UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS GABRIELA VIDOTTI FERREIRA MAGALHÃES A VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA COMO PROBLEMA PÚBLICO: Ação institucional, políticas públicas e mobilização social FRANCA 2025 M188v Magalhães, Gabriela Vidotti Ferreira A violência obstétrica como um problema público : ação institucional, políticas públicas e mobilização social / Gabriela Vidotti Ferreira Magalhães. -- Franca, 2025 90 p. Dissertação (mestrado profissional) - Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Franca Orientador: Agnaldo de Sousa Barbosa de Sousa Barbosa Coorientador: Rodolfo Franco Puttini 1. políticas públicas. 2. violência obstétrica. 3. saúde pública. 4. mobilização do direito. 5. humanização do parto. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Dados fornecidos pelo autor(a). GABRIELA VIDOTTI FERREIRA MAGALHÃES A VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA COMO PROBLEMA PÚBLICO: Ação institucional, políticas públicas e mobilização social Dissertação apresentada à Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Faculdade de Ciências Sociais e Humanas de Franca, para obtenção do título de Mestra em Planejamento e Análise de Políticas Públicas. Área de Concentração: Desenvolvimento Social Orientador(a): Prof. Dr. Agnaldo de Sousa Barbosa. Coorientador(a): Prof. Dr. Rodolfo Franco Puttini Franca 2025 IMPACTO POTENCIAL DESTA PESQUISA Esta pesquisa identificou que a violência obstétrica não é reconhecida pelo Estado como um problema público e, portanto, são escassas as políticas públicas favoráveis à humanização. Em face de tal inferência, que partiu da análise da mobilização social e do direito diante desse problema, o presente estudo possui impacto na perspectiva de categorização da violência obstétrica enquanto problema que afeta coletivamente um grupo significativo de pessoas, podendo contribuir para a sua inserção gradativa na agenda política. POTENTIAL IMPACT OF THIS RESEARCH This research identified that obstetric violence is not recognized by the State as a public problem and, therefore, public policies that favor humanization are scarce. In view of this inference, which was based on the analysis of social mobilization and the law in the face of this problem, the present study has an impact on the perspective of categorizing obstetric violence as a problem that collectively affects a significant group of people, and may contribute to its gradual inclusion in the political agenda. GABRIELA VIDOTTI FERREIRA MAGALHÃES A VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA COMO PROBLEMA PÚBLICO: Ação institucional, políticas públicas e mobilização social Dissertação apresentada à Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Campus de Franca, para obtenção do título de Grau acadêmico Mestra em Planejamento e Análise de Políticas Públicas. Área de Concentração: Instituições, Cidadania e Políticas Sociais Data da defesa: 12/03/2025 Banca Examinadora: ______________________________________ Prof. Dr. Agnaldo de Sousa Barbosa UNESP - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais - Campus de Franca ______________________________________ Prof. Dr. Rodolfo Franco Puttini UNESP - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais - Campus de Franca ____________________________________ Prof. Dr.a Regina Célia de Souza Beretta Unifran - Universidade de Franca ______________________________________ Prof. Dra. Maria Lúcia Vannuchi UFU - Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais https://www.escavador.com/sobre/744388/regina-celia-de-souza-beretta Dedico este trabalho a todas as pessoas que gestam e constroem em seus ventres a sociedade que queremos. AGRADECIMENTOS Agradeço primeiramente a Deus por me permitir chegar até aqui e viver momentos tão enriquecedores e transformadores. Agradeço à minha filha Eduarda, por me permitir viver experiências que me possibilitaram ampliar o olhar e perceber a dor de parir que vai muito além do trabalho de parto. Agradeço à minha filha Clara, por me permitir ressignificar e curar as feridas e entender a real importância dessa pesquisa e a urgente efetivação da humanização do parto. Este trabalho está longe de ser um trabalho escrito por uma mão apenas, ele é fruto de uma extensa rede de apoio que me socorreu a tempo de não desistir. Por isso, minha mais profunda gratidão ao meu orientador Agnaldo de Sousa Barbosa, que o tempo todo me aconselhou e mostrou os caminhos possíveis a seguir, ao meu coorientador Rodolfo Franco Puttini por me enveredar nas sendas da humanização da saúde. À minha amiga/irmã Fernanda de Castro por ser minha inspiração e grande incentivadora, por pegar na minha mão e conduzir aos debates, leituras e possibilidades e que ao longo de anos difíceis, não poupou esforços para possibilitar que eu chegasse até aqui. Agradeço infinitamente à minha mãe, Rosimeire Vidotti Ferreira, por assumir a pesada incumbência de parir, educar e auxiliar em todas as fases da minha vida, essa vitória é nossa minha querida e sei o quanto de seu suor esteve envolvido. Obrigada por seu amor incondicional e por seu exemplo que espero passar às minhas filhas. Ao meu esposo Danilo que com tanto amor esteve comigo nos partos e na vida, sendo o porta-voz de minhas escolhas e desejos lutando pela mesma causa. À minha Doula e amiga da vida Carolina Nishimura que esteve comigo em todas as gestações, sendo meu apoio em meu processo de gestar, parir, amamentar e maternar e, assim como eu, acredita na potência da mulher que pare. À Kathelin Escobedo pela amizade e por eternizar em imagens o momento mais transformador da minha vida. Aos meus amigos Ane Tolentino, Gabriela Ribeiro, Hugo Rafael Soares, Ana Beatriz Junqueira, Karina Sabina, Caio Dagher, Heloísa Garcia, Karina Amorim, Taisa Mara Furini, Thaysa de Andrade, Rachel Zanguetin e tantos outros que foram socorro e ombro amigo quando, pelos acontecimentos da vida, pensei ter que desistir dessa pesquisa. Aos amigos que a Unesp me trouxe Agnaldo de Sousa Barbosa e sua esposa Terezinha Machado Barbosa, Alexandre Marque Mendes e sua esposa Rita de Cássia Lopes de Oliveira Mendes, Elísio Estanque e sua esposa Nataliya Naumenko e Mauro Lúcio Ferreira, por me proporcionarem partilhas enriquecedoras e tantos momentos agradáveis de descontração, regados a vinhos e cafés. À querida professora de yoga, Leny Papacídero Magrin, por ampliar minha consciência e me permitir visualizar a jornada com mais leveza e presença, percebendo minhas possibilidades e acolhendo meus limites. Aos membros da Subcomissão de Direitos Obstétricos e Parentalidade responsável da Ordem dos Advogados do Brasil, Subseção de Franca/SP, por me permitirem discussões tão enriquecedoras para esse trabalho. Ao Centro de Convivência Infantil - CCI "Pintando o Sete", por acolher e cuidar com amor de minha pequena Eduarda enquanto me dedicava às atividades do mestrado. “Quando as ovelhas deram à luz com anestesia peridural, não cuidaram dos seus cordeiros” (Odent, 2000, p. 7) RESUMO Apesar da humanização do parto ser um movimento que se fortaleceu por meio de debates no cenário nacional e internacional, culminando na intensificação de demandas levadas aos tribunais, relatos de violência obstétrica no país ainda são muito comuns entre as mulheres. Diante desse cenário, a presente investigação teve como objetivo compreender como a violência obstétrica se configura como problema e objeto para as políticas públicas, partindo-se das restrições aos direitos da mulher no que tange à humanização do parto. Em um primeiro momento, foi estudada a definição de violência obstétrica e os entraves epistemológicos, sociais e jurídicos para seu reconhecimento. Posteriormente, investigou-se por meio de um mapeamento das iniciativas institucionais, projetos de lei, leis, tanto em âmbito federal, como em âmbito estadual, com foco no Estado de São Paulo, em conjunto com as iniciativas locais, na cidade de Franca. Por fim, analisou-se quais respostas o Poder Judiciário tem dado aos demandantes no tocante à violência obstétrica e à humanização do parto. Para essa investigação, utilizou-se a metodologia de análise qualitativa e para a coleta de dados valeu-se do estudo de caso ampliado, preceituado por Michael Burawoy (2014), a fim de se perquirir sobre a importância da mobilização do direito para a garantia da efetividade dos direitos da mulher. Com isso, procurou-se responder aos seguintes questionamentos: a violência obstétrica é vista como um problema público? E qual o papel das políticas públicas e da mobilização do direito para garantir que situações de exceção não se tornem situações definitivas? As respostas alinham-se ao contexto sociológico, político e jurídico que giram em torno da compreensão do ser feminino na sociedade. Palavras-chave: Políticas Públicas, Violência Obstétrica, Saúde Pública, Mobilização do Direito, Humanização do Parto. ABSTRACT Although the humanization of childbirth is a movement that has been strengthened through debates on the national and international scene, culminating in the intensification of demands taken to court, reports of obstetric violence in the country are still very common among women. Given this scenario, the present investigation aimed to understand how obstetric violence is configured as a problem and object for public policies, based on restrictions on women's rights regarding the humanization of childbirth. Initially, the definition of obstetric violence and the epistemological, social and legal obstacles to its recognition were studied. Subsequently, it was investigated through a mapping of institutional initiatives, bills, laws, both at the federal and state levels, focusing on the State of São Paulo, together with local initiatives, in the city of Franca.Finally, we analyzed what responses the Judiciary has given to the plaintiffs regarding obstetric violence and the humanization of childbirth. For this investigation, the methodology of qualitative analysis was used and for data collection we used the expanded case study, prescribed by Michael Burawoy (2014), in order to investigate the importance of mobilizing the law to guarantee the effectiveness of women's rights. With this, we sought to answer the following questions: is obstetric violence seen as a public problem? And what is the role of public policies and the mobilization of law to ensure that exceptional situations do not become definitive situations? The answers align with the sociological, political and legal context that revolves around the understanding of the female being in society. Keywords: Public Policies, Obstetric Violence, Public Health, Mobilization of Law, Humanization of childbirth. