UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO" CÂMPUS DE PRESIDENTE PRUDENTE FACULDADE DE CIÊNCIAS E TECNOLOGIA DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO GUILHERME COSTA GARCIA TOMMASELLI Escola Sem Partido: Indícios de uma Educação Autoritária TESE DE DOUTORADO Presidente Prudente 2018 GUILHERME COSTA GARCIA TOMMASELLI Escola Sem Partido: Indícios de uma Educação Autoritária Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Educação. Orientador: Prof. Dr. Divino José da Silva Área de Conhecimento: Educação Este trabalho é dedicado à minha mãe, Girlene dos Santos Costa Tommaselli, e ao meu pai, José Tadeu Garcia Tommaselli. Sem ambos, eu não existiria. Não apenas biologicamente, mas, existencialmente, como ser pensante e crítico. Agradecimentos Agradecer adequadamente é uma tarefa impossível e injusta – e provavelmente cairei na armadilha dos agradecimentos –, porque, por mais que busque atingir a totalidade, não o faz, e sempre alguém acaba esquecido. Então, primeiro agradeço aos “esquecidos”. Mesmo que seus nomes não constem aqui, são tão importantes quanto os que lembrarei abaixo. A despeito da contribuição no pensamento aqui produzido, não que não tenham uma parcela de responsabilidade no que escrevi, meu pai, mãe e irmão são os primeiros que devo agradecer. Sempre me olharam com admiração, e não houve nesta trajetória de longa da graduação, até aqui, qualquer falta de apoio ou incentivo da família. Meu privilégio de classe não é apenas econômico, é afetivo também. Logo, os agradecimentos a Girlene dos Santos Costa Tommaselli, José Tadeu Garcia Tommaselli e Fernando Costa Garcia Tommaselli. A todos os professores que fizeram parte de minha formação. Mesmo aqueles que destetei, e os quais não me inspiram. Ao Professor Sinésio Ferraz Bueno, o qual é parte fundamental desta jornada que me permitiu chegar até aqui. A relação acadêmica mais sólida e respeitosa que mantive, durante toda a jornada formativa. Quando ainda estava no segundo ano de Ciências Sociais, perdido em relação aos meus interesses de pesquisa, foi no grupo de estudos do professor Sinésio, sobre Teoria Crítica, que encontrei o caminho que me trouxe até aqui. O próprio pensamento de Theodor Adorno, o qual faz parte desta jornada do início ao fim, também me foi apresentado pelo professor Sinésio. Em resumo, além de orientador de monografia e Dissertação de Mestrado (e, durante um período, coorientador informal desta pesquisa, até que ela tomasse outro rumo), ao professor Sinésio eu devo meus mais sinceros agradecimentos e respeito, tanto pela produção intelectual como pela capacidade de lidar comigo como orientando, pelo total respeito às minhas convicções de escrita. Aos professores da UNESP Marília, os quais me inspiraram a pensar e admirar mais ainda a profissão docente e a vocação ao pensamento: Professora Lúcia Arrais Morales, Professor Odair Cruz Paiva, Professor Francisco Corsi, Prof. Luis Antônio, Prof. José Geraldo Poker, Prof. Pedro Pagni, Prof. Rodrigo Gelamo. Aos pesquisadores e membros do GEPEF (Grupo de Estudos e Pesquisa em Filosofia da Educação), do qual tive a honra de participar – não tão ativamente como desejava –, mas que é parte fundamental do meu processo formativo. Agradeço, de forma inequívoca, ao meu orientador, Prof. Dr. Divino José da Silva. O professor Divino também é parte fundamental da composição do processo formativo que me traz até este texto. Tive a honra de aproveitar sua participação em uma reunião GEPEF em Marília para convidá-lo a ser banca da minha monografia de conclusão do curso de Bacharel em Sociologia, que me iniciava no tema “Teoria Crítica e Educação”. Agradeço, ainda, a paciência que o professor Divino teve com minhas particularidades, idiossincrasias, insistências, erros. De maneira educada e com sabedoria, ele me conduziu a este texto. A todos os companheiros que foram interlocutores deste texto. Em especial, ao colega de trabalho e de Doutorado, Adilson Silva, que, por muitas madrugadas, me acompanhou nas viagens de carro de Três Lagoas a Presidente Prudente, a fim de assistir às aulas. Além das companhias na viagem, agradeço a disposição das conversas e da interlocução da tese. Ao querido amigo e companheiro de trabalho, Prof. Gilmar Ribeiro Pereira, com o qual tive o prazer de me encontrar, em 2012. Ao amigo que, de todas as formas, incentivou este trabalho e que segurou, ao meu lado, todos os desafios que enfrentei em nossa batalha política, nestes anos de IFMS. Agradeço, ainda, ao fato de ter assumido todas minhas orientações, projeto de extensão, bolsas, de modo que pudesse aproveitar o tempo pequeno do afastamento parcial para concluir este trabalho. À querida amiga irmã, Ana Carina Ribeiro, uma das pessoas que mais contribuíram para esse processo, no sentido de apoiar minha vontade, mesmo diante das dificuldades que surgiam. Nosso encontro, a princípio, foi profissional, mas, como todo bom encontro, se estendeu a um encontro existencial. Aos amigos queridos, Larissa Cristina da Silva e Gabriel Azevedo, companheiros de UNESP Marília, e parte fundamental de quem eu sou hoje. De maneiras diferentes, aparecem neste texto. Caso tenham um dia paciência para o ler, eles se reconhecerão aqui, em conversas que travamos. Ademais, do texto, da tese, do título, o agradecimento é por terem composto parte essencial de minha vida, desde o momento em que entraram nela. Não é fácil cultivar amizades sólidas, verdadeiras e democráticas. Aos professores da UNESP câmpus de Presidente Prudente, com quem tive a oportunidade de ter aulas e dialogar. Especialmente ao Prof. Rodrigo Barbosa e Prof. Paulo Raboni, dos quais tive o prazer de ter aulas nesta jornada. Aos membros da Banca de Qualificação, Ari Maia, Rodrigo Barbosa e Mara Salgado, que contribuíram de modo fundamental e respeitoso para o desenvolvimento do texto final. À querida amiga Keith Daiane da Silva Braga, a quem tive o imenso prazer de encontrar, nesta jornada de quatro anos. Este é um daqueles encontros que não tem a ver com afinidade acadêmica, mas, sim, com afinidade existencial. Não que não exista a afinidade acadêmica. Ela existe na forma de pensar, porém, em registros teóricos distintos, os quais não nos colocam em oposição, mas em pleno diálogo. Ao companheiro irmão Augusto Mular Miceno. Talvez, o maior interlocutor das angústias que aparecem neste texto. Contudo, pelas angústias do texto e pela interlocução que proporcionou eu devo agradecer ao amigo, pela honestidade e lealdade do encontro. A resistência se fez nas práxis. Passo, por fim, aos agradecimentos pessoais que não envolvem a produção do conhecimento aqui apresentado, entretanto, representam o conhecimento humano, que se vive, quando se compartilha a vida. Portanto, o último, e não menos importante agradecimento, ao Lucas Felipe Pereira, meu atual companheiro, que acompanhou, talvez, os momentos mais difíceis deste processo ao meu lado, nos últimos dois anos e meio. Seu carinho, atenção e amor dedicado foram fundamentais para alimentar o que não é físico, todavia, que permite também que a consciência trabalhe. Todas as palavras de incentivo, o amor, os abraços, o cuidado. As madrugas de companhia, enquanto o texto não saía. O silêncio da companhia. A tudo que me ensinou e que não é do interesse acadêmico, mas do interesse da experiência, da vida. Eu agradeço pelo amor e pela companhia, aos quais eu posso retribuir, neste espaço, com o registro eterno do tempo deste texto, dizendo: Eu te amo. Ideologia Meu partido É um coração partido E as ilusões estão todas perdidas Os meus sonhos foram todos vendidos Tão barato que eu nem acredito Eu nem acredito ah Que aquele garoto que ia mudar o mundo Mudar o mundo Frequenta agora as festas do "Grand Monde" Meus heróis morreram de overdose Eh, meus inimigos estão no poder Ideologia Eu quero uma pra viver Ideologia Eu quero uma pra viver O meu tesão Agora é risco de vida Meu sex and drugs não tem nenhum rock 'n' roll Eu vou pagar a conta do analista Pra nunca mais ter que saber quem eu sou Saber quem eu sou Pois aquele garoto que ia mudar o mundo Mudar o mundo Agora assiste à tudo em cima do muro, em cima do muro Meus heróis morreram de overdose eh Meus inimigos estão no poder Ideologia Eu quero (CAZUZA) Resumo O projeto Escola Sem Partido é fenômeno social que tem preocupado os pesquisadores da área da Educação, pois visa a atingir a educação brasileira, através de uma reforma moralizante. O projeto existe desde 2004, quando foi formulado pelo advogado cristão Miguel Nagib, porém, ficou engavetado até 2013. Junho de 2013 foi o momento oportuno para que o Escola Sem Partido encontrasse a possibilidade de sair do papel, de uma proposta parada há dez anos, e se efetivar no plano político. Essa oportunidade não se deve apenas ao junho de 2013, mas, também, a uma mudança de foco do movimento que, nos seus primeiros dez anos, estava centrado em combater a doutrinação ideológica nas escolas, a qual violaria a liberdade de crença e consciência prevista na Constituição de 1988. A mudança ocorreu, quando o movimento ESP fundiu o seu tema inicial, a doutrinação ideológica “marxista”, com o combate à “ideologia de gênero”. Ao fazer esse movimento de fusão, o ESP deslocou-se do campo político para o campo moral, e esse deslocamento lhe proporcionou maior capilaridade social, deixando de ser apenas um projeto e, em casos mais drásticos, se tornando temporariamente uma realidade, como no estado de Alagoas, onde foi implantado como lei estadual, conhecida como “Escola Livre”. Diante do avanço da proposta, no cenário nacional, este trabalho analisará de que maneira o projeto Escola Sem Partido (ESP) se articula a esse movimento social e político mais amplo, de raiz autoritária e com notável potencial fascista que tem crescido no país, desde 2013. Parte-se da hipótese de que o ESP é um componente importante da pauta política da direita contemporânea. Nesse caso, para desenvolver a análise foi necessário articular esse movimento a análise teórica, para pensar a questão que importa é o autoritarismo e sua disseminação, por meio da educação. Assim, o trabalho de pesquisa objetiva delinear os componentes autoritários que hoje se apresentam, às vezes difusos, às vezes de maneira muito explícita e concentrada em práticas e discursos que dizem claramente a que vieram. Desse modo, foi necessário realizar um percurso histórico, a fim de identificar nas raízes do Brasil a presença de elementos autoritários que ajudem a compreender o avanço contemporâneo de tais forças. Para tal, recorreu-se a autores clássicos do pensamento nacional, como Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Roberto da Matta e Marilena Chauí, para, através dos elementos apontados por esses autores, contestar o mito de não violência e o mito da democracia racial. Em seguida, a análise se detém a observar como esses elementos foram rearranjados na composição moderna do Brasil e, de forma mais acentuada, como o acirramento de classes impulsiona o discurso conservador e autoritário, fortalecido pelo apoio da imprensa nacional, em um processo traumático à democracia brasileira, no qual as forças conservadoras unidas conduziram o país a um golpe político em novos moldes. Nesse cenário, quando se trata do projeto Escola Sem Partido, procura-se demonstrar como sua composição e modo de operação, inclusive discursivo, se combinam e reforçam um movimento mais amplo, diretamente vinculado à direita e às pautas que defendem. Nesse sentido, analisam-se quais os componentes que estão presente nesse enredo. Ou seja, quem são os atores sociais que movimentam o ESP e que têm causado um campo de conflito e confronto, na cena educacional brasileira? Em que medida, grupos de interesse comum, como os parlamentares neopentecostais e ruralistas, estão envolvidos na trama que permite que o ESP seja hoje assunto de debate urgente, na cena educacional do Brasil? De qual modo podemos associar as práticas e discursos provenientes desse campo do pensamento, direita