unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP LARISSA MARIA DO NASCIMENTO De Programa a Auxílio: os significados políticos da substituição do Bolsa Família pelo Auxílio Brasil na gestão de Jair Bolsonaro ARARAQUARA – S.P. 2024 LARISSA MARIA DO NASCIMENTO De Programa a Auxílio: os significados políticos da substituição do Bolsa Família pelo Auxílio Brasil na gestão de Jair Bolsonaro Dissertação de Mestrado apresentada ao Conselho do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais. Linha de pesquisa: Estado, Instituições e Políticas Públicas. Orientador: Profa. Dra. Carla Gandini Giani Martelli ARARAQUARA – S.P. 2024 IMPACTO POTENCIAL DESTA PESQUISA Promover na literatura a ampliação e o aprofundamento das análises sobre as orientações ideológicas que norteiam a adoção de uma determinada política pública e evidenciar o desdobramento das escolhas feitas durante o processo decisório. Identificar as lacunas encontradas na execução das políticas de transferência de renda no Brasil e indicar os caminhos para correção destas, e garantir mais efetividade no uso dos recursos públicos e maior impacto na redução das desigualdades sociais. POTENTIAL IMPACT OF THIS RESEARCH Promote in the literature the expansion and deepening of analyzes on the ideological orientations that guide the adoption of a given public policy and highlight the unfolding of the choices made during the decision-making process. Identify the gaps found in the implementation of income transfer policies in Brazil and indicate ways to correct them, and ensure more effective use of public resources and greater impact on reducing social inequalities. LARISSA MARIA DO NASCIMENTO De Programa a Auxílio: os significados políticos da substituição do Bolsa Família pelo Auxílio Brasil na gestão de Jair Bolsonaro Dissertação de Mestrado apresentada ao Conselho do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais. Linha de pesquisa: Estado, Instituições e Políticas Públicas. Orientador: Profa. Dra. Carla Gandini Giani Martelli Dissertação apresentada à Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara, para obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais. Data da Defesa: 21/03/2024 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientador: Carla Gandini Giani Martelli, Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Membro Titular: Luciléia Aparecida Colombo, Doutora em Ciência Política pela Universidade Federal de São Carlos. Membro Titular: Alessandra Santos Nascimento, Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – CAMPUS DE ARARAQUARA Dedico este trabalho a todos os estudantes de baixa renda que alcançaram o ensino superior e puderam subverter os cursos de seu destino por meio da educação. Também dedico aos meus avós, Antônio e Dalva e aos meus pais, Andréa e Aparecido, pelos quais tenho profunda gratidão e sem os quais não teria as bases sólidas que me permitiram trilhar esta jornada. AGRADECIMENTOS A Deus, que guiou meus passos me dando coragem e sabedoria. Aos meus pais, pelo cuidado, amor, dedicação e apoio incondicional, para quem devo e dedico todas as minhas lutas e conquistas. À minha orientadora, professora Carla Martelli, que com muita calma e sabedoria me encorajou e impulsionou meu crescimento durante a pesquisa. À minha irmã Isabela, primeira a conquistar o título de Mestra na família, com a qual compartilho toda minha história, vivências e conquistas. Ao meu companheiro Cauan com quem divido a vida, meu grande incentivador, que por inúmeras vezes cuidou de tudo para que eu me dedicasse à pesquisa. Aos meus avós, Antônio e Dalva e a todos os meus familiares. À minha Kaya, que me proporcionou conforto e afeto nos momentos de ansiedade. Aos meus amigos e amigas, que tornaram o percurso mais leve. A todos os meus professores da graduação e da pós, essenciais para meu crescimento nesta jornada. À Faculdade de Ciências e Letras da UNESP Araraquara, que foi um divisor de águas na minha vida, onde criei vínculos, realizei sonhos e por meio da qual pude alterar os cursos do meu destino. Por fim, à educação pública. Devo essa conquista a esse sistema que durante toda a minha vida me moldou humana e profissionalmente. “Se uma ética amorosa influenciasse todas as políticas públicas nas metrópoles e nas cidades, os indivíduos convergiriam e planejariam programas voltados ao bem de todos.” Bell Hooks (2021) RESUMO A presente dissertação de Mestrado tem como objetivo central a análise dos significados políticos que envolveram as ações tomadas pela gestão de Jair Bolsonaro na substituição do Programa Bolsa Família pelo Auxílio Brasil. A análise qualitativa inicialmente retoma a literatura que trata do fortalecimento da proteção social no Brasil e da estruturação do Programa Bolsa Família, destacando seus objetivos originais e resultados alcançados. Em seguida, contextualiza a ascensão de um novo projeto político no país após eventos como as jornadas de junho de 2013 e a crise do governo Dilma Rousseff, que culminou no estabelecimento de um projeto mais radical de neoliberalismo e no subfinanciamento das políticas sociais, projeto iniciado com Michel Temer e intensificado no governo Jair Bolsonaro. A análise política se concentra na gestão dos programas de transferência de renda por este último, com destaque para as ações que foram tomadas durante a formulação e a implementação do Auxílio Emergencial e Auxílio Brasil. A partir deste percurso, foi possível observar que a transição do Programa ficou marcada pela centralização das decisões no governo federal, pela falta de participação dos conselhos e da sociedade civil e por interesses político-eleitorais em torno de sua distribuição. Houve um distanciamento do sentido original do programa com a inserção de dispositivos de estímulo ao esforço individual sob uma lógica meritocrática que responsabiliza os indivíduos pela pobreza, modificando significativamente o conteúdo social e os resultados que se buscavam atingir a partir dele. Embora tenha contribuído para conter a desigualdade econômica, não resolveu problemas originários do programa e representou um retrocesso para o desenvolvimento social do país ao descontinuar a trajetória positiva do Bolsa Família. Palavras – chave: Programa Bolsa Família; Auxílio Brasil; proteção social; transferência de renda. ABSTRACT This Masters dissertation has as its central objective the analysis of the political meanings that involved the actions taken by Jair Bolsonaro's administration in replacing the Bolsa Família Program with Auxílio Brasil. The qualitative analysis initially revisits the literature that deals with strengthening social protection in Brazil and the structuring of the Bolsa Família Program, highlighting its original objectives and achieved results. It then contextualizes the rise of a new political project in the country after events such as the June 2013 days and the crisis of the Dilma Rousseff government, which culminated in the establishment of a more radical project of neoliberalism and the underfunding of social policies, a project initiated with Michel Temer and intensified under the Jair Bolsonaro government. The political analysis focuses on the management of income transfer programs by the latter, with emphasis on the actions that were taken during the formulation and implementation of Auxilio Emergencial and Auxílio Brasil. From this path, it was possible to observe that the Program's transition was marked by the centralization of decisions in the federal government, the lack of participation of councils and civil society and political-electoral interests surrounding its distribution. There was a departure from the original meaning of the program with the insertion of devices to encourage individual effort under a meritocratic logic that holds individuals responsible for poverty, significantly modifying the social content and the results that were sought to be achieved from it. Although it contributed to containing economic inequality, it did not solve problems originating from the program and represented a setback for the country's social development by discontinuing the positive trajectory of Bolsa Família. Keywords: Bolsa Família; Auxílio Brasil; social protection; income transfer. LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS AE Auxílio Emergencial BPC Benefício de Prestação Continuada CIT Comissão Intergestores Tripartite CNAS Conselho Nacional de Assistência Social EBES Estado de bem-estar social LOAS Lei Orgânica da Assistência Social PAB Programa Auxílio Brasil PBF Programa Bolsa Família PSR Previdência Social Rural SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 13 2 O PROCESSO DE FORTALECIMENTO DA PROTEÇÃO SOCIAL NO BRASIL 19 2.1 A consolidação do sistema de proteção social a partir da Constituição Federal de 1988 22 2.2 O Programa Bolsa Família enquanto estratégia de inclusão social 26 3 RADICALIZAÇÃO DO PROJETO NEOLIBERAL NO BRASIL DO SÉCULO XXI33 3.1 Junho de 2013, crise política e mudanças paradigmáticas - de Temer à Bolsonaro 33 3.2 O encolhimento das políticas de proteção social sob a gestão ultraliberal 39 4 AUXÍLIO EMERGENCIAL E AUXÍLIO BRASIL: FORMULAÇÃO E IMPLEMENTAÇÃO 44 4.1 A política de Auxílio Emergencial em meio à pandemia de Covid-19 45 4.2 Compreendendo o Auxílio Brasil: estrutura jurídico-institucional 49 5 DE PROGRAMA A AUXÍLIO: OS SIGNIFICADOS POLÍTICOS DA SUBSTITUIÇÃO DO PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA 54 5.1 “Dos Incentivos ao Esforço Individual e à Emancipação