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ...............................................................................................................10 2 O CONCEITO DE VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA NA PERPECTIVA EPISTEMOLÓGICA, SOCIAL E JURÍDICA .........................................................15 2.1 EMPODERAMENTO FEMININO E SOCIEDADE: QUANDO A MULHER DEIXOU DE TER CONTROLE SOBRE O SEU CORPO? ............................................24 2.2 A DINÂMICA DO DESCONHECIDO: COMO O DESCONHECIMENTO SOBRE OS DIREITOS AFETAM AS MULHERES? ......................................................32 3 MAPEAMENTO DAS INICIATIVAS INSTITUCIONAIS ....................................37 3.1 MAPEAMENTO DAS INICIATIVAS FEDERAIS ................................................40 3.2 MAPEAMENTO DAS INICIATIVAS DO ESTADO DE SÃO PAULO ................46 3.3 AÇÕES DA SUBCOMISSÃO DE DIREITOS OBSTÉTRICOS E PARENTALIDADE RESPONSÁVEL DA ÓRDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL, SUBSEÇÃO DE FRANCA, ESTADO DE SÃO PAULO ..............................52 3.4 INICIATIVAS INSTITUCIONAIS E A MOBILIZAÇÃO DO DIREITO ...............60 4 A MOBILIZAÇÃO DO DIREITO E A DINÂMICA DO CONFLITO EM TORNO DOS DIREITOS REPRODUTIVOS ...............................................................62 4.1 OS CASOS BRASILEIROS DE VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA COM REPERCUSSÃO NA MÍDIA NOS ESTADOS DE SÃO PAULO E RIO DE JANEIRO ...............................................................................................................................................63 4.2 A TIPIFICAÇÃO CRIMINAL DA CONDUTA DE VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA E A LUTA POR MAIS DIREITOS: A MOBILIZAÇÃO DO DIREITO EM FACE DA DINÂMICA DO CONFLITO..............................................................................................77 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................81 REFERÊNCIAS .................................................................................................................83 10 1 INTRODUÇÃO O parto deveria ser um evento fisiológico na vida da mulher, contudo, índices demonstram que esta realidade está longe de acontecer, conforme, Brasil (2019), o Painel de Indicadores de Atenção Materna e Neonatal, extraídos da Agência Nacional de Saúde Suplementar, no ano de 2019, apenas 30,04 % dos partos foram vaginais, contra 69,96% por cesárea e destas 56,15% a mulher não entrou em trabalho de parto, ou seja, foram realizados por cesáreas eletivas. Com os avanços tecnológicos, nos anos 1980, cesáreas eletivas eram consideradas a via mais segura para a mãe e o bebê no nascimento, isso porque falsamente se acreditava que o médico era capaz de prever o momento em que o bebê estava pronto para o nascimento. Com isso, o parto passou a ter como protagonista o médico, que escolhia uma data conforme sua agenda e não a do bebê. Além disso, levar o parto para o hospital tornou este momento, inevitavelmente, uma patologia, como qualquer outra tratada em um ambiente hospitalar, sujeita, portanto, a protocolos a serem seguidos pelos médicos e sua equipe (Matei, et al., 2003). Estes protocolos consistem muitas vezes em práticas desnecessárias, pois sem respaldo científico e até mesmo desumanas. Como exemplo, a proibição da parturiente tomar água ou ingerir alimentos, exames de toque sem o consentimento, a raspagem dos pelos pubianos (tricotomia), indicando que o parto evoluirá para uma cesárea e a proibição de posições de parto, sendo a mulher obrigada a ficar em posição vaginal, muitas vezes amarrada, dentre outras situações que tiram totalmente a autonomia feminina, e a torna vulnerável às decisões médicas. A perda de autonomia da mulher culminou em várias práticas médicas desnecessárias, como episiotomia, que visa “auxiliar” a saída do bebê, por meio de um corte vaginal, o uso de fórceps, o uso de ocitocina para acelerar o trabalho de parto, cesárea sem indicação clínica, condutas desrespeitosas dos médicos e sua equipe, durante o parto, como xingamentos, brincadeiras de mau gosto e outros tantos relatos de métodos que não respeitam a fisiologia do parto, a vontade da mulher e sua dignidade, gerando situações de abusos físicos, sexuais e verbais, atos esses que configuram o que se denomina hoje como violência obstétrica, segundo a Organização Mundial da Saúde (World Health Organization) (WHO, 1996). Por conta desse histórico, em contrapartida ao movimento cesarista dos anos 1980 e a essas práticas de violência obstétricas, surgem no Brasil movimentos sociais 11 pela humanização (Tornquist, 2002) baseados nos parâmetros propostos pela Organização Mundial da Saúde (OMS), na qual, dentre outras práticas prevê o direito ao acompanhante, a ser escolhido pela gestante, para acompanhá-la no pré-natal, parto e pós-parto imediato. O que se observa ao longo da história é uma cultura de desrespeito tão arraigada, que se tornou comum ouvir relatos de maus tratos no parto e se normalizar as condutas, como se a mulher que reclama não fosse grata ao médico que trouxe seu filho com vida e esta mulher, muitas vezes, não reclama por pensar que num futuro poderá necessitar novamente dos cuidados do hospital, do médico ou da equipe (Diniz, et al, 2016). Ainda, como nos ensina Angela Davis (2016), esse desrespeito tem gênero, raça e classe, no sentido da necessidade de um olhar pela interseccionalidade, ou seja, mulheres, negras e pobres sofrerem ainda mais violências obstétricas, devido a uma condição historicamente inferiorizada. Em razão de vários fatores, dificilmente uma mulher pobre e negra terá acesso a informações atualizadas ou mesmo terá condições financeiras para pagar pelo trabalho prestado pela doula, ou por uma equipe de parto humanizado, pois esses profissionais de auxílio ao parto não são uma realidade nos hospitais públicos. No Brasil, a Constituição Federal de 1988 traz a proteção à maternidade como uma preocupação do Estado e passou a fazer parte do rol de direitos sociais, que demandam prestações positivas do Estado para que as políticas aconteçam de forma adequada. Esse direito passou a ser previsto no artigo 6º, “caput”, da Constituição Federal de 1988, mas, somente em 2016, quando a Lei nº 13.257 de 2016, incluiu o parágrafo 6º do artigo 8º do Estatuto da Criança e do Adolescente, é que o direito da gestante a ter um acompanhante, tanto nas consultas de rotina, durante o trabalho de parto no hospital, quanto no pós-parto, durante sua internação foi garantido, no entanto, ainda há descumprimentos dessa lei no país. Quanto ao papel que é desempenhado, por geralmente ser pessoa da família, o acompanhante, escolhido pela parturiente é o responsável por dar conforto emocional à gestante e ao bebê, contudo ele não tem nenhum conhecimento técnico quanto à fisiologia do parto. Estudos comprovam que sua presença pode diminuir as horas de parto, além disso, oferece o acolhimento necessário para sua segurança, em um momento de total vulnerabilidade da mulher (Hoga, 2007). 12 Outro profissional importante para a prevenção de violências obstétricas e humanização do parto é a Doula, etimologicamente a denominação significa “mulher que serve” ela atua no aconselhamento e informações, dando “suporte emocional à mulher intraparto, com treinamento específico sobre fisiologia do parto normal, métodos não farmacológicos para alívio da dor, cuidados pós-natais e aleitamento materno” (Barbosa et. al, 2018). Apesar da relevância do papel desempenhado para a humanização e por ser reconhecido pela Organização Mundial da Saúde, a profissão não possui regulamentação por norma federal, contudo, em 2013, foi inserida na Classificação Brasileira de Ocupações e recebeu o código 3221-35, correspondente a tecnólogos e técnicos em terapias complementares e estéticas e já possui lei própria em muitos municípios brasileiros, como por exemplo no município de Franca/SP, a lei 8.518 de março de 2017, dispõe sobre a presença de profissionais Doulas durante o parto nas maternidades e hospitais do Município de Franca. Há ainda, o reconhecimento das funções exercidas por essa profissional no parecer 24.385/13 emitido pelo Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (CREMESP), conforme descreve: A acompanhante treinada, além do apoio emocional, deve fornecer informações a parturiente sobre todo o desenrolar do trabalho de parto e parto, intervenções e procedimentos necessários, para que a mulher possa participar de fato das decisões acerca das condutas a serem tomadas durante este período. Durante o trabalho de parto e parto, a acompanhante: Orienta a mulher a assumir a posição que mais lhe agrade durante as contrações: Favorece a manutenção de um ambiente tranquilo e acolhedor, com silêncio e privacidade; Auxilia na utilização de técnicas respiratórias, massagens e banhos mornos; Oriente a mulher sobre métodos para alívio da dor que podem ser utilizados, se necessários; Estimula a participação do marido ou companheiro em todo o processo; Apoia e orienta a mulher durante todo o período expulsivo, incluindo a possibilidade da liberdade de escolha quanto à posição a ser adotada. Com isso, a mulher, por estar vulnerável frente aos conhecimentos técnicos do médico e sua equipe, muitas vezes se vê coagida a realizar procedimentos que não realizaria, caso soubesse da eficiência de cada um deles, é nesse momento que a Doula auxilia no consentimento da parturiente. O acompanhante, por sua vez, geralmente é instruído antes do parto pela Doula e também se prepara para viver este momento, conhecendo e apoiando as vontades da parturiente. Percebe-se, portanto, que ambos 13 defendem a mulher durante o parto e sua presença visa diminuir a incidência de violência obstétrica. Como já foi dito, o parto deveria ser um evento fisiológico na vida de uma mulher, contudo, atualmente, percebemos que intervenções e medicalização são cada vez mais utilizadas, diminuindo o poder de escolha sobre o corpo da mulher. Isso gera, muitas vezes, uma situação de violência física e/ou psicológica que causará danos para muito além do parto, atingindo a vida da parturiente e da díade, mãe-bebê. Para esta pesquisa, a vivência pessoal e profissional da pesquisadora foi o combustível que a possibilitou olhar para um tema que experienciam muitas mulheres em seu pré-natal, parto e pós-parto imediato. Todavia, essa abordagem tem o condão de ir além de seu próprio ser, almejando servir de utilidade para a sociedade. Por esse motivo, a pesquisa trouxe elementos que combinaram a experiência da pesquisadora com a carga objetiva necessária para demonstrar como a violência obstétrica ocorre no meio social. Dessa forma, como abordagem metodológica utilizou-se da metodologia de análise qualitativa, permitindo uma análise mais pormenorizada e abrangente dos dados coletados. A coleta de dados valeu-se do estudo de caso ampliado, conforme preceitua Michael Burawoy (2014), por meio do qual foi utilizado uma perspectiva que busca se aproximar do método etnográfico, possibilitando uma imersão na experiência da pesquisadora e na comunidade, a fim de se levantar o problema e investigar as soluções presentes e futuras para o caso. Sobre o método, Michael Burawoy (2014, p. 42) afirma que: [...] o estudo de caso ampliado aplica a ciência reflexiva à etnografia, com o objetivo de extrair o universal do particular, mover-se do “micro” ao “macro”, conectar o presente ao passado e antecipar o futuro – tudo isso construído sobre uma teoria preexistente. Assim, o presente estudo partiu de uma experiência pessoal e profissional, e foi em seu primeiro capítulo buscar as origens da violência obstétrica pela perspectiva epistêmica, social e jurídica, observando o cunho multifatorial em que se debruça sobre fatores diversos como: o machismo, o poder simbólico (Bourdieu, 1989), a injustiça epistêmica (Fricker, 2007), dentre outros que impedem a mulher, muitas vezes, de se perceber violentada. Após o levantamento do Capítulo 1, no Capítulo 2, fez-se um mapeamento das iniciativas institucionais existentes verificando em âmbito federal, estadual e 14 municipal, leis e projetos de leis existentes, com a intenção de aferir a mobilização da temática no âmbito político. Em conjunto a essa análise no âmbito político, foi feito um trabalho de campo por meio da atuação pela Subcomissão de Direitos Obstétricos e Parentalidade Responsável da OAB, Subseção de Franca, estado de São Paulo, com palestras, escuta ativa de doulas, profissionais da saúde e gestantes. Esse trabalho de campo permitiu ampliar o olhar da pesquisadora sobre o tema, além de poder criar junto em coletivo um projeto de lei que foi apresentado à Câmara dos Vereadores de Franca. Além dessa experiência que aproximou à pesquisa da sociedade, também foi citado um caso jurídico pessoal em que a pesquisadora atuou como advogada, questionando a entrada da Doula no parto durante a pandemia da Covid-19. Já no Capítulo 3, buscou-se tratar da mobilização do direito, abordando dois casos de repercussão nacional, o primeiro, caso da Shantal Verdelho e o segundo do anestesista Giovanni Quintella Bezerra. Apesar de deslindes diferentes, verificou-se que a falta de reconhecimento do termo violência obstétrica e a criminalização da conduta, inviabilizou a punição do primeiro caso e no segundo, enquadrou-se em crime de estupro de vulnerável. 