política, neopentecostais, ruralistas, a condutas autoritárias e potencialmente fascistas? É possível pensar em potencial fascista na educação, com a disseminação do ESP? Por fim, a análise caminha para uma reflexão sobre o ESP enquanto potencialmente fascista, tendo como referência teórica as análises de Theodor W. Adorno, em Personalidade Autoritária. As análises do autor contribuem para que se pense o ESP enquanto um sério risco à educação democrática. Palavras-chave: Escola Sem Partido. Educação. Potencial Fascista. Adorno. Abstract The project No School Party is a social phenomenon that has worried the researchers of the area of education, because it aims to reach Brazilian education through a moralizing reform. The project has existed since 2004 when it was created by the Christian lawyer Miguel Nagib and was shelved until 2013. June 2013 was the opportune moment for the No School Party to find a way and get out of the paper, and become effective on the political plans. This possibility is due not only to June 2013, but also to a shift in focus from the movement that in its first ten years was focused on combating ideological indoctrination in schools, which would violate the freedom of belief and conscience envisaged in the constitution of 1988. The change occurred when the movement fused its initial theme, ideological "Marxist" indoctrination with the fight against "gender ideology." In making this merger movement, the NSP shifted from the political field to the moral field, and this displacement gave it greater social capillarity, ceasing to be just a project, and in more drastic cases becoming temporarily a reality, as in state of Alagoas where it was implanted as state law, known as "Free School". Faced with the advancement of the proposal in the national scenario, we will analyze how the "School Without Party" project articulates with this broader social and political movement, with an authoritarian root and with a notable fascist potential that has grown in the country since 2013. We start with hypothesis that the NSP is an important component of the political agenda of the contemporary right. In this case, to develop the analysis, it was necessary to articulate this movement to theoretical analysis, to think about the issue that matters to us: authoritarianism and its dissemination through education. Thus, the research work aims to delineate the authoritarian components that today are sometimes diffused, sometimes very explicitly and focused on practices and discourses that clearly state what they came from. In this case, it was necessary to carry out a historical course, in order to identify in the roots of Brazil the presence of authoritarian elements that help to understand the contemporary advance of these forces. To this end, we refer authors of national thought, such as Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Roberto da Matta and Marilena Chauí, through the elements presented by these authors, to challenge the myth of non-violence and the myth of racial democracy. Next, the analysis stops to observe how these elements were rearranged in the modern composition of Brazil, and in a more drastic way like the increase of classes, it drives the conservative and authoritarian discourse, strengthened by the support of the national press, in a traumatic process to Brazilian democracy, in which the united conservative forces led the country to a political coup in new ways. In this scenario when it comes to the project School Without Party, we try to demonstrate, as its composition and mode of operation, including discursive, combines and reinforces a broader movement that is directly linked to the right and the guidelines they advocate. In this sense, we analyze which components are present in this plot. That is, who are the social actors that move this groupand that has caused a field of conflict and confrontation in the Brazilian educational scene? To what extent, are common interest groups, such as neopentecostal and ruralist parliamentarians, involved in the plot that allows the movement to become a matter of urgent debate in the educational scene in Brazil? In what way can we associate the practices and discourses from this field of thought, political right, neo-Pentecostals, ruralists, to authoritarian and potentially fascist conduct? Is it possible to speak of fascist potential in education with the spread of the School Without Party? Finally, our analysis moves towards a reflection on SWP as potentially fascist, having as theoretical reference the analyzes of Theodor W. Adorno in Authoritarian Personality. The author's analysis contributes to think the School Without Party as a serious risk to democratic education. Keywords: School Without Party. Education. Fascist Potential. Adorno. Lista de abreviaturas e siglas ADI Ação Direta de Inconstitucionalidade AIDS Síndrome da Imunodeficiência Adquirida Humana BB Banco do Brasil S.A. BBB Boi, Bala Bíblia BNCC Base Nacional Curricular Comum BNDES Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social CBN Central Brasileira de Notícias CUT Central Única de Trabalhadores DEM Democratas EBC Empresa Brasil de Comunicação ENEM Exame Nacional do Ensino Médio ESP Escola Sem Partido EUA Estados Unidos da América FHC Fernando Henrique Cardoso IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IBOPE Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística INCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária MEC Ministério da Educação MPF Ministério Público Federal MST Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra ONU Organização das Nações Unidas PCC Primeiro Comando da Capital PEC Proposta de Emenda à Constituição PGR Procuradoria Geral da República PL Projeto de Lei PM Polícia Militar PMDB Partido do Movimento Democrático Brasileiro PNE Plano Nacional de Educação PRB Partido Republicano Brasileiro PSL Partido Social Liberal PSC Partido Social Cristão PSDB Partido da Social Democracia Brasileira PT Partido dos Trabalhadores SP São Paulo STF Supremo Tribunal Federal TV Televisão UERJ Universidade do Estado do Rio de Janeiro UFPR Universidade Federal do Paraná UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro UOL Universo Online URSS União das Repúblicas Socialistas Soviéticas SUMÁRIO INTRODUÇÃO: A ATUALIDADE DO DISCURSO FASCISTA E SEU AVANÇO SOBRE O CAMPO EDUCACIONAL ........................................................................................................................................ 13 1 BRASIL: SOCIEDADE AUTORITÁRIA - O MITO DA SOCIEDADE PACÍFICA E O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL. . . . . . . .. . . . . . . . . .25 1.1 Holanda, Freyre, Chauí e Da Matta: A tradição autoritária no pensamento social brasileiro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. ...... . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . .................27 2 A EMERGÊNCIA DO CONSERVADORISMO E DO AUTORITARISMO: O PERIGO DA POTÊNCIA FASCISTA...............................45 2.1. Ascensão de forças autoritárias no contexto brasileiro e seus reflexos na Educação escolar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ............................................................................46 2.2. As jornadas de junho de 2013 e o ódio político.........................................................58 3 O GOLPE DE 2016 - CLASSE MÉDIA, “NOVA DIREITA” BRASI- LEIRA E O ESCOLA SEM PARTIDO . . . . . . . . . . . . . . ........................................81 3.1 O fascismo e a classe média. . . . . . . . . . . . . . . . ............................................... 82 3.2 Classe Média: Uma classe heterogênea . . . . . . . . . . . . . ....................................87 3.3 Classe média e o flerte com a direita . . . . . . . . . . . . . . . . . ................................90 3.3.1 Classe Média, Nova Direita e ESP. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ...........................96 4 O POTENCIAL AUTORITÁRIO E FASCISTA - ESCOLA SEM PAR- TIDO E PERSONALIDADE AUTORITÁRIA . . . . . . . . . ....................................101 4.1 Escola Sem Partido- doutrinação marxista......................................... . . ..........105 4.2 A fusão da “doutrinação marxista” ao combate da Ideologia de gênero.......... 110 4.3 Ideologia, personalidade autoritária e ESP . . . . . . . . . . . . . . . ..................... 112 4.4 Elementos ideológicos de oposição ao anticomunismo/esquerdismo. ........ . . 117 4.4.1 Professor Doutrinador – O veículo da “perigosa” doutrinação marxista. ........123 4.5 Escola Sem Partido - A satanização da “ideologia de gênero” . . ........ ..137 4.5.1 Cruzada contra a ideologia de gênero . . . . . . . . . . ............... . . . . . . . . . 139 4.6 O combate à ideologia de gênero à luz a obra Personalidade Autoritária..................................................................................................................... 148 4.6.1 O combate à ideologia de gênero e a afinidade com o conservadorismo cristão – Contribuições da obra Personalidade Autoritária para pensar o problema. ....... . . . . . 151 4.7 As nove variáveis da escala F e suas contribuições para pensar o combate à ideologia de gênero . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .........................................................................157 Considerações finais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ............................................................170 REFERÊNCIAS............................................................................................................191 13 Introdução: A atualidade do discurso fascista e seu avanço sobre o campo educacional Em Porto Alegre, depois de um mês de visitação do público, o Centro Cultural Santander fechou no dia 10 de setembro de 2017 a exposição Queermuseu, atendendo à gritaria de ultraconservadores. Menos de uma semana depois, em Jundiaí (SP), o juiz Luiz Antonio de Campos proibiu a apresentação da peça O Evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu, argumentando que não poderia deixar que o “HOMEM SAGRADO seja encenado como um travesti”. Um dia antes, 15 de setembro, em Campo Grande, a Polícia Civil acatou pedido dos deputados estaduais Paulo Siufi (PMDB), Herculano Borges (Solidariedade) e Coronel David (PSC) e apreendeu o quadro Pedofilia, da artista plástica mineira Alessandra Cunha Ropre. Em ofício, os deputados acusaram a obra de promover “sacanagens e desrespeito à família e aos bons costumes”. (NAVARRO, 2017). A filósofa Judith Butler, 61 anos, foi agredida ao embarcar no Aeroporto de Congonhas, em São Paulo, na manhã desta sexta-feira 10. [...] a escritora estava na área de check-in quando foi perseguida por uma mulher que segurava um cartaz com a foto desfigurada de Butler e gritava repetidos xingamentos, além de empurrar o cartaz feito de madeira e cartolina na direção da filósofa e de sua esposa, a cientista política Wendy Brown. [...] Vi a Judith Butler passando e uma senhora atrás com uma placa na mão chamando de pedófila, nojenta, que não era bem-vinda no Brasil. Ela estava muito exaltada, uma agressividade muito grande, xingava em inglês e português e empurrava ela com o cartaz. (OLIVEIRA, 2018). Um professor do curso de pós-graduação em História da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) denunciou ao GGN a invasão de uma aula especial sobre os 100 anos de Revolução Russa, ministrada pela professora Maria Teresa Toríbio Brites Lemos. A intervenção hostil foi feita por um grupo de extrema direita que gravou e divulgou as imagens do ato premeditado na internet. [...] um dos organizadores da invasão aparece interrompendo a aula no momento em que os docentes comentavam sobre a ditadura militar brasileira. Ele ergueu-se e afirmou categoricamente à professora Maria Teresa que o que houve no País foi, na verdade, um “regime democrático militar”, que salvou a sociedade dos “comunistas”. Ele também criticou a UERJ pela “doutrinação” de jovens