Produtiva”: A inserção simbólica da lógica neoliberal na transferência de renda 59 5.2 De Programa Bolsa Família a Auxilio Brasil - transição da política e descontinuidades 66 5.3 O governo de transição e a retomada do Programa Bolsa Família no ano de 2023 71 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS 76 REFERÊNCIAS 78 13 1 INTRODUÇÃO Segundo a teoria Foucaultiana, a história não segue uma ordem temporal nem realiza um movimento linear em seu desenvolvimento. O que ocorre, na verdade, são acontecimentos que, em sequência e no seu decorrer, compõem as formações discursivas. As formações discursivas são as regularidades consolidadas que enunciam algo de uma determinada época, ou seja, são caracterizadas enquanto um sistema semelhante de números de enunciados, de conceitos e de escolhas temáticas. Com isso, as práticas discursivas estão relacionadas a dispositivos de poder que estão interligados por meio das formações discursivas (Foucault, 2008). Ainda de acordo com Foucault, há uma disputa de hegemonia entre os discursos e, aqueles que se evidenciam, o fazem por possuírem dispositivos de poder na sociedade. Para que haja um discurso hegemônico em uma sociedade, pressupõe-se que o discurso que o contesta esteja enfraquecido: Seria preciso caracterizar e individualizar a coexistência desses enunciados dispersos e heterogêneos; o sistema que rege sua repartição, como se apoiam uns nos outros, a maneira pela qual se supõem ou se excluem, a transformação que sofrem, o jogo de seu revezamento, de sua posição e de sua substituição (Foucault, 2008, p. 39) O discurso, nessa perspectiva, é entendido enquanto um fenômeno social, podendo estar ligado tanto à fala, quanto à escrita, aos documentos e também às imagens. Nos estudos do discurso de Foucault, o discurso é um conjunto de enunciados que se apoiam na mesma formação discursiva e tratar deste conjunto, é tratar de um fragmento da história que se movimenta de forma contínua e descontínua. Partindo da perspectiva de que as formações discursivas são hegemonias ideológicas, o presente trabalho busca compreender como as alternâncias entre os discursos hegemônicos alteram a relação Estado-sociedade e os significados de determinadas políticas. O objetivo desta Dissertação é trazer à luz a dinâmica das ações políticas que envolveram a substituição do Programa Bolsa Família, criado em 2003, pelo chamado Auxílio Brasil, no ano de 2021, pela gestão de Jair Bolsonaro. Durante o período que vai dos anos 1930 até 1988, o sistema de Proteção Social brasileiro voltava-se somente aos trabalhadores vinculados ao regime de emprego formal. É somente a partir da Promulgação da Constituição Federal de 1988 que a agenda social assume centralidade na direção da universalização dos direitos sociais (Kerstenetsky, 2011). 14 Elaborada em contexto de transição democrática, a CF/88 teve como um de seus principais objetivos a tentativa de ampliação do Estado de Bem-estar Social no país, representando de maneira concisa a fixação normativa da universalização dos direitos políticos e sociais, ou seja, buscando estender os direitos sociais a todos, reconhecendo a responsabilidade pública sobre a garantia do bem-estar social (Kerstenetsky, 2011). O Estado de bem-estar social (EBES) é compreendido aqui segundo a teoria de Esping- Andersen (1990), que aponta para a existência de três diferentes modelos de EBES: o modelo social-democrático, o modelo conservador e o modelo liberal. Andersen define o primeiro, social-democrático, como um modelo de abordagem universalista, onde todos os cidadãos possuem igual acesso aos benefícios sociais, independentemente de sua posição social ou no mercado de trabalho. Nesse modelo, há enfoque na redistribuição e na igualdade. Já o modelo conservador, é marcado pela combinação entre mercado e Estado, de modo que a segmentação entre os grupos sociais é mantida e os benefícios sociais são destinados para os contribuintes, ou seja, aqueles inseridos no mercado de trabalho. Enquanto o último, chamado de modelo liberal, é um modelo de abordagem seletiva e focalizada, enfatizando a necessidade de se inserir no mercado de trabalho para acessar os serviços essenciais no mercado, prevalecendo a ideia de que os benefícios sociais devem ser apenas uma complementação residual (Andersen, 1990). Em suma, o teórico afirma que existem diferentes modelos de Estado de bem-estar social e eles refletem as condições políticas, culturais e econômicas específicas de cada nação. Neste trabalho, veremos como no Brasil esses modelos se misturam e variam conforme variam os projetos políticos daqueles que assumem o poder, impactando toda a estrutura das políticas sociais. A nova organização das políticas sociais possibilitada pela CF/88, modificou também a compreensão acerca dos direitos sociais, que passaram a ser destinados não só àqueles que estavam inseridos no mercado de trabalho formal (insiders), como também para os chamados outsiders (indivíduos excluídos dos benefícios sociais, por não possuírem vínculo trabalhista), de modo que substituiu o modelo conservador de políticas sociais vigentes até então (Arretche, 2018). Durante a década de 1990, devido ao ajuste neoliberal realizado em alguns países da América Latina, por influência/imposição de grandes potências e de instituições econômicas como Banco Mundial e FMI, verificou-se no Brasil a presença de “[...] duas forças antagônicas disputando a hegemonia de suas respectivas propostas de modelo de intervenção estatal na área social” (Cohn, 2010, p. 221). Sendo uma aquela que estava voltada ao modelo de seguridade social ligado ao Estado de bem-estar social, e outra voltada à racionalidade 15 neoliberal, que previa a defesa do Estado mínimo e programas sociais (de cunho clientelista e assistencialista) focalizados de maneira residual para os segmentos mais pobres da população (Cohn, 2010). Foi em meio a este contexto que começam a se estruturar no país os Programas de transferência de renda, objeto de estudo desta Dissertação. A instituição da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), forneceu as bases para a criação do Benefício de Prestação Continuada (BPC), destinado à pessoas idosas e pessoas com deficiência em situação de vulnerabilidade. Sob o governo de Fernando Henrique Cardoso foram criados os programas Bolsa Escola, Bolsa Alimentação e Auxílio Gás. Ainda que tenham sido implementados em meio a um momento de ajuste neoliberal, dentro da concepção de que os gastos sociais eram antagônicos aos investimentos econômicos, este período marcou a expansão da cobertura dos serviços sociais básicos para a população de baixa renda (Cohn, 2010). No ano de 2003, com o início do mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010), a questão social ganhou destaque diante das novas políticas econômicas e sociais que estavam sendo implementadas. Durante este período houve avanços mais significativos na institucionalização dos direitos sociais garantidos pela CF/88. Como resultado da reestruturação de programas já existentes, ainda no primeiro ano de governo, foi anunciado o Programa Bolsa Família, cuja elaboração e conteúdo foram discutidos por especialistas. O fato de ter nascido como parte de uma estratégia mais ampla e integrada de inclusão social e de desenvolvimento econômico, fez com que o Programa fosse inédito em seu desenho enquanto uma política pública nacional voltada ao enfrentamento da pobreza e à garantia de direitos sociais (Campello, 2013). Os estudos de avaliação do programa demonstraram que seus impactos foram positivos principalmente no que diz respeito à inclusão social dos beneficiários, que tiveram mais acesso a serviços essenciais, como os de saúde e educação. Além disso, ele estimulou a economia ao impulsionar o consumo interno, sobretudo o consumo de produtos populares, rompendo com a lógica de antagonismo existente entre programas sociais e políticas econômicas (Cohn, 2010). Os avanços na estruturação do Sistema de Proteção Social brasileiro, os Programas de transferência de renda e a adoção de outras políticas que deram centralidade à questão social, como por exemplo, a valorização real do salário mínimo, a ampliação do emprego formal e os diversos investimentos em políticas sociais, foram capazes de impactar nos índices de pobreza no Brasil, de modo que, a desigualdade de renda, medida pelo coeficiente de Gini, diminuiu de maneira inédita no país, de 2001 até 2012, como apontaram os dados da PNAD 2014 16 (IpeaData, 2016). Essas estratégias operaram conjuntamente dentro de um contexto ideológico no Brasil em que a formação discursiva em evidência esteve ligada a uma nova lógica de organização das políticas sociais. Imperou, neste sentido, a tentativa de aproximação do modelo brasileiro de bem-estar social com o modelo social-democrático. Após o ano de 2016, com a crise política e econômica que culminou em uma ruptura do ciclo democrático iniciado com a CF/88, foi aberto espaço para “[...] mudanças paradigmáticas, com o estabelecimento de novas convenções de cunho ultraliberal” (Neto, Vieira, 2022, p. 9). O neoliberalismo econômico acentua a supremacia do mercado como mecanismo de alocação de recursos, distribuição de bens, serviços e rendas, remunerador dos empenhos e engenhos inclusive. Nesse imaginário, o mercado é matriz da riqueza, da eficiência e da justiça. (Moraes, 2002, p. 15) A partir do processo de impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff, em que o cargo da presidência passou a ser ocupado