15 2. O CONCEITO DE VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA NA PERSPECTIVA EPISTEMOLÓGICA, SOCIAL E JURÍDICA São frequentes os relatos de violência contra a gestante e parturiente, perpetrada por profissionais da saúde, ao longo do processo de gestação e nascimento. Uma pesquisa realizada em 2010, pela Fundação Perseu Abramo (Venturi et al, 2013, p. 175), trouxe à tona um problema que há muito era restrito à esfera íntima da mulher. A referida pesquisa concluiu que uma a cada quatro mulheres entrevistadas, ou seja, 25% destas, que tiveram seus filhos na rede pública ou privada no Brasil, sofreram alguma violência durante o parto. Ressalta-se aqui duas importantes considerações a serem feitas nessa análise. A primeira delas, é quanto ao tempo de obtenção desses dados, como já dito, ele é de 2010, ou seja, há quatorze anos. Posteriormente a isso, não houve, no Brasil, uma pesquisa com a mesma abrangência para redimensionar o problema. Um segundo ponto é que a porcentagem obtida, apesar de ser um considerável dado para nortear o problema público, está longe de representar a realidade quanto a violência obstétrica. Isso porque, na pesquisa da Fundação Perseu Abramo, 25% das entrevistadas conseguiram identificar e verbalizar as violências sofridas, no entanto, muitas vezes a violência ainda é velada, e, esse “não dito” possui causas multifatoriais, pois a violência é institucionalizada, estrutural, epistêmica, fruto do “poder simbólico”, do machismo, dentre outros fatores que a impossibilita de perceber- se violentada. Neste sentido, cumpre tecer considerações sobre esses modelos estratificados em nossa sociedade que levam a uma normalização das condutas. Quanto ao “poder simbólico”, este é essencial para explicar a hegemonia dos saberes médicos em detrimento de outros saberes como o das parteiras, das doulas, das enfermeiras obstétricas e até mesmo da própria parturiente. O poder simbólico, como denominado por Pierre Bourdieu (1989), ou o poder invisível, é aquele que não se deixa ver, mas que é socialmente reconhecido, ou seja, ignorado como arbitrário e por isso, culturalmente aceito. Ao voltarmos o olhar sociológico para a construção do feminino no parto, temos que a mulher é o ser que se reproduz e que a construção do pensamento sobre o parto não cabe a ela, mas aos detentores do conhecimento científico na medicina. Segundo as diretrizes do Ministério da Saúde (Brasil, 2000, p. 9 e 10) sobre o programa de humanização no pré-natal e nascimento no início dos anos 2000, “a gravidez e o 16 parto são eventos sociais que integram a vivência reprodutiva de homens e mulheres” e, acresce, ainda que: Os profissionais de saúde são, coadjuvantes desta experiência e desempenham importante papel. [...]. Contudo, desempenhar este papel não é fácil. A maioria dos profissionais vê a gestação, o parto, o aborto e o puerpério como um processo predominantemente biológico onde o patológico é mais valorizado. Durante sua formação, doenças e intercorrências são enfatizadas e as técnicas intervencionistas são consideradas de maior importância. Entretanto, a gestação é um processo que geralmente decorre sem complicações. Os estudantes são treinados para adotar "práticas rotineiras", como numa linha de produção, sem a avaliação crítica caso a caso. Disto decorre um grande número de intervenções desnecessárias e potencialmente iatrogênicas. O documento já sinalizava que o parto é um evento natural na vida de uma mulher e, por isso, deve ser tratado com o devido respeito pelos profissionais de saúde, que são coadjuvantes e não protagonistas. A grande questão que surge da orientação do Ministério da Saúde é: Se há mais de duas décadas atrás, o parto já era visto como um evento natural, por que esse conhecimento não se disseminou no meio médico? O Conselho Federal de Medicina (CFM) possui algumas resoluções no que diz respeito ao parto. A preocupação da área médica relaciona-se com a ética e postura profissional durante o parto, sobretudo no que diz respeito à autonomia do médico e do paciente, conforme destaca pelo artigo 1º da Resolução CFM nº 2.284/2020: Art. 1º É direito da gestante, nas situações eletivas, optar pela realização de cesariana, garantida por sua autonomia, desde que tenha recebido todas as informações de forma pormenorizada sobre o parto vaginal e o cesariano, seus respectivos benefícios e riscos. Parágrafo único. A decisão deve ser registrada em termo de consentimento livre e esclarecido, elaborado em linguagem de fácil compreensão, respeitando as características socioculturais da gestante. Antes de fazer uma análise mais detida do dispositivo citado, cabe destacar que a Resolução é do ano de 2020, ou seja, ela foi editada 20 anos depois da edição pelo Ministério da Saúde sobre o programa de humanização do parto e depois das diretrizes sobre o parto humanizado (Brasil, 2017). O que se denota, portanto, é que pela letra fria da resolução, a escolha do parto cesariano eletivo só deveria ser feita após uma decisão informada da paciente, o problema é como essa informação é repassada. Com isso, até parece um contrassenso afirmar que muitas técnicas utilizadas pela equipe de atenção materna não são baseadas em evidências científicas, isso porque, tem-se a premissa de que os conhecimentos médicos são a única verdade possível, capaz de fazer um bebê nascer com vida. No entanto, não é assim que acontece, um exemplo 17 importante é quanto à relação de parto cesáreo e morte materna infantil, é evidente que o procedimento médico deve ser utilizado para salvar a vida do binômio mãe-bebê quando comprovadamente necessitam de intervenção. Contudo, não há evidências que a realização do procedimento em partos com risco habitual esteja ligada com a redução dos índices de morte da díade materna, conforme divulgado pela Organização Mundial da Saúde (2015). No mesmo documento, a Organização Mundial da Saúde afirma que desde 1985 o recomendado pela comunidade médica é uma taxa de cesárea entre 10% a 15%, sendo outros valores indícios de problemas na assistência ao parto e pré-natal. Índices esses muito distantes do esperado no caso do Brasil, que tem taxas ascendentes de parto cesárea, chegando a 58,16% de todos os partos realizados no ano de 2022, conforme Painel de Monitoramento de Nascidos Vivos segundo Classificação de Risco Epidemiológico (Grupos de Robson) (Brasil, 2023). Tais índices estão na contramão das políticas públicas instituídas pelo país, como o Programa de Humanização no Pré-Natal e Nascimento (2000), criada pela Portaria 569/00, Rede Cegonha (2011), criada pela Portaria 1459/11, as Diretrizes Nacionais para o Parto Humanizado (2017), política pública de humanização do parto editada pelo Ministério da Saúde dentre outras demonstrando o quanto a humanização ainda não foi implementada e efetivada pelo país, perpetuando-se assim a violência simbólica que reforça a “domesticação dos dominados” 1 . Com a finalidade de ilustrar a hegemonia do saber médico, Sena (2016, p. 98) traz relatos de mulheres que sofreram violência obstétrica: Assim que a tal médica plantou a semente da dúvida dentro de mim e me negou assistência, eu medrei. Sim, eu poderia ter continuado sozinha. Mas eu tive medo. Tive medo de algo dar errado e eu me culpar pelo resto da vida. (...) Concordei com a cesárea (Elisa). Relatos nesse sentido são muito frequentes, confirmando o monopólio da violência simbólica, capaz de inculcar, por meios socialmente reconhecidos, veladamente arbitrários, o conhecimento de um grupo dominante, no caso o dos 1 A esse respeito, Bourdieu (1989, p. 11) explica que: É enquanto instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação e de conhecimento que os “sistemas simbólicos” cumprem a sua função política de instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação, que contribuem para assegurar a dominação de uma classe sobre outra (violência simbólica) dando reforço da sua própria força às relações de força que as fundamentam e contribuindo assim, segundo a expressão de Weber, para a “domesticação dos dominados”. 18 médicos, a hegemonia de seu conhecimento profissional específico (Bourdieu, 1989, p.12). A predominância dos saberes médicos encontra explicação na “injustiça epistêmica”, termo cunhado por Miranda Fricker (2007, p.1) para buscar investigar os fenômenos sociais da relação de poder que exclui o conhecimento de uma pessoa ou grupo em detrimento de outra pessoa ou grupo, por preconceito de identidade. Alice de Barros Gabriel (2020, p.5) correlaciona a teoria de Fricker à violência obstétrica, investigando a injustiça epistêmica não apenas aos saberes médicos, como também à raça e classe, dizendo das diferenças entre a atenção ao parto de mulheres negras e brancas, ricas e pobres. Ademais, afirma por meio da teoria das injustiças epistêmicas de cunho hermenêutico, que tais injustiças relacionadas à mulher é fruto da marginalização social e política, por consequência da participação “historicamente desigual das mulheres na elaboração e na revisão de conceitos-chave para explicar experiências cotidianas” (Gabriel et al., p.3). É, portanto, injusta no sentido de negar à mulher o direito de sofrer pelas ocorrências do parto e de punir seus agressores, já que há uma dificuldade entre as próprias mulheres de reconhecer a violência obstétrica. Dessa forma, necessariamente deve-se olhar a violência obstétrica na perspectiva de gênero, raça e classe distanciando-se, assim, de outras violências médicas. Além do mais, o parto é expressão da sexualidade feminina, e nada tem a ver com as outras patologias que dependem de cuidados médicos. Quando se ressalta que o parto é uma expressão da sexualidade feminina, significa dizer que a maioria das intervenções realizadas sem o consentimento da mulher pode ser sentida, mesmo que apenas em seu íntimo, como um abuso sexual (Sadler et al, 2017). E nesse sentido, as palavras de Sena (2016) ecoam como vozes silenciadas de muitas outras mulheres que também sentiram o mesmo, no entanto tiveram suas experiências invisibilizadas e naturalizadas: Quantas vezes escutei a frase “filhinha, colabore pois sei o que estou fazendo”! Que ódio lembrar disso!!! Quanta raiva já tive de mim por ter permitido o que fizeram com meu corpo e minha alma. Me senti estuprada, e isso a maioria das pessoas não entendem. O corpo é meu, as regras são minhas... Esse deveria ser o mandamento maior. A ginecologia é a única especialidade médica em que casos assim acontecem. Não há esse tipo de subjugação, menosprezo, violência e ironia em uma sala de urologista ou de um cardiologista com pacientes do sexo masculino. (Sena, 2016, p. 265, grifo nosso) 19 Neste relato é possível perceber o quanto aquela mulher foi vítima de um sistema estruturalmente construído para punir e culpabilizar mulheres, fazendo com que ela se questionasse sobre o porquê “permitiu” tal ato. Na verdade, não havia escolha e nunca haverá quando falamos de estupro. Há que se considerar que todas as instituições e a sociedade em si, ainda pune mulheres pelo pecado original, mesmo que sem perceber que o façam, reafirmando sempre a sujeição da mulher frente ao homem (Pires, 2016). 