com o pensamento socialista. Em mensagem à redação, o professor André Azeredo relatou que “a professora foi insultada, bem como os organizadores do evento. A UERJ foi tratada como ‘antro de comunistas’ no dizer desses criminosos. Balançando uma bandeira do infausto movimento desses arruaceiros e com gritos de acusação, conseguiram inviabilizar um evento acadêmico e intelectual da maior importância organizado por historiadores vinculados a UERJ. Não satisfeitos, postaram vídeos em algumas instâncias da internet, se vangloriando do ato bárbaro que propenderam contra a comunidade de historiadores da UERJ que, repito, invabilizou o encerramento do evento. (NASSIF, 2017). As cenas que abrem este texto são recortes de reportagens que trazem narrativas bárbaras, as quais poderiam ser ficcionais, mas que, no entanto, são retratos da potência fascista que se expressa de modo real, no cenário contemporâneo. Nesse sentido, a 14 afirmação de Bertold Brecht – “A cadela do fascismo está sempre no cio” –parece se confirmar. O cenário mundial, no início do século XXI, demonstra que o pensamento de Brecht não é passado. Há um visível avanço de forças conservadoras e autoritárias, potencialmente fascista, que se pode observar com maior pujança em momentos de crise econômica acentuada, nos quais a reorganização do capital impõe fortes restrições ao indivíduo. O cenário brasileiro é um bom exemplo da relação estabelecida entre a crise do capital, a fragilização do indivíduo e a expressão de vontades autoritárias com origem coletiva. A recente democracia brasileira é resultado da superação do modelo autoritário, firmado no período do regime militar, à transição a um estado democrático de direito, o que representaria, ao menos em tese, a possibilidade de engendrar uma sociedade menos desigual. A acentuada crise econômica que vive o país é, por vezes, utilizada como argumento no debate sobre a instabilidade política e a fragilidade da democracia brasileira. A crise mundial de 2008 produziu impactos no mundo todo e, no Brasil, não teria sido diferente. No entanto, os impactos de 2008 não foram sentidos de forma imediata, na economia brasileira, o que permitiu ao então presidente Luiz Inácio Lula da Silva declarar: “– Lá (nos EUA), ela é um tsunami; aqui, se ela chegar, vai chegar uma marolinha que não dá nem para esquiar.” (GALHARDO, 2008). A subestimação da crise, pelo Partido do Trabalhadores, se revelou um erro crucial e caro à agremiação e ao próprio desenvolvimento da democracia brasileira. A crença do partido era de que os anos de bonança do lulismo, em que o país teve um significativo aumento de produção e um relativo progresso econômico e social, seriam suficientes para garantir uma situação geral de bem-estar social. Durante os anos de poder, e especialmente a partir de seu segundo governo (2007 a 2011), o presidente Luiz Inácio, por diversas vezes, em declarações públicas, se vangloriou de seu governo ser o responsável por elevar milhões de brasileiros à condição de classe média, o que, segundo seu ponto de vista, seria resultado direto das políticas sociais, como o Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida e a expansão da Rede Federal de Ensino, por meio da autorização de novos campi e cursos, nas instituições existentes, e da implantação de novas universidades federais, além da criação, por lei, da Rede Federal 15 de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (EPCT), a qual transformou os antigos Centros Federais de Educação Tecnológica (CEFET) em Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, os chamados IFs, hoje presentes em todos os estados, somando mais de 600 unidades. No entanto, o que viria se revelar mais tarde, já no governo de sua sucessora, é que o custo dos programas sociais bancados pelo governo do Partido do Trabalhadores foi camuflar os ganhos estratosféricos do setor bancário, ao mesmo tempo em que se desviava o foco do aumento absurdo dos dividendos das grandes corporações e se cooptava parcela dos movimentos sociais, especialmente os historicamente ligados ao PT, como o MST e os sindicatos filiados à CUT e CTB, de tal forma que estes (como parcela dos movimentos sociais) deixaram de tensionar as questões que pautaram historicamente, sendo burocratizados em órgãos estatais, tal como ocorreu com o MST, através do INCRA. Além disso, o Partido do Trabalhadores, o qual historicamente se constituiu no imaginário popular como um partido honesto e que tinha como uma de suas bandeiras o combate à corrupção, ao chegar ao poder, comportou-se de maneira semelhante aos seus rivais políticos. O custo da aprovação dos programas sociais foi a institucionalização do partido, na forma de operar a política no país, isto é, aderir à tradicional prática política brasileira da compra de votos de deputados e senadores, para aprovação de projetos de interesse partidário. A própria Dilma Rousseff, ainda em dezembro de 2014, logo após a vitória eleitoral, foi acusada de “estelionato eleitoral”, por conta da edição das MPs 664/665, combinada com a escolha de Joaquim Levy (representante dos interesses do capital financeiro) para o Ministério da Fazenda. Ou seja, a ascensão de Michel Temer, apenas – mas não apenas – radicaliza e acelera a agenda do Ajuste Fiscal, passando a adotar (também) medidas de contrarreformas, tais como a do Ensino Médio, a Trabalhista e a da Previdência. Esse fato é importante, pois podemos constatar que Dilma e o PT iniciaram o ataque aos trabalhadores, o qual mais tarde seria aprofundado pelo golpe de 2016 e criticado pelo próprio PT e Dilma, sem reconhecer sua parcela de responsabilidade sobre o fato. As contas de 2014 foram aprovadas no Congresso, por meio de acordo com o Centrão, com manobras fiscais. 16 A recessão econômica demonstrou seus primeiros efeitos já em 2011, final do segundo governo de Luiz Inácio e início do governo de sua sucessora. Os resultados mais drásticos da crise foram sentidos por Dilma Rousseff, que sucumbiu em um controverso processo de impeachment, em um novo modelo de golpe político. Os impactos mais severos da crise se manifestaram assim que o governo ilegítimo de Michel Temer assumiu o poder, pondo em prática uma agenda política e econômica bem diferente da escolhida nas urnas, em que houve redução dos serviços prestados à população, retrocesso dos direitos trabalhistas, perda do poder de compra pela disparada da inflação e aumento do desemprego, de forma contínua. Esse cenário político e social caótico é também um dos elementos que facilita a ascensão de discursos e práticas autoritárias. O Brasil não é um caso específico, no cenário mundial, no qual se observa um acentuado crescimento de discursos e práticas autoritárias, conforme se pode perceber na dramática questão dos refugiados de guerra, dos imigrantes no mundo inteiro. A proposta de construir um muro que separa a fronteira do México com os EUA, que foi uma das impulsionadoras da campanha que levou o magnata Donald Trump a vencer a corrida eleitoral americana, é um exemplo do que estamos querendo demonstrar como força potencial fascista. Em entrevista ao jornal El País, o cientista político Giovanni Orsina observa que o fascismo não deixou de existir na Itália e que o atual momento histórico é um terreno fértil para seu desenvolvimento, no entanto, em outra configuração: A identidade nacional e racial volta a ser importantes. Há uma crise demográfica europeia que, na Itália, é particularmente grave. Temos empregadores que dizem que os italianos vão embora porque aqui não tem trabalho. Os imigrantes chegam durante meses, 200.000 por ano. São publicadas todo tipo de crônicas sobre violações, insegurança... e o mais importante: não podemos esquecer que fomos nós que inventamos o fascismo. (VERDÚ, 2017). A sobrevivência do fascismo como potência, a qual nos faz estar atentos ao enunciado de Brecht, é perceptível em situações como as que deram início a este texto. O fascismo como projeção necessita da força de coesão do Estado. Nesse caso, o eu enfraquecido socialmente deposita nas normas sociais e/ou na figura do líder toda a afetividade e vontade de realização. Desse modo, é em busca de aceitação de um grupo social que o sujeito se vincula a pensamentos e comportamentos autoritários. 17 Obviamente, para tal, é necessário um contexto social específico, geralmente marcado por uma crise, por uma ruptura social. O indivíduo potencialmente fascista é frustrado e possui dificuldades de enfrentamento da autoridade interna e, portanto, resolve sua frustração à medida que direciona seus impulsos agressivos ao outro, o qual, neste caso, é o objeto social de ódio. Desse modo, é importante refletir sobre como forças autoritárias e potencialmente fascistas se reorganizaram e ganharam espaço, neste momento histórico, a ponto de acender o alerta sobre o passado fascista e sobre os perigos de um retorno a estados autoritários. O cenário atual de manifestações de caráter conservador e autoritário, em que se observa em escala mundial o avanço de forças políticas conservadores e de extrema direita, como o caso de Marine Le Pen, na França, Donald Trump, nos EUA, e Jair Bolsonaro, no Brasil, combinado com a recessão econômica, é um campo fértil para a expressão da potência fascista, todavia, não representa a possibilidade de reedição histórica do nazismo e do fascismo, enquanto organizações de Estado. Nesse sentido, é importante retornar ao conhecido argumento de Marx, em 18 Brumário de Luis Bonaparte, quando se refere à impossibilidade de repetição dos fatos históricos, tais como aconteceram no passado: Em alguma passagem de suas obras, Hegel comenta que todos os grandes fatos e todos os grandes personagens da história mundial são encenados, por assim dizer, duas vezes. Ele se esqueceu de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. (MARX, 2011, p. 25). Marx alerta para o fato de que o desenvolvimento da História não permite repetições. Assim, quando um fato se apresenta como possibilidade de reviver um momento histórico já acontecido, este não se repete tal qual no passado, até porque as condições históricas e sociais não são as mesmas, o que altera o modo de relação do homem com o mundo e com a própria História e que, por sua vez, vai produzir uma forma de organização e um resultado diferente: Os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram. A tradição de todas as gerações passadas é como um pesadelo que comprime o cérebro dos vivos. E justamente quando parecem estar empenhados em transformar a si mesmos e as coisas, em criar algo nunca antes visto, exatamente nessas épocas de crise revolucionária, eles conjuram temerosamente a ajuda dos espíritos do passado, tomam emprestados os seus nomes, as suas palavras de ordem, o seu figurino, afim de representar, com 18 essa venerável roupagem tradicional e essa linguagem tomada de empréstimo, as novas cenas da história mundial. (MARX, 2011, p. 25-26). Nos momentos de crise, voltam a rondar a humanidade os fantasmas do passado. A inevitável comparação com o passado é importante, mas não pode abdicar de ser seguida de uma reflexão sobre o fascismo que leve em consideração que ele não é o mesmo de 1945, ou seja, é preciso estar atento à sua nova organização e refletir sobre como combatê-lo e como resistir. Nesse caso, a educação se torna imprescindível na luta contra o desenvolvimento do potencial fascista, como força que possa orientar a conduta dos homens contra práticas bárbaras. É nesse cenário que a reflexão sobre o papel da educação como possibilidade de resistência a práticas autoritárias e potencialmente fascistas assume caráter histórico de urgência. O fascismo pode, à primeira vista, passar despercebido, ser entendido como uma piada, mal interpretado como um delírio de um indivíduo ou de uma coletividade, uma possibilidade distante. No entanto, é necessário encarar o fascismo com seriedade, especialmente quando se observa o resultado trágico do fascismo implementado enquanto organização de Estado. O que pode parecer