pelo seu vice Michel Temer, o cenário político- econômico brasileiro foi modificado. Ao assumir a Presidência da República, Michel Temer implementou uma agenda que demonstrou distanciar-se da agenda da chapa pela qual ele havia sido eleito com Dilma Rousseff. Uma das principais mudanças constitucionais que colaborou para a consolidação do projeto neoliberal na política brasileira no período, foi a Emenda Constitucional 95/2016, conhecida também como “PEC do Teto de Gastos”. O principal objetivo do novo governo era o de acabar com o excesso de gastos no orçamento, pois essa seria a solução ideal para a crise econômica. Com a EC/95, a rede de proteção do país sofreu golpes contundentes. O congelamento dos recursos para o financiamento da área social de 2016 a 2018 representou a institucionalização do processo de subfinanciamento das políticas sociais no país. Nesse período, houve a restrição de recursos e o enxugamento de programas do SUS, bem como o início da privatização da gestão de diversos serviços sociais (Cohn, 2020). Tal processo se adensou a partir do ano de 2019, com o início do mandato de Jair Bolsonaro, em que iniciou-se também um processo de esvaziamento do arcabouço social da rede de proteção brasileira (Cohn, 2020, p. 154). O governo de Jair Bolsonaro, caracterizado por sua dinâmica autoritária e populista, representou no Brasil a reprodução do chamado populismo de extrema direita, cuja expressão advém da crise da democracia liberal, tal qual é entendida por diversos cientistas políticos, que vão afirmar sua relação direta com os efeitos perversos da globalização neoliberal (Mouffe, 2019; Brown, 2019; Mounk, 2019). Sob a gestão de Jair Bolsonaro, a estrutura da assistência social foi corroída por dentro. Houve redução da participação social por meio do enfraquecimento de importantes setores e 17 Conselhos, cortes nos recursos destinados às políticas públicas de cunho social e a retomada de um modelo de regime federativo mais conflitivo e tensionado entre os entes, o que afetou de diversas formas a estrutura da proteção social que vinha se consolidando no Brasil. Neste contexto, os programas de transferência de renda adquiriram um novo significado. No ano de 2021 o governo federal propôs a substituição do Programa Bolsa Família, que levou à criação do Auxílio Brasil, sob a justificativa de superar os problemas existentes no Programa anterior. Tendo em vista os fatores e acontecimentos supracitados, o presente estudo busca analisar os significados políticos dessa transição, retomando a trajetória do Programa Bolsa Família e o conteúdo social originário do programa, até chegar na sua substituição pelo Programa Auxílio Brasil, olhando para as mudanças paradigmáticas que dotaram o Programa de um novo sentido na gestão Bolsonaro. A análise, feita por meio de uma leitura mais ampla desse processo, pretende demonstrar qual o sentido da transferência de renda quando implementada sob a lógica neoliberal. Tem-se como perguntas iniciais e norteadoras do estudo: Como um governo declaradamente neoliberal trabalhou as questões da distribuição de renda? Desta pergunta, encaminham-se duas outras: Como ele se apropriou de uma política pública de transferência de renda, o Auxilio Brasil, defendendo-a em seu discurso? Será possível afirmar que o governo Bolsonaro utilizou-se, estrategicamente, do Bolsa Família - que mostrava bons resultados e muitos votos -, transformando-o, desde o nome, em algo que lhe rendesse vantagens eleitorais? A importância de retomar alguns elementos da trajetória do Programa Bolsa Família, reside no fato de que o Auxílio Brasil surge a partir da proposta da substituição deste, mantendo alguns de seus aspectos estruturantes, embora com diferenças substanciais que demarcam a importância do desenvolvimento deste estudo. O texto está dividido em quatro seções que seguem uma ordem cronológica de acontecimentos, sendo a seção I fruto de uma revisão bibliográfica acerca do processo de fortalecimento da proteção social no Brasil, mais especificamente, a partir da CF/88, da criação dos programas de transferência de renda e da estruturação do Programa Bolsa Família, considerando os elementos político-ideológicos que permitiram sua notoriedade enquanto um Programa de emancipação social e não somente de alívio imediato da pobreza. A seção II apresenta o cenário crítico que acabou por engessar o orçamento social no país ao institucionalizar o subfinanciamento das políticas sociais e possibilitar o avanço do projeto neoliberal no país. Já a seção III analisa os aspectos jurídico-institucionais das políticas Auxílio Emergencial e Auxílio Brasil, considerando os interesses e atores envolvidos, bem como o jogo político e as regras de cada uma delas, enquanto a última seção faz uma análise 18 dos significados da substituição do Programa Bolsa Família pelo Auxílio Brasil, com base, principalmente, na formação discursiva em evidência no país de 2019 a 2022. Para garantir a validade do estudo, foram seguidos os procedimentos metodológicos da análise qualitativa, uma vez que na pesquisa qualitativa prefere-se “[...] estudar relações complexas ao invés de explicá-las por meio do isolamento de variáveis” (Hartmut, 2006, p. 202). O trabalho debruça-se sobre uma revisão de literatura que trata das políticas de transferência de renda, da estruturação e desconstrução de programas sociais e políticas públicas, do chamado ultraliberalismo e suas implicações para o desenvolvimento social, além de outros trabalhos já publicados sobre o Auxílio Emergencial e o Auxílio Brasil. A grande maioria dos dados mobilizados no estudo são dados secundários, aqueles já coletados e organizados anteriormente por outros estudiosos. Foram consultados livros, artigos científicos, notícias jornalísticas, site oficial do governo federal e pesquisas socioeconômicas com dados quantitativos para fundamentar o trabalho. A importância da execução da pesquisa está na necessidade de se explicitar como as políticas distributivas no Brasil ainda estão atreladas às agendas de cada governo, estando submetidas, portanto, às escolhas ideológicas que são feitas de acordo com as formações discursivas que estão em evidência no período. Deste modo, permanecem sendo políticas de governo - atreladas a figuras presidenciais -, e não políticas de Estado. Tal como estão organizadas, estas podem ser insuficientes para lidar com o grande problema da extrema pobreza que assola o país, que passa por períodos de redução e de intensificação, pois não são feitas reformas estruturais capazes de, não só aliviar a extrema pobreza, como de evitar que haja a produção e reprodução da desigualdade. 19 2 O PROCESSO DE FORTALECIMENTO DA PROTEÇÃO SOCIAL NO BRASIL O sociólogo britânico Thomas Marshall (1967), em sua teoria sobre cidadania e classe social, dividiu os direitos em três categorias principais: direitos civis, políticos e sociais. Segundo ele, os direitos se desenvolvem em uma progressão histórica ao longo do tempo, variando de acordo com o contexto vivenciado pela sociedade em que estão inseridos. Na teoria de Marshall, os direitos civis estão relacionados aos direitos individuais e às liberdades fundamentais dos cidadãos, como o direito à liberdade, à igualdade, à justiça e à propriedade. Já os direitos políticos se referem à participação dos cidadãos no processo político, incluindo o direito ao voto, o direito de organizar-se politicamente, de se candidatar a cargos públicos etc. Enquanto os direitos sociais são aqueles que, para Marshall, seriam uma extensão dos dois primeiros, compreendendo o bem-estar social e econômico dos cidadãos, como o direito à educação, saúde, previdência social, entre outros, que visam proporcionar condições de vida dignas para todos (Marshall, 1967). O processo de construção da cidadania plena para Marshall, se dá por meio da progressão histórica desses três direitos, que, no caso da Inglaterra, teria seguido a sequência dos direitos civis em primeiro lugar, consolidados no século XVIII, seguidos pelos políticos, no século XIX, e posteriormente pelos direitos sociais, consolidados no século XX com o Welfare State. No caso do Brasil, a cidadania, como ensina Carvalho (2001), desenvolveu-se invertendo a pirâmide de Marshall. Por aqui, primeiro foram consolidados os direitos sociais, depois os políticos, estando ainda muito fragilizados os direitos civis. Para este trabalho, interessa compreender mais detalhadamente a trajetória dos direitos sociais, que tiveram maior atenção do Estado durante o século XX. Sabemos, entretanto, que uma vez reconhecidos esses direitos, isso não significa que a efetivação deles aconteça de uma maneira linear ou que alcance efetivamente todos os cidadãos de maneira a garantir políticas sociais à totalidade da população. Muito pelo fato de que a trajetória dos direitos sociais no Brasil é marcada por muitas nuances e momentos de avanço e recuo, variando de acordo com os projetos políticos de cada período. Inicialmente, importa esclarecer como são compreendidos alguns dos principais conceitos mobilizados no decorrer desta Dissertação. Entende-se por proteção social as políticas e ações voltadas à garantia de bem-estar e a segurança dos cidadãos com relação aos possíveis riscos sociais, como desemprego, doença, invalidez, pobreza, etc., que tem como objetivo a promoção de justiça social e a redução das desigualdades. A proteção social engloba a seguridade social (benefícios financeiros ou serviços, financiados por contribuições 20 do trabalhador e