nos quais aquela era subordinada ao homem, cabendo analisar se tal situação também se evidenciava no interior do cangaço. A reflexão sobre a presença feminina no cangaço na década de 30 nos remete a algumas questões que envolvem a sociedade brasileira como um todo, pois neste período ela passava por mudanças profundas em sua estrutura, política, econômica e social. No âmbito político, o país começava a viver uma nova fase, deixando para trás a velha oligarquia política. Subia ao poder, em função de um golpe bem articulado, Getúlio Vargas, que permanecerá até 1945, período que abrange o nosso objeto de pesquisa, pois o cangaço finda com a morte de Corisco em 1940. Após a morte de Lampião em 28 de julho de 1938, o governo desenvolveu uma intensa campanha para que os cangaceiros e cangaceiras remanescentes se entregassem à polícia sob garantia de anistia, o que ocorreu em muitos casos. Desde o início de seu conturbado governo, Getúlio Vargas sabia da existência do cangaceirismo no Nordeste do país; entretanto, seus interesses naquele momento eram outros. Somente em meados de 1936, posiciona-se com o intuito de por fim ao banditismo. No âmbito social, o governo elaborou e aprovou algumas reformas que beneficiaram os trabalhadores urbanos, criando várias leis e também os sindicatos. Aprovou algumas medidas que conferiram a participação feminina na política por meio do sufrágio universal, e na esfera pública, através da regulamentação do trabalho das mulheres. Entretanto, as historiadoras Marina Maluf e Maria Lúcia Mott56 argumentam que tais medidas não atingiram de fato as mulheres, pois, o Código Civil Brasileiro de 1916 as circunscrevia exclusivamente ao lar e aos afazeres domésticos, evidenciando uma nítida 56 MALUF, M. e MOTT, M. L. Recônditos do mundo feminino. In: História da Vida Privada no Brasil. NOVAIS, F. A e SEVCENKO, N. (org.). São Paulo: Cia das Letras, v. III, 1998. 35 divisão de papéis entre os sexos, na qual foram atribuídas ao homem, a esfera pública e à mulher, a doméstica. Com base na análise do referido Código, as historiadores constatam o excessivo controle do homem sobre a mulher. Esta, destituída de direitos políticos e civis, não podia vender seus bens ou os do marido ou contrair empréstimos, mesmo que estes fossem para a aquisição de coisas necessárias à economia doméstica. Para desempenhar o trabalho remunerado, as mulheres casadas (da elite e dos estratos médios) deveriam obter a autorização do cônjuge devidamente reconhecida em cartório, podendo ser revogada a qualquer momento. Além disso, poderiam exercer apenas as profissões consideradas extensão das atribuições femininas, ou seja, professoras, datilógrafas, enfermeiras, entre outras57. Essas prescrições, embora em vigor, não atingiam as mulheres dos estratos populares sempre presentes no mercado de trabalho e habituadas a executar as atividades menos qualificadas para garantir a sobrevivência de sua prole. A profissão de lavadeira representa um nítido exemplo dessas atividades. A mulher do estrato popular desconhecia a separação entre o público e o privado, o local de trabalho se confundia com o da moradia.58 Em nossa análise percebemos que o ingresso das mulheres no cangaço coincide com a luta pela emancipação feminina em âmbito mais geral, como a aquisição de direitos de cidadania que são conquistados na Carta Magna, em julho de 1934, após longos anos de lutas travadas pelas feministas, originárias das elites, forjando um novo perfil de relação homem/mulher e um novo tipo de família, apesar da existência do Código Civil que subordinava esta mulher ao homem. Esta nova sociedade, que se desenhava à existência do Código Civil Brasileiro de 1916, não intimidou algumas mulheres da elite brasileira, que insatisfeitas com a esfera doméstica que lhes foi atribuída, reivindicaram igualdade de direitos tanto na esfera pública 57 Idem, p. 402. 58 Op cit, 1998, p. 409-410. 