CLAUDIO SARDINHA PONTES JÚNIOR REVISITANDO OS PROBLEMAS DE APRENDIZAGEM E A PRODUÇÃO DO FRACASSO ESCOLAR: o que pensam os professores na atualidade ? Assis 2021 CLAUDIO SARDINHA PONTES JÚNIOR REVISITANDO OS PROBLEMAS DE APRENDIZAGEM E A PRODUÇÃO DO FRACASSO ESCOLAR: o que pensam os professores na atualidade ? Dissertação apresentada à Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, para a obtenção do título de Mestre em Psicologia (Área de Conhecimento: Psicologia e Sociedade) Orientadora: Profª. Drª. Rita Melissa Lepre Assis 2021 Dedico este trabalho a todos aqueles e aquelas que apesar de tudo continuam acreditando no poder de transformação da educação. AGRADECIMENTOS Sem a pretensão de citar todas as pessoas, pois são muitas, e sem a intenção de mencioná-las em ordem de importância, porque todas foram importantes de alguma forma nesse processo. Meus sinceros agradecimentos aos meus pais, Claudio e Shirley, minha irmã, Bruna, e minha família por todo o apoio e suporte ao longo desses anos. Vocês me apoiaram em minhas escolhas e estiveram presentes mesmo à distância. Todos os meus agradecimentos a minha parceira de vida, Ingrid, por estar presente e me dar forças em todos os momentos dos últimos anos da melhor maneira possível, e por cada dia construirmos uma trajetória juntos. Agradeço enormemente aos meus queridos amigos, Leandro, Frederico e Tobias, por terem sido tão fundamentais de tantos modos diferentes na minha vida pessoal, me acompanhando desde os meus primeiros passos na vida acadêmica e profissional. À minha orientadora, por aceitar se aventurar comigo nesse percurso de pesquisa, instruindo-me, orientando e auxiliando em tudo que foi necessário ao longo desses anos, por ser uma pessoa capaz de despertar o melhor em cada um, todo meu respeito e admiração. Agradeço aos amigos de Seresta da Unati pelos bons encontros. Aos amigos de república pela convivência, aprendizado e bons momentos. Aos amigos e amigas da B.O.teria por momentos incríveis que jamais serão esquecidos, obrigado por terem me transformado tanto, por todos os momentos compartilhados, por fazer a vida em Assis mais fácil e ser minha segunda família ao longo de todos esses anos. Aos amigos Amália e Lucas por todo suporte, por dividir as angústias da vida e tantos afetos. Ao camarada Abraão por toda a influência e incentivo desde o início da minha formação. Ao meu grande amigo de longa data, Miguel, por estar presente depois de tanto tempo mesmo à distância. Agradeço aos funcionários do campus de Assis, aos professores da graduação e pós-graduação pelas inúmeras contribuições ao longo da minha formação enquanto psicólogo e pesquisador e por todos que lutam diariamente para fazer a universidade pública uma realidade diante de tantas dificuldades. SARDINHA, Claudio Pontes Júnior. Revisitando os problemas de aprendizagem e a produção do fracasso escolar: o que pensam os professores na atualidade ?. 2021. 135 p. Dissertação (Mestrado Acadêmico em Psicologia) – Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, 2021. RESUMO Os problemas no processo de escolarização são antigos na história da educação formal brasileira, assim, o fracasso escolar no Brasil tem se configurado historicamente de modo crônico e complexo. Desse modo, torna-se fundamental o contínuo aprofundamento no tema, considerando os professores que lidam diretamente com os desafios cotidianos nas escolas, pois apesar de melhorias significativas nos índices educacionais nas últimas décadas, o cenário ainda é preocupante, existindo questões que merecem atenção constante. Por isso, busca-se aqui compreender os problemas de aprendizagem e a produção do fracasso escolar de modo multifatorial, tendo como referencial teórico a Psicologia Escolar crítica, arguindo possibilidades de atuação e intervenção na interface da Psicologia e Educação. Assim sendo, o objetivo é revisitar o tema dos problemas de aprendizagem e a produção do fracasso escolar no Brasil, analisando a concepção dos professores do ensino fundamental dos anos iniciais sobre o tema. Para a coleta dos dados, elaborou-se um questionário misto, divulgado online; ao todo, 37 professores dos anos iniciais participaram da pesquisa. Utilizou-se como método a análise temática de conteúdo de Laurence Bardin para sistematização e interpretação dos resultados. Apesar de avanços nas concepções de alguns professores, no geral ainda foi possível constatar a presença de concepções que entendem as dificuldades de aprendizagem centrada no aluno, com olhar individualizante e a culpabilização do aluno e sua família, compreendendo frequentemente o problema como extraescolar, isto é, questões pedagógicas e escolares são muito menos mencionadas como justificativa, enquanto conflitos familiares, problemas emocionais, cognitivos, neurológicos, déficits intelectuais são os mais citados como causa dos problemas de aprendizagem. Além disso, a diferença entre problemas e transtornos de aprendizagem nem sempre ficou clara para os professores, e muitos não se sentem preparados ou apenas parcialmente preparados para lidar com essas situações na prática pedagógica. Palavras-chave: Fracasso escolar; Psicologia escolar; Dificuldades de aprendizagem; Problemas de aprendizagem; Patologização. SARDINHA, Claudio Pontes Júnior. Reviewing learning problems and the production of school failure: what do teachers think nowadays?. 2021. 135 p. Dissertation (Masters in Psychology). São Paulo State University (UNESP), School of Sciences, Humanities and Languages, Assis, 2021. ABSTRACT The problems in the schooling process are old in the history of Brazilian formal education, thus, school failure in Brazil has historically been configured in a chronic and complex way. Thus, it is essential to continuously deepen the theme, considering teachers who deal directly with the daily challenges in schools, because despite significant improvements in educational indexes in recent decades, the scenario is still worrying, with issues that deserve constant attention. For this reason, the aim here is to understand the learning problems and the production of school failure in a multifactorial way, arguing about possibilities of action and intervention at the interface of Psychology and Education. Therefore, our objective is to revisit the theme of learning problems and the production of school failure in Brazil, analyzing the conception of primary school teachers in the early years on the subject. For the collection of data, a mixed questionnaire was elaborated, published online for teachers, in all, 37 teachers from the initial years participated in the research. Laurence Bardin's thematic content analysis was used as a method to systematize and interpret the results. Despite some advances in the conceptions of some teachers, in general it was still possible to verify the presence of conceptions that understand student-centered learning difficulties, with an individualizing look and the blame of the student and his family, often understanding the problem as out of school, that is, pedagogical and school issues are much less mentioned as a justification, while family conflicts, emotional, cognitive, neurological problems, intellectual deficits are the most cited as the cause of learning problems. In addition, the difference between problems and learning disorders has not always been clear to teachers, and many do not feel prepared or only partially prepared to deal with these situations in pedagogical practice. Keywords: School failure; School psychology; Learning difficulties; Learning problems; Pathologizing of education. SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO……………………..…………………………………………………....13 2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA………………………………………………………..18 2.1. CONSIDERAÇÕES SOBRE EDUCAÇÃO E A PSICOLOGIA ESCOLAR NO BRASIL ……………………………………………………………………………………18 2.1.1. Os dados educacionais atuais ………………………………………………...30 2.1.2. O cenário contemporâneo em psicologia escolar crítica: novos estudos, conclusões semelhantes………………………………………………………….. 37 2.2. CONSIDERAÇÕES SOBRE A PRODUÇÃO DO FRACASSO ESCOLAR…....46 2.2.2. Principais teorias que buscaram explicar o fracasso escolar……………...50 2.2.3. O surgimento de críticas às explicações vigentes……………………....53 2.3. CONCEPÇÕES DOS PROFESSORES A RESPEITO DOS PROBLEMAS DE APRENDIZAGEM…………………………………………………………………………..56 2.4. MEDICALIZAÇÃO E PATOLOGIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO ……………………..60 2.5. PROBLEMAS/DIFICULDADES E DISTÚRBIOS DE APRENDIZAGEM……....73 2.6. QUEIXAS ESCOLARES: CARACTERÍSTICAS FREQUENTES DOS ALUNOS ENCAMINHADOS PARA ATENDIMENTO PSICOLÓGICO ………………………….81 2.6.6. Algumas reflexões sobre as queixas escolares ………………………………....86 2.6.7. Processo diagnóstico e intervenções nos problemas de aprendizagem.... 93 2.6.8. Alunos e os rótulos ………………………………………………………….96 3. MÉTODO………………………………………………………………………………..100 3.1 Apreciação ética …………………………………………………………………….101 3.2 Procedimentos…………………………………………………………………….101 3.3 Instrumento…………………………………………………………………....102 4. ANÁLISE E RESULTADOS…………………………………………………………..103 4.1. Dados sociodemográficos e perguntas fechadas:……………………….104 4.1.1 Perguntas abertas ………………………………………………………….107 a) Definindo aprendizagem…………………………………………………………….108 b) O que pensam os professores sobre os problemas de aprendizagem ?….110 c) Atuação diante dos problemas de aprendizagem ……………………………..114 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS…………………………………………………………..119 REFERÊNCIAS..………………………………………………………………………….123 APÊNDICES..……………………………………………………………………………..131 ANEXOS..………………………………………………………………………………….137 LISTA DE ABREVIATURA E SIGLAS ANA - Avaliação Nacional Da Alfabetização ANVISA - Agência Nacional de Vigilância Sanitária IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IDEB - Índice de Desenvolvimento da Educação Básica INEP - Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira LDB - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional MEC - Ministério da Educação. PISA - Programa Internacional de Avaliação de Alunos PNAD - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua SAEB - Sistema de Avaliação da Educação Básica SNAP IV – Questionário de Swanson, Nolan e Pelham. TCLE – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido TDAH - Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade TEA - Transtorno do Espectro Autista UBS - Unidade Básica de Saúde OCDE - Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico 13 1. INTRODUÇÃO Escrever e pensar sobre educação não é tarefa fácil, dada a amplitude de possibilidades que o tema permite, assim como o grande número de autores que já se aventuraram nessa experiência ao proporem as mais diversas teorias. No entanto, ainda é tarefa necessária nas circunstâncias da nossa realidade atual. Por isso, a partir deste momento, iniciamos uma jornada, dentro de algumas das complexas inter-relações existentes entre o campo educacional e a Psicologia, tendo como finalidade problematizar o processo educacional e suas nuances, refletindo sobre outras formas possíveis de se pensar e fazer Psicologia e Educação, assim como as limitações e impasses que se levantam nessa área de conhecimento. Durante esse processo, surgiram inúmeras dúvidas, angústias, questionamentos e reflexões contínuas, tudo em nome da busca incessante de compreender os fenômenos, de ser claro, objetivo e de conseguir comunicar aquilo que pensamos e produzimos para outras pessoas, sejam elas com maior ou menor familiaridade com o tema da pesquisa. Sendo assim, um dos maiores desafios do pesquisador é buscar alternativas de como conseguir soar de maneira significativa, em tempos em que tudo é quase instantâneo, em que as informações fluem rápido, de diversas maneiras e por variados meios, ou seja, como romper com o imediatismo, o que fazer para que uma dissertação de mestrado alcance os diversos públicos, para que esses possam se utilizar dela e ao mesmo tempo manter o rigor que a pesquisa científica exige ? Dito isso, é preciso deixar claro que o objetivo é revisitar o tema dos problemas de aprendizagem e a produção do fracasso escolar no Brasil, analisando a concepção dos professores do ensino fundamental dos anos iniciais sobre esse tema. Desse modo, após levantamento bibliográfico e algumas reflexões sobre a temática, iremos