ridículo, no fascismo, é a construção discursiva que prepara o terreno para implementação do fascismo de Estado. Esse fato aconteceu na Alemanha pré-Hitler. O problema, nesse episódio histórico, foi exatamente a não atenção ao discurso fascista promovido pelo Partido Nacional Socialista, o qual foi recebido com descrédito por boa parte da população alemã. No entanto, mais tarde, as ideias, que pareciam ridículas, demonstraram seu potencial de destruição. Nesse sentido, o discurso que prepara o terreno para práticas fascistas tem que ser encarado com seriedade e não apenas em um tom caricatural. Quando se menciona o fascismo, há duas possibilidades de compreensão desse elemento. A primeira se refere ao fascismo como um fenômeno singular, restrito à Itália de Mussolini. A segunda concerne ao fascismo “[...] enquanto um fascismo como um fenômeno político teoricamente autônomo e extensível a movimentos semelhantes, que nasceram sob determinadas condições, espalhados pelos mais diferentes países.” (ATHAÍDES, 2012, p. 25). Nesse sentido, é possível aludir a fascismos europeus e, no nosso caso, das singularidades da manifestação fascista no Brasil, que, de forma objetiva, 19 pode ser pensada através da Ação Integralista Brasileira e das ideias de seu principal líder, Plínio Salgado.1 O que nos interessa, neste ponto, não é fazer uma definição precisamente histórica do integralismo, nem tampouco um aprofundamento sociológico ou filosófico sobre ele. A nós convém observar como podemos pensar o cenário nacional enquanto um espaço propício para o desenvolvimento de ideias e comportamentos autoritários e potencialmente fascistas. O fascismo não pode ser enquadrado, portanto, como um fenômeno do passado. Há, em nosso presente, a necessidade urgente de reflexão sobre como o fascismo ainda se reproduz e sobrevive como potência em ascendência, neste início de século. A atenção à memória da produção da barbárie por sociedades assumidamente fascistas, como a Itália de Mussolini e a Alemanha de Hitler, é fundamental para que se pense a dimensão da potencialidade fascista, no contemporâneo: Apela-se para a vigilância com relação aos possíveis retornos – é o tema do “nunca novamente!” E, de fato, a atividade e a agitação das extremas direitas nos últimos anos, o fenômeno do “revisionismo” no que tange à Shoah, a facilidade com qual os grupos neonazis surgem na ex-Alemanha oriental, os “fundamentalismos”, nacionalismos e purismos de todas as espécies, de Tóquio a Washington e de Teerã a Moscou- tudo isso de fato exige vigilância. (LACOUE-LABARTHE; NANCY, 2002, p. 10). Quando os autores se referem à urgência de se estar atento aos possíveis retornos, estes são pensados tal qual apontado pelo argumento de Marx, exposto anteriormente. Pensar o potencial fascista contemporâneo e como ele se articula, no contexto brasileiro, é uma tarefa importante e que requer cuidados, ao se estabelecer relações entre passado e presente. Os retornos e repetições simples são bem raros, quando não inexistentes, na história. E se o fato de se portar uma suástica ou sua inscrição são dados infames, eles não são necessariamente (sejamos precisos: ele podem ser, mas não necessariamente) os signos de um ressurgimento nazista verdadeiro, vivo e perigoso. Eles podem derivar apenas da debilidade, ou da impotência. (LACOUE-LABARTHE; NANCY, 2002, p. 10). Desse modo, é fundamental estarmos atentos aos signos sociais que indicam que o fascismo sobrevive enquanto potência e que tem, no início do século XXI, um campo 1 A AIB (Ação Integralista Brasileira) foi um movimento político criado pelo jornalista Plínio Salgado, de cunho nacionalista e com forte presença de ideias de inspiração fascista. Criado em 1932, o movimento integralista brasileiro se inspirava no movimento fascista italiano. 20 fértil para seu desenvolvimento. Assim, centraremos nossa análise em discursos autoritários e potencialmente fascistas, os quais se têm disseminado no campo educacional brasileiro. Nesse caso, procuraremos analisar de que maneira o projeto Escola Sem Partido (ESP) se articula a esse movimento social e político mais amplo, de raiz autoritária e com notável potencial fascista. Partimos da hipótese de que o ESP é um componente importante da pauta política da direita contemporânea. Nessa perspectiva, para desenvolver a análise, será necessário associar esse movimento com uma análise teórica, a qual contribua para pensar a questão que nos importa: o autoritarismo e sua disseminação, através da educação. Assim, o trabalho de pesquisa visa a delinear os componentes autoritários que hoje se apresentam, às vezes difusos, às vezes de forma muito explícita e concentrada, em práticas e discursos que dizem a claramente a que vieram. Logo, quando se trata do projeto Escola Sem Partido, procuraremos demonstrar como sua composição e modo de operação, inclusive discursivo, se combinam e reforçam um movimento mais amplo, diretamente vinculado à direta e às pautas que defendem. Nesse sentido, é preciso observar quais os componentes que estão presentes neste enredo. Ou seja: quem são os atores sociais que movimentam o ESP e que tem causado um campo de conflito e confronto, na cena educacional brasileira? Em que medida grupos de interesse comum, como os parlarmentares neopentecostais e ruralistas, estão envolvidos na trama que permite que o ESP seja hoje assunto de debate urgente na cena educacional do Brasil? De qual modo podemos associar as práticas e discursos provenientes desse campo do pensamento, direita política, neopentecostais, ruralistas, a condutas autoritárias e potencialmente fascistas? É possível tratar de potencial fascista na educação, com a disseminação do ESP? Procurando responder a tais questionamentos, nossa pesquisa tem como ponto de partida uma breve análise histórica, destinada a localizar, na origem do Brasil, elementos autoritários que ajudem a explicar o contexto no qual nos encontramos. Desse modo, o primeiro capítulo desta Tese tem como objetivo realizar um diagnóstico do autoritarismo como elemento central na constituição das relações sociais do Brasil. Nessa tarefa, teremos como referência quatro clássicos do pensamento social brasileiro, Sergio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Roberto da Matta e Marilena Chauí, através dos 21 quais buscaremos caracterizar o autoritarismo como um elemento fundante das relações sociais, no Brasil. Para tal, trabalharemos a ideia de mito, respaldado pelo pensamento de Chauí, para quem o Brasil se construiu sob o mito da sociedade pacífica, fato que colabora para ocultar os elementos autoritários de nosso processo de formação. O mito da sociedade pacífica e ordeira, apresentado por Chauí, é por nós acrescido do mito da democracia racial, resultado do pensamento de Gilberto Freyre, o qual percorre sua obra, em especial seu clássico Casa Grande & Senzala, talvez o livro que tenha maior influência sobre a construção da identidade nacional. A análise positiva de Freyre sobre o processo de colonização e a construção de um hibridismo social, chamado posteriormente por seus críticos de democracia racial, combinada à análise crítica de Sérgio Buarque, se contrapõem, contudo, para nós se complementam, no ponto que procuramos, ou seja, no reforço da hipótese de uma sociedade autoritária. O elemento novo, nesse caso, se refere ao fato de, através da obra de ambos, podermos caracterizar a construção da sociedade autoritária, com um elemento original essencial para compreender o Brasil, as relações entre brancos colonizadores e negros escravizados. As relações entre brancos e negros, da forma como estabelecidas no processo de escravidão brasileira, são relações autoritárias. Nesse sentido, o autoritarismo original do Brasil traz em si o traço da cor, da origem. A origem se associa tanto aos escravos africanos como aos indígenas que aqui se encontravam. Partiremos da análise de Buarque, em Raízes do Brasil, e de Freyre, em Casa Grande & Senzala, para caracterizar o elemento racial como estruturante nas relações sociais do Brasil e também como um dos elementos autoritários, o qual se modifica com o fim da sociedade escravocrata, mas que não se encerra, nesse episódio. Roberto da Matta e Marilena Chauí, contemporâneos do pensamento social brasileiro, ajudam a reforçar esse diagnóstico de um racismo e autoritarismo estrutural, que pensamos neste texto sob o mito da sociedade pacífica e da democracia racial. Após realizado o diagnóstico do autoritarismo estruturante, faremos um salto temporal, no segundo capítulo, com o intuito de analisar a emergência do conservadorismo e do autoritarismo, como indicativos de que há um potencial fascista adormecido, capaz de despertar neste início de século XXI. Para pensar o fascismo para 22 além de uma prática de Estado, pareceu-nos essencial recorrer aos estudos de Theodor Adorno sobre a personalidade autoritária. O ponto que nos interessa é o fascismo tratado enquanto potência, muito além da organização de Estado. Em função da análise do potencial autoritário e fascista que o discurso atual pode mobilizar, em sentido efetivo de promover o ódio às minorias, podemos localizá-lo no campo educacional, por meio de discursos promovidos por representantes e adeptos do movimento Escola Sem Partido. Os discursos a que aludimos são aqueles que promovem um ataque a temas como a legitimidade das diferenças, o respeito às diferenças, o respeito à diversidade, a preservação da cultura e de suas particularidades, das identidades coletivas, do gênero, dos índios, do racismo, do feminismo, dos LGBTT, das mulheres e suas diferenças, dentre tantos outros que operam nesse mesmo sentido. Serão pensadas, também, as práticas que podem ser despertadas desse fenômeno de promoção ao ódio. Desse modo, qualquer que seja o campo, do discurso ou da prática, o autoritarismo se manifesta como um ataque à diferença. Logo, diante de um contexto de aprofundamento de discursos conservadores e com caráter autoritário, é fundamental analisar como esse movimento afeta o campo do pensamento, ou seja, como ele se dissemina na educação. O capítulo tem como objetivo realizar um diagnóstico, identificando, de acordo com Adorno, como essas tendências podem ganhar forma num tipo de governo propenso a práticas autoritárias. Para tal, realizaremos uma análise detalhada das jornadas de junho de 2013, as quais trouxeram à tona elementos que ainda não estavam visíveis para todos. Os protestos que, a princípio, apareceram como um exercício democrático e cidadão, pela revogação do aumento de 20 centavos da passagem do transporte público em São Paulo, acabaram por ganhar outro tom, no final do mês, quando se percebia claramente que havia um conflito de ideologias e classes, na rua. A escolha de 2013 se deve ao fato de que, em nossa análise, é nesse momento, no auge das manifestações de 2013, que é despertado o potencial fascista, o qual, inclusive, será importante para impulsionar as manifestações de 2015 e 2016, já bem diferentes das 2013, que culminaram no impeachment da presidente petista Dilma Rousseff. O capítulo será desenvolvido pela análise dia a dia das manifestações, com a colaboração de Jessé Souza, que observa a cobertura do Jornal Nacional e seu papel na federalização das manifestações, com um claro vínculo de apoio aos setores conservadores, como parte 23 fundamental do golpe que se articulava. Além da análise de Souza, levaremos em conta igualmente os argumentos de Singer, os quais mostram o enfrentamento de classes e ideologias nas ruas, em 2013, e que também contribuiria para acentuar a polarização da sociedade brasileira. Constatados os elementos que articularam o golpe de 2016, desenhados em junho de 2013, o terceiro capítulo tem o objetivo de investigar a relação de proximidade e interesse entre a direita e a classe média, que é fundamental para compreender o movimento político conservador e autoritário, responsável, em certa medida, por impulsionar o golpe de 2016. Para tal, partiremos do clássico texto de Reich (1988) sob a psicologia de massas, no fascismo, a fim de compreender como historicamente, desde sua origem, os Estados fascistas mantinham uma relação de proximidade e interesse com a classe média. Em seguida, faremos uma análise mais específica da classe média brasileira, procurando entender suas origens e em que medida se pode vincular sua história à direita nacional. Após essa análise da relação histórica entre ambas, buscaremos demonstrar como esse vínculo contribuiu para o avanço do discurso autoritário e potencialmente fascista, e, consequentemente, como esse processo se reflete em fenômenos como o ESP. Nesse sentido, examinando o contexto político atual do Brasil, muito das políticas desenvolvidas pelo governo federal tem uma orientação antidemocrática clara (MONTENEGRO, 2013).2 Há uma série de exemplos que demonstram a orientação antidemocrática do governo de Michel Temer, como o recente afrouxamento das leis que combatem o “trabalho escravo” (CORRÊA, 2017); o predomínio do Judiciário sobre os demais poderes; a mudança de slogan do governo federal, que deixou de ser “Brasil: Pátria Educadora” e passou a ser “Ordem e Progresso” (DECAT, 2016), inscrição da bandeira do país, de origem positivista e sem nenhuma preocupação social. Nesse cenário, há um processo de perseguição e criminalização da ação dos movimentos sociais, perseguição de intelectuais que tiveram suas palestras interrompidas em eventos, tentativa de proibição de que se ministrassem aulas (disciplinas) sobre o golpe de 2016, nas universidades públicas (MFP, 2018). Estes são todos matizes que 2 Apesar da orientação antidemocrática se acentuar e se tornar mais explícita, no governo de Michel Temer, Dilma e Lula já tinham adotado práticas antidemocráticas, como as chamadas “remoções” de moradores para a instalação de estruturas para os Jogos Olímpicos de 2016. Cf. MONTENEGRO (2013). 24 denotam práticas antidemocráticas e de cunho autoritário. Estas são apenas algumas práticas já em movimento, portanto, há um risco iminente de que elas se intensifiquem e agravem mais ainda o quadro autoritário. O quarto e último capítulo tem o objetivo de analisar o movimento Escola Sem Partido e a sua relação direta e de interesse com o quadro conservador e autoritário que tem se fortalecido no país. A tese que defendemos é a de que o ESP surgiu com maior potência, a ponto de se tornar questão de urgência, no debate educacional brasileiro, devido aos elementos fascistas contidos em seu ideário, o qual, por sua vez, pode – neste conturbado cenário político e econômico – ser explorado com maior eficiência, provocando um grande dano ao processo educacional do país. Com essa intenção, empreenderemos a investigação do ESP enquanto uma expressão do potencial conservador e autoritário, com proximidades com o discurso fascista, utilizando como referencial teórico para análise o pensamento de Theodor W Adorno e recorrendo à obra Personalidade Autoritária, buscando estabelecer relações entre o ESP e a construção de uma educação autoritária. Os temas centrais do movimento ESP são de notável afinidade com o pensamento conservador e de direita; dentre estes, nossa análise será especificamente voltada para dois temas centrais que circundam toda a construção do projeto e do próprio movimento ESP: a “doutrinação marxista”, nomeada também como esquerdismo, à qual o ESP contrapõe o anticomunismo; e o combate ao que denomina “ideologia de gênero”. Nesse caso, procuraremos demonstrar algumas situações que nos ajudam a reforçar as evidências de que o ESP é um veículo de disseminação de ideias autoritárias e, por consequência, um sufocador das ideias democráticas. O que percebe com essa situação é que o Escola Sem Partido tem criado um campo de conflito discursivo e jurídico, o qual atinge o campo educacional brasileiro, em que ataca o pensamento democrático e a garantia constitucional da pluralidade de concepções pedagógicas, de sorte a fragilizar o campo educacional e abrir espaço a discursos autoritários e potencialmente fascistas, defendidos sob o disfarce da liberdade de expressão garantida constitucionalmente. O comportamento potencialmente autoritário tem, no ESP, uma possibilidade de se enraizar no pensamento educacional brasileiro. 25 1 BRASIL: SOCIEDADE AUTORITÁRIA - O MITO DA SOCIEDADE PACÍFICA E O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL Talvez, para as gerações mais novas, o evento histórico que marque com maior precisão o autoritarismo brasileiro seja o período da ditadura civil militar, que teve início por um golpe político, em que os militares assumiram o governo em primeiro de abril de 1964. Esse foi um episódio histórico fundamental na construção de um Brasil desigual. A economia brasileira tem se perpetuado historicamente, através da promoção da desigualdade social, e o período militar aprofundou esse processo. O golpe de 1964 ressoou na história oficial como estratégia de defesa dos interesses nacionais do perigo iminente de influência do bloco comunista.3 A Marcha da Família com Deus e pela Liberdade, uma série de passeatas organizadas por senhoras católicas, em apoio ao golpe militar de 19644, era um indício de que o autoritarismo perpetuado pelo pensamento reacionário de direita tinha respaldo de uma parcela da população (especialmente a classe média), a qual se sentiu confortável, diante da proteção das armas e das boas intenções da direita, a fim de defender a postura autoritária como solução para os problemas do país. Esse autoritarismo não é novidade do período de 1964, porque ele esteve, antes de tudo, presente na constituição do Brasil, desde o processo de colonização. Entre idas e vindas, nossa história é marcada por sobressaltos de autoritarismo e segmentação social, que produz um país onde a desigualdade é um problema social mascarado e atenuado por uma suposta condição natural de harmonia, sustentada pelo mito do povo pacífico, da democracia racial. Em Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda se propõe discutir a formação da cultura brasileira, recorrendo à história como ponto de análise para pensar sob quais influências se construiu o Brasil. Na gênese da cultura brasileira, Sérgio Buarque reconhece a presença de uma postura autoritária, que compõe a formação da ordem social brasileira: “Em terra onde todos são barões não é possível um acordo coletivo durável, a não ser por uma força exterior respeitável e temida.” (HOLANDA, 1956, p. 5). 3 Percebe-se que a paranoia nacional de ameaça de uma tomada comunista do poder, que inclusive foi um dos argumentos utilizados para justificar a ação dos militares, em 1964, se mantém ao longo da história, ganhando novas reconfigurações com o desenvolvimento histórico. Mais à frente, poderemos perceber como o Escola Sem Partido reproduz essa paranoia de ameaça comunista e de perigos da doutrinação comunista ou esquerdista. 4 Importante ressaltar que, já no contexto de 1964, a classe média, representada na figura das senhoras católicas que organizaram a Marcha da Família com Deus e pela Liberdade, foi a “base social” de sustentação do golpe. 26 No mesmo sentido, Marilena Chauí (2000), em Brasil: Mito fundador e sociedade autoritária, reconhece o autoritarismo como parte constituinte da identidade nacional. Para tal, contesta o imaginário social que cria o “Mito Brasil”, o país da miscigenação, da democracia racial, do povo pacífico e ordeiro, da história grandiosa. Logo, de acordo com Chauí (2000), existe um mito da não violência, como se fosse um acordo tácito entre os brasileiros que não admitem a violência, tal como o autoritarismo e o racismo, como problemas reais da sociedade brasileira. É uma negação consciente e deliberada de aspectos que compõem o Brasil e, portanto, organizam as estruturas das relações sociais. Nessa linha, a construção da identidade nacional ou da noção de Brasil ou de ser brasileiro passa por uma negação de suas características conflituosas. Não admitimos o racismo, o machismo, o autoritarismo, mas estes estão presentes em nosso cotidiano, pois as relações sociais e a própria estrutura da sociedade brasileira se desenham dessa forma, ou seja, ignorando o conflito, mantendo os privilégios dos dominantes e nutrindo a formação de uma falsa consciência nacional que ignora fatos históricos determinantes de nossa formação. Por exemplo, o racismo não pode ser pensado, sem se levar em consideração a história brutal do processo de escravização do povo africano, o qual fundou um país desigual em essência e dividiu pretos e brancos em seres humanos e objetos (mercadorias) e que é minimizado pela falsa afirmação da harmonia, da não violência e, mais especificamente, no campo das relações étnico- raciais, da democracia racial, uma piada das elites nacionais que se consolidou como identidade nacional na formação da consciência do país da harmonia, da não violência, do lugar em que todos são aceitos e que, por conseguinte, o preconceito não é regra, mas uma exceção, e, por isso, não pode compor a identidade nacional, nem ser levado em conta como parte de nossa formação. A escravidão, enquanto modo de organização social e econômica, deixou de existir oficialmente com a abolição, em 1888. No entanto, não houve qualquer tipo de política de reparação voltada à população negra, a qual havia, enfim, conquistado a liberdade. O Estado brasileiro se preocupou em indenizar os proprietários de escravos, que haviam perdido suas propriedades com a Lei Áurea. Pode-se perceber, nessa atitude, que o Estado brasileiro – e, nesse caso, Estado representa a elite nacional – entendia o fim da escravidão como um prejuízo econômico e não como um processo de desenvolvimento humano da sociedade brasileira. As relações entre brancos e pretos, travadas no Brasil, durante o processo de colonização, são relações autoritárias. Este capítulo tem a pretensão de investigar o autoritarismo, no Brasil, e demonstrar como é parte fundamental da composição da história do país. O mito da sociedade 27 pacífica e não violenta é também o mito da democracia racial. As relações violentas entre brancos e pretos, no país, as quais são atenuadas até hoje como um problema menor, superado ou inexistente, demonstram o caráter e a dimensão que esse mascaramento ganhou. A escravidão foi abolida em 13 maio de 1888, no entanto, o Brasil, 130 anos depois, ainda mantém em sua segregação social o elemento cor como um traço fundamental. As cenas relatadas nos livros de histórias sobre a violência que organizava a sociedade brasileira, durante a escravidão, não são suficientes para mudar esse fato. Nem tampouco as exposições e fotos de objetos utilizados para torturar os negros, nesse período. A questão é mais profunda. O que se chama “Brasil” é um marco histórico que tem, entre suas características fundantes, a relação autoritária entre brancos e pretos, que marca mais da metade da história do país. Essa marca tornou-se também um modo de funcionamento das relações sociais, no Brasil, mesmo mais de um século depois do fim oficial da escravidão. Assim, queremos configurar, nesta análise, o racismo histórico brasileiro como uma expressão da organização autoritária do país. O processo de colonização, a relação entre colonizadores e indígenas, colonizadores e escravos são elementos iniciais que demonstram que nossa história se constituiu de forma violenta e autoritária. A colonização é uma expressão da conduta autoritária. Ora, o problema que se apresenta é pensar como esse autoritarismo é mascarado. Quais motivos levam o autoritarismo e o racismo a serem mascarados como problemas sociais de menor importância, para os brasileiros? Como é possível que a realidade dos fatos não se choque com a construção e a afirmação de um pacifismo que não existe? Como o autoritarismo se manifesta na educação brasileira? 1.1 Holanda, Freyre, Chauí e Da Matta: a tradição autoritária no pensamento social brasileiro Para investigar a tradição autoritária na história do Brasil, optamos por recorrer a clássicos do pensamento social brasileiro, a fim de procurar em suas análises, elementos que contribuam para engrossar nosso diagnóstico de uma sociedade constituída e organizada historicamente de forma autoritária. 