36 quanto na profissional. Essa nova mulher desejava uma certa independência em relação ao homem, ao casamento e exigia o direito de participar ativamente na vida pública, como cidadã brasileira.59 A luta por esses direitos aglutinou-se em torno do movimento sufragista, que envolveu mulheres das mais variadas regiões do país, inclusive do Nordeste. Neste sentido, as lutas pelos direitos como: educação, profissionalização (trabalho externo ao ambiente do lar) e, sobretudo, o exercício pleno da cidadania por meio do sufrágio universal, tornaram-se possibilidades reais para libertarem-se dos estigmas de “rainhas do lar” e do tripé “mãe-esposa –dona de casa”. De acordo com Maluf e Mott, tal representação “(...) acabava por encobrir o ser mulher – e sua relação com as obrigações passou a ser medida e avaliada pelas prescrições do dever ser”.60 Portanto, a mulher era direcionada pelo “dever ser” e seu comportamento já estava devidamente definido pela sociedade. Cabia apenas, encaixar-se nele independentemente de suas aspirações. Considerando essas informações, cabe indagar se as mudanças processadas ao longo da década de 30 pelo Estado repercutiram direta ou indiretamente sobre a família, e como isso se deu no Nordeste do país, sobretudo na sociedade sertaneja. Qual a concepção sertaneja de família? O cangaço a reproduziu ou reelaborou uma própria? Como as cangaceiras pensavam a família e o papel da mulher na sociedade? Parece-me que a estrutura familiar da elite rural sertaneja mantinha uma hierarquia bem definida de papéis, na qual à mulher cabia o espaço privado, e ao homem o público, diferentemente do que ocorria com o estrato popular, que para garantir a sobrevivência tinha que contar com o trabalho de todos os membros da família. Bem, diante de tudo que expusemos, cabe indagar se as mudanças em curso na década de 30 chegaram até 59 Sobre este assunto consultar: HANHER, June E. Emancipação do sexo feminino. As lutas pelos direitos da mulher no Brasil, 1850-1940. Florianópolis: Editora Mulheres Sta Cruz do Sul: EDUNISC, 2003. 60 MALUF, M. e MOTT, M. L. Recônditos do mundo feminino. In: História da Vida Privada no Brasil. NOVAIS, F. A e SEVCENKO, N. (org.). São Paulo: Cia das Letras, v. III, 1998, p. 374. 37 às cangaceiras e como foram sentidas, como re-significaram seus valores e suas vivências no interior dos bandos e, ainda, como queriam ser vistas na sociedade. No interior do cangaceirismo brasileiro, apesar de existir uma organização social bem definida dos papéis masculino/feminino, é significativo destacar alguns elementos que tornam esta organização peculiar. Diferentemente das relações produzidas na sociedade mais ampla, na qual cabia ao homem o sustento da família e à mulher os afazeres domésticos, cumprindo o papel de esposa dedicada, mãe zelosa e dona de casa, no cangaço esta relação se construiu de uma outra forma, em função da própria estrutura nômade e incerta dos bandos. As questões propostas ao logo dessa dissertação serão analisadas a partir dos pressupostos da História Cultural. Para tanto, nos basearemos nas discussões do historiador Roger Chartier61, sobretudo nos debates em torno dos conceitos: representação, prática e apropriação. Roger Chartier afirma que embora a construção das representações do mundo social almeje a universalização, ela é determinada pelos interesses dos grupos que a forjam. Ou seja, as “percepções do social não são de forma alguma discursos neutros: produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de outros....”62. É neste sentido que analisaremos as diversas fontes coletadas, não como discursos neutros, mas como construções carregadas de subjetividade pelos sujeitos sociais que as representam. No entendimento do historiador, conforme dissemos anteriormente, três conceitos são fundamentais para a História Cultural: representação, prática e apropriação. O conceito de 61O historiador Roger Chartier salienta que a História Cultural procurava legitimar-se cientificamente a partir da conciliação dos novos domínios de investigação com os postulados da história social. Define a História Social da seguinte forma: “(...) tem por principal objetivo identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler” Refere-se, ainda, aos vários caminhos que devem ser percorridos para realizar essa tarefa, entre eles destacam-se:“ás classificações, divisões e delimitações que organizam a apreensão do mundo social como categorias fundamentais de percepção e de apreciação do real”. CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Trad. Maria Manuela Galhardo. Lisboa: Difel, 1988, p. 17. 