analisar os dados obtidos via questionário, com base no método de análise de conteúdo de Bardin (2011). Assim, poderemos comparar os dados obtidos e as categorias de análise que foram possíveis neste estudo, com outros resultados 14 publicados em outras pesquisas sobre esse assunto e a quais conclusões chegaremos. O tema da educação teve e ainda tem grande destaque no imaginário social brasileiro. Concedemos imensa importância à educação, lutando por condições educacionais de qualidade, principalmente depositando esperanças de que esse seja um meio de ascensão social e profissional, um método de melhora nas condições de vida em sociedade, diminuição de fenômenos sociais, como a violência e o desemprego, ou seja, em geral, como oferta de mais oportunidades de desenvolvimento, isso é o que podemos escutar com certa frequência no senso comum, ou como dizem, por exemplo, “estudar para ser alguém na vida”. Não precisamos ir muito longe para perceber como o acesso à educação faz parte das preocupações dos cidadãos de nosso país e como as mais diferentes classes sociais não medem esforços para garantir as condições de acesso, permanência e índices de aprendizagem satisfatórios. Foi devido à relevância social e do interesse coletivo no desenvolvimento dessa área, que pensamos sobre a importância de continuarmos avançando nas compreensões acerca das problemáticas que envolvem as escolas públicas brasileiras, observando se houve avanços significativos ao longo do tempo e contribuindo com novos dados e pesquisas. Acreditamos que investigar a concepção dos professores a respeito da temática dos problemas de aprendizagem e da produção do fracasso escolar, podem nos oferecer elementos fundamentais para investigar e analisar os avanços - ou não - na compreensão desses fenômenos, ou seja, observar se as velhas explicações, mesmo com literatura suficiente que questione cientificamente essas justificativas, ainda são utilizadas para atribuir ao baixo desempenho escolar dos alunos de classes populares ou se nos dias de hoje novas respostas são dadas a essas velhas perguntas. Sabemos que muitos foram os autores, dos mais diversos campos do saber e de diferentes teorias que se dedicaram a estudar as problemáticas da educação, e 15 que muito conhecimento já foi produzido nessa área, no entanto, os problemas continuam a assolar as escolas públicas do Brasil, e os índices divulgados no decorrer do tempo, apesar de indicarem melhorias, ainda estão longe de serem satisfatórios. Isso, por si só, já se apresenta como motivo suficiente para continuarmos buscando novas alternativas e compreensões, em busca de melhorias sobre o entendimento dos fenômenos educacionais, sem termos a pretensão é claro, de sermos redentores, heróis da educação, pois um campo tão vasto e complexo exige também respostas complexas, múltiplas e contínuas, por isso não se trata aqui de esgotarmos todas as possibilidades sobre o tema. Dessa forma, apesar dos avanços conquistados no país, principalmente no decorrer do último século, ainda há muito trabalho a ser realizado. Para isso, é necessário adotarmos uma prática crítica, para transformar e melhorar a realidade das escolas públicas e dos índices de aprendizagem dos alunos, mesmo que pareça um trabalho árduo mudar esse cenário, não significa que seja impossível. Diante das dificuldades que surgem no cotidiano escolar, desde questões mais antigas, até situações do cenário contemporâneo, não podemos assumir uma visão fatalista e simplesmente aceitar que não temos o que fazer, ou ainda transferir a responsabilidade para outras pessoas ou instituições, esperando que alguém faça algo, pois podemos realizar ações, por menores que sejam, para darmos início a mudanças nesse quadro, movimento que já foi realizado e que ainda nos dias de hoje muitos profissionais continuam desempenhando. Isso significa que há muita coisa que pode ser feita, desde que pautada por estudos, por experiências inovadoras, e que seja realizada de modo inter e multidisciplinar, com enfoque coletivo, rompendo com visões e práticas cristalizadas, isto é, precisamos ter práticas profissionais com aprimoramento constante, ao mesmo tempo que abandonamos explicações que não se sustentam mais ou que apenas sirvam para explicitar preconceitos, ou seja, tão importante quanto saber o que fazer, é conhecer os caminhos que demonstram o que não se fazer, por terem sido ineficientes e produzido efeitos negativos na educação. 16 Assim sendo, não basta que sejamos apenas bem intencionados na prática pedagógica ou psicológica, é preciso ir além, aprofundar-se no tema, romper com o óbvio, descobrir o que pode estar por trás das aparências na complexidade que a discussão merece, para que possamos cada vez mais complementar os conhecimentos nessa área do saber, buscando novas alternativas quando as respostas utilizadas se demonstrarem insuficientes. Muitos caminhos são possíveis, muitos estudos podem contribuir das mais diversas maneiras, e além disso, já contamos com inúmeros trabalhos científicos que apontam as contradições e perigos que uma prática pedagógica alienada pode acarretar, assim como as adversidades que podem ser causadas por avaliações psicológicas malfeitas. Por esses motivos, não podemos mais aceitar que justificativas equivocadas e que foram refutadas por outros estudos, ainda continuem sendo dadas aos alunos, como meio de explicar problemas decorrentes do processo de escolarização. Por outro lado, é importante deixar em evidência, que não estamos com isso, defendendo o ponto de vista de que a realidade seja fácil, e que os problemas serão solucionados sem grandes esforços, muito menos afirmar que as teorias dão conta de oferecer todas as soluções de forma mágica. É preciso que haja constante diálogo entre a teoria e a prática, num trabalho realizado a muitas mãos e respeitado cada contexto. É importante dizer que os questionamentos aqui levantados, junto aos dados coletados, não têm como função a culpabilização dos alunos, dos pais, da família, psicólogos, educadores, ou de quaisquer outros profissionais que estejam envolvidos direta ou indiretamente com os desafios escolares. Entendemos que apontar culpados ou transferir a culpa de um pólo para o outro não seja o caminho para a construção de formas eficientes de se pensar a educação, e esse trabalho não tem como pretensão simplesmente julgar em certo e errado as atitudes, mas sim compreender de maneira ampla os fenômenos, considerando vários fatores e que não se reduzem a entendimentos lineares de causa e efeito. 17 Precisamos de cautela para observar os problemas educacionais e analisar as melhores formas de contribuição oriundas da Psicologia, evitando assim, situações em que ocorram encaminhamentos arbitrários, sem critérios mínimos, e que possam influenciar desfavoravelmente a trajetória escolar das crianças. Foi exatamente por esses motivos, que o tema passou a despertar interesse gradativo em mim, ao longo da minha formação na graduação, pela insatisfação em simplesmente aceitar que o número expressivo de alunos historicamente com problemas de aprendizagem, repetentes fadados a uma trajetória de fracasso escolar fossem apenas crianças com distúrbios, patologias, culpados exclusivos por sua não aprendizagem, e que nada mais poderia ser feito, já que as causas sempre se encontravam neles centradas, principalmente aos de classes populares, enquanto alunos da elite em grande parte obtinham melhores desempenho de acordo com os critérios estabelecidos de avaliação. Sendo assim, pela insatisfação que essas explicações me causavam, por experiências de colegas de sala que foram estigmatizados e que não tiveram uma trajetória de sucesso na escola, e por no mínimo, incompletude das explicações oferecidas, que fui buscar literatura científica e descobri que junto aos meus questionamentos, naquele momento ainda de maneira muito superficial, que já haviam outras vozes muito potentes, que se debruçaram com intensa dedicação para desmistificar mitos que sustentam um discurso “científico” que evidenciava mais os preconceitos do que explicavam as causas dos alunos com baixo desempenho escolar. Descobri que não estava sozinho, que havia um campo de estudos voltado a isso, e por essa razão decidi que poderia me aprofundar nesses assuntos e contribuir de alguma maneira, mesmo que discreta, por meio de uma pesquisa de mestrado. Desse modo, a dissertação será organizada da seguinte forma: introdução, seguida da fundamentação teórica, em que passaremos por diversos autores da Psicologia escolar crítica, tecendo algumas reflexões sobre a educação e a Psicologia escolar no brasil, observando os dados educacionais atuais e o cenário recente em Psicologia escolar crítica. A seguir, fazemos algumas considerações sobre a produção do fracasso escolar no Brasil, passando pelas principais teorias que buscaram explicar o fracasso escolar, assim como o surgimento de críticas a 18 essas teorias. Na sequência, iremos nos ater a respeito da concepção dos professores sobre os problemas de aprendizagem, passando pelo tema da medicalização e patologização na educação. Em seguida vamos nos dedicar às diferenças nos conceitos de problemas/dificuldades e transtornos de aprendizagem e algumas considerações sobre as queixas escolares. Assim, passaremos aos métodos utilizados na pesquisa e seus procedimentos, seguido da análise e resultados dos dados e por fim as considerações finais do trabalho. 2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA 2.1. CONSIDERAÇÕES SOBRE EDUCAÇÃO E A PSICOLOGIA ESCOLAR NO BRASIL Antes de adentramos com mais especificidade nas discussões sobre o problema central proposto nesta pesquisa, queremos voltar um pouco no tempo para entendermos alguns acontecimentos do passado sobre a história da constituição da educação formal no ocidente, com maior ênfase no cenário brasileiro, assim como o advento da Psicologia nesse meio, já que por se tratar de acontecimentos históricos e políticos importantes que deixaram suas marcas, não podemos simplesmente ignorá-los, porque foram processos que influenciaram nas problemáticas que aqui serão investigadas. Diante disso, algumas considerações são importantes para contextualizarmos as discussões posteriores, pois concordamos que: [...] não é eliminando todos os elementos históricos e sociais dos fatos que se poderá garantir a objetividade científica. Ao contrário, ela só se torna possível à medida que se compreender a realidade enquanto processo que se constrói na trama complexa das relações sociais [...] (MEIRA, 2002, p. 41). Assim, considerando que a pesquisa é um recorte sobre o tema, não iremos, é claro, passar por toda a história da educação para a humanidade, e explorar todas as suas facetas possíveis, pois sabemos que isso não seria plausível devido a amplitude do tema. Por isso, focaremos particularmente em alguns aspectos sobre o 19 histórico da educação escolar, principalmente no Brasil, buscando entender os processos que permearam a constituição e consolidação da educação no país, passando por dados sobre esse cenário no passado, além de informações mais atuais, referentes ao contexto educacional vigente e os desafios enfrentados no cotidiano escolar nos dias de hoje. Sobre o processo histórico da educação escolar no ocidente: A pesquisa histórica revela que uma política educacional, em seu sentido estrito, tem início no século XIX e decorre de três vertentes da visão de mundo dominante na nova ordem social: de um lado, a crença no poder da razão e da ciência, legado do iluminismo; de outro, o projeto liberal de um mundo onde a igualdade de oportunidades viesse a substituir a indesejável desigualdade baseada na herança familiar; finalmente, a luta pela consolidação dos Estados nacionais, meta do nacionalismo que impregnou a vida política europeia no século passado. Mais do que os dois primeiros, a ideologia nacionalista parece ter sido a principal propulsora de uma política mais ofensiva de implantação de redes públicas de ensino em partes da Europa e da América do Norte nas últimas décadas do século XIX. (PATTO, 2015, p. 47). Patto (2015) ainda destaca que entre o final do século XVIII até meados do século XIX, a presença social da escola se apresentava muito mais como intenção de um grupo de intelectuais pertencentes à burguesia do que realidade em