pelo governo), a assistência social (que provê serviços à população em situação de vulnerabilidade e não requer contribuições prévias) e as políticas sociais universais (aquelas que visam à garantia de serviços essenciais de maneira universal, como saúde, educação, habitação etc.). A consolidação dos direitos sociais no Brasil associa-se ao século XX e os marcos iniciais desses direitos remetem ao período de governo de Getúlio Vargas (1930-1945). Foi durante o período que foram consolidadas as leis de trabalho (CLT) e o Instituto de Aposentadorias e Pensões (IAPs), que conferiram importantes direitos aos trabalhadores. Foi durante esse período que as políticas de proteção social começaram a tomar corpo no Brasil. Esse modelo caracterizava-se enquanto um modelo conservador de políticas sociais, pois elas estavam direcionadas somente para a proteção daqueles inseridos no mercado de trabalho formal, os chamados insiders (Arretche, 2018). As leis de proteção ao trabalhador e a instituição da previdência social, culminaram na extensão da garantia de um conjunto de direitos para os trabalhadores nas áreas de educação e saúde, marcando o início da trajetória das políticas sociais no país. De acordo com Wanderley Guilherme dos Santos (1979), com a Era Vargas estabeleceu-se uma nova ordem político-social no Brasil, caracterizada pelo que chamou de “cidadania regulada”. Se antes o Estado não interferia nas relações de produção e na regulamentação trabalhista, ele passa a interferir por meio da regulamentação de algumas profissões e da garantia de benefícios sociais aos trabalhadores do setor formal, reconhecidos pela lei. Foram criados diversos direitos trabalhistas e as relações de trabalho que antes se resolviam de maneira privada, passaram a ser reguladas. Contudo, a cidadania passou a depender do reconhecimento legal da ocupação, excluindo trabalhadores de setores não regulamentados, como os trabalhadores rurais e domésticos, estabelecendo um sistema de estratificação ocupacional (Santos, 1979). O padrão da política nacional ficou marcado pela associação entre política social e autoritarismo na escolha das profissões a serem consideradas como “privilegiadas” para usufruir da proteção social. Durante o regime militar (1964-1985) o modelo conservador iniciado no período Vargas foi mantido e a proteção esteve vinculada às contribuições dos trabalhadores formais. Neste período, marcado pelo autoritarismo e pela violência, os direitos civis e políticos foram restringidos e violados por meio da censura, da suspensão de direitos políticos, da perseguição política e da repressão de organizações e movimentos sociais. Durante o regime militar, a política social manteve a ordem regulada do período Vargas, concedendo direitos sociais como forma de controle, sem comprometer a acumulação capitalista. Contudo, como afirma 21 Santos (1979), a cidadania neste período esteve destituída de qualquer sentido mais universal. O processo de garantia de direitos sociais no Brasilficou marcado pela submissão dos trabalhadores ao Estado, pelo enfraquecimento da atuação dos partidos políticos e pela utilização das políticas sociais como forma de compensar a falta de participação política. Como parte de uma estratégia política, o regime repetia a política do Estado Novo de conceder direitos sociais como compensação pela restrição dos direitos políticos e como meio de aquiescência das massas insatisfeitas, ausentes nos processos de formulação das políticas públicas (Moreira, Santos, 2020). As desigualdades se aprofundaram e ao final do regime deflagrou-se uma grave crise nas dimensões econômica, política e social. O processo de abertura política iniciou-se somente em 1970 com a Lei da Anistia, concretizando-se somente a partir da eleição de um presidente civil no ano de 1985. A expansão dos direitos sociais vai ocorrer somente com a Promulgação da Constituição Federal de 1988, que estabeleceu a base legal para o avanço dos direitos sociais no país e possibilitou uma nova organização das políticas sociais, em direção ao modelo universalista. A partir da CF/88, a seguridade social passou a ser destinada também aos chamados outsiders, indivíduos excluídos dos benefícios sociais até então, por não possuírem vínculo trabalhista (Arretche, 2018). A compreensão acerca da responsabilidade do Estado com relação à garantia do bem- estar da população no Brasil, variou ao longo do tempo de acordo com o caráter ideológico dos governos que passaram pelo poder. As mudanças de paradigma ocorridas ao longo dos anos, modificaram a relação Estado-sociedade conforme afetaram os processos de formulação e operacionalização das políticas sociais. Estas, por sua vez, foram geridas mediante governos neoliberais, desenvolvimentistas, conservadores, autoritários ou participativos, o que afetou não somente a compreensão que se tinha acerca delas, mas também seus resultados, de acordo com o conjunto de estratégias e ações tomadas em cada projeto. Conforme alteram-se os governos, alteram-se também as relações intergovernamentais e os modelos de coordenação, os sistemas deliberativos, a compreensão acerca das responsabilidades do governo federal, as formações discursivas que emergem e tornam-se prevalentes também na sociedade, e, com isso, são realizadas mudanças formais e informais na organização do Estado. O impacto dessas alterações é sentido diretamente pelas políticas públicas, que são dotadas de estrutura, instrumentos e de objetivos que condizem com as prioridades das agendas dos governos. Em alguns casos, as formações discursivas hegemônicas apontaram para uma maior responsabilização do Estado com relação à garantia 22 de bem-estar à população, enquanto em outros o que prevaleceu foi a ideia de que o mercado é mais eficiente em garantir a regulação da economia e da sociedade como um todo. Com esta seção, fruto de uma ampla revisão bibliográfica, o que se busca é apresentar a trajetória da proteção social no Brasil e os avanços na efetivação dos direitos sociais a partir da Promulgação da Constituição Federal de 1988, que fundamentou a estruturação mais robusta da assistência social do país e fortaleceu a criação das políticas de combate à pobreza. Esse percurso traz a compreensão de como se deu a formulação e a implementação do Programa Bolsa Família, para remontar sua trajetória de maneira resumida e pontuar suas transformações ao longo do tempo, até chegar no Auxílio Brasil. Vejamos. 2.1 A CONSOLIDAÇÃO DO SISTEMA DE PROTEÇÃO SOCIAL A PARTIR DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 Ao longo do século XX o que prevaleceu no Brasil foi um modelo conservador de proteção social, modificado somente a partir do final dos anos 1980 devido a um marco histórico que garantiu a expansão dos direitos sociais em uma perspectiva de universalização: a Promulgação da Constituição Federal de 1988, também conhecida como Constituição Cidadã. Com o objetivo de redemocratizar o país após o regime militar, no ano de 1987 foi convocada uma Assembleia Nacional Constituinte para elaborar uma nova Constituição, composta por representantes eleitos por meio do voto popular. A Constituinte teve a participação de diferentes setores da sociedade civil, muitos deles ligados aos movimentos sociais e aos sindicatos. A participação popular foi o que contribuiu para a inclusão dos diversos direitos e garantias da Nova Constituição que promoveu uma transição democrática inclusiva. As mudanças ocorridas nas políticas sociais a partir da Constituição, produziram a inclusão dos outsiders, “[...] mecanismo este que não apenas reduziu desigualdades como operou como um contrapeso aos efeitos da crise econômica (Arretche, 2018, p. 396).” Segundo Marta Arretche (2018), Foi no contexto da transição para a democracia que as principais decisões de inclusão dos outsiders foram tomadas. A extensão aos analfabetos do direito de voto, facultativo, foi aprovada na Emenda Constitucional n. 25/85, a mesma que regulamentou as regras eleitorais das competições posteriores. Além disto, decisões tomadas na Assembleia Constituinte foram centrais para a inclusão dos outsiders: a vinculação do piso das pensões, contributivas e não contributivas, ao valor do salário mínimo e a universalização do acesso à educação e à saúde. A primeira dessas medidas teve grande impacto para a redução da desigualdade de renda, seja pela ampliação do número de beneficiários, seja pela valorização da remuneração [...]