38 representação para ele, pressupõe a soma dos discursos (fala) com práticas diferenciadas (ação) e se pauta, sobretudo, na definição de Marcel Mauss que argumenta: (...) mesmo as representações coletivas mais elevadas só têm uma existência, isto é, só o são verdadeiramente a partir do momento em que comandam actos – que têm por objetivo a construção do mundo social, e como tal a definição contraditória das identidades – tanto a dos outros como a sua63. De acordo com Chartier, tal perspectiva permite pensar numa história cultural do social, tomada como compreensão das formas e dos motivos que traduzem determinadas percepções do social e da sociedade. O historiador retoma a definição antiga do dicionário de Furetiére, que entende a representação como relacionamento de uma imagem presente e de um objeto ausente, no qual a primeira vale pelo segundo. A relação de representação em sua concepção, “modela toda a teoria do signo que comanda o pensamento clássico e encontra a sua elaboração mais complexa com os lógicos de Port-Royal”64. Este enfatiza a variabilidade e a multiplicidade das interpretações e das compreensões das representações do mundo social. Chartier destaca que a distinção fundamental entre representação e representado, entre signo e significado, é pervertida pelas formas de teatralização da vida social do Antigo Regime. Refere-se aqui à sociedade de corte analisada por Norbert Elias, na qual “a identidade do ser não seja outra coisa senão a aparência da representação, isto é, que a coisa não exista a não ser no signo que a exibe”65, ou seja, a aparência vale pelo real; a representação é confundida com a ação da imaginação. Justifica que esta deturpação constitui- se num perigoso instrumento de constrangimento interiorizado e numa violência simbólica, pois “a representação transforma-se em máquina de fabrico de respeito e submissão”.66 A noção de representação para Chartier permite articular três modalidades da relação com o mundo social: 1-) a classificação e a delimitação através das quais a realidade é 62 CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Trad. Maria Manuela Galhardo. Lisboa: Difel, 1988, p. 17. 63 Idem, p. 18. 64 Op cit, 1988, p. 21. 65 Idem, p. 21. 66 Op cit, 1988, p. 22. 39 contraditoriamente construída pelos diferentes grupos; 2-) as práticas que visam fazer reconhecer uma identidade social, exibir uma maneira própria de estar no mundo, significar simbolicamente um estatuto e uma posição; 3-) as formas institucionalizadas e objetivadas graças às quais uns “representantes” marcam de forma visível e perpetuada a existência do grupo, da classe ou comunidade. As duas primeiras considerações se aplicam diretamente ao cangaço, pois podemos classificar e analisar o modo de vida construído pelo grupo. Além disso, suas práticas evidenciam uma forma peculiar de vivência, marcada sobretudo pelo uso da violência e pela marginalidade. Para o autor, a problemática do “mundo como representação” leva a pensar nas formas de recepção, apropriação67 e reelaboração do real pelos sujeitos sociais. Tais mecanismos podem ser compreendidos a partir das práticas de leitura dos indivíduos ou dos grupos, através das quais se apropriam de determinados textos e imagens considerando que elas são histórica e socialmente variáveis. Ressalta que para uma melhor compreensão desses mecanismos é necessário romper com o conceito de sujeito universal, considerando a individualidade nas suas variações históricas, ou seja, que os indivíduos “são moldados, de diferentes maneiras em diferentes situações, pelas estruturas de poder”.68 È com base nesta perspectiva que procuramos analisar as construções no interior do banditismo brasileiro. A História Cultural para Chartier deve ser pensada como a “análise do trabalho de representação, isto é, das classificações e das exclusões que constituem, na sua diferença radical, as configurações sociais e conceptuais próprias de um tempo ou de um espaço”.69 Esclarece que as estruturas do mundo social são historicamente construídas por práticas 67 O historiador afirma que o conceito de apropriação “tem por objetivo uma história social das interpretações, remetidas para as suas determinações fundamentais (que são sociais, institucionais, culturais) e inscritas nas práticas específicas que as produzem. Conceder deste modo atenção às condições e aos processos que (...) determinam as operações de construção do sentido(...) é reconhecer, contra a antiga história intelectual, que as inteligências não são desencarnadas (....), que as categorias aparentemente mais invariáveis devem ser construídas na descontinuidade das trajetórias históricas”. CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Trad. Maria Manuela Galhardo. Lisboa: Difel, 1988, p. 26-27. 