si. Para a autora, as fontes históricas disponíveis não permitem concluir que de 1780 até pelo menos 1870, que a escola tenha sido uma instituição necessária e imprescindível à qualificação das classes populares, para a realização dos trabalhos que moviam os setores primário e secundário da economia, chegando a conclusão de que “os sistemas de ensino não são, portanto, uma realidade durante os setenta primeiros anos do século XIX.” (p. 51). Nessa direção, Patto (2015, p. 54) constata “[...] nas últimas décadas do século XIX e nas primeiras do século XX, as pressões populares por educação desempenham um papel importante na expansão da rede escolar nos países capitalistas centrais”. Nesse momento, a escola começa a ser mais necessária para atender as necessidades da época, junto à ideia de liberdade e igualdade, sendo vista como meio de superação das desigualdades sociais e de atingir melhores condições de vida. Por isso: 20 A escola inicialmente imposta como instrumento de unificação nacional passa a ser desejada pelas classes trabalhadoras quando de alguma forma se apercebem da desigualdade embutida na nova ordem e tentam escapar, pelos caminhos socialmente aceitos, da miséria de sua condição. A escolarização é uma das formas que essas tentativas assumem, quer como luta individual (familial) da maioria, quer como luta coletiva (através das organizações de trabalhadores) de uma minoria que consegue levar a compreensão da realidade social até o limite histórico de sua possibilidade. (PATTO, 2015, p. 53). Nesse período, para que possamos ter uma ideia mais precisa, quando olhamos em retrospectiva, o cenário educacional brasileiro era o seguinte, “[...] a educação escolar era privilégio de pouquíssimos; quando da proclamação da República, menos de 3% da população frequentava a escola, em todos os seus níveis, e 90% da população adulta era analfabeta.” (PATTO, 2015, p. 79). Esses números ajudam a ilustrar o contexto da época, e sua gravidade, tendo em vista que pouco mais de um século nos separa do presente, além de que, algumas décadas depois, em 1930, Patto (2015) aponta que o crescimento da rede pública de ensino no país continuava inexpressivo e o Brasil ainda possuía em torno de 75% de analfabetos. No contexto brasileiro, Patto (2015) afirma que a década de 1920 configurou um marco para a história da educação nacional, no entanto, não por conta de mudanças qualitativas ou quantitativas significativas que ocorreram nesse período e transformaram o cenário educacional radicalmente, mas sim pela intensa movimentação intelectual que aconteceu em torno da questão do ensino, exercendo influência decisiva sobre os rumos da educação no Brasil nas décadas seguintes. Embora tenha sido apenas a partir dos anos 30 que o crescimento de uma rede pública de ensino tornou-se realidade (os historiadores da educação no Brasil concordam que até 1930 não dispúnhamos de um sistema de educação popular), não se pode esquecer que sua construção se dá sob a nítida influência das ideias e lutas encaminhadas nos dez anos anteriores. (PATTO, 2015, p. 82). Assim sendo, é possível perceber que apesar das pressões populares anteriores, é somente na década de 1930 que a rede de ensino pública começou a se consolidar e expandir cada vez mais no território brasileiro. Por isso, um dos motivos relevantes para voltarmos os olhares para esses processos, é porque “[...] as relações entre Psicologia e Educação no Brasil são bastante estreitas, de 21 maneira tal que não é possível compreender o processo histórico de uma sem a articulação com o desenvolvimento da outra.” (ANTUNES, 2003, p. 162). Dessa forma, devido à influência mútua desses dois campos do saber, é necessário compreendermos as peculiaridades que surgiram dessa intersecção entre as áreas, visando problematizar esse processo. Ainda nesse contexto, é possível notar que “assim como a Psicologia tornou-se constitutiva do pensamento educacional e da prática pedagógica, foram estes, por sua vez, a base sobre a qual ela se desenvolveu, a ponto de obter reconhecimento como profissão específica.” (ANTUNES, 2003, p. 162). Ou seja, a Psicologia não só influenciou as práticas pedagógicas ao longo do tempo, como também foi através da prática dos psicólogos na educação que ela conseguiu atingir status de profissão, sendo reconhecida e chegando a ser posteriormente regulamentada no país. De maneira sucinta e didática, Patto (1997) destaca três momentos principais da trajetória da Psicologia no contexto educacional no Brasil, sendo o primeiro período na 1ª república (1906-1930), momento em que a prática esteve influenciada por teorias europeias, caracterizada por estudos desenvolvidos em laboratórios. O segundo período diz respeito a consolidação do modo de produção capitalista (1930-1960), em que predominaram estudos e tendências norte-americanas, momento em que a Psicologia assume explicitamente perfil psicométrico, experimental e tecnicista. E o terceiro e último período, acontece de 1960 em diante, quando a Psicologia passa a ser praticada nas escolas de modo mais sistemático e direto, com objetivos adaptacionistas. Levando-se em consideração esses aspectos e em concordância ao que foi dito, Antunes relata que “[...] apesar da presença sistemática das ideias psicológicas no interior da Medicina, foi principalmente no terreno da Educação que a Psicologia logrou conquistar sua autonomia como área específica de conhecimento no Brasil.” (ANTUNES, 2003, p. 150). Isso demonstra como a prática associada ao campo 22 educacional exerceu influência determinante para que a Psicologia ganhasse destaque como ciência e profissão no país. Nesse sentido, outra autora que chama nossa atenção para esses acontecimentos, é Bock (2003, p. 79), que se debruçou sobre a “cumplicidade ideológica que se estabeleceu entre Psicologia e Educação e que tem caracterizado a prática educativa.” Para Bock (2003), o encontro entre os dois campos foi marcado principalmente por essa cumplicidade, em que a Psicologia acabou por fortalecer noções naturalizantes da Pedagogia e contribuiu para ocultar a educação como processo social, algo que foi muito útil para que os problemas fossem pensados de maneira simplista, já que as justificativas estavam centradas no próprio aluno, levando pouco em conta outros fatores até então. Em síntese, diante desse panorama, partimos do pressuposto de que: As transformações históricas por que passou o Brasil no século XIX constituem-se em fatores essenciais para a compreensão da produção e da incorporação de saberes sobre o fenômeno psicológico às questões educacionais, tendência que já se fazia presente no período anterior, porém nesse momento de forma mais organizada e sistemática, principalmente pelos vínculos institucionais, representados, sobretudo, pelas Escolas Normais apesar de sua precariedade como instância formadora de1 professores e de produção de conhecimento” (ANTUNES, 2003, p. 147-148). Antunes (2003) também aponta a importância do ensino superior para esse momento, já que o ambiente acadêmico foi uma das importantes fontes de produção das ideias psicológicas. A autora ressalta que no século XIX as faculdades de Medicina da Bahia e do Rio de Janeiro foram as instituições mais relevantes na produção de conhecimento na área, considerando que muitas das teses em medicina eram referentes às questões educacionais, trazendo questões relativas ao fenômeno psicológico, além de produzir prescrições que deveriam ser seguidas pelas escolas. 1 A escola normal de São Paulo foi uma das mais importantes instituições responsáveis pelo desenvolvimento da Psicologia no Brasil em geral e da Psicologia Educacional em particular. 23 Com isso, a prática dos psicólogos foi sendo adaptada nesses moldes e, segundo Bock (2003, p. 86) “a Psicologia contribui significativamente, para que a educação e suas instituições possam ficar sempre ilesas e isentas da crítica ou do fracasso”. Assim, a autora demonstra a cumplicidade ideológica da Psicologia e Educação, pois no início estiveram juntas em produções que acabavam por culpabilizar a vítima, aproveitando-se da legitimidade científica que possuíam. As escolas e as práticas educacionais adotadas vão sofrendo leves alterações ao longo do tempo, devido ao objetivo a ser alcançado. Esses processos deixaram suas marcas, e podem ser identificados por suas características reconhecidas sem grandes dificuldades. Desse modo, pensamos ser importante destacar a posição que a Educação ocupava no princípio e posteriormente, isto é, a que tipo de formação buscava atender, seja a nível individual ou social. Nesse sentido, podemos dizer que: A pedagogia da escola tradicional respondeu a uma sociedade aristocrática hierarquizada e cristalizada. Tudo estava “no lugar”. As diferenças sociais entre nobres e servos era dada naturalmente, assim, quem nascia nobre morria nobre e o mesmo acontecia com os servos. As concepções de mundo deste período são também hierarquizadas e cristalizadas: a terra é o centro do universo; a natureza é sagrada; a verdade é única e está dada por revelação divina. Ninguém precisa escolher nada porque os destinos estão traçados; cabe a cada um seguir sua própria sina. Em uma sociedade onde tudo está pensado como pronto e acabado, à escola e à educação que nela acontece só resta reproduzir. Por isso, as regras, a disciplina, a autoridade se tornam tão importantes. Por isso a tarefa fundamental da educação é impor o modelo dominante (BOCK, 2003, p. 84). Deste modo, para começarmos a entender melhor a temática dos problemas de aprendizagem e a produção do fracasso escolar, precisamos analisar alguns elementos da história do país, algo que contribui para entendermos como alguns problemas se moldaram ao longo dos anos. Romanelli (1986) foi uma, dentre vários autores, que realizou estudos importantes, se aprofundando em documentos oficiais, relatórios, legislações e censos estatísticos de várias décadas, coletando inúmeras informações e demonstrando-as em dados gráficos e tabelas ao longo de seus trabalhos, que 24 contribuíram para mostrar a situação da educação formal no Brasil em seus primórdios e nas décadas subsequentes. Patto (2015) também se aprofundou em suas pesquisas em Psicologia escolar, buscando dados oficiais, destacando processos históricos e políticos importantes em cada contexto, assim como os avanços e problemas de cada período, contribuindo para ilustrar como a educação brasileira foi se consolidando ao longo do tempo. Essas produções no permitiram enxergar em números a situação e a gravidade dos problemas escolares enfrentados ao longo do século passado, pois as análises realizadas por essas duas autoras nos demonstraram com base em muitos dados oficiais da época, que a produção do fracasso escolar e o baixo desempenho dos alunos de classes populares não foram exceções ou generalizações de poucos casos, eram na verdade uma parcela muito significativa, quando não a maioria. Podemos dizer que a tônica da educação brasileira foi desde seu início no país, a seletividade. Romanelli (1986) destaca que desde a organização social do Brasil colônia - apoiado nas grandes propriedades rurais e escravocratas - a educação já possuía caráter extremamente seletivo, visto que apenas uma parcela minoritária de donos de terra possuía acesso à educação, enquanto os pobres e escravos ficavam excluídos. A história da educação brasileira tem seu início, portanto, com acesso e permanência sendo privilégio de poucos, com o fator agravante de ser completamente alheia à realidade da vida colonial, pois o ensino era ministrado pelos jesuítas e tinha como objetivo principal oferecer ensino aos filhos dos senhores de terra. Ainda segundo Romanelli (1986) o ensino tinha característica autoritária, escolástica e literária, muitas vezes avesso à criatividade, e que em nada ou muito pouco contribuía para modificar a estrutura da vida social e econômica da colônia. Conforme Antunes, sobre os primórdios da educação, “[...] pode-se dizer que esta 25 era acessível apenas a uma ínfima parcela da população; porém, o crescente incremento do processo de urbanização começava a exigir mais cidadãos alfabetizados. (ANTUNES, 2003, p. 148). Este breve levantamento nos possibilita perceber como se deu os primeiros passos da educação escolar no Brasil, que manteve essa configuração de oferta