2 Além disso, ao longo da história, a mulher vem perdendo o protagonismo diante da medicalização de seus processos fisiológicos, concomitante às necessidades da modernidade e, portanto, do capitalismo, em realizar o controle populacional. Sobre a posição da mulher em condição servil à força de trabalho masculina, que desempenhou papel importante para o desenvolvimento do capitalismo e a manutenção da ordem patriarcal, Silvia Federici (2017, p.232) pontua: Sobre esta base, foi possível impor uma nova divisão sexual do trabalho, que diferenciou não somente as tarefas que as mulheres e os homens deveriam realizar, como também, suas experiências, suas vidas, sua relação com o capital e com os outros setores da classe trabalhadora. Deste modo, assim como a divisão internacional do trabalho, a divisão sexual foi, sobretudo, uma relação de poder, uma divisão dentro da força de trabalho, ao mesmo tempo que um imenso impulso de acumulação capitalista. Assim, simultaneamente a isso, os avanços na ciência voltados à reprodução humana, possibilitaram o desenvolvimento de técnicas de esterilização tubária, realizadas, na maioria das vezes, durante o parto cesárea, o que contribuiu para o aumento das intervenções médicas durante o parto. Quando se observa os avanços da medicina relacionados ao parto, destaca- se que majoritariamente a comunidade científica era composta por homens, que por sua própria fisiologia são incapazes de entender corpos femininos e seus ciclos e, portanto, a lógica de curar todos os processos fisiológicos envolvidos no parto, como a dor, os longos períodos em trabalho de parto, ou qualquer outro processo medicalizado que foram pouco a pouco incorporados como protocolos hospitalares. Logo, atualmente é muito comum encontrar mulheres que se dizem incapazes de viver um parto normal, de 2 Sobre a dominação do homem sobre a mulher, muitos autores discutiram amplamente o tema, para isso ver “A Dominação Masculina: a condição feminina e a violência simbólica”, de Pierre Bourdieu (2020), também “Calibã e a Bruxa: Mulheres, Corpo e Acumulação Primitiva” de Silvia Federici (2017). Para uma análise pormenorizada de como os direitos são relativizados conforme gênero, raça e classe, ver “Mulheres, raça e classe”, de Angela Davis (2016). 20 amamentar e até mesmo de engravidar, necessitando cada vez mais de se valerem da medicina para conseguirem o que deveria ser fisiológico, assim como o é para outras fêmeas de mamíferos. Nos dizeres de Elisabeth Meloni Vieira (2008, p.68): A medicalização da contracepção é apenas um dos aspectos do processo da vida reprodutiva da mulher. Esse fenômeno se expressa através do uso da tecnologia em situações em que esta poderia utilizar a humanização, educação e informações no âmbito de um programa que deveria estar fornecendo escolhas e informações. Configura-se como uma estratégia de ‘modernidade’, expressando a ideia de que a tecnologia sempre oferece a melhor solução (em termos de alta eficácia e bem-estar), baseando-se em um modelo que não estabelece como prioridade a saúde e os direitos humanos. E assim, facilmente virou exceção o que deveria ser a regra, a medicalização do parto, pois, respaldada pela ciência, trazia uma certa sensação de segurança à mulher. Ressalta-se aqui, que não se pretende negar a ciência e seus avanços, certamente a ciência tem cumprido um papel importantíssimo para salvar vidas, em especial, a vida do binômio mãe-bebê. Significa dizer que, quando bem indicada, cesáreas salvam vidas, a fertilização in vitro possibilita que casais tenham seus filhos e o leite em pó alimenta um bebê, sedento e com fome, na total impossibilidade da mãe de o fazê-lo. Contudo, essas intervenções não deveriam ser regra, como tem sido atualmente, em que o Brasil, como já relatado teve em 2022 um índice de parto cesárea de 58,16% e o Estado de São Paulo ainda maior, no patamar de 59,46% dos nascidos naquele ano, ou seja, bem acima do recomendado (Brasil, 2023). Portanto, este estudo não é “apenas” sobre a violência obstétrica, mas é sobre resgatar no humano a capacidade de perceber o outro independente de gênero, classe ou raça; é sobre devolver à mulher a oportunidade de produzir e transmitir conhecimento, é sobre validar dores e sentimentos alheios e não permitir que eles se repitam a quem quer que seja, é sobre dominação, na tentativa de superá-la, é sobre a necessidade urgente do ser humano, ser humano e deixar fluir seus sentimentos onde o amor encontre terrenos férteis. Por fim, é sobre nascer e, portanto, construir uma sociedade livre, justa e solidária, como preceitua a Constituição Federal de 1988 em seu art. 3º, inciso I, ao tratar dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil. Outro ponto a ser trazido é a falta de conceituação pelo Estado brasileiro do que seja violência obstétrica, questão está pontuada em 25 de abril de 2023 pela Comissão Especial sobre Violência Obstétrica e Morte Materna da Câmara dos Deputados. Tal ato significa o reconhecimento do Estado do problema público. 21 Por todas as teorias já apresentadas, que invisibilizam e naturalizam as condutas, o conceito e delimitação de violência obstétrica ainda encontra muitas divergências em nosso país, não só da classe médica, como também da sociedade, do poder público e das próprias mulheres (Sena, 2016 p.140). Tanto é assim que, em 2019, o Ministério da Saúde se posicionou contra a utilização do termo, dispondo que: “[...] o termo “violência obstétrica” tem conotação inadequada, não agrega valor e prejudica a busca do cuidado humanizado no continuum gestação-parto-puerpério” (FEBRASGO, 2019). Nesse mesmo sentido, na tentativa de não culpar profissionais ou grupos de profissionais da saúde, programas de saúde como o ReHuNa (Rede Pela Humanização do Parto e Nascimento), na década de 1990, não utilizavam o termo. Essa vertente prefere termos como a “humanização do parto” e “promoção dos direitos humanos das mulheres" (Sadler et al, 2017, p. 68). Até mesmo a Organização Mundial da Saúde tem se utilizado de outros termos como “abusos, desrespeito e maus tratos” durante o parto (Katz, et al, 2020, p. 628), em contraposição à sua própria definição de violência obstétrica, qual seja: Apropriação do corpo e dos processos reprodutivos da mulher por agentes de saúde, mediante tratamento desumanizado, abuso de medicalização e patologização dos processos naturais, que acabam resultando na perda de autonomia da gestante e de sua capacidade de decidir de maneira livre sobre seu corpo e sexualidade. Inclui a violência por negligência, que ocorre por meio da negativa de atendimento ou das imposições de obstáculos ao cumprimento dos direitos das gestantes. (OMS, 2002) Essa “sutil” modificação do entendimento tanto da OMS quanto do Brasil demonstram os interesses envolvidos, no caso, o corporativismo médico que permeia as decisões políticas, mantendo-se assim, a sua dominação. Dessa forma, a troca da palavra violência por “exagero”, “abuso”, “desrespeito”, “maus-tratos”, contribui para a naturalização das práticas, isso porque, o olhar se volta a um profissional que por um “erro” se utilizou erroneamente da medicina, negando-se, portanto, que os próprios protocolos hospitalares/ médicos podem ser violentos e precisam ser revisados. Desse modo, práticas de rotina como a tricotomia (raspagem dos pêlos) ou a negativa de ingestão de água ou comida durante o trabalho de parto, fazem parte de muitos protocolos hospitalares e são apenas obrigações autoritárias, sem nenhum respaldo científico, pois desconsideram o nascimento normal, ou seja, todas as mulheres em trabalho de parto, de um dado hospital, mesmo que não terão um parto cesárea 22 deverão se submeter a tais procedimentos desnecessários, somente porque é protocolo da instituição. E assim, apesar de violentos, por tirarem a autonomia da mulher sobre seus corpos e sua individualidade, são naturalizados. Com relação à definição, apesar de ainda não ter uma conceituação em nosso território, outros países como a Argentina e a Venezuela já possuem. Na Venezuela, por exemplo, desde 2007 a tipificação penal da conduta e sua conceituação pela Lei Orgânica sobre o Direito das Mulheres a Uma Vida Livre de Violência (Venezuela, 2007, p. 3), no artigo 15, item 13, define como sendo: a apropriação do corpo das mulheres e de seus processos reprodutivos por profissionais de saúde, expressa pelo tratamento desumanizado, abuso de medicalização e patologização dos processos naturais, resultando em perda de autonomia e da habilidade de decidir livremente sobre seus corpos e sexualidade, impactando de maneira negativa na sua qualidade de vida (tradução nossa). Em tais conceituações é possível precisar claramente a abrangência da denominação e, verifica-se também, a proximidade com a definição de violência contra a mulher prevista no artigo 1º da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, em que o Brasil é signatário, esta prevê que “ qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada” (Brasil, 1996). Apesar de ainda não termos, em âmbito federal, uma conceituação específica que trata da violência obstétrica, podemos considerá-la como uma vertente da violência contra a mulher. Alguns estados brasileiros já a conceituam, como é o caso do Paraná e Santa Catarina. Esse último Estado, desde 2017, já possuía uma lei específica, a Lei nº 17.097/17, que foi revogada e incorporada na Lei nº 18.322/22, que prevê no “Art. 34. Considera-se violência obstétrica todo ato praticado pelo médico, pela equipe do hospital, por um familiar ou acompanhante que ofenda, de forma verbal ou física, as mulheres gestantes, em trabalho de parto ou, ainda, no período puerpério” (Santa Catarina, 2022). No entanto, tal conceituação pode ser considerada falha, por não abarcar situações de abortamento e pré-parto, como pode acontecer em consultórios médicos, durante o pré-natal, ou em clínicas para a realização de exames essenciais à gravidez. Também há previsões em outras cidades brasileiras, como é o caso de Uberaba, no Estado de Minas Gerais, que sancionou a Lei nº 13.640/2022, que 23 preceitua: “Art. 2º Considera-se violência obstétrica todo ato praticado institucionalmente, que ofenda, de forma verbal ou física, as mulheres gestantes, em trabalho de parto, em situações de abortamento, ou, ainda, no período de puerpério” (Uberaba, 2022). Além disso, há de se considerar que, conforme previsto na Constituição Federal, não cabe aos Estados e Municípios legislar sobre matéria penal, conforme o artigo 22, inciso I da Constituição Federal. Sendo assim, não haverá punição criminal de condutas tidas como violência obstétrica, apenas uma reparação na esfera civil, ou seja, indenização. Portanto, verifica-se que é urgente uma conceituação e tipificação em âmbito nacional, a fim de uniformizar a abrangência do que seria considerado violência obstétrica. Outra questão é sobre quais condutas são consideradas violência obstétrica, da mesma forma que o conceito, não há um consenso sobre tipos específicos, no entanto, algumas Políticas Públicas de humanização do parto e algumas leis estaduais e municipais servem como base para balizar os tipos. Segundo as Diretrizes Nacionais do Parto Normal (2017), as mulheres em trabalho de parto deverão receber dos profissionais da atenção materna, respeito, informações baseadas em evidências científicas e serem incluídas na tomada de decisão que se fizerem necessárias. O Estado de São Paulo prevê pela Lei nº17.431/21, o “Direito ao Parto Humanizado”. Apesar de não tratar do termo “violência obstétrica”, ela determina algumas condutas, “sujeitas de justificação”: Artigo 143 - Será objeto de justificação por escrito, firmada pelo chefe da equipe responsável pelo parto, a adoção de qualquer dos procedimentos que os protocolos mencionados nesta seção classifiquem como: I - desnecessários ou prejudiciais à saúde da gestante ou parturiente ou ao nascituro; II - de eficácia carente de evidência científica; III - suscetíveis de causar dano quando aplicados de forma generalizada ou rotineira. § 1º - A justificação de que trata este artigo será averbada ao prontuário médico após a entrega de cópia à gestante ou ao seu cônjuge, companheiro ou parente. § 2º - Ressalvada disposição legal expressa em contrário, ficam sujeitas à justificação de que trata este artigo: 1 - a administração de enemas; 2 - a administração de ocitocina, a fim de acelerar o trabalho de parto; 3 - os esforços de puxo prolongados e dirigidos durante processo expulsivo; 4 - a amniotomia; 5 - a episiotomia, quando indicada (São Paulo, 2021). 