68 CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Trad. Maria Manuela Galhardo. Lisboa: Difel, 1988, p. 25. 40 articuladas (políticas, sociais, discursivas), e que a história cultural constrói sentidos e significa o mundo. Chartier70 aborda em sua obra Práticas de Leitura, questões referentes à recepção e apropriação, conceitos que juntamente com o de representação permitem resignificar e recuperar a experiência de vida dos grupos de cangaceiros, bem como as práticas e o comportamento feminino neste universo marginal. Permite compreender as inquietações, frustrações, medos e desejos dessas mulheres, sujeitas a todas as adversidades que uma vida errante e ilegal se impunham as suas relações de convívio. Estas podem ser evidenciadas nas formas de relacionamentos que permeavam o interior dos grupos de cangaceiros, seja, com o companheiro, com os outros homens e mulheres com quem conviviam cotidianamente, ou ainda, com a população externa ao bando. O cangaço criou um modo de vida próprio, caracterizado pelo tipo da indumentária, dos objetos pessoais, das armas e de suas formas de convívio que abarcavam uma rede de relações dentro dos grupos e fora deles, cujo traço principal era a violência. Os elementos externos que compõem o perfil dessas pessoas serão analisados a partir das fotografias produzidas pelo sírio-libanês Benjamim Abraão Boto71, que registrou alguns momentos do cotidiano do grupo de Lampião. Dentre estas imagens interessam-nos as das mulheres, pois elas poderão nos revelar algumas práticas do universo feminino referentes aos cuidados com o corpo, à utilização de vestidos apropriados para o dia de festa e outro para o dia-a-dia, os cuidados com os cabelos, o uso de acessórios, tais como jóias e presilhas. Enfim, revelam alguns elementos que podem traduzir uma preocupação feminina com a aparência e com o embelezamento do corpo independentemente de estarem à margem da sociedade. 69 Op cit., 1988, p. 27. 70CHARTIER, Roger. Práticas da Leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 2001, p. 27. 71 As fotografias foram produzidas durante o período em que Benjamim Abraão Boto conviveu com o grupo de Lampião no ano de 1936. 41 Para compreender as relações e as vivências femininas no interior dos bandos, voltamos nosso olhar para os depoimentos e relatos de ex-participantes como: ex-cangaceiras, ex-cangaceiros, ex-soldados, ex-coiteiros; presentes nas obras lidas, ou colhidas diretamente entre aqueles que fizeram parte do cangaço. Neste sentido, as memórias e depoimentos das ex-cangaceiras Sila72 (Ilda Ribeiro de Souza, integrante do bando de Lampião), e Dadá73 (Sérgia Ribeiro da Silva, integrante do bando de Corisco) se constituíram em materiais valiosos para a demarcação das vivências e percepções dos envolvidos no cotidiano dos bandos e as suas inter-relações. As obras do memorialista Antonio Amaury Corrêa de Araújo74, apesar de não apresentarem um formato acadêmico, mostram-se fundamentais para esta pesquisa. O autor publicou cinco livros sobre o cangaço, todos elaborados a partir de depoimentos orais com diversos ex-participantes, desde ex-integrantes até sertanejos que vivenciaram este fenômeno. Tratou o cangaço confrontando as informações a partir de ampla pesquisa histórica. A neta do casal Lampião e Maria Bonita, Vera Ferreira75, filha de Expedita Ferreira Nunes - única filha sobrevivente, escreveu em parceria com Antonio Amaury Corrêa de Araújo, dois livros sobre o cangaço. Fundamentaram-se na historiografia e nos depoimentos orais de ex-participantes dos bandos e também de alguns contemporâneos. 72As obras: SOUZA, I. R.de. Sila Memórias de Guerra e Paz. Recife: Imprensa Universitária de Pernambuco, 1995 e Angicos: Eu Sobrevivi. Confissões de uma guerreira do cangaço, São Paulo: Oficina Mônica Buonfiglio Ltda, 1997 e ainda o depoimento da ex-cangaceira Sila - Ilda Ribeiro de Souza, integrante do bando de Lampião, companheira de Zé Sereno, Rio Claro/SP, 26/01/2001. 73 O depoimento oral da ex-cangaceira ao cineasta José Umberto Dias foi transformado no documentário: A Musa do Cangaço, sob sua direção. Além disso, o cineasta também publicou Dadá, no qual transcreve o documentário e outras falas da depoente. DIAS, José Umberto. Dadá, 2ª edição, Salvador: EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989. 