. Na saúde, a inclusão dos outsiders ocorreu com o dispositivo constitucional que criou o Sistema Único de Saúde (SUS). A Constituição de 1988 substituiu um 23 modelo de seguro por um sistema público, universal e gratuito. Até então, apenas os trabalhadores do mercado formal e os contribuintes autônomos tinham direito a cuidados médicos. As mudanças fizeram com que o grupo de beneficiários se expandisse para a totalidade da população, incluindo os outsiders (Arretche, 2018, p. 399) A Constituição fixou normativamente o reconhecimento dos direitos sociais em uma tentativa de aproximar o modelo brasileiro de bem-estar social democrático. Além do reconhecimento da saúde, da educação e da assistência social como um direito de todos e dever do Estado, a partir da CF/88 houve no país o estabelecimento de um novo pacto federativo, que culminou em avanços para a implementação das políticas públicas nos três níveis de governo (Papi et. al, 2022). Importa pontuar que o federalismo é um sistema que se baseia na distribuição de poder e autoridade entre as instâncias de governo, de modo que, os governos nacionais e subnacionais são independentes em suas esferas de ação. Esse sistema é caracterizado pela difusão de poderes entre centros, nos quais a autoridade resulta de processos de decisões populares (Kerbauy, Back, 2022, p. 83). Entretanto, existem dois tipos de coordenação federativa na literatura, sendo eles: o modelo dual e o modelo cooperativo. De acordo com Abrucio (2020), o modelo dual parte da premissa de que os entes possuem autonomia constitucional sobre diferentes áreas, para impedir a centralização de poder. Já o modelo cooperativo baseia-se na ideia de que a autoridade pode ser compartilhada entre os entes federados, para que haja autonomia local ao mesmo tempo em que há coordenação nacional. A alternância entre esses dois modelos de coordenação pode ocorrer conforme as agendas de governo de cada presidente. No caso do Brasil, o federalismo se originou da descentralização de um Estado unitário, pois quando tornou-se uma República Federativa, houve uma maior descentralização das decisões. Contudo, durante o período da primeira República, com a política do café com leite, em que o poder era alternado entre São Paulo e Minas Gerais, a distribuição de poder ainda era bastante desigual. Começa a haver uma maior interação entre os Estados somente a partir do ano 1930 (Kerbauy, Back, 2022). O federalismo brasileiro começou a ser modificado a partir do Plano Real em 1994, que implementou mudanças nas áreas fiscal e financeira, na tentativa de minimizar os efeitos da descentralização desordenada que esteve em curso no país nos anos anteriores. Portanto, foi apenas a partir da CF/88 que se iniciaram os avanços rumo a um modelo cooperativo de coordenação federativa no Brasil. Foram traçadas novas perspectivas ao se adotar uma melhor divisão das funções de cada ente, o que aumentou a autonomia e as competências dos municípios e atribuiu maiores responsabilidades à União. 24 A Constituição foi um marco na redefinição das relações intergovernamentais, uma vez que atribuiu mais competências e maior autonomia aos entes subnacionais. O texto constitucional possibilitou a territorialização de processos de políticas públicas a favor de ações governamentais municipalistas, sem enfraquecer o centro do sistema federativo, pois a ele foram atribuídas competências mais abrangentes em diversos domínios (Neto, Vieira, 2022; p. 9). Para os autores Neto e Vieira (2022), Outro marco definidor da CF-1988 foi a organização mais estruturada do tardio e precário sistema de bem-estar social do país, por meio da criação da seguridade social, que reuniu e buscou articular as áreas de previdência, saúde e assistência social. Tratou-se de um dos avanços mais notáveis da CF-1988, que contemplou o estabelecimento de um orçamento de seguridade social específico, desagregado do orçamento fiscal, visando ampliar a cobertura e o acesso aos benefícios previdenciários; dar proteção aos desempregados; assegurar uma política de assistência social não contributiva, e promover a universalização da saúde. (NETO, VIEIRA, p. 10) Um marco de extrema importância para o fortalecimento do sistema de proteção social brasileiro foi a instituição da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) editada em 1993, que promoveu a regulamentação da distribuição de competências federativas e a criação de uma função orçamentária específica para a Assistência Social. Esse acontecimento foi essencial para a institucionalização da política de assistência social e a partir dele houve mudanças também na lógica de financiamento da AS, que passou a receber fundos nacionais e estaduais nos municípios, mecanismo que possibilitou o crescimento dos recursos e a elevação da participação da política no orçamento do governo federal (Papi, et al, 2022). Em meados dos anos 1990, houve avanços na agenda das políticas sociais e um maior enfoque no seu potencial de redistribuição (Kerstenetzky, 2011). Todavia, também durante a década de 1990, por influência/imposição de grandes potências e de instituições econômicas como Banco Mundial e FMI, foi implementado em alguns países da América Latina um ajuste neoliberal, verificado no Brasil durante a última década do século. Durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, por exemplo, houve avanços significativos na coordenação da assistência social, mas esse avanço foi limitado, já que a orientação política era a de repasse de responsabilidades às organizações e aos municípios (Papi, 2014, 2017). O período de redemocratização no Brasil foi marcado por uma intensa atuação dos movimentos sociais e, principalmente, dos movimentos sindicais. Com isso, ainda no final do século XX surge no cenário político um candidato sindicalista, oriundo da classe trabalhadora, que liderou importantes greves de metalúrgicos nos anos 80 e foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT): Luiz Inácio Lula da Silva. Lula concorreu à presidência por três vezes antes de vencer as eleições de 2002. A eleição de Lula à presidência aconteceu em 25 meio a um cenário de crise econômica e social, mas representou o início de uma nova dinâmica na política brasileira. Sua campanha de governo visava à implementação de políticas sociais capazes de impactar as taxas de desemprego, pobreza e desigualdade, devido a sua origem social. Embora tenha mantido o enquadramento neoliberal que vinha sendo seguido nos anos 90, a administração realizou uma acomodação estratégica ao sistema que permitiu alguns ajustamentos e modificações de incentivo às políticas públicas em diferentes setores do desenvolvimento nacional (Neto, Vieira, 2022, p. 13). Seu governo ficou caracterizado pela combinação entre crescimento econômico e desenvolvimento social. A partir do ano de 2003, ano de seu primeiro mandato, ocorreram mudanças na gestão das políticas sociais, de modo que o modelo brasileiro de bem-estar começou a se aproximar do modelo social-democrático. Devido à prioridade do governo com a agenda de desenvolvimento social, o processo de coordenação federativa na política de Assistência Social teve grandes avanços, por meio da criação do Sistema Único de Assistência Social, inspirado no Sistema Único de Saúde (SUS) (Papi, et al, 2022). O processo de coordenação da política de Assistência Social teve inúmeros avanços sob a gestão de Lula. A exemplo disso, tem-se a aprovação da Política Nacional de Assistência Social em 2004: Com a implantação da nova PNAS sob forte coordenação federal, o SUAS avançou no território nacional instituindo práticas profissionais em municípios que antes não dispunham de equipamentos públicos, tampouco de profissionais formados sob uma lógica de garantia de direitos. Assim, até 2010, foram implantados no país 7.475 novos CRAS, em 5.254 municípios (95% dos municípios brasileiros) e 2.109 novos CREAS. (Papi et al 2022, p. 145) Debruçando-se sobre o estudo de Papi, Joner e Madeira (2022), durante o governo Lula, o SUAS passou por processos de aperfeiçoamento que expandiram e qualificaram cada vez mais os serviços socioassistenciais, e, o montante investido na assistência social pelo governo federal chegou a somar 27,1 bilhões. O fortalecimento da rede de assistência social foi um dos importantes fatores que explicaram os avanços na agenda social do país no período. Os avanços sociais do Brasil na última década são inegáveis. Os índices de pobreza e extrema pobreza caíram rapidamente e o perfil destes estratos mudou bastante, quase sempre para melhor. Pode-se discutir se o progresso foi tão intenso quanto poderia ter sido, mas não restam dúvidas de que a situação dos mais pobres melhorou. Entre 2003 e 2011, a pobreza e a extrema pobreza somadas caíram de 23,9% para 9,6% da população (Souza, Osorio, 2013, p. 152). 26 Dentre os fatores que colaboraram para os avanços, tem-se a política de valorização do salário mínimo, que elevou o poder de compra dos trabalhadores de baixa renda; a política de pleno emprego, que reduziu as taxas de desemprego; a facilitação do acesso ao crédito; o Programa de Aceleração do Crescimento Econômico (PAC), que promoveu diversos investimentos em infraestrutura, habitação, saneamento básico e transporte nas regiões brasileiras, o incentivo à agricultura familiar, a criação do Programa Bolsa Família, entre outros. Segundo Marta Arretche (2018), a queda da desigualdade não ocorreu exclusivamente sob o governo de Lula, pois essa desigualdade teve significativa queda a partir da inclusão dos outsiders com a Constituição de 88, já nos anos 1990. Contudo, essa redução foi acelerada por ele. Essa aceleração esteve ligada, em grande parte, pelas escolhas políticas que foram feitas no período. O desenvolvimento social verificado no período foi possível muito pela agência do próprio governo e das decisões tomadas a partir das prioridades governamentais que foram estabelecidas. Em seguida, veremos qual foi o papel do Programa Bolsa Família nessa redução, olhando para sua trajetória, aspectos estruturantes e resultados. 