24 Sobre isso, a OMS (FEBRASGO, 2018), emitiu uma recomendação de condutas para o parto seguro em que relata algumas atuações que devem ser incentivadas, outras que precisam ser desencorajadas por não estarem baseadas em evidência e “condutas claramente prejudiciais ou ineficazes e que deveriam ser eliminadas”, como por exemplo, uso rotineiro de enema (lavagem intestinal), uso rotineiro de raspagem dos pelos púbicos, infusão intravenosa rotineira em trabalho de parto, dentre outras práticas. Dessa forma, é importante que o Estado reconheça a violência obstétrica como violência propriamente dita 3 , assim como já admitido por muitos países. No entanto, apesar da importância em relatar as condutas, assim como já há em algumas recomendações e legislações, é preciso considerar que o rol não deve ser taxativo, ou seja, restrito àquelas condutas, pois isso seria desconsiderar condições que podem prejudicar e causar danos físicos ou psicológicos ao binômio mãe-bebê que seriam desconsiderados ou naturalizados. Para tanto, o problema deve ser vislumbrado dentro de uma dinâmica social e política, para que o problema seja enxergado como público e passível de ingressar na agenda legislativa federal, de modo a tipificar a conduta no Código Penal. Porém, antes de analisarmos essa necessidade de ingresso no âmbito legislativo federal, o que será estudado com mais detalhes no Capítulo 3, vamos analisar a dinâmica de poder que envolve o corpo feminino e o desconhecimento dos direitos obstétricos pelas mulheres. 2.1 EMPODERAMENTO FEMININO E SOCIEDADE: QUANDO A MULHER DEIXOU DE TER CONTROLE SOBRE O SEU CORPO? Desde os primórdios da humanidade, a mulher é vista como um ser inferior em relação ao homem. A construção social dos corpos no Ocidente trouxe uma perspectiva feminina que se alinha aos cuidados e à beleza do corpo da mulher, 3 Países latinoamericanos como Argentina e Venezuela possuem legislação específica relacionado ao parto humanizado. A Lei nº25.929, de 17 de septiembre de 2004, trata sobre os direitos dos pais e pessoa recém nascida, assim como a Lei nº38.668, de 23 de abril de 2007, que trata sobre o direito das mulheres a uma vida livre de violência traz o conceito específico de violência obstétrica: “Violência obstétrica: a violência é entendida pela área da obstetrícia como a apropriação do corpo e dos processos saúde reprodutiva das mulheres pelo pessoal de saúde, que se expressa num tratamento desumanizante, num abuso de medicalização e patologização de processos naturais, trazendo consigo perda de autonomia e capacidade de decidir livremente seus corpos e sexualidade, impactando negativamente na qualidade de vida das mulheres” (tradução nossa). 25 relegando a ela o papel secundário no movimento social da humanidade, como uma forma de retirar o feminino das esferas de poder. Sobre o tema, convém ressaltar que o “sufocamento” da natureza feminina durante o decorrer da história da humanidade no Ocidente é algo que foi sendo trabalhado de forma paulatina, trazendo o aspecto do corpo feminino biológico como algo defeituoso e do corpo feminino psicológico como algo que precisa ser contido (Queiroz, 2018; Federici, 2017). No campo psicológico, coloca-se em evidência o estudo da psicanalista Clarissa Pinkola Estés (2018) que, sob uma perspectiva junguiana, analisa a natureza selvagem feminina, fazendo as seguintes ponderações sobre o corpo feminino: O poder das ancas. O que constitui um corpo saudável no mundo instintivo? No nível mais básico - o seio, o ventre, qualquer parte onde haja pele, qualquer parte onde haja neurônios para transmitir sensações - a questão não é a do formato, do tamanho, da cor, da idade; mas, sim, se existe sensação, se funciona como deveria, se temos reações, se temos todo um leque, todo um espectro de sentimentos. Ele tem medo, está paralisado pela dor ou pelo receio? Está anestesiado por traumas antigos? Ou será que ele tem sua própria música? [...] Está olhando com uma das suas inúmeras formas de ver? (Estés, 2018, p. 238). As ancas femininas sempre foram vistas com muitas ressalvas no campo da fertilidade e do poder feminino. A falsa ideia sobre a facilidade do parto natural em um quadril largo e a dificuldade em um quadril estreito embasaram a ciência médica obstétrica por muitos anos (Queiroz et. al., 2024). Da mesma forma, pode-se falar, de forma breve, quanto ao recorte étnico-racial, as mulheres negras são vistas como mais resistentes que as mulheres brancas (Gonzales, 2020) e, por isso, seus corpos são mais suscetíveis de serem submetidos a práticas violentas na hora do parto. Quando tratamos sobre a construção científica do corpo feminino no campo das ciências, sob um olhar filosófico e científico, convém destacar que no século XVIII, a função materna influenciou a condição feminina, com um determinismo biológico (Machado; Penna, 2022). No século XIX, esse determinismo biológico é promovido no campo das ciências da natureza e do conhecimento filosófico, de modo a atribuir às mulheres um papel secundário na sociedade como parte da própria natureza feminina. Immanuel Kant, em seus estudos sobre geografia física que deram margem ao escrito “Observações sobre o sentimento do belo e do sublime”, no ano 1764, traz aspectos 26 sobre a diferenciação dos gêneros como algo natural do ser humano e que deve ser respeitado dentro dos seus próprios limites: Da diferença entre o sublime e o belo na relação entre os sexos. [...]. A mulher possui um forte sentimento inato por tudo o que é belo, gracioso e adornado. [...]. O estudo laborioso ou a reflexão penosa, ainda que uma mulher neles progrida longamente, estragam os méritos peculiares do seu sexo, e se a raridade desta condição a converte em objecto de fria admiração, ao mesmo tempo, debilita os encantos que lhe permitem exercer o seu ascendente sobre o sexo oposto. A uma mulher que tenha a cabeça atafulhada de grego, como a senhora Dacier, ou que sustente discussões fundamentadas acerca da mecânica, como a marquesa de Châtelet, parece que apenas lhe falta uma boa barba, pois com ela o seu rosto talvez consiga expressar melhor a profundidade a que aspira (Kant, 2017, p. 59). A imposição destes limites entre o masculino e o feminino fizeram parte da construção da racionalidade instrumental no Ocidente no que tange aos sexos e as suas funções sociais. A esse respeito, destaca-se a análise sociológica feita por Pierre Bourdieu (2012) sobre a construção dos corpos evidenciando que: O mundo social constrói o corpo como realidade sexuada e como depositário de princípios de visão e de divisão sexualizantes. Esse programa social de percepção incorporada aplica-se a todas as coisas do mundo e, antes de tudo, ao próprio corpo, em realidade biológica: é ele que constrói a diferença entre os sexos biológicos, conformando-a aos princípios de uma visão mítica do mundo, enraizada na relação arbitrária de dominação dos homens sobre as mulheres, ela mesma inscrita, com a divisão do trabalho, na realidade da ordem social. A diferença biológica entre os sexos, isto é, entre o corpo masculino e o corpo feminino, e, especificamente, a diferença anatômica entre os órgãos sexuais, pode assim ser vista como justificativa natural da diferença socialmente construída entre os gêneros e, principalmente, da divisão social do trabalho (Bourdieu, 2012, p. 18). Culturalmente, a influência sobre as decisões das mulheres é balizada por fatores externos que impõem uma dinâmica social e institucional de submissão. Não se trata de desconsiderar o conhecimento adquirido na universidade pelos médicos, mas, sim, de avaliar como é esse conhecimento é adquirido, tendo em vista que para atuar na área da saúde, os profissionais precisam ter ciência que estão lidando com seres humanos que possuem direitos sobre os seus próprios corpos. Quando falamos de mulheres parturientes, o problema se agrava por se tratar de um evento que deixa a mulher em situação de vulnerabilidade extrema, pois, além das modificações do corpo durante a gravidez, existem os medos e as incertezas de se colocar um ser humano no mundo. É de se considerar que, enquanto mulheres, fomos ensinadas a cuidar de bonecas e da casa, mas não fomos ensinadas a ter domínio sobre 27 os nossos corpos, a conhecer cada pedaço do nosso corpo para que as decisões sobre ele sejam tomadas da forma mais consciente possível (Tornquist, 2002; Estés, 2018). Nesse ponto, convém fazer remissão à questão inicial deste tópico: Quando a mulher deixou de ter controle sobre o próprio corpo? Acresce ainda outra questão: Será que um dia ela já teve esse controle? Antes de tentar responder a essas duas questões, é prudente fazer a seguinte consideração: as respostas que podem advir delas possuem cargas valorativas diferentes, dependendo do olhar da pessoa que escreve e do olhar da pessoa que lê e tenta respondê-las. Por isso, é plausível esclarecer, de início, que não há a pretensão de se respondê-las na íntegra, com uma verdade absoluta, mas, sim, de se promover a reflexão sobre elas, de modo a buscar dentro da teoria o que é possível de se construir, enquanto pensamento científico. Feito esse breve esclarecimento, é de se destacar que a análise sobre o corpo feminino feita nos parágrafos anteriores precisa ser vislumbrada dentro de um conjunto de fatores que atravessam as mulheres, tais como: biológicos, psicológicos, sociais, econômicos e políticos. Esses fatores condicionam a forma como a mulher será tratada na sociedade. Estando todos eles dentro de um conjunto que se inter-relaciona, e que não se sobrepõe ou exclui um ao outro. Sobre a segunda pergunta, é cabível destacar o modo de construção do ser feminino. A mulher, conforme dito linhas atrás, apesar de ser considerada um ser inferior, ainda detinha o controle sobre alguns eventos, como o parto, por exemplo. Tarefas consideradas eminentemente femininas eram delegadas às mulheres, sem qualquer interesse pelos homens, e aqui se inclui o parto (Federici, 2017). Entretanto, em face da evolução da medicina no campo feminino, pode-se observar que, com o tempo, a mulher foi perdendo essa autonomia, uma vez que o parto foi levado aos hospitais como algo que deveria ser tratado dentro dos protocolos clínicos. Foi, a partir desse momento, que o campo das tarefas femininas, incluindo o parto, foi dando espaço ao conhecimento dos homens que se debruçaram sobre os corpos das mulheres, retirando a sua autonomia e controle (Federici, 2017). Por essa razão, o enfoque da explicação do evento do parto será retomado dentro de uma perspectiva inicial biológica e histórica que repercute no campo psicológico, econômico, social e político, enquanto forma de propagação de uma ideologia de discriminação de gênero. 