74As obras: ARAÚJO, A.A. C. de. Assim morreu Lampião. Rio de Janeiro: Brasília, 1976 e Lampião: as mulheres e o cangaço. São Paulo: Traço, 1985 e as obras em conjunto com FERREIRA, V. e ARAÚJO, A.A.C. de O espinho do quipá, Lampião, a História. São Paulo: Oficina Cultural Mônica Buonfiglio Ltda, 1997 e De Virgolino a Lampião. São Paulo: Idéia, 1999. Além destes livros, o autor tem publicado: Gente de Lampião: Dadá e Corisco. São Paulo: Traço, 1982, Gente de Lampião: Sila e Zé Sereno. São Paulo:Traço, 1987 e ainda Lampião Segredos e Confidências do Tempo do Cangaço, São Paulo: Traço, 1996. 75 FERREIRA, V. e ARAÚJO, A.A.C. de. O espinho do quipá, Lampião, a História. São Paulo: Oficina Cultural Mônica Buonfiglio Ltda, 1997 e De Virgolino a Lampião, São Paulo: Idéia, 1999. 42 O cineasta e memorialista José Umberto Dias76 recria a partir das recordações narradas por Dadá, o universo vivido pela ex-cangaceira. Uma parte de seu depoimento foi reproduzido em VHF no documentário A musa do cangaço, no qual também há cenas do cotidiano do grupo de Lampião e fotografias produzidas pelo sírio-libanês Abrahão Benjamim Boto. Esta mesma entrevista e a outra parte dela que não aparece no documentário, foram transformadas pelo cineasta no livro Dadá77 que apenas incorpora suas falas sem considerar que foram construídas posteriormente a sua vivência no cangaço. Além disso, carrega a subjetividade e a reelaboração da depoente, que seleciona alguns momentos que julga ser importantes, e os transmite ao memorialista a partir de uma rememoração do presente. O cineasta utiliza as próprias falas da depoente para dar forma ao livro. Ora ele as identifica recorrendo ao recurso itálico, ora as transcreve numa linguagem mais elaborada, limpa das gírias do cangaço. Acreditamos que o cineasta tenha optado por esta forma intencionalmente, com o intuito de manter-se “imparcial”, dando a impressão da veracidade de sua obra, uma vez que apenas reproduz as falas da depoente, ou até mesmo para fugir de uma problematização. Não se posiciona criticamente em relação a elas, apenas transcreve. Como se tornou difícil tratar de todas as mulheres que integravam os bandos em função da escassez de informações, optamos por explorar os aspectos que foram comuns a todas. Neste sentido, abordaremos questões relacionadas à forma de incorporação, às posturas assumidas em relação ao companheiro, à sexualidade, às atividades que as envolviam no interior dos bandos, inclusive ao desempenho com armas de fogo. Enfim, aspectos que sinalizavam uma certa regularidade no comportamento destas mulheres expostas a diversas 76 O cineasta e memorialista José Umberto Dias, produziu em 1981 o documentário A musa do Cangaço, no qual Dadá relata como foi sua experiência no cangaço. O documentário foi dirigido por Dias e Guto Diniz,, e as fotografias por Lúcio Mendes, Alonso Rodrigues e Benjamim Abrahão Boto. Este material encontra-se no acervo da Fundação Joaquim Nabuco – Recife/PE, e foi por nós reproduzido. Além deste documentário, Dias transformou o depoimento oral de Dadá no livro: DIAS, José Umberto. Dadá. 2ª edição. Salvador: EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989. 77 DIAS, José Umberto. Dadá. 2ª edição. Salvador: EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989. 43 formas de violência, e que nos permitiram também compreender suas relações internas e externas ao bando. Buscamos compreender, através da análise de uma literatura genuinamente popular como o Cordel78, qual foi o tratamento dado às mulheres cangaceiras, como foram descritas e, percebidas no espaço do cangaço. Além disso, visualizar como o cangaço foi concebido por seus contemporâneos sertanejos e como se deu a construção do mito “Lampião”. Optamos pelo uso deste material, porque sabemos que durante décadas ele foi praticamente o único veículo de informação com que contava o sertanejo. Os vários estudiosos79 destacaram o papel fundamental do cordel como formador de opinião pública. Em função da escrita simples e versada, o cordel facilitou a compreensão dos populares, sobretudo dos analfabetos e também despertou simpatia nos indivíduos letrados que apreciavam a poesia. Os analfabetos tinham a oportunidade de ouvir os folhetos recitados ou cantados nas diversas feiras nordestinas. Além disso, podiam comprá-los e pedir a algum amigo que os recitassem. Os poetas interpretavam os acontecimentos da sua cidade, região, país e mundo e os retransmitiam numa linguagem