educacional do mesmo modo durante um longo período, como podemos ver: Até a revolução modernizadora de 1930, que representou a intensificação e implementação definitiva do capitalismo industrial no Brasil, esse quadro mudou pouco. O caráter do ensino continuou fortemente seletivo e restrito às elites rurais e às camadas médias, numericamente insignificantes se comparadas à população como um todo que estava excluída do sistema de ensino. A partir de 1930, a intensificação do processo de urbanização, que tem na industrialização crescente sua principal causa, começou a modificar a demanda social por educação, introduzindo um contingente cada vez maior de estratos médios que passaram a pressionar o sistema escolar para que se expandisse, visto que o modelo econômico em consolidação gerava novas e crescentes necessidades de recursos humanos para ocupar funções nos setores secundários e terciários da economia. (FREITAS, 2009, p. 295-296). A partir desse contexto, o Estado se viu pressionado e inevitavelmente teve que pensar em formas de ampliar a oferta à educação, e o que se seguiu foi uma expansão de maneira lenta, embora já fosse significativa em relação ao período anterior. Para termos ideia sobre a velocidade dessa expansão, de acordo com Freitas (2009), em 1920 a taxa de escolarização da faixa etária de 5 a 19 anos era de 9%, em 1940 era de 21,43%, subindo para 53,72% em 1970. Contudo, se por um lado o acesso à educação vinha em uma crescente nas últimas décadas, o alto grau de seletividade do sistema, consubstanciado em altíssimas taxas de repetência e evasão, tratava de “peneirar” a maior parte da população que nele ingressava, revelando a brutalidade da seletividade do sistema educacional. Ainda conforme Freitas (2009) na ordem social burguesa que se consolidou no início do século XX, as classes médias em ascensão passaram a reivindicar o direito ao ensino médio gratuito, e as exigências mínimas por qualificação que a indústria necessitava fizeram com que a expansão da educação às camadas populares se tornasse uma “reivindicação” da própria economia, principalmente no que se referia ao ensino primário e técnico, ou seja, se por um lado a demanda 26 crescente por educação pressionava o sistema educacional do país a se expandir, por outro lado o próprio sistema fechava suas portas, acolhendo apenas uma parte da população e posteriormente selecionando ainda mais, escolhendo os alunos com melhor desempenho, por meio de métodos tradicionais de ensino e avaliação que valorizavam a educação livresca, acadêmica e aristocrática, medida pela capacidade de reter o maior número possível de informações, no entanto, eram informações vazias de significado para grande parte da população brasileira, que sofria para adentrar no mundo escolar. Nesses moldes, o sistema educacional acabava beneficiando as classes sociais mais favorecidas, que possuíam condições para se dedicarem aos estudos, uma vez que a educação valorizava o mundo vivido pelas elites. De acordo com Freitas (2009) o sistema de ensino acabou dividido, de um lado havia o ensino médio público, destinado majoritariamente as camadas médias e altas da sociedade, devido aos fortes mecanismos de seleção ao longo da trajetória escolar, e que era visto como meio de entrada no ensino superior, dotado de prestígio. Por outro lado, paralelamente, havia o ensino fundamental e o ensino profissional, sendo o ensino profissionalizante muito procurado pelas classes populares, devido a urgência para adentrarem no mercado de trabalho e também pela curta duração que oferecia qualificação básica, sendo suficiente para ocupar postos de trabalho mais subalternos, que estavam em crescimento durante o processo de industrialização e urbanização, mas que exigiam baixo nível de qualificação. O acesso ao ensino fundamental passa então a ser direito assegurado por lei a todos os cidadãos do país, e a universalização da educação é um dever a ser garantido pelo Estado, assim como a qualidade do ensino oferecido. Entretanto, o cenário educacional mostrava que poucos alunos conseguiam concluir o ensino fundamental e era ainda menor o número de ingressantes no ensino médio, resultando em muitos alunos multirrepetentes, com baixo desempenho e altas taxas de evasão. 27 Para termos ideia da gravidade dos números da época, Romanelli (1986) demonstra em seus estudos, com base nos documentos do Ministério da Educação (MEC) que dos 1.681.695 alunos que ingressaram na 1ª série do curso primário em 1942, apenas 40,44% atingiram a 2ª série do ano seguinte. O maior corte aconteceu, portanto, no início da vida escolar. Desses alunos, 15,5% atingiram a 4ª série primária, 7,14% ingressaram na 1ª série ginasial, 3,44% ingressaram na 1ª série colegial e, finalmente, 0,97% atingiu a 1ª série do curso superior. Isso significa que para cada 103 crianças que ingressaram no ensino primário nesse período analisado, apenas uma alcançou o ensino superior, situação que não se alterou muito na década de 1960 e início da década de 1970, em que dos 3.950.504 alunos ingressantes na 1ª série primária em 1960, 14,41% ingressaram na 1ª série ginasial, 6,29% atingiram a 3ª série colegial e 4,84% atingiram o curso superior, ou seja, mais da metade dos alunos não foram para a segunda série. Conforme Patto (2015, p. 27) “[...] estatísticas publicadas na década de 1930 já revelavam não só altos índices de evasão e reprovação, mas também o então primeiro ano do curso primário como um ponto de estrangulamento do sistema educacional brasileiro”. A autora afirma que do total de crianças que se matricularam pela primeira vez no primeiro ano, em 1945, apenas 4% delas concluíram o ensino primário em 1948, isto é, no tempo esperado, sem nenhuma reprovação, sendo que dos 96% restantes, metade nem sequer concluiu o primeiro ano escolar. Assim como Romanelli (1986), Patto (2015, p. 28), também conclui que nas décadas seguintes “o perfil de atendimento do sistema escolar, fundamentalmente seletivo, não mudou entre os anos 1950 e 70”. Uma década depois, vemos o seguinte “[...] ao final da década de 1970, a taxa de escolarização da população de sete a catorze anos foi de 67,4%, o que corresponde em números absolutos, a cerca de 7.100.000 crianças em idade escolar fora da escola.” (PATTO, 2015, p. 28). Por meio desses dados, vemos que a maior parte da seletividade do sistema ocorria na passagem do 1º ano do primário para o 2º ano, isto significa que logo no início, os alunos já estão sujeitos aos mecanismos de classificação e segregação do ensino, ficando altamente sujeitos a repetência e ao baixo desempenho, além da 28 construção de uma trajetória de fracasso escolar precoce, resultando em estigmatizações e altas taxas de evasão escolar. Nesse caminho, temos o seguinte panorama: Ao longo dos setenta anos que nos separam do início de uma política educacional no país, sucessivos levantamentos revelam uma cronificação desse estado de coisas praticamente imune às tentativas de revertê-lo, seja através da subvenção de pesquisas sobre suas causas, seja pela via de medidas técnico-administrativas tomadas pelos órgãos oficiais. (PATTO, 2015, p. 27). Isso significa que embora o acesso tenha aumentado consideravelmente nessa época, os alunos não conseguiam permanecer, e quando conseguiam, eram poucos os que obtinham um percurso com bom desempenho e aprendizagem satisfatórias, isto é, os alunos das classes populares estavam muito mais sujeitos a esse processo do que os alunos da classe média e da elite, o que aumentava ainda mais o abismo social entre as classes. Desse modo, o que vimos com grande frequência foi a culpabilização dos indivíduos e patologização do ambiente escolar e dos alunos tidos como desajustados dentro desse sistema, dando ênfase a justificativas externas ao mundo escolar, com enfoque individual e familiar, sem maiores problematizações sobre outras questões tão importantes, entretanto, não podemos deixar de considerar que: Nosso sistema de ensino é historicamente marcado pelo fracasso em massa da ralé, que jamais foi vista pelo Estado como uma classe específica, já que, por ter sempre estado à margem das profissões valorizadas pela sociedade competitiva, não foi capaz de reivindicar do Estado políticas públicas que a beneficiassem diretamente. A consequência da não percepção da ralé como classe é a culpabilização individual de seus membros pelo fracasso de uma classe inteira (FREITAS, 2009, p. 299). Como um dos resultados dessas concepções, houve uma crescente valorização do discurso meritocrático, que valoriza o próprio sujeito por suas condições de sucesso ou fracasso, mas que acaba por esconder as condições desiguais em que os diferentes alunos de classes sociais distintas se encontram, nesse sentido “as desigualdades sociais são compreendidas, então, como falta de empenho ou dedicação à educação.” (BOCK, 2003, p. 88). Independentemente de outros fatores, a narrativa da meritocracia considera que a responsabilidade pelo 29 bom desempenho escolar é apenas do sujeito, no caso da educação, do aluno, e frequentemente recorre-se a exceções para fortalecer esse argumento de que é possível ter um bom rendimento em todas as situações. Assim, “oculta-se todo o processo de produção de desigualdade social para entender as diferenças como produzidas pela diferença na quantidade de esforço que cada um faz, pessoalmente, para aproveitar pretensas condições iguais de educação.” (BOCK, 2003, p. 91). Essa justificativa é de grande utilidade para aqueles que se utilizam dela, pois se a questão é o esforço que cada um faz, o problema é daqueles que não se esforçaram o suficiente, e não há outras coisas que precisam ser consideradas na política educacional. Nessa perspectiva, Bock (2003) também reflete sobre o papel que a escola tem ocupado na nossa sociedade, para ela, “a escola tem se reduzido, para a população pobre, a um local de exposição a informações pouco importantes, informações que são transmitidas de forma a não gerar aprendizagem.” (BOCK, 2003, p. 98). Isso ressalta a importância de percebermos como os conhecimentos da escola se relacionam com a vida dos alunos pobres e como podem contribuir para transformar a estrutura social, isto é, observar a qual objetivo a escola tem se voltado e quais resultados tem produzido na realidade brasileira. Também é preciso deixar claro que os processos aqui destacados, foram utilizados historicamente, e não são exclusivos de uma única teoria ou autor, portanto, se manifestam das mais diferentes maneiras. O processo de culpabilização dos alunos pela via da patologização dos problemas escolares, tem se fundamentado ao longo de nossa história em variadas abordagens teóricas, que por diferentes caminhos expressam a mesma desconsideração pelas múltiplas determinações da educação (MEIRA, 2002, p. 53). A investigação de informações a respeito da constituição da educação brasileira, ainda que de maneira sucinta, nos permite perceber como a produção do fracasso escolar foi sendo construída ao longo da história, contribuindo ainda mais para que os fenômenos envolvendo a aprendizagem se tornassem um campo fértil 30 de investigação das mais diversas vertentes. As concepções dos envolvidos no processo de escolarização sobre os problemas de aprendizagem deixaram marcas nas escolas e na educação, sendo que algumas podem ser percebidas até hoje no discurso dos profissionais da área, algo que exploraremos mais à frente. 2.1.1. Os dados educacionais atuais O sistema educacional brasileiro é enorme, de acordo com os dados publicados no censo escolar de 2019, disponibilizados pelo MEC e pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), o sistema abrange cerca de 47,9 milhões de alunos, número que vem sofrendo leves oscilações nos últimos anos, e conta com 2,2 milhões de professores, distribuídos em 180,6 mil escolas, sendo a maioria dos alunos matriculados na rede pública e 88,9% residentes em área urbana. Desse modo, sabemos que organizar um ensino de qualidade para todos é tarefa árdua, tendo em vista o tamanho do país e as diversidades encontradas em diferentes regiões, já que apenas o número de matriculados e/ou de professores é maior do que a população de muitos países. No entanto, a extensão territorial apesar de contribuir nas dificuldades enfrentadas, não pode ser motivo para impedir os avanços e a garantia de qualidade de ensino oferecido em todo o país. Hoje em dia, podemos considerar que temos um acesso ao ensino fundamental satisfatório, “a taxa de frequência escolar bruta das pessoas de 6 a 14 anos de idade estava próxima da universalização.” (IBGE, 2019, p. 79). Em 2018, conforme também apontam os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE ), 99,3% das crianças brasileiras de 6 a 14 anos frequentavam a2 escola, sendo que problemas mais graves, como atrasos na escolarização em relação a idade proposta em cada etapa (distorção idade-série) e evasão escolar acontecem em escalas maiores e atingem índices mais alarmantes especialmente no ensino médio, alcançando 11,8% de alunos fora do ensino médio brasileiro. 