28 Portanto, no campo biológico, o parto, no século XVII, era um assunto exclusivamente feminino. O evento era marcado pela presença de mulheres, como a mãe da parturiente ou alguma parente e a parteira domiciliar, que era a pessoa detentora do conhecimento sobre o nascimento, sendo que a intervenção médica somente ocorria com a anuência da parturiente e suas amigas e familiares em partos considerados difíceis (Storti, 2004). A mudança de concepção sobre o parto começou com o uso do fórceps, no século XVI e XVII, o que deu lugar aos cirurgiões médicos que utilizam o instrumento como meio de facilitar partos difíceis, e como uma alternativa ao parto cesáreo. Essa modificação no campo do parto deu margem à instrumentalização do saber na área médica, o que fez com que as parteiras fossem perdendo o seu lugar para os médicos (Tornquist, 2002). O aperfeiçoamento das práticas médicas no campo obstétrico foram fazendo com que a medicalização do parto acontecesse de forma paulatina. A segurança fornecida no campo da ciência, sobretudo com os avanços dos conhecimentos científicos que se consolidaram no século XIX, trouxe ao evento do parto uma perspectiva médica que procurava atender mais às necessidades dos profissionais de saúde do que às necessidades da mulher e o bebê (Spink, 2013). Dessa forma, a mulher foi perdendo aos poucos a sua autonomia em relação ao evento do parto. O medo e a insegurança deram lugar a partos medicalizados, uma vez que a demonstração científica apontava os inúmeros riscos de um parto natural realizado em casa com a assistência das parteiras (Tornquist, 2002). Os avanços científicos trouxeram uma sensação de segurança com um misto de incerteza e incapacidade feminina em parir. Os procedimentos clínicos foram adaptados para atender de forma rápida e eficaz o parto, com uma série de intervenções que tornaram o parto impessoal, frio e patológico (Tornquist, 2002). Os estudos promovidos na medicina não levaram em consideração a autonomia feminina e trouxeram com riqueza de detalhes a anatomia da mulher grávida em tratados de obstetrícia, com o intuito de fazer com que o evento do parto atendesse aos avanços científicos e tecnológicos da história da humanidade. A dissecação do corpo grávido ocorria em mulheres que não conseguiam resistir às intervenções cirúrgicas na cesárea, pois no século XVIII e XIX os médicos não tinham a prática de costurar o útero das mulheres e muitas acabavam morrendo por hemorragia durante o parto. 29 A morte dessas mulheres foi utilizada como substrato para estudos científicos na área médica e para o aperfeiçoamento das técnicas do parto cesáreo. Os profissionais da época se empenharam em descobrir com detalhes as transformações no corpo da mulher durante a gestação, de modo a aperfeiçoar a prática médica e estudar novas intervenções que poderiam trazer contribuições científicas aos profissionais de saúde na época. As soluções trazidas por eles, no entanto, trouxeram em conjunto com a análise biológica do corpo feminino, um novo modo de encarar o processo de gestação e o evento do parto, e isso trouxe grandes consequências psicológicas às mulheres que foram colocadas em segundo plano no momento do parto, que passou a ser tratado como uma cirurgia. Nesse âmbito, destaca-se que um dos grandes tratados obstétricos surgiu no século XVIII, no ano de 1774, de um famoso cirurgião escocês chamado William Hunter. No livro sobre anatomia obstétrica, o cirurgião traz o corpo grávido com riqueza de detalhes, de modo a delimitar os sentidos da feminilidade e o realismo da transformação da mulher (Martins, 2005), conforme se verifica na figura abaixo: Figura 1 - Capa do livro Anatomia Obstétrica de William Hunter - traduzido para o italiano 30 Fonte: HUGHES, Alicia. Authorship, image-making and excess: William Hunter´s Anatomia Uteri humani gravidi tabulis illustrata - 1174. In: Journal for Eighteenth-Century Studies Vol. 46 nº. 2 (2023) Disponível em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/epdf/10.1111/1754-0208.12859. Acesso em 09 de outubro de 2024. William Hunter em conjunto com outros importantes físicos e médicos do século XIX foram os grandes precursores da obstetrícia na Europa, pois eles traziam realidade aos estudos da medicina, representando o corpo feminino por dentro, sem nenhum apelo erótico, mas como um: [...] saber especializado sobre a natureza feminina e sua capacidade reprodutiva engendra uma nova relação entre o sujeito observador e o corpo observado, relação esta que é produzida nos laboratórios de anatomopatologia e nos exames clínicos, divulgada através dos livros de obstetrícia. Esses livros são mais do que sínteses do conhecimento médico- científico da reprodução humana e do corpo feminino. São obras visuais que primam pelo hiper realismo, expondo em detalhes a superfície e o interior dos corpos femininos, desvelando-os de seus segredos à luz do olhar investigador e produtor de sentidos para a feminilidade (Martins, 2005, p. 646). Essa capacidade reprodutiva, no entanto, repercutiu no campo feminino de modo a causar impacto psicológico nas mulheres, que passaram a confiar nas intervenções médicas, tornando-se coadjuvantes do evento do próprio parto. A perspectiva da inferioridade feminina foi trabalhada no século XIX, tanto no campo da filosofia como no campo da ciência. A utilização das leis naturais justificava a inferioridade da mulher na sociedade, dando a ela papeis sagrados, divinos e biológicos, como o de reproduzir concretizando a função do ventre e o de cuidar de outro ser humano realizando o papel do cuidado do ser a que dá a luz, devendo ela estar reclusa no âmbito doméstico onde poderia desempenhar o seu papel natural e filosófico, em uma clara relação de poder frente à dominação masculina (Bourdieu, 2012). Com o avanço da história da humanidade, a medicalização do parto se tornou cada vez mais intensa. As mulheres não tinham voz para participar dos processos decisórios das esferas de poder. Elas não estavam comandando hospitais, e eram poucas as que conseguiam fazer o curso de medicina. A ocupação das universidades pelas mulheres aconteceu de forma muito tímida no final do século XIX e início do século XX. A produção de estudos por elas era pouca e muito do que elas faziam era atribuído aos homens, que utilizavam o corpo feminino como um instrumento de trabalho no campo da obstetrícia (Hughes, 2023). 31 A visualização do corpo biológico feminino grávido trouxe consequências danosas às mulheres. A falta de conhecimento sobre o próprio corpo, utilizando para receber o sêmen e gerar vida (Bourdieu, 2012), não deu à mulher a estrutura necessária para tomar decisões sobre o evento do parto. O tabu sobre a sexualidade feminina também teve o seu papel nesse campo. A erotização das mulheres e a sua reclusão no âmbito doméstico, colocavam elas em um papel secundário na sociedade, pois além de não terem voz, não participavam da economia e da política e, por isso, não foram capazes de construir uma cultura que respeitasse a voz delas. Apesar dos avanços no campo do feminismo, sobretudo o da terceira onda que trouxe a questão dos contraceptivos na década de 1990, ainda nos debruçamos sobre como trazer às esferas de poder a voz das mulheres de forma efetiva, com o devido respeito à sua fisiologia e anatomia. No Brasil, a importação das técnicas médicas na área da obstetrícia no final do século XIX e início do século XX reforçaram a conduta profissional de se medicalizar o parto e trazer ao evento o protagonismo dos profissionais da saúde, como os detentores do saber fisiológico feminino. Os movimentos profissionais em torno do parto humanizado, em seu limiar, trouxeram as intervenções médicas como algo positivo às mulheres, retirando delas o poder e o domínio sobre o próprio corpo, trazendo um outro aspecto do humanizado, que se alinha a uma linha de raciocínio que coloca a mulher como vítima da própria natureza, e o médico como o guardião da ciência que consegue antecipar e livrar a parturiente de todo o sofrimento do parto (Diniz, 2005). O considerado pai da obstetrícia moderna, o americano Joseph B. DeLee, trouxe a visão de que o parto rápido com a utilização de técnicas como episiotomia e utilização do fórceps diminuiria a mortalidade materno-infantil, além de abreviar o sofrimento da mulher na hora do parto (Petrucce, et. al., 2017). Acontece que a utilização dessas técnicas enraizou-se não somente no campo prático-profissional, mas, também, no campo de formação dos médicos que iriam trabalhar com obstetrícia. O corpo feminino como um instrumento passou, então, a ser vítima de violência no momento do parto, em que a mulher encontra-se em uma situação extremamente vulnerabilizada. Hoje, o movimento em torno do parto humanizado descreve essas técnicas e intervenções médicas como desnecessárias, dando um novo tom ao parto e ao 32 nascimento da criança. Não só as normativas da OMS e do Ministério da Saúde no Brasil trazem inúmeras recomendações em torno do respeito ao corpo da mulher e a sua psique no parto, como, também, tentam devolver a elas o controle sobre o evento do parto, o controle que só elas conhecem e podem ter. Por isso, a questão sobre quando a mulher deixou de ter controle sobre o próprio corpo tornou-se não só muito atual, como essencial às discussões no campo das decisões que a parturiente vai tomar durante o parto, em conjunto com as pessoas de sua confiança. No entanto, para que isso aconteça de forma eficaz, é preciso compreender como o desconhecimento sobre os direitos atrapalha a visão da mulher como um ser capaz de tomar decisões sobre o próprio corpo, assim como das pessoas que a rodeiam, e que vão estar com elas na caminhada do parto. 2.2. A DINÂMICA DO DESCONHECIDO: COMO O DESCONHECIMENTO SOBRE OS DIREITOS AFETAM AS MULHERES No tópico anterior, foi possível trabalhar o aspecto do desconhecimento das mulheres sobre o próprio corpo, trazendo delimitações que permeiam a forma como os direitos obstétricos foram construídos ao longo dos anos, retirando das mulheres o poder de buscar o conhecimento sobre o próprio corpo. A medicalização do parto e a fragilização da mulher contribuíram para que a prática médica inserisse um modo de visualizar o evento do parto como algo ruim, penoso, doloroso, algo que não fizesse parte do corpo feminino, mas que fosse externo a ele e, por isso, deveria estar nas mãos de especialistas, no caso, os médicos (Martins, 2005). A mulher, uma vez relegada a segundo plano no aspecto biológico do parto, passou a ser vítima da própria condição de escolha da maternidade. Pierre Bourdieu (2012) esclarece como a divisão dos sexos estabelece claras relações de opressão, na medida em que à mulher é dado o papel biológico da maternidade, o que traz uma carga sobre humana em uma dinâmica em que a violência simbólica deixa de ser sentida por quem a sofre com mais vigor: A primazia universalmente concedida aos homens se afirma na objetividade de estruturas sociais e de atividades produtivas e reprodutivas, baseadas em uma divisão sexual do trabalho de produção e de reprodução biológica e social, que confere aos homens a melhor parte, bem como nos esquemas imanentes a todos os habitus: moldados por tais condições, portanto objetivamente concordes, eles funcionam como matrizes das percepções, dos pensamentos e 33 das ações de todos os membros da sociedade, como transcendentais históricos que, sendo universalmente partilhados, impõem-se a cada agente como transcendentes. [...]. E as próprias mulheres aplicam a toda a realidade e, particularmente, às relações de poder em que se vêem envolvidas esquemas de pensamento que são produto da incorporação dessas relações de poder e que se expressam nas oposições fundantes da ordem simbólica. Por conseguinte, seus atos de conhecimento são, exatamente por isso, atos de reconhecimento prático, de adesão dóxica, crença que não tem que se pensar e se afirmar como tal e que "faz", de certo modo, a violência simbólica que ela sofre. (Bourdieu, 2012, p. 45) No campo dos direitos obstétricos, a violência tanto simbólica quanto real tem lugar a partir do momento que à mulher é dado o papel de incapacidade sobre o evento do parto. O desconhecimento sobre o próprio corpo rebate o desconhecimento sobre os próprios direitos, resultando em experiências de abuso e negligência ao dar à luz (Petrucce, et. al., 2017). Nessa seara, a violência obstétrica surge como um tema emergente no campo dos direitos humanos e de saúde que reflete as relações de poder que existem entre as pessoas e as instituições, que repercutem no campo da política, da economia e da própria sociedade. A urgência desse tema nas políticas públicas surge justamente no reconhecimento desse problema como algo público, que deve ser tratado para que as mulheres possam ter acesso pleno à dignidade da pessoa humana e à autodeterminação feminina. Um fato que se pode vislumbrar diante dessa dinâmica é que o desconhecimento sobre o corpo e sobre os direitos é uma barreira que impede o desenvolvimento pessoal pleno das mulheres. De outro modo, pode-se dizer também que o conhecimento sobre o corpo e os direitos empodera as pessoas. Essas duas frases têm repercussão direta no aspecto da mobilização do Direito, principalmente se formos pensar em como as mulheres parturientes reclamam os próprios direitos, nos entraves que existem na busca por esses direitos e na forma como a violência obstétrica é tratada no âmbito das instituições. Todos esses fatores em conjunto delimitam o campo da dinâmica do desconhecido, pelo fato de que a violação dos direitos advém, muitas vezes, do desconhecimento dos direitos e da falta de empoderamento que faz com que as mulheres se enxerguem como sujeitos de direitos. Ao tratar sobre a mobilização do Direito nesse campo, é de se dizer que as dimensões dos direitos precisam estar entrelaçadas e ser levadas ao conhecimento das mulheres. Sobre isso, convém destacar que: 34 [...] a mobilização do Direito trabalha com as duas dimensões dos direitos que estão descritos na lei e na Constituição. A dimensão subjetiva, que se refere à titularidade do direito diante da sua violação, e a objetiva que se concretiza no direito positivado, previsto abstratamente na norma. [...]