simples ao povo. Soma-se a isso, a facilidade em fixá-los na memória. Daí o seu papel fundamental como formador de opinião 78 A literatura de cordel chegou ao Brasil via Portugal, mais precisamente no século XIX com a vinda da família real para o país. A Espanha também contribuiu para a disseminação deste tipo de literatura. Pode-se afirmar que esta literatura existiu em grande parte da Europa. Na Alemanha o cordel marcou presença nos séculos XV e XVI, na Holanda, França e Inglaterra a partir do século XVII. Esse nome deve-se ao cordel ou barbante em que os folhetos ficavam pendurados em exposição. No Nordeste brasileiro mantiveram-se o costume e o nome, e os folhetos são expostos à venda pendurados e presos por pregadores de roupa em barbantes esticados entre duas estacas, fixadas em caixotes. Sobre o assunto consultar: DANTAS, Audálio (curador).Catálogo 100 anos de Cordel, São Paulo: Sesc Pompéia, 2001. Exposição realizada no período de 17 de abril a 24 de junho de 2001, em São Paulo, no Sesc Pompéia. ALENCAR, Aglaé d’Avila F. A literatura de Cordel e o relacionamento homem/mundo. In: Revista Sergipana de Folclore. Sergipe: Comissão Sergipana de Folclore, ano I, nº 2, 1977, p. 18-32 e COSTA, Roberto Aurélio Lustosa da (coordenador). Antologia da literatura de Cordel. Fortaleza: Coleção povo e cultura/ Secretaria de Cultura, Desporto e Promoção Social do Ceará, v.1, 1978. 79 Sobre este assunto consultar: CURRAN, Mark J. A sátira e a crítica social na literatura de Cordel. In: Catálogo 100 anos de cordel. São Paulo: Sesc Pompéia, 2001, CURRAN, Mark J. A “página editorial” do poeta popular. In: Revista Brasileira de Folclore. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, ano XII, nº 32, 1972, p. 5-16. FAUSTO NETO, A. Cordel e a ideologia da punição.Petrópoles: Vozes, 1979., DANTAS, Audálio. Catálogo 100 anos de Cordel. São Paulo: Sesc Pompéia, 2001, ALENCAR, Aglaé d’Avila F. A literatura de Cordel e o relacionamento homem/mundo. In: Revista Sergipana de Folclore, Sergipe: Comissão Sergipana de Folclore, ano I, nº 2, 1977, p. 18-32 e COSTA, Roberto Aurélio Lustosa da (coordenador). Antologia da literatura de Cordel. Fortaleza: Coleção povo e cultura/ Secretaria de Cultura, Desporto e Promoção Social do Ceará, v.1, 1978. 44 Mark J. Curran, professor da Universidade do Arizona e especialista em literatura de cordel, publicou mais de dez livros, além de inúmeros artigos sobre o tema. Curran enfatiza que o cordel além de informar e instruir, também tem como função distrair o público. Enfatiza que “O poeta é ligado estreitamente ao povo e aos seus problemas devido à sua vida em comum, à sua tradição cultural e à sua condição social. São as suas experiências pessoais e a sua reação à vida, como representante do povo, que oferecem ao historiador, ao sociólogo, e ao antropólogo cultural indicações verdadeiras do pensamento do povo” 80. Em seu artigo A “página editorial”81 do poeta popular, Curran atribuiu ao poeta popular, a característica de um agente social, descrevendo-o como “ representante do povo, o pequeno repórter dos acontecimentos na vida nordestina.”82. Ressalta que a leitura dos folhetos de cordel nos revela todo um estilo de vida, o pensamento, a ideologia e a personalidade do poeta como “comentador da vida do povo”.83 No artigo “A literatura de cordel e o relacionamento homem/mundo”, Aglaé d’Avila F. de Alencar84 destaca a originalidade dos folhetos de cordel como reveladores da cultura nordestina. Por meio destes pode-se analisar o homem nordestino, seus valores, seus anseios, seus usos e costumes e os problemas da sociedade de sua época. Alencar também atribuiu ao poeta popular, o papel socializador de representante do povo justificando que “O poeta de cordel é um instrumento do pensamento do povo. E ele comunica o medo, o pecado, o retrato das guerras e das brigas entre nações” 85 . Salienta 80 CURRAN, Mark J. A sátira e a crítica social na literatura de Cordel. In: Catálogo 100 anos de cordel. São Paulo: Sesc Pompéia, 2001. 81 CURRAN, Mark J. A “página editorial” do poeta popular. In: Revista Brasileira de Folclore, Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, ano XII, nº 32, 1972, p. 5-16. 82 Ibidem, p. 5. 83 Afirma o autor: “Quando uma pessoa lê folhetos da Literatura de Cordel, faz muito mais do que apreciar a poesia do povo. O leitor pode perceber um estilo de vida visto não só nos versos, mas também na apresentação total do poeta popular, sua ideologia e sua personalidade como poeta e comentador da vida do povo.” Op. cit, 1972, p. 15. 