2.2 O PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA ENQUANTO ESTRATÉGIA DE INCLUSÃO SOCIAL O que são as políticas de transferência de renda, qual a importância delas em sociedades altamente desiguais e como elas se estruturaram no Brasil? As políticas de transferência de renda são estratégias governamentais que tem como principal objetivo redistribuir recursos financeiros, na maioria das vezes, por meio de transferência direta de renda ou de benefício para grupos específicos da população, de uma maneira mais focalizada. O conteúdo social dessas políticas pode variar segundo a agenda partidária dos atores governamentais, mas, de modo geral, elas visam ao alívio da pobreza, à promoção de inclusão social e à redução das desigualdades. De acordo com Esping-Andersen (1990), as políticas de redistribuição podem variar de acordo com os diferentes contextos nacionais, pois os Estados abordam essa questão com base em sua orientação ideológica. Essas políticas são caracterizadas como focalizadas, pois focam em grupos específicos como público-alvo, diferentemente das políticas universais que buscam alcançar integralmente toda a população. Armando Barrientos (2013), em sua análise sobre esse modelo de programa, afirma que sua principal característica é combinar a transferência de renda com medidas de desenvolvimento humano, principalmente quando são implementadas a partir de uma perspectiva multidimensional integrando políticas de educação, saúde e nutrição (Barrientos, 27 2013). A garantia de uma proteção social para a população de baixa renda, independentemente de sua capacidade de contribuição, constitui uma estratégia importante de inclusão política para a população de baixa renda (Barrientos, 2013). John Rawls (1971), em sua teoria sobre a justiça, propôs um conceito de justiça baseado na equidade, cuja distribuição de recursos e oportunidades deveria acontecer com base nas circunstâncias sociais e econômicas em que os indivíduos se encontram, considerando a existência da desigualdade de recursos, para que houvesse a garantia de um padrão decente de vida para todos os membros da sociedade. Somente assim, dispondo de liberdades básicas, a sociedade tornar-se-ia mais justa (Rawls, 1971). Neste ponto da Dissertação, o objetivo é o de retomar a trajetória dos programas de transferência de renda no Brasil, até chegar na criação do Programa Bolsa Família. Para o trabalho, o grande diferencial dos programas de transferência de renda é o potencial que eles possuem de promover o desenvolvimento humano quando implementados sob o horizonte de combate à pobreza em uma perspectiva mais ampla de garantia de direitos e cidadania, compreendendo não só a dimensão de renda, mas outras questões específicas como o acesso à saúde, emprego e educação. A redução da desigualdade ocorre quando as ações governamentais afetam tanto a distribuição da renda quanto o acesso à serviços (Arretche, 2018). Baseando-se em Arretche (2018), a análise procurará demonstrar o alcance dos programas distributivos não só na dimensão renda, como também na produção da dignidade de existência da população beneficiária. Os programas de transferência de renda no Brasil começaram a estruturar-se ainda nos anos 1990. A Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), promulgada em 7 de dezembro de 1993, assegurou o direito aos benefícios da assistência social a todos que dela necessitassem e definiu os princípios fundamentais da assistência social: a universalização dos direitos sociais e a participação popular na tomada de decisões. A partir dos dispositivos da LOAS, foram criados o Benefício de Prestação Continuada (BPC) e a Previdência Social Rural (PSR). O BPC foi desenvolvido como um instrumento para ampliar o direito à proteção social aos incapazes de trabalhar, principalmente os idosos e as pessoas com deficiência. A PSR estendeu este princípio aos trabalhadores informais das áreas rurais. Isto foi inicialmente pensado como um meio de equalizar o acesso à proteção social para os trabalhadores urbanos e rurais, através da suspensão temporária dos requisitos contributivos. O principal objetivo da PSR era universalizar o seguro social, com atenção especial à natureza específica do trabalho e do emprego rural (Barrientos, 2013, p. 422). Dando continuidade a essa trajetória, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso foram criados os programas Bolsa Escola, Bolsa Alimentação e Auxílio Gás. O 28 Bolsa Escola tinha como proposta transferir recursos para as famílias em situação de vulnerabilidade condicionados à garantia da frequência escolar das crianças, enquanto o Bolsa Alimentação visava o combate à desnutrição e a mortalidade infantil. Já o Auxílio Gás oferecia um apoio financeiro para mitigar o aumento do custo do gás na alimentação das famílias em situação de pobreza. Embora esses programas tenham sido criados em meio à onda neoliberal para a qual os programas eram vistos como “gastos” sociais, contrários aos objetivos de investimentos econômicos, este período marcou a expansão da cobertura dos serviços sociais básicos para a população de baixa renda (Cohn, 2010). Amelia Cohn (2010) aponta que durante o período, devido à coexistência das mudanças oriundas da CF/88 e a onda neoliberal no país, tivemos a presença de duas forças conflitantes disputando a hegemonia do modelo de intervenção estatal a ser adotado na agenda social (Cohn, 2010, p. 221). De um lado, aquela que defendia o modelo de seguridade social ligado ao estados de bem-estar social, e de outro, aquela voltada à máxima neoliberal, que previa a defesa do Estado mínimo e programas sociais focalizados de maneira residual para os segmentos mais pobres da população (Cohn, 2010). Com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no ano de 2003, houve um adensamento do processo de ampliação dos direitos sociais por meio do fortalecimento da assistência social e da formulação de políticas integradas voltadas ao combate à pobreza. Marcando o início de uma importante trajetória, em outubro do ano de 2003 foi criado o Programa Bolsa Família (PBF). O Bolsa Família foi criado em 2003 como forma de unificar os programas de transferência e de combate à pobreza existentes. O Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), criado em janeiro de 2004, forneceu a base institucional para o desenvolvimento e a coordenação da política antipobreza no Brasil. Mais recentemente, a intermediação através dos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) e dos Centros de Referência Especializados de Assistência Social (Creas) está sendo ampliada para garantir uma resposta eficaz às necessidades específicas das famílias vulneráveis (Barrientos, 2013, p. 419). O Programa Bolsa Família estruturou-se como sendo uma política de transferência de renda condicionada direcionada às famílias pobres. Condicionada, pois os beneficiários deveriam cumprir com algumas condicionalidades enquanto estivessem no programa. Em sua formulação, houve uma divergência de entendimento sobre seus objetivos. De um lado, a ideia de que o Programa serviria somente para o alívio imediato da pobreza e as condicionalidades teriam uma vertente de “castigo”, para que os beneficiários não ficassem dependentes da política por tanto tempo, pois isso causaria o “efeito preguiça”. Do outro, a concepção que saiu vitoriosa no interior do governo: as condicionalidades estariam associadas 29 à concretização da garantia de direitos sociais como saúde e educação e o Programa seria não só medida de alívio imediato à pobreza, mas um instrumento para alavancar a possibilidade de superação da pobreza por seus beneficiários (Cohn, 2010, p. 223). O Bolsa Família tinha como objetivo contribuir para a inclusão social de milhões de famílias brasileiras premidas pela miséria, com alívio imediato de sua situação de pobreza e da fome. Além disso, também almejava estimular um melhor acompanhamento do atendimento do público-alvo pelos serviços de saúde e ajudar a superar indicadores ainda dramáticos, que marcavam as trajetórias educacionais das crianças mais pobres: altos índices de evasão, repetência e defasagem idade-série. Pretendia, assim, contribuir para a interrupção do ciclo intergeracional de reprodução da pobreza. (Campello, 2013; p. 15) No caso do Bolsa Família, as condicionalidades voltaram-se primordialmente ao desenvolvimento infantil. As condicionalidades no programa foram adotadas em uma perspectiva multidimensional de combate à pobreza, com a proposta de integrar as estruturas da assistência social aos sistemas de saúde e educação, possibilitando assim um acompanhamento mais completo do atendimento aos beneficiários. De acordo com o artigo 3º Lei nº 10.836 de 2004, que instituiu o Programa: A concessão dos benefícios dependerá do cumprimento, no que couber, de condicionalidades relativas ao exame prénatal, ao acompanhamento nutricional, ao acompanhamento de saúde, à freqüência escolar de 85% (oitenta e cinco por cento) em estabelecimento de ensino regular, sem prejuízo de outras previstas em regulamento (BRASIL, 2004). Com relação às condicionalidades ligadas à saúde, as famílias deveriam garantir que crianças menores de 7 anos estivessem com o calendário de vacinação em dia e que as gestantes realizassem o pré-natal. Já com relação à educação, as famílias deveriam garantir que crianças, adolescentes e jovens estivessem devidamente matriculados na escola e frequentando as aulas regularmente. O acompanhamento do cumprimento das condicionalidades ficava a cargo dos Ministérios da Educação e Saúde. O programa trazia como objetivos principais: o combate à fome, o incentivo à segurança alimentar e nutricional, a promoção do acesso das famílias em situação de pobreza aos serviços públicos como a educação, a saúde e a assistência social, além do apoio ao desenvolvimento das famílias e a redução dos níveis de desigualdades. Tudo isso com o incentivo dos diferentes órgãos do poder público para auxiliarem conjuntamente na superação da pobreza (Coutinho, 2014, p. 