. Essa relação faz parte da inquebrantável ideia de que o direito encontra no sentimento de um lesado a repercussão da segurança de sua própria vivência em sociedade e de sua relação perante o Estado (Nakamura, 2021). Os direitos obstétricos relativos ao parto humanizado entram na dinâmica do empoderamento. Quando as mulheres conhecem os seus direitos, elas se sentem mais capazes de lutar por eles, de se sentir parte ativa enquanto sujeito de direitos. A esse respeito, convém destacar os ensinamentos de Frances Zemans (Castro, 2024, p. 10) sobre a mobilização do Direito: [...] a mobilização do direito não é dependente do uso das estruturas formais particulares e, mais importante, isso não exclui a ação individual e implicitamente reconhece a função central que o mero conhecimento e asserção das normas legais têm na distribuição de políticas públicas. O cidadão individual pode ser um participante verdadeiro no esquema governamental como um aplicador da lei sem a intermediação representativa ou profissional. O modelo de participação política que fundamenta essa conceituação inclui um papel ativo para os cidadãos tanto na realização quanto na implementação da política pública. Em contrapartida, a perspectiva mais tradicional na participação cidadã na governança tem sido orientada quase exclusivamente para o processo de definição das políticas. A capacidade ativa de lutar pelos próprios direitos configura-se como um direito de primeira necessidade (Sadek, 2014), que é parte do sistema democrático brasileiro e envolve o conhecimento dos direitos e o reconhecimento como um sujeito de direitos. Conforme tópico anterior, foi possível discutir sobre como o conhecimento do evento do parto foi retirado do âmbito feminino ao longo dos anos. A transposição dos conhecimentos sobre o parto das mulheres para a área médica afetou a dinâmica de empoderamento das parturientes, conferindo aos médicos amplos poderes sobre o corpo feminino grávido, tratando-o no aspecto biológico, sem considerar o aspecto humano que deve ser conferido a essas mulheres (Queiroz et. al., 2024). Esse histórico acarretou em inúmeras violações ao corpo feminino grávido, convertendo-se em situações de violação de direitos e de violências às mulheres parturientes, uma vez que a falta de conhecimento sobre o evento do parto para a maioria delas, fez com que muitas práticas médicas tornassem o parto como algo medicalizado e sujeito a inúmeras intervenções cirúrgicas. 35 Sobre a história do parto no Brasil, tem-se que a área obstétrica foi essencialmente construída por homens. Isso se deve ao fato da falta de acesso às universidades pelas mulheres, o que trouxe uma tônica diferente ao parto, como algo que para ser seguro devesse ser tratado como uma doença (Leister; Riesco, 2013). A retirada do conhecimento sobre os próprios direitos no campo da obstetrícia retirou das mulheres a capacidade de se enxergarem como sujeitos de direitos, sobretudo quando elas estão durante o evento do parto em uma instituição hospitalar com regras e procedimentos predeterminados. A modernidade conferida ao parto foi, por meio dos hospitais, o meio pelo qual as práticas médicas passaram a trazer inovações que foram consideradas em uma determinada época, sobretudo nas décadas de 1930 a 1950 no Brasil, o que fez com que as mulheres se submetessem ao modelo medicalizado do parto (Leister; Riesco, 2013). Na década de 1980, o modelo medicalizado do parto foi sendo questionado, por conta de algumas práticas médicas consideradas desnecessárias. No entanto, só nos anos 2000, o termo violência obstétrica foi trazido como algo que atenta contra os direitos reprodutivos das mulheres (Federici, 2017). Esse olhar sobre a história consegue deixar claro que o desconhecimento compromete a saúde física e emocional das mulheres, bem como, limita a sua capacidade de se enxergar como sujeito de direitos e reclamar por eles nas condições de atendimento em instituições hospitalares de forma mais direta, seja pela própria parturiente, seja pelas pessoas de sua confiança que a rodeiam, pois todos se encontram imbuídos em uma sistemática de poder que privilegia a classe médica (Bourdieu, 2012; Federici, 2017). Isso é reforçado pela Pesquisa Nacional de Saúde (Brasil, 2021) que indica que muitas mulheres que vivenciam violência obstétrica não denunciam os abusos, por não conseguirem enxergar aquela situação como violenta, mas sim como algo normal ou aceitável. Essa normalização da violência é um reflexo direto da dinâmica do desconhecido que permeia a realidade das mulheres, sobretudo sobre os direitos obstétricos que possuem, o que revela a necessidade de se tratar a violência obstétrica como um problema público que deve ser parte de uma agenda política que vise a proteção da maternidade de forma efetiva, por meio de ações de educação e conscientização (Brasil, 2021). 36 A perpetuação da violência pela falta de informação é um ciclo que precisa ser quebrado. Os recortes de raça e classe social têm de ser considerados dentro do âmbito obstétrico, pois eles se encontram nos agravos que atravessam mulheres em suas diferentes perspectivas e que fazem parte da história da humanidade e dos ciclos do feminismo. Este estudo não pretende aprofundar no campo da interseccionalidade a face da violência obstétrica, mas é importante citar que diferentes fatores de raça e classe social estratificam mulheres e fazem com que umas sofram mais violência obstétrica do que outras. Dessa forma, é possível dizer que o desconhecido em conjunto com os aspectos discriminatórios são os fatores que devem fazer parte do desenho de políticas públicas para mulheres que desejam se tornar mães. Esse caminho pode ser o início de um olhar diferenciado sobre a vida e sobre a maternidade, e de como é fundamental proteger o aspecto da própria humanidade que se perpetua no nascer de uma criança e de uma mãe. 37 3. MAPEAMENTO DAS INICIATIVAS INSTITUCIONAIS A violência obstétrica, quando contextualizada, configura-se como uma falha na escuta ativa de parturientes, em que as mulheres são relegadas a segundo plano no evento do parto sendo, portanto, vítimas de violências físicas e simbólicas das instituições e esferas de poder, por não serem reconhecidas como sujeitos ativos capazes de fazer escolhas que envolvam o próprio corpo. Nesse sentido, verifica-se a necessidade de se enxergar a violência obstétrica como um problema complexo que demanda um olhar sobre a natureza feminina, pois envolve pessoas que passaram por diferentes condicionantes históricas e sociais que perfazem os fatos sociais integrantes do processo de vulnerabilização das mulheres. No entanto, como já relatado no Capítulo 1, as condutas ditas violentas têm sido muitas vezes negadas e naturalizadas pelo Poder Público, não encontrando força suficiente nos movimentos sociais, capazes de torná-las um problema público, como definido por Lascoumes e Galès (2012, p. 141): O problema só se torna público quando os atores mobilizados conseguem inscrevê-lo no espaço público, isto é, quando se torna objeto de atenção, de controvérsias, e que as posições se confrontam para caracterizar seus componentes, amplitudes e causas. (...). Um problema torna-se público a partir do momento em que os atores sociais estimam que algo deve ser feito para mudar uma situação. Ele torna-se político a partir do momento em que a solução almejada só pode ser dada pelo poder político. O apelo à intervenção do Estado visa, então, a tomada de providências sobre uma questão até então ignorada. Dessa forma, o problema público é definido, predominantemente, pelos interesses daqueles que estão no poder. Por isso, neste capítulo as iniciativas legislativas já existentes, tanto em âmbito federal como em âmbito estadual, objetivam buscar respostas quanto ao questionamento: é a violência obstétrica um problema público? Para tanto, a análise feita abrangeu, principalmente, projetos de lei em andamento e arquivados referentes aos termos “parto” e “violência obstétrica”, de modo a explorar como esse problema vem tomando forma, ou não, nas agendas do Governo Federal e do Estado de São Paulo. A pesquisa foi feita no portal da Câmara dos Deputados, no que toca à análise em âmbito federal, e na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, quanto à análise em âmbito estadual, sem considerar um recorte temporal específico, abrangendo, tão somente, a temática do presente estudo. 38 A questão temporal não foi trazida na pesquisa por se tratar de uma temática que há anos vem buscando ser pautada no cenário político brasileiro, sem sucesso com relação à adoção do termo “violência obstétrica”. Tanto é assim, que em 2019, o Ministério da Saúde, em despacho emitido no dia 03 de maio daquele ano - Despacho SEI/MS – nº 9087621, proibiu o uso do termo “violência obstétrica” sob a justificativa de se tratar de algo pejorativo que não condiz com a atuação médica que não tem a intencionalidade de promover danos às gestantes, conforme se destaca por trecho do documento: [...]. 3. A definição isolada do termo violência é assim expressa pela Organização Mundial da Saúde (OMS): “uso intencional de força física ou poder, em ameaça ou na prá ca, contra si próprio, outra pessoa ou contra um grupo ou comunidade que resulte ou possa resultar em sofrimento, morte, dano psicológico, desenvolvimento prejudicado ou privação”. Essa definição associa claramente a intencionalidade com a realização do ato, independentemente do resultado produzido. 4. O posicionamento oficial do Ministério da Saúde é que o termo “violência obstétrica” tem conotação inadequada, não agrega valor e prejudica a busca do cuidado humanizado no continuum gestação-parto-puerpério. [...]. Percebe-se, desta forma, a impropriedade da expressão “violência obstétrica” no atendimento à mulher, pois acredita-se que, tanto o profissional de saúde quanto os de outras áreas, não tem a intencionalidade de prejudicar ou causar dano. 8. Esforços institucionais são empreendidos por este Ministério da Saúde com a implementação de uma série de programas e políticas em saúde, entre os quais, o Programa de Humanização do Parto e Nascimento, a Política Nacional de Humanização – Humaniza - SUS, a Política de Atenção Integral à Saúde da Mulher, entre outros, na busca de qualificar a atenção ao parto e nascimento, necessitando fortalecer parcerias em um processo multidisciplinar. Nessa perspectiva, têm se intensificado esforços de aproximação com a academia, conselhos de especialidades e sociedades científicas para discussões ampliadas. 9. Pelos motivos explicitados, ressalta-se que a expressão “violência obstétrica” não agrega valor e, portanto, estratégias têm sido fortalecidas para a abolição do seu uso com foco na ética e na produção de cuidados em saúde qualificada. Ratifica-se, assim, o compromisso de as normativas deste Ministério pautarem-se nessa orientação. [...]