84 ALENCAR, Aglaé d’Avila F. de A literatura de cordel e o relacionamento homem/mundo. In: Revista Sergipana de Folclore, Sergipe: Comissão Sergipana de Folclore, ano I, nº 2, 1977. 85Idem, p. 25. 45 que além dos acontecimentos reais, o poeta também transfere para os versos tudo aquilo que no “(...) inconsciente o nordestino gostaria de ser...”86. Os poetas cantadores fizeram chegar aos pontos mais distantes não apenas os romances, as histórias fantásticas de pavões, bois e cavalos misteriosos, mas também as notícias dos fatos acontecidos, as catástrofes (secas, inundações, etc.), as façanhas de seus heróis e anti-heróis, as valentias de Lampião, os milagres de padre Cícero e outros. A proximidade que mantinham com o povo, o baixo custo de produção e consumo desses folhetos permitam aos poetas, em detrimento à outros veículos de comunicação (jornais, rádio e televisão), desfrutarem de maior credibilidade entre os populares. Os folhetos de cordel podem ser divididos em cinco grupos temáticos: religião, política, calamidade social, comportamento social e comportamento marginal. Para nossa pesquisa, utilizaremos os folhetos que discutem o comportamento marginal, e dentro deste grupo, os que se referem ao cangaço assunto amplamente discutido por esses poetas populares. Alguns deles foram contemporâneos ao fenômeno e produziram cordéis sobre o assunto87. Contudo, é importante ressaltar que este tema também foi abordado por cordelistas posteriores ao período de vigência do cangaço implicando na reelaboração e na resignificação do fenômeno a partir das narrativas orais de ex- participantes (cangaceiros, policiais e populares), o que evidencia a construção desta experiência sob novos parâmetros, muitas vezes assumindo a perspectiva de seus narradores que acabam por “amenizar” e “justificar” o uso da violência por cangaceiros e policiais. Os poetas Manoel D’Almeida Filho88, nascido em 13 de outubro de 1914 em Alagoa Grande na Paraíba e Antonio Teodoro dos Santos89, em 24 de março de 1916, na 86 Op cit, 1977, p. 28. 87 Nas pesquisas realizadas nos arquivos da Biblioteca Nacional e da Academia Brasileira de Literatura de Cordel, ambos no Rio de Janeiro, da Biblioteca Mário de Andrade e Arquivo do Estado de São Paulo, em São Paulo e da Fundação Joaquim Nabuco em Recife -PE, localizamos apenas folhetos elaborados posteriormente e versões reeditadas. 88 D’ALMEIDA FILHO, Manoel. Os Cabras de Lampião. São Paulo: Luzeiro, 1965. 89 SANTOS, Antonio T. dos. Maria Bonita. A Mulher Cangaço. São Paulo: Luzeiro, reedição, 1986 46 cidade baiana de Jaguarari conviveram com o cangaço desde a infância, entretanto suas obras datam das décadas de 60 e 80, respectivamente. O primeiro além, de poeta e jornalista, também foi tipógrafo e revisor. Dedicou-se à venda de folhetos, livros e revistas. O segundo tinha como profissão o garimpo. O cordelista Gonçalo Ferreira da Silva90, nasceu na cidade cearense de Ipú, em 20 de dezembro de 1937, aproximadamente seis meses antes do massacre em Angico. Silva cresceu ouvindo as estórias de cangaceiros. Prosador e poeta fez o curso de extensão universitária de Literatura Brasileira – prosa e poesia – no Instituto Afrânio Peixoto do Rio de Janeiro. Alguns dos folhetos discutem o cangaço em âmbito geral, tendo, porém, como personagem principal Lampião e suas façanhas, como é o caso do folheto intitulado Os Cabras de Lampião, de Manuel D’Almeida Filho91. Outros enfocam a vida e o comportamento de determinados cangaceiros. Assim, temos como exemplos os que têm como tema: Lampião92, Corisco93, Labareda94, Zé-Baiano95, Jararaca96, entre outros. Nestes folhetos algumas cangaceiras foram citadas. Assim, Maria Bonita aparece ao lado de Lampião; Dadá ao de Corisco; Lídia ao de Zé-Baiano. As outras mulheres geralmente foram mencionadas de forma genérica, sem maiores referências. Maria Bonita, entretanto, foi “cantada em versos” a 90 SILVA, Gonçalo F. da. Lampião. O Capitão do Cangaço. Ed: Ralp, 1983, SILVA, Gonçalo F. da. Labareda. O capador de Covardes. s/d, SILVA, Gonçalo F. da. Corisco. O sucessor de Lampião. Ed: Ralp, s/d., SILVA, Gonçalo F. da. Zé – Baiano. O ferrador de gente. 2ª ed. Rio de Janeiro: Academia Bras. de Literatura de Cordel, s/d. SILVA, Gonçalo F. da. Jararaca – O cangaceiro militar. Rio de Janeiro: Academia Bras. de Literatura de Cordel, 2000. 