2 Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2016/2018. 31 Segundo o INEP (2020) a distorção idade-série é o indicador educacional que permite acompanhar o percentual de alunos, em cada série, que têm idade acima da esperada para o ano em que estão matriculados. A taxa de distorção para o ensino fundamental em 2019 é de 16,2% e de 26,2% para o ensino médio, de acordo com os dados mais recentes obtidos pelo Censo Escolar. No ensino fundamental, a pesquisa revelou que a taxa de distorção idade-série caiu de 19,7% em 2018, para 18,7% em 2019, nas escolas da rede pública, e que as maiores taxas de distorção foram identificadas no 6º, 7º e 8º anos, o que indica que os alunos brasileiros ainda continuam sofrendo principalmente nos primeiros anos de escolarização. No entanto, concordamos que [...] o aumento do número de matrículas e o fato de quase todas as crianças de seis a catorze anos estarem nas escolas, isso não garante a aprendizagem e o desenvolvimento, nem se traduz em oportunidade igual de escolarização para todos ou de inserção e participação social (FACCI; LEONARDO; RIBEIRO, 2014, p. 3). Atualmente temos que lidar então, não com problemas quantitativos, de acesso ao sistema público de ensino, mas sim majoritariamente com questões sobre a qualidade de ensino oferecida, o que podemos observar nos índices insatisfatórios de avaliação nas escolas públicas, embora o desempenho esteja melhorando aos poucos nos últimos anos, como mostram os dados do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) e do Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB) estudos que são desenvolvidos pelo INEP. .3 Precisamos lembrar que “[...] a escola tornou-se acessível a quase todas as crianças, porém merece destaque o fato de que ter acesso garantido não significa necessariamente a garantia, também, de um ensino de qualidade (BRAY; LEONARDO, 2011, p. 252). Desse modo, os esforços devem ser contínuos para garantir não somente o acesso e a permanência, mas principalmente a qualidade do ensino oferecido aos alunos nas escolas brasileiras, podendo ser um dos meios eficientes para se reduzir a desigualdade nos diversos contextos do país. 3 Fonte: Saeb e Censo Escolar. Os dados podem ser acessados em: http://ideb.inep.gov.br/resultado/resultado/resultadoBrasil.seam?cid=10845546 http://ideb.inep.gov.br/resultado/resultado/resultadoBrasil.seam?cid=10845546 32 Dessa forma, ao longo do tempo foram surgindo diversas formas de avaliação dos índices educacionais brasileiro, e também estudos comparativos com o cenário internacional sobre a qualidade da educação ofertada no Brasil. A seguir apontaremos brevemente alguns dos meios utilizados para a construção desses resultados e avaliações. Começando pelo IDEB, que foi criado no ano de 2007 pelo INEP e tem como objetivo medir a qualidade do aprendizado em âmbito nacional e estabelecer metas para a melhoria do ensino, isto é, funciona como um indicador nacional que possibilita o monitoramento da qualidade da educação, através da população e da coleta de dados concretos, mobilizando-se em busca de melhorias. Para tanto, o IDEB é calculado por meio de dois componentes, a taxa de rendimento escolar (aprovação) e as médias de desempenhos obtidos nos exames aplicados pelo INEP, sendo que os índices de aprovação são obtidos pelo Censo Escolar, levantamento que é realizado com frequência anual. Já o SAEB é um sistema de avaliação em larga escala realizado periodicamente pelo INEP, e oferece subsídios para a elaboração, monitoramento e o aprimoramento de políticas públicas, permitindo que os diversos níveis governamentais avaliem a qualidade da educação praticada no país, com base em evidências. Para isso, as médias de desempenho utilizadas são da Prova Brasil para escolas municipais e o SAEB para avaliação dos índices educacionais dos estados e do país, e são realizados a cada dois anos. O IDEB é composto por resultados de aprendizagem dos estudantes apurados no SAEB, juntamente com as taxas de aprovação, reprovação e abandono apuradas no Censo Escolar. O SAEB, por meio da aplicação de testes e questionários, reflete os níveis de aprendizagem demonstrados pelo conjunto de estudantes avaliados e contextualiza esses resultados a partir de uma série de informações. 33 Os resultados obtidos em 2019 no IDEB , mostram que os alunos da rede4 pública de ensino que estavam matriculados nos anos iniciais do ensino fundamental, obtiveram a nota média de 5,7 e aqueles que estavam matriculados nos anos finais do ensino fundamental, obtiveram nota média de 4,6, o que nos leva a pensar que apenas metade ou menos do conteúdo escolar programado é aprendido pelos alunos nas escolas. No Brasil, a Avaliação Nacional da Alfabetização (ANA) de 2016, apontou que os estudantes do 3º ano do ensino fundamental, que apresentavam níveis de proficiência considerados suficientes em leitura foram 45,3%, em escrita 66,2% e em matemática 45,5%. Isso significa, que 54,7% dos alunos ainda apresentam índices insuficientes em leitura, 33,8% habilidades insuficientes de escrita, e 54,5% possuem rendimento insuficiente em matemática, ou seja, metade dos alunos brasileiros têm rendimento escolar aquém do esperado, visto que os conteúdos não estão sendo aprendidos da forma planejada. Além disso, também tínhamos no total, em 2017, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD), quase um milhão e meio de alunos fora das escolas em todos os níveis de ensino, sendo 213,949 alunos de 6 a 14 anos fora do ensino fundamental. Por outro lado, dando continuidade, os dados da PNAD (2019) demonstram que as taxas de analfabetismo vem caindo, assim como o número de pessoas sem nenhuma instrução educacional, já o número de pessoas que concluíram ao menos uma etapa do ensino básico obrigatório e número médio de anos de estudo por pessoa tem aumentado nos últimos anos.5 Entretanto, apesar dos avanços, ainda são grandes as disparidades encontradas na análise por região, classe social, etnia e gênero. Sobre os dados obtidos nas avaliações de aprendizagem, significa dizer que em matemática as crianças apresentam dificuldades para reconhecer figuras geométricas, valor monetário de uma célula e contar objetos, já na leitura, apresentam dificuldades para ler as palavras com mais de uma sílaba, para 5 Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2016/2019 4Fonte: http://ideb.inep.gov.br/resultado/ 34 reconhecer o assunto de um texto, mesmo que esteja escrito no título, e na escrita possuem dificuldades em organizar as palavras e desenvolver pequenos textos. Sobre a ANA, em síntese: Os resultados das últimas edições da prova (2014 e 2016) mostram que os problemas de aprendizagem começam cedo: o Brasil não consegue alfabetizar adequadamente a maioria das crianças. Em 2016, menos da metade dos alunos do 3º ano do Ensino Fundamental atingiram níveis de proficiência suficientes em Leitura e Matemática (ANUÁRIO BRASILEIRO DA EDUCAÇÃO BÁSICA, 2019, p. 52). Nesse mesmo caminho, de acordo com o INEP (2019), segundo os dados divulgados pelo Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA), podemos observar que o Brasil tem baixa proficiência em leitura, matemática e ciências, se comparado com outros 78 países que participaram da avaliação. O relatório do Brasil no PISA indica que 68,1% dos estudantes brasileiros, com 15 anos de idade, não possuem nível básico de matemática, e em ciências, o número chega a 55% e, em leitura, 50%. Esses resultados apontam que os índices estão estagnados desde 2009 e que se nos atentarmos para as quatro edições do PISA já realizadas, veremos que o desempenho escolar pouco caminhou em relação aos investimentos do Governo Federal na educação básica. O relatório do PISA (2018) mostra que os estudantes brasileiros estão cerca de dois anos e meio abaixo dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) em relação ao nível de escolarização de proficiência em leitura, e três anos e meio quando o assunto é proficiência em matemática. Os dados divulgados no relatório da OCDE (2018) sobre o contexto da educação no Brasil, destaca entre várias informações, que o Brasil apresenta uma das mais expressivas parcelas de adultos que não concluíram o ensino médio, além de um dos mais altos índices de desigualdade de renda entre os países membros e parceiros da OCDE. E que apesar de investir parcela significativa do Produto Interno Bruto (PIB) em educação em relação aos outros países, o gasto por aluno ainda é inferior ao da maioria dos países membros e parceiros da OCDE. Outro ponto 35 importante é que aqui no país, o salário dos professores é relativamente baixo, e há uma grande disparidade salarial de uma região nacional para a outra. O relatório da OCDE (2020) indica que as pessoas que são graduadas no Brasil, possuem maior vantagem salarial em relação àqueles que possuem ensino médio completo ou incompleto. A comparação foi feita em relação a 46 países, e constatou-se que ter ensino superior no nosso país, garante ao brasileiro uma remuneração, na média, 144% acima daqueles que terminaram o ensino médio e 258% acima em relação aos que não concluíram o ensino médio. Assim, dentre os países analisados no relatório, o Brasil é o país em que foi constatada a maior diferença salarial por nível de escolaridade. Diante dessa perspectiva, para termos um panorama melhor a respeito dos dados educacionais mais recentes e como eles se relacionam com as desigualdades sociais e o fracasso escolar de parte da população brasileira, temos o seguinte cenário: Em 2018, o atraso escolar por etapa de ensino dos jovens de 15 a 17 anos de idade era 4 vezes maior entre os pertencentes aos 20% da população com os menores rendimentos (33,6%) em comparação com os que faziam parte dos 20% com os maiores rendimentos (8,6%). Além disso, 11,8% dos jovens dessa faixa etária pertencentes ao quinto com os menores rendimentos haviam abandonado a escola sem concluir a educação básica obrigatória. Esse percentual foi 8 vezes menor para os jovens dessa faixa etária no quinto da população com os maiores rendimentos da mesma faixa etária (1,4%). O abandono da educação básica obrigatória incide mais fortemente nos jovens dessa faixa etária que residem nas Regiões Norte (9,2%) e Nordeste (9,2%), em área rural (11,5%), são de cor preta ou parda (8,4%) e homens (8,1%). Assim, um total de 737 mil jovens (7,6%) não frequentava escola e não haviam concluído a educação básica, sendo que a maior parte desse grupo abandonou sem completar o ensino fundamental (64,7%) (IBGE, 2019, p. 81). Desse modo, podemos perceber que apesar de muitos esforços, o sistema escolar brasileiro ainda reproduz diversas desigualdades sociais, por isso é importante evidenciá-las, para que assim, seja possível elaborar novas políticas públicas e garantir que elas sejam colocadas em prática de forma mais equitativa. Por isso, é essencial a análise de recortes por região, localidade, renda e raça/cor, 36 verificando as especificidades de cada situação, visto que muitas regiões possuem condições de desenvolvimento muito desiguais. Esses dados mais recentes nos ajudam a perceber que mesmo com melhorias significativas desde o início do século, como abordado anteriormente, as classes sociais mais pobres ainda sofrem para permanecer nas escolas, uma vez que regiões mais pobres e longe dos centros urbanos, estatisticamente ainda são as que mais sofrem com a falta de acesso e as que mais possuem dificuldades de permanência, e também apresentam dificuldades para atingir bom desempenho escolar, ou seja, os alunos de classes populares continuam sendo a maior parte daqueles