. (Brasil, 2019, n.p.). A proibição do termo naquele momento político trouxe uma reação da sociedade civil, de órgãos e entidades como Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Ministério Público Federal (MPF) e Conselho Nacional de Direitos Humanos que na Recomendação nº 05 de 09 de maio de 2019 trouxe a importância da adoção do termo “violência obstétrica” justamente para que se possam combater práticas médicas que vão contra o aspecto da humanização do parto e as diretrizes da Organização Mundial da Saúde. Na recomendação ficou claro, ainda, que a não utilização do termo pelos órgãos do governo federal representou entraves significativos às políticas de atenção à 39 maternidade e de proteção à mulher, além de deixar claro que as situações de violência no parto não eram preocupações do governo naquele momento (Conselho Nacional de Direitos Humanos, 2019). No mesmo sentido, o MPF editou a Recomendação nº29 de 2019 ao Ministério da Saúde, trazendo dados do Inquérito Civil nº 1.34.001.007752/2013-8 do ano de 2014, sobre práticas de violência sofridas por mulheres durante o parto e pós- parto em diversas instituições hospitalares públicas e privadas no país, com denúncias que trazem a importância do combate à violência obstétrica no Brasil (Ministério Público Federal, 2019). Na parte final da Recomendação, o MPF recomenda ao Ministério da Saúde que esclareça que o termo “violência obstétrica” é consolidado no âmbito da Organização Mundial de Saúde e de entidades científicas do mundo todo, além de recomendar a adoção de práticas positivas para se produzir dados a respeito de condutas respeitosas e desrespeitosas no atendimento à saúde de mulheres gestantes e parturientes (Ministério Público Federal, 2019). O Conselho Federal da OAB, por sua vez, destacou a legislação de regência com relação às notificações compulsórias às autoridades sanitárias sobre situações de violência contra a mulher em estabelecimentos públicos e privados de saúde, Lei nº 10.778 de 24 de novembro de 2003 (Brasil, 2003), bem como o artigo 20 4 da Lei de Introdução às normas do direito brasileiro, repudiando o despacho do Ministério da Saúde de 2019 (OAB, 2019). Após a repercussão negativa, o Despacho SEI/MS – nº 9087621 foi revogado e retirado do sítio eletrônico do Ministério da Saúde. Apesar da revogação, o enfrentamento e o tratamento do problema público da violência obstétrica ainda é um entrave no âmbito político e social. O Conselho Federal de Medicina (CFM) considera o termo inapropriado por atentar contra a comunidade médica e à ciência no campo da obstetrícia, dispondo que a relação da prática médica com a violência em si conturba a relação entre médico e paciente 5 . 4 O artigo 20 da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro dispõe que: Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão. 5 A esse respeito, cabe destacar que o CFM editou nota técnica em apoio ao Despacho SEI/MS – nº 9087621 do Ministério da Saúde, no dia 09 de maio de 2019, dizendo ao final que: “[...] Diante desse quadro, o CFM entende que o termo “violência obstétrica” é inapropriado, devendo ser abolido, pois estigmatiza a prática médica, interferindo de forma deletéria na relação entre médicos e pacientes; 7) Afinal, o médico tem como fundamento de sua profissão minorar o sofrimento do ser humano, 40 O que se pode observar aqui, é que o termo “violência obstétrica” em si é o representativo da luta pelo direito das mulheres gestantes e parturientes de poderem se informar e serem respeitadas durante o parto, de modo a promover o reconhecimento público desse problema, trazendo à pauta política e social, ampliando o conceito sobre os direitos fundamentais e humanos das mulheres. Assim sendo, pretende-se com o apontamento das iniciativas federais e do Estado de São Paulo dar tônica a essa problemática, com a utilização do termo “violência obstétrica” como um meio de se promoverem políticas públicas eficazes no âmbito da proteção à maternidade, às mulheres e às crianças. Da mesma forma, serão apontadas algumas iniciativas por parte da pesquisadora com relação ao combate à violência obstétrica na Ordem dos Advogados do Brasil, Seção de São Paulo, Subseção de Franca, no que diz respeito à construção de estratégias para a movimentação social em torno do parto seguro e humanizado, em âmbito municipal. 3.1. MAPEAMENTO DAS INICIATIVAS FEDERAIS Em consulta ao sítio eletrônico da Câmara dos Deputados, no campo das proposições legislativas, a pesquisa com relação ao termo “violência obstétrica” teve um retorno de 240 resultados de projetos de lei em andamento e arquivados sobre a temática. Com relação ao termo “parto” foram encontrados 2963 resultados de projetos de lei em andamento e arquivados. Quando os dois termos, “parto” e “violência obstétrica” são colocados em conjunto, há um retorno de 156 resultados referentes a projetos de lei em andamento. A fim de que seja feita uma análise mais detida das proposições pesquisadas, serão considerados os projetos de lei dos anos de 2019 a 2024, que se referem ao termo “violência obstétrica” e “parto” em conjunto, em respeito à temática do estudo e por se tratar de lapso temporal dos últimos 5 anos, abrangendo dois importantes períodos do governo federal com relação ao governo do ex-presidente Jair consequentemente não há qualquer sentido pressupor que esse profissional, no exercício de suas funções, vá praticar atos que prejudiquem seus pacientes”. Disponível em: https://portal.cfm.org.br/images/PDF/nota-violencia-obstetrica.pdf?fbclid=IwAR0KJt- %5C_0WFJKGeBG04eN_8xHk1FsCKvK6XNBdjQ5nnQANFoCwcDMt3mh24. Acesso em setembro de 2024. 41 Bolsonaro e ao governo do atual presidente Luís Inácio Lula da Silva, que possuem ideologias diversas que se confrontaram no âmbito político e social dos últimos anos. Além da questão da polarização política com relação aos dois governantes, destaca-se, também, a diferenciação do tratamento de algumas questões públicas tanto em um governo como em outro, considerando o reconhecimento do problema público e da dinâmica política que envolve a escolha de prioridades nas agendas de governo (Les Gales & Lascoumes, 2012). Iniciando a análise sobre as iniciativas em âmbito federal, para a tipificação da conduta de violência obstétrica como crime, tem-se os Projetos de Lei nºs 3346/2024 e 2350/2024, respectivamente, de autoria da deputada federal Tábata Amaral, do Partido Socialista Brasileiro (PSB) e do deputado federal Adail Filho, do Republicanos. Ambos os projetos foram apensados ao Projeto de Lei (PL) nº190 do ano de 2023, de autoria do deputado federal Dagoberto Ferreira, do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), e da deputada federal Greyce Elias, do Avante. Esse projeto, contudo, é apensado a outro PL, de nº 2589/2015, de autoria do Pastor Marco Feliciano, do Partido Social Cristão (PSC). Todos os projetos possuem a mesma matéria e estão no mesmo momento de tramitação, qual seja: Aguardando Designação de Relator(a) na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC). Em outras palavras, os projetos de lei estão parados por conta da falta de escolha de um membro da Comissão para emitir um parecer sobre o projeto. O projeto do ano de 2015 apresenta uma diferença em relação aos projetos que vieram depois e que foram apensados a ele. A tipificação da conduta da violência obstétrica é vislumbrada no âmbito dos crimes contra a liberdade pessoal, tipificada como uma espécie de constrangimento ilegal, tendo como proposta de redação: Art. 1º A violência obstétrica, praticada em toda a rede de assistência a saúde pública e/ou privada, passa a ser crime de constrangimento ilegal. § 1º Será considerada violência obstétrica o conjunto de condutas condenáveis por parte de profissionais responsáveis pelo bem estar da gestante e do bebê: - O desrespeito; o abuso de poder da profissão; o constrangimento; a privação do direito a esclarecer dúvidas da parturiente, mesmo sem que haja emergência; a negligência, que poderá ser considerada também quando profissionais de saúde atuam com irresponsabilidade, imprudência ou adotam procedimentos superados ou não recomendados, ao lidar com a paciente ou o bebê. Art. 2º O não cumprimento do disposto no Art. 1º desta lei incidirá nas penas previstas no art. 146, do Código Penal (BRASIL, 2015, n.p.). 42 Na exposição de motivos deste projeto constam as denúncias feitas por mulheres em instituições hospitalares, com a prática de condutas que atingem a esfera íntima das parturientes, com falas preconceituosas, com insensibilidade e desrespeito por parte da equipe médica, o que foi ressaltado no PL como: “Não era o que você queria? Agora aguenta a dor”, “Cale a boca, quem manda no procedimento sou eu” (Brasil, 2015). Na época, a preocupação manifestada na proposição tinha relação com a negligência nos serviços de saúde e as reclamações constantes de gestantes, inclusive com o ingresso de ações judiciais perante o Supremo Tribunal Federal (Brasil, 2015). Os outros projetos de lei que vieram depois do de 2015 incluíram a violência obstétrica no capítulo dos crimes contra a vida, na seção de lesões corporais, com a proposta de modificação do Código Penal, constante no PL nº 190/2023: Violência obstétrica Art. 129-A – Ofender o profissional de saúde a integridade corporal ou psicológica, ou a saúde da gestante ou parturiente, sem o seu consentimento, durante a gestação, o trabalho de parto, o parto ou o puerpério, por meio do emprego de manobras, técnicas, procedimentos ou métodos em desacordo com os procedimentos estabelecidos pela autoridade de saúde. Pena – reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, e multa (BRASIL, 2023, n.p.). Nos projetos de lei do ano de 2024, a redação do PL nº 2350 acrescenta parágrafos ao artigo 129, com indicações de que a violência obstétrica seria tipificada pela conduta médica que atenta com a dignidade física e psicológica da gestante, com a prática de algumas manobras que vão contra os preceitos da Organização Mundial de Saúde (OMS) (Brasil, 2024a). Já o PL nº 3346, traz uma redação mais completa, com a tipificação de diversas condutas que podem ser interpretadas como violência obstétrica, tais como: utilizar termos depreciativos para se referir ao processo fisiológico do parto; ignorar as demandas da mulher com relação aos cuidados de suas necessidades básicas; recusar atendimento à gestante ou puérpera; transferir a gestante ou puérpera para outro estabelecimento sem garantia de vaga e chegada segura ao local; impedir a presença de acompanhante durante o parto; deixar de aplicar os fármacos para alívio da dor quando for de vontade da gestante; impedir o contato da mãe com a criança logo após o parto; submeter a gestante ou parturiente a exames e procedimentos de pesquisa clínica sem termo de livre consentimento esclarecido; empregar na gestante ou parturiente manobras ou procedimentos em desacordo com as diretrizes estabelecidas pelas autoridades de 43 saúde; deixar de informar a gestante sobre procedimentos médicos; e, manter a gestante e a parturiente que cumpre pena privativa de liberdade algemada durante o trabalho de parto (Brasil, 2024b). Conforme se verifica, no PL nº3346 há uma ampliação das condutas referentes à tipificação da violência obstétrica, como um meio de se garantir os direitos reprodutivos e sexuais das mulheres, de modo a proteger a integridade física e psicológica da gestante e parturiente (Brasil, 2024b). Já no PL nº 2350, a preocupação verte-se no sentido de proteção da mulher contra atos discriminatórios à condição feminina, bem como a tipificação de condutas consideradas violentas e que contrariam as disposições da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará), tendo mais relação com a violência de gênero do que com os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres (Brasil, 2024a). Apesar de se aferir certa diferen