91 D’ALMEIDA FILHO, Manoel. Os Cabras de Lampião. São Paulo: Luzeiro, 1965. 92 São inúmeros os folhetos que falam sobre Lampião, contudo, os que tivemos acesso foram: D’ALMEIDA FILHO, Manoel. Os Cabras de Lampião. São Paulo: Luzeiro, 1965, DILLA, Alexandre J. F. C. d’ Albuquerque S. Lampião Rei dos Cangaceiros. Rio de Janeiro: Soc. Educativa e Cultural. Umbert Peregrino, 2ª ed., 1973, SILVA, Gonçalo F. da. Lampião. O Capitão do Cangaço. Ed: Ralp, 1983, SANTOS, A. A. dos. O casamento de Lampião com a filha do Diabo. 1987 e PACHECO, José. A chegada de Lampião no inferno. Rio de Janeiro: Academia. Bras. de Literatura de Cordel, s/d. 93 CARVALHO, Elias A. de. Dadá e a morte de Corisco. 1983. e SILVA, Gonçalo F. da. Corisco. O sucessor de Lampião. Ed: Ralp, s/d. 94 SILVA, Gonçalo F. da. Labareda. O capador de Covardes. s/d. 95 SILVA, Gonçalo F. da. Zé – Baiano. O ferrador de gente. 2ª ed. Rio de Janeiro: Academia Bras. de Literatura de Cordel, s/d. 96 SILVA, Gonçalo F. da. Jararaca – O cangaceiro militar. Rio de Janeiro: Academia Bras. de Literatura de Cordel, 2000. 47 partir de perspectivas distintas, pelos cordelistas Antônio Teodoro dos Santos e Gonçalo Ferreira da Silva nos livretos Maria Bonita. A mulher cangaço97 e Maria Bonita – A eleita do Rei98. Antonio Teodoro dos Santos inicia sua narração contando-nos desde a infância da personagem, passando por sua adolescência e juventude, seu ingresso no cangaço e sua morte em Angico. Ou seja, o poeta inicia e conclui suas reflexões colocando Maria Bonita no panteão de heroínas-guerreiras, ao lado da francesa Joana D’arc, das brasileiras Anita Garibaldi, Ana Néri e Maria Quitéria. Mulheres que simbolizam coragem e valentia na luta por seus ideais. Gonçalo F. da Silva, por sua vez, faz uma abordagem mais sentimental. Inicia sua narrativa referindo-se ao amor de Maria Bonita por Lampião, portanto já na sua juventude. Esta discussão será por nós retomada no capítulo 2. O cordel, em função de seu caráter genuinamente popular, revelou-nos a visão que os segmentos letrados do povo tinham do cangaço, de Lampião e, sobretudo, das mulheres. Apesar de termos poucos cordéis que se referem especificamente à mulher, isto não nos impediu de tentar compreender qual foi a opinião popular, disseminada nestes folhetos sob a forma de poesia, em relação a essa mulher. É interessante notar como Lampião é tratado nestes folhetos, numa mistura de bandido e herói, criminoso comum e justiceiro, mortal e imortal. Enfim, esses são elementos necessários à mitificação do próprio personagem, considerando-se que o cordelista apreende um acontecimento e, numa linguagem popular, o transmite aos seus leitores. A análise da imagética do cangaço nos revelou aspectos estéticos da indumentária feminina evidenciando que foram desenvolvidas e adaptadas para aquele tipo de vida. A indumentária cangaceira destaca-se pelo uso do couro (inspirada na vestimenta dos vaqueiros e tinha a função de protegê-los contra a vegetação espinhosa), de bordados, de desenhos e de 97 SANTOS, Antonio T. dos. Maria Bonita. A Mulher Cangaço. São Paulo: Luzeiro, reedição, 1986. 48 cores fortes, inovações introduzidas por Lampião. Essas informações foram fornecidas pelo advogado Frederico Pernambucano de Mello99, que analisou alguns aspectos da estética cangaceira, a partir da reconstituição dos trajes dos cangaceiros. O trabalho com a fotografia não é uma tarefa fácil, pois ela exige cuidados e metodologias específicas. Isso se torna ainda mais relevante, quando nos referimos ao universo peculiar do cangaço, sobretudo se considerarmos que esse modo de vida é analisado após 67 anos dessa produção iconográfica. Os especialistas que se dedicaram ao estudo da fotografia100 enfatizam que ela resulta de um procedimento humano, que envolve três elementos essenciais: o assunto, o fotógrafo e a tecnologia, num dado espaço e tempo. Ressaltam que a fotografia é um fragmento selecionado do real, congelado e materializado na forma de imagem. É, portanto, uma representação da realidade passada, que sofreu influência direta do fotógrafo desde a escolha do assunto até a sua produção final. Daí, a importância de se trabalhar a fotografia como uma representação, e não como uma “verdade”101 incontestável, já que carrega em si uma intencionalidade e um determinado foco fragmentado do real, permitindo uma multiplicidade