28 É possível encontrar, nos quatros autores escolhidos para realizar tal diagnóstico, de maneira mais objetiva em Freyre, Da Matta e Chauí, e de modo não tão objetivo, em Holanda, quando escreve sobre o Homem Cordial, elementos importantes para pensar a construção de uma sociedade e de um ethos autoritário, o qual não se reconhece, não admite seus conflitos. O homem cordial de Holanda pode, a princípio, parecer um conceito distante das reflexões sobre o autoritarismo enquanto elemento fundante da sociedade brasileira. No entanto, o conceito de Holanda é um elemento relevante para se pensar as relações entre o público e o privado, que, por sua vez, são fundamentais para se abordar a política democrática. Além disso, a ideia de homem cordial nos permite refletir sobre outras facetas que compõem o ideário social do homem brasileiro, tais como a relação entre família e Estado, pessoal e impessoal, lei e “jeitinho” brasileiro, e a própria manifestação do caráter autoritário na forma como essas relações foram sendo firmadas. O conceito de cordialidade é importante para a análise da construção de uma sociedade autoritária, pois possui implicações graves, no que diz respeito ao desenvolvimento histórico da vida cultural, social e política do país. Em sua análise da cultura ibérica, Holanda (1956) percebe que ela tem, como traço marcante e estruturante de suas formas sociais, o mérito pessoal, característica essa identificada pelo autor, a qual contaminou a construção do povo brasileiro e que ainda se percebe, na sociedade brasileira do século XXI, consolidada, por exemplo, nos modelos educacionais que se desenvolveram tendo como pilar a meritocracia. Esse sistema de reforço do particularismo cooperou na constituição de uma sociedade de privilégios. “No fundo o próprio princípio de hierarquia nunca chegou a importar de modo cabal entre nós. Toda hierarquia funda-se necessariamente em privilégios.” (HOLANDA, 1956, p. 15). A colonização ibérica, pois, investiu no caráter particularista, que contribuiu para a construção de uma sociedade de privilégios: [...] portugueses e espanhóis parecem ter sentido vivamente a irracionalidade específica, a injustiça social de certos privilégios, sobretudo dos privilégios hereditários. O prestígio pessoal, independente do nome herdado, manteve-se continuamente nas épocas mais gloriosas da história das nações ibéricas. (HOLANDA, 1956, 21-22). Outra característica marcada por Holanda (1956) como fundante é a rejeição moral ao trabalho, visto que este era tarefa social dos escravos, dos não humanos, uma tarefa não digna. Assim, a cultura ibérica também implantou no ethos brasileiro, de acordo com Holanda (1956), o desejo de ter a vida de um senhor, sem esforço ou preocupação. 29 A cordialidade é, para Holanda (1956), um vínculo da herança ibérica e que compõe, de forma definitiva, a estrutura da sociedade brasileira. De maneira resumida, a cordialidade nesse registro pode ser entendida como a organização e a mediação das relações sociais e da própria estrutura social, por intermédio do íntimo, do particular, do privado, do familiar, do afetivo. Segundo o autor, as relações sociais no Brasil priorizaram o campo das afeições em prol das relações instauradas sob o plano da racionalidade. Nesse sentido, conforme Holanda (1956), a estrutura da família é locus desse processo formativo autoritário, em que as relações de poder acontecem de modo autoritário e o privado se sobrepõe ao público: Nesse ambiente o pátrio poder é virtualmente ilimitado e poucos freios existem para sua tirania. [...] O quadro familiar torna-se, assim, tão poderoso e exigente que sua sombra persegue os indivíduos mesmo fora do recinto doméstico. A entidade privada precede sempre, neles, a entidade pública. [...] representando o único setor onde o princípio de autoridade é indisputado, a família colonial fornecia a ideia mais normal do poder, da respeitabilidade, da obediência e da coesão entre os homens. O resultado era predominarem, em toda a vida social, sentimentos próprios à comunidade doméstica [...] uma invasão do público pelo privado, do Estado pela família. (HOLANDA, 1956, p. 102- 103). Por isso, na visão de Holanda (1956), essa herança ibérica, de fortes laços patriarcais, tem reflexos na forma como se consolidam os modelos políticos no país, assim como as relações entre governantes e governados, tornando-se um entrave para a constituição de uma sociedade democrática: Em sociedade de origens tão nitidamente personalistas como a nossa, é compreensível que o simples vínculo de pessoa a pessoas, independentes e até exclusivos de qualquer tendência para a cooperação autêntica entre os indivíduos, tenham sido quase sempre os mais decisivos. As agregações e relações pessoais, embora por vezes precárias e, de outro lado, as lutas entre facções, entre famílias, entre regionalismos, faziam dela um todo incoerente e amorfo. O peculiar da vida brasileira parece ter sido, por essa época, uma acentuação singularmente enérgica do afetivo, do irracional, do passional, e uma estagnação ou antes uma atrofia correspondente das qualidades ordenadoras, disciplinadoras, racionalizadoras. Quer dizer, exatamente o contrário do que parece convir a uma população em vias de organizar-se politicamente. (HOLANDA, 1956, p. 67). Com efeito, pode-se assumir que a obra Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, é um importante elemento para o diagnóstico do autoritarismo e que está de acordo com os argumentos de Freyre, Da Matta e Chauí, de que a formação da nossa sociedade, fundamentada em privilégios, é um obstáculo para o desenvolvimento de uma democracia social, no Brasil. Nesse contexto, o máximo que podemos desenvolver, em termos de democracia, caso não trabalhados, resolvidos ou minimizados esses problemas de formação da estrutura social do país, é uma moribunda democracia liberal, no campo político, e uma mentirosa democracia racial, no campo social. 30 Gilberto Freyre publicou Casa Grande & Senzala, em 1933, e este talvez seja um dos livros mais polêmicos sobre a construção da identidade nacional. Freyre é acusado por muitos intelectuais contemporâneos de produzir uma versão racista da História que atenua as relações escravistas e o papel dos colonizadores.5 É fato que alguns desses elementos estão presentes na obra de Gilberto Freyre de 1933, no entanto, o que nos interessa, em seu texto, é procurar marcadores que demonstram como se firmaram as relações sociais, no Brasil, e qual o papel do autoritarismo na organização da sociedade brasileira e das próprias relações sociais. Nesse sentido, a contribuição de Freyre será para pensar a constituição dos privilégios de uma sociedade autoritária. No que tange ao aspecto mais polêmico de sua obra, ou seja, a admissão de uma democracia racial, a qual é apontada como cinismo por intelectuais contemporâneos, é por nós compreendida como o registro da mentalidade da classe dominante brasileira, desde a origem, que é em si autoritária, contudo, que busca docilizar essa postura, construindo um campo de relações sociais nebuloso, em que pesa mais a afetividade, o clientelismo, do que a racionalidade e a liberdade. Freyre é descendente direto dos colonizadores portugueses e, durante sua infância, passou temporadas no Engenho São Severino do Ramo, parte do patrimônio de sua família. Por isso, o olhar de Freyre nos interessa por representar, no contexto dos autores escolhidos, o olhar contrário, o que afirma a democracia racial e assume como positiva a maneira autoritária com que se amparou a estrutura da sociedade brasileira. Nesse sentido, a própria expressão “democracia racial” é um indicativo de que a classe dominante não reconhece o racismo como problema, desconsidera as relações brutais, violentas e autoritárias do processo colonial e negam as relações de dominação. A negação das relações de dominação, em Freyre, se faz pela afirmação insistente da naturalização das condições dos negros escravizados como um processo afetuoso. Como representante do pensamento dominante, das oligarquias nacionais, Freyre caracteriza o povo brasileiro como acolhedor, afetivo, receptivo ao estrangeiro, e que valoriza a intimidade. “Salientemos a doçura nas relações de senhores com escravos domésticos, talvez maior no Brasil do que em qualquer outra parte da América.” (FREYRE. 1933, p. 399). 5 A obra de Freyre, em especial seu clássico Casa Grande & Senzala, tem sido acusada de produzir uma versão racista ou, nas críticas mais leves, que atenua o racismo. Entre seus críticos, podemos destacar Abdias do Nascimento, Nilma Nilo Gomes e Kabenguele Munanga. 31 Em contraposição ao pensamento de Holanda, Freyre (1933) entende a família patriarcal como elemento importante na constituição da sociedade brasileira, como grande responsável pela organização das relações sociais, econômicas e políticas do Brasil: A casa-grande, completada pela senzala, representa todo um sistema econômico, social, político: de produção (a monocultura latifundiária); de trabalho (a escravidão); de transporte (o carro de boi, o bangüê, a rede, o cavalo); de religião (o catolicismo de família, com capelão subordinado ao pater familias, culto dos mortos, etc.); de higiene do corpo e da casa (o “tigre”, a touceira de bananeira, o banho de rio, o banho de gamela, o banho de assento, o lava-pés); [de política (o compadrismo). Foi ainda fortaleza, banco, cemitério, hospedaria, escola, santa Casa de misericórdia amparando os velhos e as viúvas, recolhendo órfãos... (FREYRE, 1933, p.19). Freyre (1933), ao contrário de Holanda, valoriza as características ibéricas e sua influência na formação do povo brasileiro. O autor vislumbra a colonização como fundamental para a organização da estrutura racial, política, econômica e social do Brasil, e, nesse caso, a base do desenvolvimento é localizada na formação da família patriarcal: A família; não o indivíduo, nem tão pouco o Estado, nem nenhuma companhia de comércio; é desde o século XVI, o grande fator colonizador no Brasil, a unidade produtiva, o capital que desbrava o solo, instala fazendas, compra escravos, bois, ferramentas, a força social que se desdobra em política, constituindo-se na aristocracia colonial mais poderosa da América. (FREYRE, 1933, p. 27). Freyre (1933) assume, portanto, a miscigenação do povo brasileiro como fator positivo e essencial na construção do caráter nacional. Talvez essa seja uma das marcas que torne sua obra uma das mais lidas e reproduzidas como interpretação do Brasil. O pensamento de Freyre (1933), que contamina o imaginário social sobre o Brasil, é ainda um contraponto ao pensamento de Holanda. Freyre (1933) vê na miscigenação um traço distintivo e positivo, o qual permitiria ao país estabelecer um modo próprio de relações sociais, no qual a “democracia racial” poderia representar, positivamente, a ideia de que o modelo Brasil seria o capaz de superar os danos da sociedade escravocrata com maior sucesso, diferentemente de modelos como o norte-americano. O problema da visão de Freyre (1933) é o mecanismo da negação dos conflitos e da manutenção dos privilégios. Como um representante da classe dominante, Freyre assume, em seu pensamento, o típico mecanismo de ignorar o conflito existente e transferi-lo para outra chave interpretativa; nesse caso, a miscigenação passa a ser positiva, pois é dela que se constituiu a democracia racial brasileira. “Todo brasileiro, mesmo o alvo de cabelo louro, traz na alma, quando não na alma e no corpo a sombra, ou pelo menos a pinta do negro.” (FREYRE, 1933, p. 303). Pode-se perceber que a ideia de Freyre (1933) é carregada de aspectos racistas, no entanto, disfarçados por um tom particularista, afetivo, supostamente humanizador. É importante notar que o pensamento de Freyre (1933) tem versões modernas, as quais ressoam no imaginário popular e 32 