que se encontram fora da escola ou que sofrem para atingir níveis satisfatórios de aprendizagem. Como podemos ver: 14,1% das crianças do grupo de nível socioeconômico muito baixo possuem nível suficiente de alfabetização, no que se refere às habilidades de Leitura. Esse nível é alcançado por 83,5% das crianças com nível socioeconômico muito alto. 29,8% das crianças da zona rural atingem nível suficiente na avaliação da Leitura, enquanto o mesmo ocorre com 47,7% das crianças que estudam na zona urbana. (Anuário Brasileiro da Educação Básica, 2019, p. 52). Além disso, segundo o Anuário Brasileiro da Educação Básica (2019), apenas 17,1% das crianças mais pobres possuem conhecimento adequado em matemática, outro dado alarmante que se soma aos anteriores. No entanto, mesmo se olharmos para os alunos que conseguem acessar e permanecer nas escolas, vemos que o desempenho médio ainda é muito baixo, o que levanta questões a serem refletidas, como a qualidade de ensino oferecida, a capacitação dos profissionais, o tipo de conteúdo, metodologia utilizada, propósitos educacionais contemporâneos, entre outros fatores. Isso significa que o mau desempenho não pode ser sempre explicado quantitativamente por patologias - afirmar isso é o mesmo que patologizar metade dos estudantes do país, são milhões de alunos - dada a alta taxa de alunos abaixo da média nas avaliações, mas podem revelar outras questões de cunho político, institucional e social, demonstrando outras razões pelas quais os alunos não 37 atingem bom desempenho escolar, por isso, é urgente repensar questões que permeiam trajetórias tanto de fracasso, quanto de sucesso escolar. Como pontua Patto (2007), ao se referir ao ensino brasileiro, “[...] um dos problemas fundamentais do que se espera da educação escolar hoje é a surdez à experiência histórica, que resulta na repetição de bordões que já se mostraram equivocados.” (p. 261). É claro que muitos dos dados aqui citados são índices de avaliação externa e apesar de serem importantes por contribuírem na construção do panorama educacional do país, não podemos reduzir a educação de qualidade apenas à números e estatísticas, é preciso observar os processos e trabalhos de qualidade que estão sendo feitos, produzindo efeitos nos cotidianos escolares, mas que nem sempre aparecem nos resultados estatísticos. Diante desses dados que nos dão um panorama mais quantitativo, mostrando alguns índices sobre a situação atual da educação do país, passaremos agora para o cenário da educação brasileira, segundo o olhar da psicologia escolar crítica nos últimos anos. Antes, cabe destacar também que além de todos esses índices e avaliações, destaca-se o contexto de pandemia, que tem imposto um cenário ainda mais desafiador para as escolas, alunos, famílias, professores e a sociedade de uma maneira geral, desde o começo do ano de 2020. Assim, essa circunstância causou alterações por todo o país e certamente transformou a conjuntura dos últimos levantamentos citados, no entanto, os dados sobre esse período e os impactos educacionais só poderão ser compreendidos com mais cautela no futuro. 2.1.2. O cenário contemporâneo em psicologia escolar crítica: novos estudos, conclusões semelhantes. Temos na literatura um grande número de publicações mais recentes que contribuem com o campo educacional brasileiro, seja propondo novas ideias ou verificando por meio de estudos bibliográficos e de campo, se os resultados atuais 38 continuam apontando respostas semelhantes àquelas verificadas no início dos estudos em Psicologia escolar crítica no Brasil. Nesse sentido, pensamos ser importante constatar se houve mudanças significativas na compreensão dos educadores sobre os fenômenos escolares ou se as justificativas permanecem as mesmas ou mudaram pouco ao longo do tempo, apesar do número de produções e informações disponíveis. Assim, apontaremos algumas pesquisas e suas conclusões. Prioste (2020) realizou um estudo sobre as hipóteses docentes a respeito do fracasso escolar nos anos iniciais do ensino fundamental e constatou resultados semelhantes nos dias de hoje, segundo a autora: A análise dos questionários revelou que 96% dos professores acreditavam que em suas turmas havia crianças com dificuldades na aprendizagem escolar, estimando-se uma média de 6,8 alunos por classe. Aproximadamente 88% dos docentes atribuíram essas dificuldades às questões familiares, principalmente ao desinteresse e à falta de apoio dos pais. Em segundo lugar, mencionaram os fatores relacionados às crianças (69,92%), destacando a falta de interesse, de atenção, de pré-requisitos, além de problemas emocionais e disciplinares. Os fatores pertinentes ao sistema educacional foram mencionados por 39% dos docentes; enquanto as questões socioeconômicas e culturais foram citadas por 19,55%. Os aspectos relacionados à falta de apoio fora da escola foram citados por 9,77%, e, finalmente, a desvalorização da educação ou dos professores, mencionados por 4,51% dos docentes. (PRIOSTE, 2020, p. 17). Na pesquisa de Fonseca e Maldonado (2020), as autoras constataram a sobreposição em relação ao entendimento e uso de terminologias como “distúrbios”, “problemas” e “dificuldades” de aprendizagem, segundo as autoras foi possível constatar confusão e imprecisão quanto ao uso dos termos. Outro ponto verificado a partir dos dados obtidos, refere-se à atribuição de causa biológica a qualquer dificuldade ou problema de aprendizado do aluno, ainda que a causa seja, de fato, devido a fatores sociais ou psicológicos. Em levantamento bibliográfico realizado por Oliveira (et al. 2012) sobre alguns estudos que abordam concepção dos professores acerca do tema das dificuldades de aprendizagem e temas relacionados, as autoras destacam os estudos de Oliveira e Natal (2011), Capellini e Rodrigues (2009), Freschi (2008), Stefanini e Cruz (2006) 39 e Lara, Tanamachi e Junior (2006), e puderam observar que as conclusões apontam para a necessidade de percepções e concepções a serem valorizadas, com finalidade de aperfeiçoamento das relações profissionais e do processo ensino-aprendizagem. Oliveira e Natal (2011) estudaram as concepções dos educadores a respeito do processo de desenvolvimento da linguagem escrita, buscando compreender as queixas de dificuldades de aprendizagem e também com intuito de sugerir propostas de intervenção educacional. As autoras concluíram que os educadores possuíam carência de conhecimentos fundamentais para a prática pedagógica, no caso dessa investigação, no que concerne ao processo de alfabetização, mesmo que a maioria tivesse formação correspondente ao que é preconizado pela lei de diretrizes e bases da educação nacional (LDB), assim, em função das dúvidas sobre esse processo, os professores interpretavam as manifestações da aquisição e desenvolvimento da linguagem escrita como sinônimos de dificuldades de aprendizagem. Capellini e Rodrigues (2009) produziram um estudo, por meio de realização de entrevistas, que teve como objetivo analisar as dificuldades em relação ao processo de inclusão, focando o ponto de vista dos professores. As autoras observaram que dentre as principais dificuldades relatadas pelos professores, estavam as características dos alunos e do seu ambiente de origem, que não ofereciam possibilidades de desenvolvimento das habilidades pré-acadêmicas valorizadas pela escola, os professores também se referiram às condições ruins das escolas em que trabalham, apontando o número excessivo de alunos em cada sala, falta de apoio técnico, e problemas referentes à formação inicial e continuada, referindo serem deficitárias. Stefanini e Cruz (2006) fizeram um estudo com intuito de conhecer a opinião de professores em relação às dificuldades de aprendizagem e suas causas. As autoras realizaram entrevistas com professores de séries iniciais do ensino fundamental de uma escola pública estadual. Em síntese, os resultados obtidos e a análise dos dados coletados, indicaram que na visão dos professores, os problemas 40 observados na escola provinham principalmente de três fatores: da família, da própria criança e da escola. Em outra pesquisa, feita por Freschi (2008), o autor analisou as percepções de professores a respeito da dimensão metodológica presente no processo de ensino e aprendizagem. O objetivo do estudo foi constatar os princípios que fundamentavam a ação docente em atividades de sala de aula. Os resultados indicaram que é necessário diversificar os procedimentos metodológicos usados em sala de aula, contextualizando o objeto de estudo. Lara, Tanamachi e Junior (2006), pesquisaram as concepções de desenvolvimento e de aprendizagem presentes no trabalho desenvolvido em uma escola pública de ensino fundamental no Estado de São Paulo. As autoras realizaram entrevistas e observações com intuito de identificar, explicitar e analisar as concepções dos professores. No relato dos professores, as autoras notaram uma confusão de conceitos entre abordagens teóricas, ainda que todos os professores afirmassem terem tido contato com os conceitos de aprendizagem e desenvolvimento. Oliveira et al. (2012) concluíram em seu estudo que dentre os principais fatores relacionados à descrição dos alunos com dificuldades de aprendizagem, apontado pelos professores durante as entrevistas, estavam fatores de origem cognitiva. Assim sendo, a maior parte dos entrevistados relatou os alunos como desatentos, lentos e com possíveis alterações de ordem cognitiva. Com a análise das entrevistas, os autores identificaram que os problemas são concebidos como inerentes aos alunos e que os professores são em grande maioria contagiados pela ideologia do dom. Cruz e Borges (2013) observaram ao estudar as queixas escolares e o atendimento psicológico oferecido para essas demandas, que as respostas obtidas nas entrevistas com os professores, muito se assemelhavam aos resultados encontrados nas pesquisas anteriores citadas neste trabalho, ou seja, os entrevistados, quando questionados sobre as queixas escolares e motivos das 41 dificuldades de aprendizagem, relataram uma visão reducionista, a maioria deles aponta o aluno, a família ou a condição socioeconômica como principais causas para o fracasso escolar das crianças, tornando isenta a instituição escolar nesse processo. Bray e Leonardo (2011) investigaram as compreensões de professoras a respeito dos problemas de escolarização, e concluíram com base nos resultados das educadoras participantes da pesquisa, que o entendimento da queixa escolar ainda está fundamentado na ideia de “clientela inadequada”, isto é, os alunos é que apresentam dificuldades, sem que a queixa seja percebida dentro de um contexto educacional maior. Como podemos observar, estas participantes demonstram um olhar para a queixa escolar, ou seja, para os problemas no processo de escolarização, como apenas do aluno, desconsiderando que se trata de um processo que envolve, além do aluno, outros personagens, como o professor, a escola, a sociedade etc (BRAY; LEONARDO, 2011, p. 255-256). Com isso, queremos destacar que existem vários estudos realizados ao longo dos últimos anos, por inúmeros autores, com diferentes enfoques e diferentes áreas do conhecimento que vem apontando resultados semelhantes aos que foram apresentados anteriormente na década de 1980/1990, denunciados por autores da Psicologia escolar crítica. Podemos notar que estudos realizados mais recentemente continuam identificando questões levantadas pelos estudos pioneiros na Psicologia escolar e educacional, o que vem demonstrando que mesmo com a superação teórica dessas visões há certo tempo, as explicações sobre os problemas de aprendizagem e a produção do fracasso escolar ainda permeiam a prática docente dos educadores e o cotidiano das escolas brasileiras. Como pode ser observado na revisão bibliográfica, o fracasso escolar no Brasil parece manter características muito semelhantes ao longo do tempo, como comprovam diferentes estudos realizados desde 1986. Assim, crianças do sexo masculino, cursando as séries iniciais do ensino fundamental de escolas da rede pública, têm sido as principais vítimas do fracasso escolar, o que também se confirmou nesta pesquisa (PINHEIRO et al., 2020, p. 88). 