271). Para que o programa alcançasse os resultados que alcançou com relação ao desenvolvimento social, sua integração com a estrutura e os instrumentos da assistência social foi imprescindível. O estudo de Coutinho (2014) aponta que, embora possuam diferenças em 30 relação aos seus escopos e alvos (universalização e focalização), o PBF e a AS pertencem a um mesmo sistema de estruturação, de modo que a integração dos dois sistemas permitiu um melhor atendimento aos destinatários (Coutinho, 2014). Isto porque, a despeito de contar com um arranjo institucional próprio, assim como com um arcabouço jurídico autônomo, o PBF hibridiza-se, no plano local – isto é, nas cidades brasileiras –, com a rede da assistência social e suas ramificações, sobretudo em municípios pequenos e pobres – que são a grande maioria no país. Pode-se dizer, por isso, que o PBF, em larga medida, depende do arcabouço da assistência social para organizar-se e institucionalizar-se na maior parte dos municípios brasileiros, embora guarde, em relação a eles, certa distância no nível federal de gestão. (Coutinho, 2014; p. 269) Ainda de acordo com Coutinho, no plano federal, o PBF foi implementado por meio de um arranjo jurídico-institucional distinto do arranjo da assistência social, mas no plano municipal eles se integraram de maneira mais orgânica devido às capacidades técnico- burocráticas dos municípios (Coutinho, 2014). Ao longo de sua implementação, o Programa operou de maneira transversal entre os três níveis de governo e entre diferentes órgãos do governo federal. Coutinho esclarece que o Programa Bolsa Família apresentou algumas inovações de gestão que são características de suas capacidades técnicas e administrativas, sendo elas: a utilização do Cadastro Único, sistema que identifica famílias em situação de vulnerabilidade; a utilização das condicionalidades, relacionadas à saúde e a educação a partir de uma lógica indutora para os beneficiários; e, por último, o Índice de Gestão Descentralizada, que mede e avalia a qualidade das informações do CadÚnico e a integridade das informações do acompanhamento das áreas de saúde educação. Com base no último, o Ministério do Desenvolvimento avaliava o desempenho dos municípios na gestão do Programa e repassava recursos a fim de aprimorar a qualidade da política nos municípios (Coutinho, 2014). Foi constatada a existência de ganhos qualitativos da articulação entre a assistência social e o PBF, principalmente nos municípios pequenos e pobres onde ocorre a coincidência entre instituições locais dessas duas agendas, a pactuação entre elas contribuiu “[...] com a construção e a institucionalização de capacidades políticas por meio da utilização de estruturas da assistência social” (Coutinho, 2014, p. 288). Além disso, o programa apresentou capacidades políticas inovadoras marcadas pela valorização da participação social nos processos decisórios, representadas pela incorporação das discussões dos conselhos e de outros mecanismos de garantia de participação popular. Isso não anula o fato de que o Programa enfrentou diversos desafios e apresentou algumas ambiguidades em seu cerne. Como aponta Tomazini (2022), uma dessas 31 ambiguidades diz respeito à limitação orçamentária para atender a população elegível para o recebimento, pois nem toda a população pobre cabia no orçamento, de maneira que, uma família que possuía a mesma condição socioeconômica de outra contemplada, poderia não ser atendida pelo programa pois o Estado não tem obrigação legal de atender a todas. A outra, dizia respeito ao fato de que não havia definição de mecanismos de reajuste dos valores com base no aumento da inflação, fator que reduziria o poder de compra da população beneficiária (Tomazini, 2022). Januzzi e Pinto (2013), pesquisadores que compilaram os principais impactos positivos do Programa, apontam que houve aumento significativo da frequência escolar das crianças beneficiárias, redução do trabalho infantil, mitigação da repetência escolar, melhora dos resultados escolares, melhores condições de saúde das crianças beneficiárias, redução da desnutrição crônica, redução da insegurança alimentar, aumento dos índices de vacinação, redução da mortalidade infantil, maior autonomia para as mulheres beneficiárias, entre outros (Jannuzzi, Pinto, 2013). Além disso, os estudos de avaliação apontam que o Programa, em alguma medida, conseguiu atingir seu objetivo de emancipação dos beneficiários, uma vez que, a exemplo do que demonstrou o estudo realizado pelo IMDS (Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social), cerca de 5,2 milhões de pessoas da primeira geração de beneficiários do PBF foram encontradas ao menos uma vez na Rais (pesquisa oficial de mercado de trabalho formal) de 2015 a 2019. Isso significa que 44,7% dos 11,6 milhões de filhos do Bolsa Família acessaram o mercado de trabalho formal no período ao menos uma vez, ou seja, encontraram a “porta de saída” do programa (IMDS, 2023). Embora esse modelo de programa tenha algum (pouco) impacto na desigualdade de renda, seu maior impacto está na multiplicação dos ganhos dos muito pobres, que a partir dele conseguem acessar serviços essenciais (Marta Arretche, 2018). A recuperação de importantes marcos do fortalecimento da proteção social no país, bem como da trajetória do Programa Bolsa Família, foi realizada com o intuito de enfatizar que foi necessário uma série de fatores e uma integração dinâmica com outros tipos de política social para que ele obtivesse êxito na redução da pobreza extrema. Ainda assim, muito ainda havia de se aprimorar para que a pobreza fosse reduzida a zero. Todavia, como esclareceu Barrientos (2013), a evolução do Bolsa Família até 2013 refletiu a existência de uma crescente institucionalização do programa e da assistência social que poderiam levar a maiores avanços na sustentação da pobreza zero. Diversos autores já citados aqui (Cohn, 2010; Barrientos, 2013) apontavam para a 32 potencialidade do Programa em tornar-se uma política de Estado, devido às suas capacidades técnicas, políticas e seus avanços ao longo do tempo. Porém, a crise política e econômica constituiu uma conjuntura crítica a partir, principalmente, do ano de 2013 no Brasil. Os acontecimentos que precedem este ano alteraram a dinâmica política do país e prejudicaram a sustentabilidade do programa Bolsa Família, culminando em sua substituição no ano de 2021. Tal processo configurou não apenas a estagnação dos avanços, como também o retrocesso de uma trajetória que estava em ascensão. 33 3 RADICALIZAÇÃO DO PROJETO NEOLIBERAL NO BRASIL DO SÉCULO XXI De acordo com Reginaldo Moraes, autor de “As incomparáveis virtudes do mercado” (2000), o neoliberalismo é uma corrente de pensamento que emerge no século XX oferecendo uma alternativa plausível para a crise gerada pela intervenção estatal exacerbada na economia, gerada a partir do consenso keynesiano que vigorou no pós-guerra (Moraes, 2002). Wendy Brown (2019), assegura que a racionalidade neoliberal se baseia na lógica de que os princípios de mercado se tornam também os princípios de governo, a serem aplicados pelo Estado. Essa racionalidade tem como principal premissa a demonização da ideia de social e a exaltação do individualismo exacerbado. Ela assegura que o desmantelamento do Estado social era um objetivo franco do neoliberalismo. Para a corrente neoliberal, o Estado intervencionista distorce o mundo dos mercados ao interferir no mundo das escolhas individuais por meio da oferta de bens públicos e serviços de proteção social, ou seja, da “desmercadorização” de elementos essenciais à existência da classe assalariada (saúde, educação, previdência, etc), e, não obstante, também por meio da regulação legislativa da economia e dos direitos trabalhistas. “Desse modo, além de pressionar os bolsos dos ricos (que assim se vêem impedidos de investir), gera “desincentivos” ao trabalho, induzindo ao comportamento, digamos, preguiçoso ou aproveitador, “encostado” (Moraes, 2002, p. 16). Portanto, a narrativa neoliberal entende que uma maior atuação estatal gera estagnação econômica e efeitos nocivos ao comportamento dos indivíduos. A solução apresentada, neste sentido, é de limitação da democracia, desregulamentação, privatização e redução do tamanho do Estado (Moraes, 2000). Nesta seção, os apontamentos vão desde as chamadas “jornadas de junho” que culminaram no impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff, passando pela intensificação do projeto neoliberal mais radical com o governo de Michel Temer, até chegar ao momento de ascensão de Jair Bolsonaro à presidência da República. Este percurso permite identificar o processo de desfinanciamento das políticas sociais sob a lógica de gasto excessivo com essa área e o abandono da ideia de bem-estar social pelas agendas governamentais que sucederam o mandato da ex-presidenta. 