são indícios de que a mentira da democracia racial foi aceita por parte dos brasileiros. Um desses exemplos é a expressão utilizada nas relações cotidianas brasileiras, em que, na já sedimentada relação de poder, hierarquia e autoritarismo, entre brancos e pretos no Brasil, se manifesta quando um branco se refere ao negro, atenuando seu caráter supostamente inferior e acreditando ser um elogio dizer “Esse é um negro de alma branca”. Desse modo, a análise de Freyre (1993) representa o ponto de vista dos que possuem privilégios e que, pois, na organização da estrutura social brasileira, são ensinados desde pequenos a atenuar a percepção de seus privilégios, substituindo a racionalização das relações de trabalho, políticas e econômicas, por relações de cunho afetivo, de compadrio, de cooptação. Ora, o pensamento de Freyre (1933) possibilita verificar como a elite nacional, herdeira dos privilégios da colônia, construiu uma sociedade autoritária, que implantou leis, costumes, formas de organização social, sem qualquer tipo de participação social, ou seja, o processo em si foi e ainda é violento. A implantação e a sustentação de tal estrutura só foi possível, pois a sociedade brasileira se formou com base em um sistema patriarcal e escravocrata. Sob a perspectiva de Holanda (1956), esse é um processo lamentável, que cria obstáculos profundos para o exercício político da democracia, ou seja, para admissão dos conflitos e elaboração de saídas coletivas. No que diz respeito a Freyre (1933), esse processo de exportação de mentalidades, cultura e leis foi inevitável na forma como se deu a história do Brasil, com a chegada dos portugueses. As relações aqui estabelecidas na colonização estruturaram a sociedade patriarcal e escravocrata de tal modo que as leis são criadas, não para promover direitos sociais ou coletivos: antes de tudo, defendem os direitos privados, particulares, pessoais. Assim, estas são elaboradas de cima para baixo, sem a necessidade de consulta ou consenso social. Há presente, em Freyre (1933), outra faceta do autoritarismo, que este identifica como fator positivo, o qual concerne ao não cumprimento das leis de maneira justa, da não aplicabilidade do direito tal qual é, em que há uma variação da severidade da aplicação da legislação, de acordo com o “prestígio social” que o agente sujeito à aplicação possui: “[...] quando é que as leis de proibição, portuguesas e brasileiras, foram escritas para serem cumpridas à risca?” (FREYRE, 1933, p. 443).6 6 A afirmação de Freyre sobre a aplicabilidade das leis, no Brasil, como um modelo importado de Portugal, é atemporal, ao menos no que diz respeito ao nosso país. O modo de funcionamento da legislação e sua relação evidente com poderes políticos e jurídicos se tornou escancarada, após o processo de impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, e com o próprio desdobrar da operação Lava-Jato e toda a controvérsia jurídica que paira sobre ela. 33 O questionamento levantado por Freyre (1933) sobre a aplicabilidade da lei é mais uma faceta de como o autoritarismo se expressa, na organização da estrutura social brasileira, naquilo que reconhecemos como “jeitinho brasileiro”, ou seja, um modo de burlar a lei, de não se submeter ao acordo comum, de utilizar o prestígio social, o poder econômico, de forma autoritária, para fugir da penalidade acordada socialmente. Esse modo de agir expressa a formação de um caráter autoritário, no qual as vontades particulares se sobrepõem aos direitos coletivos, como regra do funcionamento social. Outro elemento de destaque que contribui para a argumentação que fazemos é evidenciado por Freyre (1933), quando o autor se refere ao mandonismo, relacionado ao sadismo e ao masoquismo, que compõe a estrutura psicológica da sociedade brasileira colonial e que não se modificou substancialmente, nos dias atuais. É possível perceber que Freyre (1933) não tensiona as relações, enquanto problemas a serem discutidos, pensados, problematizados; ao contrário, ele produz uma ideia de que mandonismo e autoritarismo são modos inevitáveis, se não os melhores, de organização para uma sociedade estruturada a partir da família patriarcal e na qual o privado se sobrepõe ao público: [...] a tradição conservadora no Brasil sempre se tem sustentado do sadismo do mando, disfarçado em ‘princípio de autoridade’ ou ‘defesa da ordem’. Entre estas duas místicas – a da ordem e a da liberdade, a da autoridade e a da democracia – é que se vem equilibrando entre nós a vida política, precocemente saída do regime de senhores e escravos. Na verdade, o equilíbrio continua a ser entre as realidades tradicionais e profundas; sádicas e masoquistas, senhores e escravos, doutores e analfabetos, indivíduos de cultura predominantemente europeia e outros de cultura principalmente africana e ameríndia. E não sem certas vantagens: as de uma dualidade não de todo prejudicial à nossa cultura em formação, enriquecida de um lado pela espontaneidade, pelo frescor de imaginação e emoção do grande número [...] talvez em parte alguma se esteja verificando com igual liberalidade o encontro e até fusão harmoniosa de tradições diversas [...] o regime brasileiro é em vários sentidos sociais um dos mais democráticos, flexíveis e plásticos. (FREYRE, 1933, p. 81-82). Nessa perspectiva, o autor opta por defender a ideia de uma mestiçagem positiva que se desenvolve em uma democracia, na qual as relações de mandonismo e autoritarismo são ponto de equilíbrio para as relações sociais. Assim, o autor naturaliza a relação de sadismo e masoquismo, de senhor e escravo, e sugere que essas relações é que produzem a espontaneidade, a imaginação e as afetividades. Nesse registro, as relações são harmoniosas, e o particularismo manifesto por intermédio do autoritarismo, como prática social mediadora das relações, se converte em uma forma de prazer, admitido como meio de funcionamento da estrutura social do país. Diante do exposto até este ponto, sobre o pensamento de Freyre e Holanda, é possível observar que ambos reconhecem a cordialidade do povo brasileiro, a sobreposição do particular 34 sobre o público, a constituição de uma sociedade patriarcal e escravocrata, sustentada por um regime de relações autoritárias. No entanto, Freyre (1933) compreende esse processo como inevitável, irreversível, originário do povo brasileiro. Por sua vez, Holanda (1956) enxerga que esses traços são impedimentos para o desenvolvimento de um país democrático. Portanto, Freyre (1933), ao escrever Casa Grande & Senzala, é um dos pensadores brasileiros que colabora na construção do mito do povo pacífico e ordeiro, da sociedade não violenta e, obviamente, da democracia racial. Pode-se sustentar que Freyre (1933) percebe, no brasileiro, o que poderíamos chamar de vocação em gostar de chefes carismáticos, líderes religiosos, ditadores, mandonismos. Por conseguinte, o mito da não violência, como identificado por Chauí (2016), e o mito da democracia racial são elementos que contribuem para a produção de uma falsa consciência nacional, a qual não admite os conflitos como legítimos e ajuda a esconder o autoritarismo implícito nessas ações, que também é negado como uma característica fundante de nosso país. Nesse sentido, é importante aproveitar a definição de mito, proposta por Chauí (2016), assim como a sua explicação da escolha do termo mito, ao invés de ideologia, que, em nosso caso, serve tanto para o mito da não violência quanto para o mito da democracia racial. A filósofa emprega o termo mito no sentido antropológico, no que se refere, pois, à “[...] solução imaginária para tensões, conflitos e contradições que não encontram caminhos para serem resolvidos no plano simbólico – e muito menos no plano real –” e, no sentido psicanalítico, o da repetição. Assim, de acordo com Chauí (2016), a palavra mito é de origem grega e indica [...] uma narrativa da origem reiterada em inúmeras narrativas derivadas que repetem a matriz da primeira narrativa a qual, porém, já é uma variante de outra narrativa cuja origem se perdeu. Em suma, o mito é a narrativa da origem sem que haja uma narrativa originária. Nesse sentido, tanto o mito da democracia racial quanto o mito da não violência podem ser reconhecidos como mitos fundadores, isto é, ambos foram implantados na mentalidade brasileira, através de ideias comuns reproduzidas socialmente, como a de que o Brasil é uma terra abençoada por Deus, o país de um futuro promissor, lugar de todas as raças e culturas, de um povo generoso e solidário com seus pares e acolhedor com os estrangeiros. Essa narrativa de origem, a qual permite que os dois mitos apresentados se consolidem, começa no século XVII, opera no século XVIII e se consolida nos séculos XIX e XX; tem a função de assegurar à sociedade brasileira sua identidade originária, ignorando as transformações históricas. Além disso, outra justificativa para o uso do conceito de mito é a definição antropológica de sua função, nas palavras de Chauí (2016): 35 [...] o mito opera com antinomias, tensões e contradições que não podem ser resolvidas sem uma profunda transformação da sociedade no seu todo e que por isso são transferidas para uma solução simbólica e imaginária que torna suportável e justificável a realidade. Em suma, o mito nega e justifica a realidade negada por ele. A forma de operação do mito, como explicado por Chauí (2016), corrobora os argumentos já aqui esboçados, ou seja, o mito da não violência é válido, quando constatamos que o autoritarismo estrutural se disfarça nessa negação da realidade violenta, assim como o mito da democracia racial, que disfarça e nega o racismo como um problema estrutural. Logo, ambos operam como apontado por Chauí (2016), isto é, negam (autoritarismo, racismo) e justificam a realidade negada, quer dizer, o mito tem, portanto, uma função imaginária de compensação, visto que as contradições não podem ser resolvidas efetivamente no plano da realidade e o são, de fato, no plano imaginário e simbólico, através do mito. Esse processo, no entanto, mantém as tensões, contradições e conflitos da sociedade. Outro aspecto realçado por Chauí (2016) se refere ao papel do mito em cristalizar as crenças: [...] o mito cristaliza-se em crenças que são interiorizadas num grau tal que não são percebidas como crenças e sim tidas não só como uma explicação da realidade, mas como a própria realidade. Em suma, o mito substitui a realidade pela crença na realidade narrada por ele e torna invisível a realidade existente [...] Dessa maneira, podemos pensar o mito da democracia racial como uma dessas crenças interiorizadas e que são chave de explicação para a realidade, em que há uma subversão da realidade em mito, na qual os brasileiros não admitem ser racistas e recusam esse fenômeno como parte integrante de seus problemas sociais e de sua própria identidade. Ou seja, o racismo é um problema social estruturante que é negado pelo brasileiro como tal. Em reportagem publicada no portal eletrônico do jornal El País no Brasil, temos notícia que colabora para reforçar a tese de que a democracia racial é um mito, isto é, cria uma solução simbólica para os problemas reais não admitidos: Aqui, o racista é sempre o outro. Pesquisas apontam que 97% dos entrevistados afirmam não ter qualquer preconceito de cor, ao mesmo tempo em que admitem conhecer, na mesma proporção, alguém próximo (parente, namorado, amigo, colega de trabalho) que demonstra atitudes discriminatórias. É o chamado “racismo à brasileira” – fruto dileto da cínica e equívoca “democracia racial”, conceito que vem justificando, ao longo da história, a manutenção de um dissimulado apartheid, que segrega a população não branca à base da pirâmide social. (RUFATTO, 2014). De acordo com Chauí (2016), o mito, por conseguinte, [...] resulta de ações sociais e produz como resultado outras ações sociais que o confirmam, isto é, um mito produz valores, ideias, comportamentos e práticas que o 36 reiteram na e pela ação dos membros da sociedade. Em suma, o mito não