42 Pinheiro et al. (2020) buscaram na literatura alguns estudos, como por exemplo o de Lopez (1986), que levantou 2826 casos por meio de prontuários investigados nas clínicas psicológicas na cidade de São Paulo, ligadas aos cursos de Psicologia. Os resultados da época indicaram uma predominância de crianças do sexo masculino, que se encontravam majoritariamente na faixa etária dos 6 aos 15 anos (68,3%), com queixas escolares, proveniente de encaminhamentos na maior parte e não por procura espontânea. Outros estudos ressaltados por Pinheiro et al. (2020) foram os de Vivian, Timm e Souza (2013), que analisaram 194 crianças e adolescentes em um serviço de Psicologia e relataram que a maioria das crianças encaminhadas para o serviço de Psicologia estava na faixa etária entre 5 e 9 anos (45,9%), e a maior parte eram meninos (63,9%). Em encontro às pesquisas anteriores, a maioria das crianças (43,5%) apresentava queixas relacionadas a problemas de aprendizagem. Os autores também encontraram conclusões semelhantes no estudo de Cunha e Benetti (2009), as autoras analisaram uma amostra com 499 crianças em uma clínica-escola de Psicologia e constataram a predominância do público infantil em relação a população total que procurou atendimento, sendo a maior parte crianças de 6 a 9 anos, meninos, e encaminhados pelas escolas. Nesse mesmo sentido, também destacam a pesquisa de Nakamura et al. (2008), a qual foi realizada com uma amostra de 634 prontuários em um serviço de Psicologia universitário, e apontou que do total de prontuários analisados com demandas de queixas escolares, 77% eram meninos na faixa etária de 5 a 14 anos, cursando os primeiros anos do ensino fundamental, 91% na rede pública e em maioria, com renda familiar de um salário mínimo. Os estudos de levantamento realizados em diferentes Estados do Brasil apresentam, de modo geral, resultados bastante semelhantes, inclusive no que se refere às principais queixas atendidas nos serviços. Dentre os principais motivos de procura por atendimento estão as queixas escolares e os problemas de comportamento (LOPEZ, 1986; CAMPEZATTO; NUNES, 2007; SAVALHIA; NUNES, 2007; NAKAMURA et al., 2008; CUNHA; BENETTI, 2009; RODRIGUES; CAMPOS; FERNANDES, 2012; VIVIAN; TIMM; SOUZA, 2013; DAZZANI et al., 2014; SOUZA; BRAGA, 2014) (PINHEIRO et al., 2020, p. 83). 43 Pinheiro et al. (2020) também analisaram prontuários de crianças encaminhadas para avaliação, e destacaram que os resultados atuais são bastante semelhantes aos resultados encontrados na literatura nas últimas décadas, que foram publicados por outros autores que também analisaram prontuários de crianças atendidas por queixas escolares. Para os autores, esses dados evidenciam que as características das crianças que fracassam nas escolas, parecem se manter muito parecidas ao longo do tempo. Em relação à escolaridade, constatou-se que a maioria das crianças estava cursando os primeiros anos do ensino fundamental, assim como nas pesquisas de Nakamura et al. (2008), Rodrigues, Campos e Fernandes (2012), Souza e Sobral (2013), e Dazzani et al. (2014). Esse dado aponta para um maior índice de fracasso escolar nas séries iniciais, ou seja, no período de alfabetização, quando as crianças passam a receber um nível maior de exigências por parte da escola. (PINHEIRO, et al., 2020, p. 86). Para Bray e Leonardo (2011, p. 259) “mesmo mais de vinte anos após a introdução de uma perspectiva crítica em Psicologia Escolar e Educacional, ainda permanece a psicologização, a medicalização e a patologização das queixas escolares”. As mesmas pesquisadoras identificaram na realização de suas pesquisas com professores, que: Em nenhum momento as participantes disseram compreender a dificuldade como um fator que implica também o trabalho pedagógico, ou o âmbito escolar, entendendo essa dificuldade como uma dificuldade individual, e não uma problemática que engloba o professor, a escola e, além disso, aspectos sociais, econômicos e políticos. (BRAY; LEONARDO, 2011, p. 256). A partir dos dados obtidos e da análise realizada pelas pesquisadoras, Bray e Leonardo (2011, p. 256), ressaltam o quanto a compreensão das profissionais entrevistadas é dominada pela ideia do aluno que aprende os conteúdos por si mesmo, apontam uma visão individualizada do processo de ensino-aprendizagem, isto é, “[...] elas não relacionam a dificuldade no processo de aprendizagem com outros aspectos”. Leonardo, Leal e Rossato (2015) analisaram publicações em periódicos científicos que abordavam as queixas escolares, foram selecionados 77 artigos sobre o tema para o estudo, as autoras apontaram que a categoria prevalecente nos artigos identificados foi a de queixa e fracasso escolar como centrada no indivíduo, 44 com 67% de incidência nas respostas, dado que demonstra como grande parte das produções científicas analisadas na amostra partem do princípio que os problemas no processo de escolarização estão relacionados aos alunos, à família ou ao professor. A partir dos artigos analisados verificamos que prevalece nos estudos uma abordagem não crítica, com o predomínio das produções em que a queixa/fracasso é compreendida pela ótica do indivíduo, sem reflexões que contemplem a historicidade do processo, o que evidencia uma forma de negar as contingências sociais e econômicas que envolvem os problemas educacionais. (LEONARDO; LEAL; ROSSATO, 2015, p. 168). As autoras entendem que os artigos analisados apresentam uma perspectiva reducionista e naturalizada do problema, visto que desconsideram a complexidade social e a conjuntura socioeconômico-política envolvida nas questões educacionais, ao mesmo tempo em que consideram que se existirem condições de superar um determinado aspecto individualmente, todos os outros fatores envolvidos no processo de escolarização também estarão resolvidos, garantindo o sucesso na aprendizagem. “Os artigos, em sua maioria, não consideram as dimensões sociais e históricas que permeiam todas as relações humanas e constituem a queixa/fracasso escolar.” (LEONARDO; LEAL; ROSSATO, 2015, p. 169). Em suma, as pesquisadoras concluem: A partir das informações encontradas, verificamos uma grande ênfase nas concepções individualizantes em relação à queixa/fracasso escolar, evidenciada pela apologia exacerbada ao potencial intelectual considerado inato, próprio de cada indivíduo. Desta forma, o processo de escolarização vem sendo encarado como responsabilidade individual – do aluno, do professor ou da família. Esta individualização desconsidera a totalidade que envolve o processo de escolarização[...] (LEONARDO; LEAL; ROSSATO, 2015, p. 168). Resgatando alguns desses estudos, podemos perceber que muitas pesquisas têm chegado às mesmas conclusões ou em resultados muito próximos àqueles publicados no início das produções em Psicologia escolar crítica no Brasil. A concepção dos educadores sobre o fracasso escolar dos alunos e os problemas de aprendizagem que surgem no processo de escolarização parecem se modificar muito pouco, em um ritmo lento, apesar da vasta literatura desse campo. 45 Isso não significa, no entanto, que tudo permaneceu igual nesse período, ou que não existam professores e instituições que partem de uma análise crítica sobre os problemas educacionais que presenciam em seu contexto, mas sim que muitas ideias que foram já desmistificadas com ampliação da compreensão sobre o tema, ainda permanecem presentes de algum modo nas explicações de boa parte dos profissionais hoje em dia. Sendo assim, diante desse panorama, ainda é preciso continuar a produção de estudos que abordem a construção de novos conhecimentos acerca da realidade escolar brasileira e também cooperar com os profissionais que atuem na educação para que sua formação seja cada vez mais crítica e menos pautada pelo senso comum, isto é, aperfeiçoar a prática e a compreensão das questões que permeiam a escola, visto que existe uma amplitude enorme de fatores envolvidos, é comum que haja dúvidas nesse processo, para que assim seja possível promover melhores condições de ensino e aprendizagem. Nesse sentido, como propõem Oliveira et al. (2012, p. 101) “[...] a necessidade premente das propostas diferenciadas de ensino impõe que as dificuldades presentes nos processos de ensino e aprendizagem realizados nas escolas refute explicações e procedimentos simplistas”. Pois sabemos que organizar ambientes de aprendizagem que levem em conta a complexidade presente no ensino, assim como a heterogeneidade, característica marcante das salas de aula não é tarefa fácil de ser pensada e colocada em prática. Sobre esse último tema, concordamos que: [...] romper com a concepção de turmas homogêneas ou ambientes homogeneizantes é imprescindível. Para tanto, é preciso que a escola, na figura dos profissionais que a compõem, olhe criticamente para si mesma. Afinal de contas, se não houver professores críticos, pouco provável é que haja alunos críticos. (OLIVEIRA, et al., 2012, p. 110). Outro fator importante a ser percebido é a postura dos profissionais diante dos alunos tidos com problemas de aprendizagem no ambiente escolar, levando em conta ser muito frequente que a expectativa em relação ao futuro desses alunos, tanto no âmbito escolar quanto social é frequentemente avaliada de maneira negativa em relação aos outros alunos. Essa concepção e postura diante desses 46 acontecimentos, por vezes demonstram como os próprios educadores não acreditam que esses alunos possam ser capazes de aprender, ou serem bem sucedidos futuramente. Dessa Forma, considerando as concepções dos professores sobre os alunos taxados com problemas de aprendizagem, junto a expectativa negativa que muitos possuem sobre eles e a influência direta que isso causa na prática docente, é importante ressaltarmos, como diz Guimarães (2010, p. 81) “a aprendizagem, em contexto escolar, é a razão de ser do ensino; não há, a meu ver, ensino se não existir aprendizagem, entendido o ensino como processo de interação entre o professor e o(s) aluno(s)”. Ou seja, a interação entre professores e alunos é uma das peças fundamentais para a constituição do ensino, assim como as escolas e seus respectivos contextos, que precisam pensar em formas efetivas para que a instituição cumpra um de seus principais objetivos, que é o ensino e consequentemente a aprendizagem. 2.2. CONSIDERAÇÕES SOBRE A PRODUÇÃO DO FRACASSO ESCOLAR Nos estudos realizados na área de educação, questões como evasão e o fracasso escolar de alunos de camadas populares são temas de destaque, porém não são fenômenos recentes ou novos na história do país. Conforme Sawaya (2002), estudos em outros países também demonstram que os mais atingidos pelo fracasso escolar são os alunos provenientes das camadas sociais mais pobres, demonstrando como o ensino é seletivo, principalmente nos primeiros anos, e como não conseguem promover níveis educacionais satisfatórios com esses alunos. A produção do fracasso escolar é um tema de pesquisa que vem sendo estudado com bastante profundidade por profissionais da área da Psicologia escolar e da Psicologia educacional, contando também com contribuições de outras áreas como a própria Pedagogia e alguns autores da área da saúde. 47 De acordo com Paulilo (2017, p. 1256) “no Brasil, as preocupações com o fracasso escolar como objeto de estudo emergem de diferentes contextos da pesquisa educacional nos anos 1970/1980”. Nesse momento os estudos nessa área emergem, movido por autores incomodados pelas explicações vigentes a respeito dos problemas de aprendizagem e às causas atribuídas ao baixo desempenho escolar dos alunos, sendo assim, perceberam a necessidade de se realizar novos estudos e evoluir nas compreensões sobre o tema. Assim sendo, consideramos que: [...] o sucesso ou o fracasso não respondem apenas a determinações de ordem individual, mas que as várias práticas sociais e do cotidiano escolar são fatores que contribuem para o fracasso escolar, perpetuando o preconceito, a atitude julgadora e os ideais de produtividade. As possibilidades da criança são sempre engendradas em uma rede de relações presentes no contexto social. (LEONARDO; LEAL; ROSSATO, 2015, p. 164). As primeiras explicações que partiram da Psicologia para buscar explicar as razões dos alunos não aprenderem, de acordo com Sawaya (2002), estavam fortemente apoiadas na corrente teórica da psicofísica e da psicometria, áreas que concentravam seus esforços principalmente em tentativas de quantificação das habilidades cognitivas, do raciocínio e da inteligência. Podemos citar como exemplo o surgimento dos testes de inteligência no final do século XIX e início do século XX, como teste Binet-Simon , que visava quantificar6 e classificar o quociente intelectual de cada sujeito, influenciados pela curva de distribuição normal, apresentada por Francis Galton, autor eugenista de destaque e7 que exerceu influência sobre os estudos psicológicos desse período, e também pelos estudos de Wundt. Galton marcou época e influenciou o pensamento psicológico, e segundo Patto (2015), esse autor transitou pelas vertentes da Psicologia das diferenças individuais, dedicou-se a estudos no campo da biologia, estatística, Psicologia experimental e de testes psicológicos, “[...] seu objetivo principal era medir a 7 Em 1884, Francis Galton aplica a primeira bateria de teste mental para milhares de pessoa na Exposição Internacional de Saúde 6 O teste de Binet-Simon é considerado o primeiro teste moderno de inteligência, criado em 1905. 48 capacidade intelectual e comprovar a sua determinação hereditária” (PATTO, 2015, p. 61). Em suma, sobre este autor, destacamos: Os objetivos de Galton, contudo, iam mais longe do que a mera comprovação do caráter genético das capacidades psíquicas individuais, estava em seus planos interferir nos destinos da humanidade através da eugenia, ciência que visava controlar e dirigir a evolução humana, aperfeiçoando a espécie através do cruzamento de indivíduos escolhidos especialmente para esse fim. Ao que tudo indica, esse propósito encontrou receptividade na comunidade científica durante um bom tempo. (PATTO, 2015, p. 62). Apesar desse viés, é preciso fazer justiça e ressaltar que Francis Galton não foi tão longe quanto alguns de seus contemporâneos e discípulos na busca de uma política social que visasse a perpetuação de uma raça superior, de acordo com Patto (2015), mesmo tendo sido fundador da eugenia, mostrava-se cauteloso na prescrição de medidas extremas, visto o estado ainda precário do conhecimentos sobre as leis da hereditariedade. As ideias eugenistas, que tentavam buscar explicações individuais e demonstrar quais os sujeitos mais aptos para exercerem determinadas funções tomou conta do pensamento educacional desde muito cedo, mas, é verdade que muitos autores não eram mal-intencionados, ou seja, não buscavam conscientemente e deliberadamente a exclusão de alunos das possibilidades de aprendizagem, já que o que tinham em vista era destinar os alunos mais aptos e não os mais ricos pertencentes à elite social, na tentativa de romper com os privilégios do nascimento, como ocorreu durante séculos na história. No entanto, movidos pelos pressupostos de ciência positivista da época, apesar de boas pretensões, muitas revelaram consequências perigosas, excludentes e patologizantes dos alunos durante o processo de escolarização. Nesse mesmo caminho, podemos afirmar [...] muitos dos pesquisadores que, da última década do século XIX aos trinta primeiros anos do século passado, se debruçaram sobre as questões da mensuração das aptidões, da orientação e da seleção profissional, o fizeram imbuídos de ideais democráticos e compartilharam da esperança de que era chegado o tempo da sociedade igualitária, livre e fraterna. (PATTO, 2015, p. 66) 49 Como destaca Antunes (2003), a Psicologia já estava a serviço como base para a prática pedagógica nas primeiras décadas do século XX, se dedicando a estudar temas como, desenvolvimento infantil, o processo de aprendizagem, relação professor-aluno, aplicação de técnicas e de testes psicológicos. A Psicologia tem, portanto, como ponto de entrada no Brasil o campo da educação, estando apoiada sob fortes pressupostos da ciência positivista. Por isso [...] uma das mais influentes teorias explicativas para o fracasso escolar no Brasil, baseada na análise das diferenças de desempenho existentes entre os indivíduos na sociedade, busca nas características individuais das crianças as explicações do porquê algumas crianças vão bem na escola e outras não. (SAWAYA, 2002, p. 198). Alguns acontecimentos foram fortalecendo o interesse na área e compondo a inserção nesse cenário no Brasil, como por exemplo: [...] a escola e o ensino eram objeto de interesse dos psicólogos brasileiros já nas quatro primeiras décadas do século passado. Os estudiosos da Psicologia já estavam voltados para o estudo e as tentativas de equacionamento dos problemas de aprendizagem e de rendimento escolar da população. É de 1906 o registro do surgimento de um Laboratório de Psicologia Pedagógica no Rio de Janeiro e de 1914 o do Gabinete de Psicologia Científica na Escola Normal Secundária de São Paulo. Voltados para o estudo das características dos estudantes em termos de motivação, aprendizagem e desenvolvimento mental, buscavam nas diferenças individuais dos alunos as justificativas para as suas dificuldades escolares, considerando-os portadores de características incompatíveis com a aprendizagem e o ajustamento escolar. (SAWAYA, 2002, p. 198). Sobre esse contexto do início do século XX, conforme Tanamachi (2002), trata-se de uma perspectiva psicológica que, ao ser aplicada ao contexto educacional, buscava nas características individuais a explicação para a diferença de desempenho, logo, os problemas de aprendizagem podem ser diagnosticados como deficiências intelectuais, sensoriais, distúrbios neurológicos evolutivos ou dificuldades afetivo-emocionais. Este foi o tom adotado pela Psicologia para sustentar suas explicações sobre o campo educacional, sendo que, segundo Sawaya (2002), a Psicologia se torna um dos principais campos científicos a legitimar as diferenças individuais, através de testes psicodiagnósticos de inteligência, ganhando cada vez mais abertura na área escolar. Nessas circunstâncias, o surgimento de teorias críticas que se proponham a ampliar a compreensão sobre o fenômeno do fracasso escolar se faz necessária, 50 pois é preciso pensar em novas ferramentas que possam dar novas respostas. Assim, concordamos que: [..] uma teoria crítica constitui-se em um instrumento fecundo tanto para a reflexão quanto para a prática, não para que seja tomada como dogma, como biblía depositária inconteste de verdades prontas e acabadas, mas como uma visão [...] que nos permite apreender o movimento de conjunto da totalidade histórica e nos propicia clareza sobre a finalidade social de nossa ação profissional que não se esgota na mera construção e aplicação de princípios teóricos. (MEIRA, 2002, p. 43). Meira (2002) destaca a importância que uma avaliação crítica na educação pode ter, levando em conta as múltiplas determinações das atividades educacionais, pressupostos dos quais o psicólogo poderá buscar elementos necessários para construir caminhos possíveis de transformação. Para ela, esse movimento permite a estruturação de uma perspectiva em que as análises se voltem mais aos processos educacionais e menos nos indivíduos. 2.2.2. Principais teorias que buscaram explicar o fracasso escolar Iremos apresentar aqui três teorias marcantes na educação, identificadas de acordo com os estudos de Patto (1997), sendo elas a teoria da carência cultural, a teoria da diferença cultural e por fim a teoria do desencontro cultural. Antes das apresentações, levamos em consideração que: Ao longo da história da educação, a maior parte das tentativas de fundamentar cientificamente a educação e o ensino sempre tiveram como ponto de apoio a Psicologia. Se comparada com as demais ciências que fundamentam o ensino, a Psicologia tem ocupado uma posição de destaque. Essa presença marcante trouxe em alguns momentos históricos, uma série de problemas, na medida em que de ciência auxiliar, passou a desempenhar um papel hegemônico nas tentativas de explicação e formulação de orientações da prática educacional, o que, obviamente, gerou visões reducionistas e limitadas dos fenômenos educativos. (OLIVEIRA et al., 2002, p. 7). Ainda segundo Oliveira et al. (2002) com a diversidade de possibilidades de intervenções na interface entre o campo psicológico e educacional vividas no Brasil em diferentes momentos históricos ou até mesmo de forma concomitante no mesmo período, podemos notar como esse campo esteve aberto às diferentes formulações 51 psicológicas, em geral, por correntes que se dividiram em duas tendências, uma delas que se aproxima dos conceitos do inatismo e outra com íntima relação com os preceitos ambientalistas. Cada uma dessas perspectivas interpreta à sua maneira os limites e possibilidades da prática educativa. Em suma: Durante um longo período, a Psicologia serviu também como uma espécie de álibi para os problemas gerados na própria escola ou no contexto social mais amplo. Referimo-nos mais especificamente ao significativo número de pesquisas que relacionaram os problemas da escolarização às dificuldades advindas da situação de pobreza e marginalização a que as crianças das camadas populares são submetidas. A maior parte desses trabalhos isentava a escola de uma revisão interna, já que atribuía o fracasso escolar a problemas inerentes ao aluno (nutricionais, cognitivos, afetivos e culturais). Nesse paradigma, a escola se tornava impotente para lidar com as inúmeras deficiências apresentadas pelos alunos mais pobres. Tais investigações, apoiadas numa visão estreita dos processos escolares e sociais, produziram explicações preconceituosas e distorcidas a respeito das crianças e de suas famílias de origem, largamente difundidas entre educadores e psicólogos. Esse legado da Psicologia possibilitou a legitimação de um discurso que medicalizou e/ou psicologizou os problemas de aprendizagem e , via de regra, depositou sobre a criança e suas famílias a causa dos problemas escolares. (OLIVEIRA et al., 2002, p. 9). A primeira corrente teórica foi a teoria da carência cultural, que foi desenvolvida nos Estados Unidos nas décadas de 1950 e 1960, e como demonstra Patto (2015), essa corrente se pauta na premissa de que desordens emocionais, cognitivas e perceptivas dos alunos pobres são causadas pelas condições de vida precárias a que estão submetidos, logo, prejudicando todo o processo de aprendizagem. Para essa teoria, o foco e a justificativa para o fracasso escolar dos alunos com baixo desempenho passa a ser a identificação de desordens nos ambientes de vida desses sujeitos pertencentes às classes populares, incluindo aqui seus familiares, frequentemente tidos como figuras incapazes de criar seus próprios filhos. Em síntese, essa teoria possui uma visão que atribui os problemas de aprendizagem às condições de vida dos alunos, percebendo o problema de maneira individualizada, isto é, a questão a ser resolvida está fora da escola e não dentro dela, não levando em conta na análise outros fatores importantes, como as políticas 52 públicas educacionais. Essa concepção deixou suas marcas no imaginário social e podemos ainda hoje perceber a forte presença dessa teoria no senso comum. O pressuposto básico no qual se apoia essa teoria é o de que o fracasso escolar dos alunos de camadas populares se deve a deficiências ou déficit ou privação cultural decorrentes das suas precárias condições de vida. As explicações para as suas deficiências são encontradas na suposta existência de problemas psíquicos de natureza emocional ou na suposição de que o ambiente carente em que vivem gera deficiências cognitivas, psicomotoras, perceptivas, afetivas, emocionais, e de linguagem que as impedem de se saírem bem na escola.” (SAWAYA, 2002, p. 199). Como tentativa de explicação das causas, nota-se nessa teoria as seguintes atribuições como justificativas: A Teoria da Carência Cultural apresentava como causas do fracasso escolar baixo QI, imaturidade, carência afetiva, falta de acompanhamento dos pais, diferença de linguagem, desnutrição e outras, mas, no âmago da questão, colocava sobre os indivíduos a culpa de não aprender. (FACCI; LEONARDO; RIBEIRO, 2014, p. 5). Em seguida, outra teoria que ganha espaço, após a teoria da carência cultural perder força no meio acadêmico, é a teoria da diferença cultural. Segundo Sawaya (2002), essa teoria explica o fracasso escolar dos alunos pobres, principalmente embasada na concepção de que há grande discrepância entre os níveis de rendimento escolar das classes sociais pertencentes à elite e às classes populares, por conta das diferenças relacionadas