é um simples pensamento, mas formas de ação. Essa característica do mito enquanto uma forma de ação é o que enseja que episódios de autoritarismo, racismo e machismo se manifestem como tipos de comportamentos comuns, presentes em nosso cotidiano, sem que nos causem estranheza, mas, também, sem que nos provoquem a refletir sobre a “suposta” naturalidade das relações estabelecidas. Realizada a definição de mito e de suas características que nos interessam, em busca da raiz autoritária do Brasil, podemos aprofundar a investigação por meio da pergunta colocada por Chauí (2016): Muitos indagarão como o mito da não violência brasileira pode persistir sob o impacto da violência real, cotidiana, conhecida de todos e que, nos últimos tempos, é também ampliada por sua divulgação e difusão pelos meios de comunicação de massa? Podemos fazer a mesma pergunta de Chauí, no que concerne ao racismo, o qual é percebido como atitude cotidiana e estruturante, mas que, no entanto, não é admitido e é negado pelo mito da democracia racial. A resposta de Chauí (2016) para a questão é de que o fato de ser um mito é exatamente o que leva a não violência e a democracia racial a serem mantidas, a despeito da realidade. O mito da não-violência permanece porque graças a ele admite-se a existência de fato da violência e pode-se, ao mesmo tempo, fabricar explicações para denegá-la no instante mesmo em que é admitida. Nesse caso, podemos assumir que o mito da não violência e da democracia racial são modos de interpretação da realidade brasileira e que, nas palavras da autora, “[...] é justamente no modo de interpretação da violência que o mito encontra meios para conservar-se.” Outro questionamento fundamental sublinhado por Chauí (2016) é: como explicar que a exibição contínua pelos meios de comunicação de massa da violência no país possa deixar intocado o mito da não-violência e ainda suscitar o clamor pelo retorno à ética?” Em outros termos, como a violência e o racismo podem ser negados, ao mesmo tempo em que são exibidos em imagens, vídeos, fotografias, diariamente, pelos meios de comunicação? Há uma produção de várias imagens da violência e do racismo que ocultam tais fenômenos em sua manifestação objetiva, na realidade social. O ocultamento é um fator determinante, pois ocorre no próprio instante em que os meios de comunicação de massa expõem e exibem atos de violência ou racismo. Caso voltemos nossa atenção ao vocabulário empregado pelos meios de 37 comunicação, observaremos que os vocábulos se distribuem sempre de maneira sistemática. O argumento de Marilena Chauí (2016) ajuda a pensar a questão. Logo, de acordo com a filósofa, os vocábulos dos meios de comunicação em massa no Brasil operam de forma sistemática, reforçando o imaginário do mito fundador da não violência e da democracia racial. Um dos exemplos escolhidos pela autora é referente ao uso dos vocábulos chacina e massacre. “A ação policial pode ser, às vezes, considerada violenta, recebendo o nome de “chacina” ou “massacre” quando, de uma só vez e sem motivo, o número de assassinados é muito elevado.” Com efeito, chacina e massacre são vocábulos utilizados pelos meios de comunicação em massa, os quais visam a naturalizar ou tratar como acidental o assassinato de crianças, encarcerados, favelados, indígenas, sem-terra, jovens negros, mulheres pobres. É importante acrescentar à definição de Chauí a perspectiva de classes que se apresenta, nesse caso. A caracterização do lugar de crime é também uma caracterização do lugar de classe. A análise de Souza (2012) nos permite aprofundar a questão: Quando se fala do “brasileiro” em geral, do “jovem”, da “mulher”, do “caráter nacional”, do “jeitinho brasileiro” etc., é para se dar a impressão de que o “brasileiro”, o “jovem”, ou a “mulher” da classe média, por exemplo, teria algo a ver, ainda que remotamente, com o brasileiro das classes baixas. Quando os grandes jornais conservadores do Brasil falam que o “jovem” brasileiro entre 14 e 25 anos costuma morrer de arma de fogo, eles, na verdade, escondem e distorcem o principal: que 99% desses jovens são de uma única classe, a “ralé” de excluídos brasileiros. Quando se fala que a “mulher brasileira” está ocupando espaços importantes e valorizados no mercado de trabalho, o que se “esquece” de dizer é que 99% dessas mulheres são das classes média e alta. (SOUZA, 2012, p. 22). As imagens destacadas têm a função de oferecer uma visão unificada da violência como se fosse uma espécie de núcleo da violência. Assim, sob o ponto de vista de Chauí, chacina, massacre, vandalismo e outros vocábulos empregados pelos meios de comunicação pretendem circunscrever o local onde a violência acontece, ou seja, há lugares específicos, núcleos em que se dá a violência. De seu lado, a análise de Souza (2012) completa o quadro, demonstrando como se constrói uma interpretação incompleta e mal-intencionada sob os núcleos de violência, a qual propõe de forma indireta que a violência tem classe social: a que pratica e a que é vítima. Nesse caso, os praticantes do crime seriam os pobres e, por sua vez, as vítimas, a classe média. Em uma democracia frágil, como a brasileira, o Estado e as instituições sociais são isentos da produção da violência e considerados impotentes para combater os problemas reais, como racismo e a violência. Dessa forma, a violência é localizada num outro lugar que não seja nas próprias instituições sociais e políticas. Assim, o conjunto dessas imagens propõe uma divisão em 38 dois grupos: de um lado, os grupos portadores de violência e, do outro, os grupos impotentes para combatê-las. Nesse sentido, não há problemas em abordar a violência ou exibi-la, como fazem os meios de comunicação, visto que esse conjunto de imagens nos faculta reconhecer o lugar da violência e, portanto, a não nos identificar com ele. Por conseguinte, essas imagens, ajudam a operar o mito da não violência e o mito da democracia racial, de acordo com Chauí (2016), por intermédio de um conjunto de mecanismos ideológicos, os quais afirmam e negam a presença do racismo e da violência, em nossa sociedade. A autora demonstra, em sua conferência, cinco mecanismos ideológicos que contribuem para a afirmação do mito da não violência: a exclusão, a distinção, o jurídico, o sociológico e, por fim, o da inversão real. O primeiro mecanismo, segundo Chauí (2016), é o da exclusão: [...] afirma-se que a nação brasileira é não violenta e que, se houver violência, esta é praticada por gente que não faz parte da nação (mesmo que tenha nascido e viva no Brasil). O mecanismo da exclusão produz a diferença entre um nós-brasileiros-nãoviolentos e um eles-não-brasileiros-violentos. “Eles” não fazem parte dos “nós” e estão excluídos da “boa” gente brasileira, ordeira, pacífica, não racista. O segundo mecanismo evidenciado pela autora é extremamente interessante, pois reforça a característica de particularismo que é estruturante, nas relações sociais, políticas, econômicas e sociais, ou seja, a distinção: [...] distingue-se o essencial e o acidental, isto é, por essência, os brasileiros não são violentos e, portanto, a violência é acidental, um acontecimento efêmero, passageiro, uma “epidemia” ou um “surto” localizado na superfície de um tempo e de um espaço definidos, superável e que deixa intacta nossa essência não-violenta. Quer dizer, quando se opera o mecanismo da distinção, os problemas sociais, tais como a violência e o racismo, são compreendidos enquanto acidentais, isto é, episódios passageiros, ignorando-se seu caráter estruturante. Logo, esses fenômenos seriam limitados, se esvaindo com o tempo. E o que leva esses fenômenos a serem compreendidos e aceitos como acidentais é a afirmação da essência não violenta e não racista da sociedade brasileira. Nesse sentido, a violência e o racismo são tidos como episódios históricos esporádicos, os quais deixam intacta nossa essência sublinhada pelos mitos da não violência e da democracia racial. O terceiro mecanismo apresentado por Chauí (2016) é o jurídico, que a autora define assim: O terceiro mecanismo é jurídico: a violência fica circunscrita ao campo da delinquência e da criminalidade, o crime sendo definido como ataque à propriedade privada (furto, roubo e latrocínio, isto é, roubo seguido de assassinato). Esse mecanismo permite, por um lado, determinar quem são os “agentes violentos” (de modo geral, os pobres) e legitimar a ação (esta sim, violenta) da polícia contra a população pobre, os negros, as crianças de rua e os favelados. 39 Esse argumento combina-se ao já realçado sobre a forma como os veículos de comunicação em massa utilizam vocábulos de maneira sistemática7, operando na construção de um imaginário de acordo com o qual se cria a relação dos “nós” contra “eles” e, no caso do Brasil, tem um adicional em relação à questão étnica, como se pode constatar nos dados disponibilizados pelo portal Terra, em 13 de maio de 2014, para quem, no Brasil, segundo dados do IBGE, “[...] morrem 153% mais negros do que brancos por homicídios.” (HOMICÍDIOS..., 2014). A mesma reportagem se preocupa em esboçar um quadro, também com dados estatísticos que colocam como mito o argumento de que o fato de os negros serem a maior parte da população pobre é o que explica serem maiores os números de assassinatos contra essa população, visto que, de acordo com a reportagem, “[...] apenas 20% dos homicídios são explicados por questões socioeconômicas.” (HOMICÍDIOS..., 2014). Dessa feita, fica claro que o imaginário popular sustenta, como já apontado, através dessas imagens, a circunscrição do lugar da violência e, nesse caso, ela está localizada nas periferias, nas favelas, nos cortiços, nas edições modernas da senzala, que, conforme bem se sabe, no Brasil é lugar de preto, de maioria preta e, portanto, os brancos que ali se encontram estão lá por acidente. Assim, sem-terra, indígenas, negros, favelados, ou seja, “eles” são os portadores da violência e, obviamente, nesse registro, a violência se reduz à criminalidade. O quarto mecanismo focalizado por Chauí (2016) é o que ela denomina mecanismo sociológico: O quarto mecanismo é sociológico: atribui-se a “epidemia” de violência a um momento definido do tempo, aquele no qual se realiza a “transição para a modernidade” das populações que migraram do campo para a cidade e das regiões mais pobres (norte e nordeste) para as mais ricas (sul e sudeste). A migração causaria o fenômeno temporário da anomia, no qual a perda das formas antigas de sociabilidade ainda não fora substituída por novas, fazendo com que os migrantes pobres tendam a praticar atos isolados de violência que desaparecerão quando estiver completada a “transição”. Aqui, não só a violência é atribuída aos pobres e desadaptados, como ainda é consagrada como algo temporário ou episódico. O mecanismo sociológico, tal como proposto por Chauí (2016, corrobora a tese apresentada na notícia anterior, em que se atribui a conduta violenta ao pobre e negro, circunscrevendo o local 7 Mais à frente, essa questão será exposta de modo mais objetivo, ao se analisar como os meios de comunicação em massa do Brasil empregaram o vocábulo “vândalos” para categorizar os manifestantes dos primeiros protestos de junho de 2013. 40 e o sujeito do crime; todavia, o que se percebe, ao se consultar os dados, é que o acusado de ser portador da violência é o maior alvo dela. Por fim, o último mecanismo ressaltado por Chauí (2016) é o da inversão da realidade, o qual, segundo a autora, é o responsável por reproduzir “[...] máscaras que permitem dissimular comportamentos, ideias e valores violentos como se fossem não-violentos.” Esse processo faz com que a violência não seja percebida onde é produzida, ou seja, na própria estrutura da sociedade brasileira: [...]a sociedade não percebe que as próprias explicações oferecidas são violentas porque está cega ao lugar efetivo de produção da violência, isto é, a estrutura da sociedade brasileira. Dessa maneira, as desigualdades econômicas, sociais e culturais, as exclusões