3.1 JUNHO DE 2013, CRISE POLÍTICA E MUDANÇAS PARADIGMÁTICAS - DE TEMER À BOLSONARO Ao término do segundo mandato consecutivo de Lula (2003-2010), o resultado das urnas nas eleições de 2010 indicou a continuidade do projeto desenvolvimentista, por meio da eleição de Dilma Rousseff (PT) — economista de formação e chefe da Casa Civil durante o 34 governo Lula — ao cargo da presidência da República. Durante o governo Dilma, os programas do governo anterior foram mantidos e/ou expandidos e houve a criação de novos programas sociais, a exemplo dos programas Brasil Sem Miséria, Mais Médicos e Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (PRONATEC). Na assistência social, os investimentos foram de 45,1 bilhões, superiores aos do governo Lula (Papi et al, 2022). No ano de 2014, o Brasil saiu do mapa da fome da Organização das Nações Unidas (ONU). Ainda durante o primeiro mandato de Dilma, o Brasil passou a enfrentar uma crise político-econômica, com quedas no crescimento econômico e pressão por uma política de ajuste fiscal. Com a crise econômica instaurada e pouquíssimo apoio no Congresso Nacional, o governo não foi capaz de implementar as políticas necessárias para enfrentar os desafios que surgiram. As eleições de 2014 foram marcadas pelo acirramento da polarização política, levando Dilma Rousseff (PT) e Aécio Neves (PSDB) ao segundo turno, cuja disputa foi decidida com pouca diferença de votos a favor do segundo mandato de Dilma. Após a reeleição, o governo alterou sua condução econômica com o objetivo de implementar um ajuste fiscal, principalmente com relação aos gastos públicos, sob a justificativa de conter a crise e retomar a confiança no governo. A veiculação das investigações acerca dos casos de corrupção envolvendo agentes do governo, como a Operação Lava Jato1, gerou uma imagem negativa para o partido e foi se instaurando uma grave crise política. Antes mesmo da reeleição, no ano de 2013, o país vivenciou uma onda de manifestações que, inicialmente reivindicavam melhores políticas públicas voltadas à mobilidade urbana, emprego e melhorias nos serviços sociais. “Até junho de 2013, no Brasil os protestos nas ruas mais frequentes eram de movimentos populares organizados pela luta à terra, moradia, etc. A partir de 2013 este cenário se altera” (Gohn, 2016, p. 132). Segundo Maria da Glória Gohn (2016), os novos atores que ocuparam as ruas em junho de 2013 eram em sua maioria jovens, cuja organização dos atos era realizada via internet e eles não possuíam bandeira partidária. O Movimento Passe Livre reivindicava melhores condições de mobilidade urbana e redução das tarifas do transporte público. A multidão nas ruas em Junho de 2013 surpreendeu o governo e muitos analistas porque o governo federal, comandado pelo Partido dos Trabalhadores – PT, desde 2003, elaborou inúmeros programas e projetos de inclusão social de grupos em 1 Iniciada em 2014, a Operação Lava Jato, foi coordenada pela 13ª Vara de Justiça Federal de Curitiba e pelo Ministério Público. A investigação revelou um esquema de corrupção na Petrobras. Segundo Avritzer (2018), a Operação passou por uma forte politização devido as eleições de 2014, que estimulou a rejeição dos governos petistas 35 situação de vulnerabilidade socioeconômica, como o Bolsa Família, implementou políticas de aumento do salário mínimo, realizou inúmeras conferências nacionais temáticas em áreas do serviço público que resultaram em novas políticas sociais. Um grande sistema de participação institucionalizado foi instituído com conselhos, câmaras, fóruns, conferências nacionais etc. com representantes do governo e da sociedade civil. Mas alguns pontos básicos não estavam até então no foco principal destas políticas, tais como: os jovens (de qualquer classe social), as camadas médias da população, assim como a participação social on-line, com uso das novas tecnologias (com exceção de alguns programas e políticas públicas como o Orçamento Participativo em alguns setores). (Gohn, 2016, p. 136) Como aponta Gohn, a revolução na comunicação entre os indivíduos por meio das novas tecnologias, modificou as formas de participação política, de modo que o governo federal não foi capaz de oferecer resposta plausível às demandas que se apresentavam. No mês de março de 2015, há uma nova efervescência nas manifestações de massa no Brasil, mas dessa vez com atores totalmente diferentes daqueles de junho de 2013. As diferenças foram sentidas no repertório das demandas, nos grupos que as convocaram, na composição social e na faixa etária dos participantes (Gohn, 2016). A polarização observada durante as eleições de 2014, foi observada também nas ruas, pois iniciou-se uma divisão entre aqueles que apoiavam o governo de Dilma Rousseff e aqueles que eram contra seu governo e o Partido dos Trabalhadores. Esta divisão se refletira nas manifestações de Março de 2015, gerando duas correntes de protestos. Uma enfatiza o protesto contra a corrupção, especialmente em empresas públicas, como a Petrobrás, investigadas pelo Ministério Público Federal via operações específicas, a exemplo da “Lava Jato”, questiona os políticos, pede impeachment da presidente Dilma Rousseff e é contra o Partido dos Trabalhadores. A outra questiona novas políticas públicas do novo governo da presidente Dilma Rousseff, especialmente a do ajuste fiscal econômico, mas não é contra o governo como um todo (Gohn, 2016, p. 139). As novas camadas sociais que passaram a ocupar as ruas contra o governo, eram compostas pelas classes médias, por pessoas de faixas etárias diversas e organizadas majoritariamente por grupos como Vem pra Rua e Movimento Brasil Livre (MBL). O repertório desses grupos baseava-se, principalmente, em critérios morais e éticos que negavam a política partidária. Leonardo Avritzer (2018) aponta que as manifestações desse período acabaram por culminar na hostilização de membros do sistema político e despertaram na sociedade a atenção para questões ligadas à corrupção, que acabaram sendo tratadas de maneira anti-institucional e antipolítica pela Operação Lava Jato (Avritzer; 2018, p. 273). Ainda no ano de 2015, o MDB, partido do vice-presidente Michel Temer, que estava a ponto de romper com o Partido dos Trabalhadores, divulgou documento intitulado “Uma ponte para o futuro”, que afirmava ser a crise econômica fruto do crescimento desmedido do Estado, recomendando um ajuste neoliberal intenso, incluindo privatizações, concessões de 36 serviços públicos, desregulação de diversas áreas, reorganização fiscal e financeira do Estado, reforma da previdência, limitação dos gastos públicos, dentre outras iniciativas (Neto, Vieira, 2022). Sem uma base sólida de apoio no Congresso Nacional e com a imagem do governo associada a casos de corrupção, Dilma Rousseff sofre um processo de impeachment sem sustentação jurídica no ano de 2016 (Avritzer, 2018). O processo de impeachment foi marcado pela intensa polarização política, por manifestações de apoio e de oposição ao governo e por debates acalorados sobre a legalidade do processo. Avritzer (2018) descreve que a partir deste momento foi instaurado um mal-estar na democracia brasileira. Após o processo de impeachment, em que o cargo da presidência passou a ser ocupado por Michel Temer, vice-presidente de Dilma, a dinâmica política brasileira foi bruscamente modificada. Um novo ciclo de reformas de cunho neoliberal da economia brasileira teve início em 2016, interrompendo um decênio de maior ativismo governamental e de importantes avanços sociais e econômicos decorrentes de diversas políticas públicas implementadas naqueles anos, que foram batizados por muitos analistas de “período pós-neoliberal” (Neto, Vieira, 2022, p. 1). Uma das primeiras medidas adotadas pelo governo Temer, que demarcou sua tentativa de distanciamento com o projeto político anterior, foi a Medida Provisória nº 726 de 12 de maio de 2016, que extinguiu as secretarias e os ministérios ligados à ampliação de direitos ou a políticas distributivas (Avritzer, 2018). A partir desta medida, foram extintos: Ministério da Cultura, Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos e Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Este último, foi transformado em Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário. Conforme Avritzer (2018), o objetivo do novo governo com a medida foi o de negar qualquer relação com as pautas de direitos sociais e de diversidade adotadas pelos dois governos anteriores, de modo a frear a ampliação de direitos instituída pela CF/88. A iniciativa que mais impactou a seguridade social e as demais políticas públicas, foi a Emenda Constitucional nº 95/2016, também conhecida como a PEC do Teto de Gastos. Após ser aprovada pelo Congresso e votada no Senado, esta medida foi promulgada em 15 de dezembro de 2016, estabelecendo um “congelamento” dos gastos federais Desmonte e Reconfiguração de Políticas Públicas (2016-2022) por vinte anos, inclusive para educação e saúde, corrigível apenas pela inflação. (Tomazini, 2022; p. 82) Conforme elucida o artigo de Lucia Cortes da Costa (2019), desde a aprovação da EC 95/2016 do governo Temer, os orçamentos da Seguridade Social sofreram com cortes que 37 diziam ter por objetivo a redução dos gastos sociais. Esse novo regime fiscal afetou “[...] de forma drástica o orçamento da Política de Assistência Social e o Programa Bolsa Família” (Costa, 2019; p. 272). Ainda sob a gestão de Dilma, em 2014 o Programa Bolsa Família não teve reajuste no valor, mesmo com a crise econômica instaurada. Em 2016, houve uma proposta de corte bilionário no programa, que não foi aprovada, mas demonstrou a instabilidade existente em torno dele, que se intensificou com o passar dos anos. A reforma trabalhista, sancionada no ano de 2017 sob a justificativa de modernizar as relações de trabalho e flexibilizar algumas regras, realizou diversas alterações na legislação trabalhista, alterando mais de cem pontos da legislação. A reforma flexibilizou as relações entre patrões e trabalhadores, possibilitou o aumento da jornada de trabalho para até 12h, ampliou a terceirização e enfraqueceu a articulação dos sindicatos. As novas regulações flexibilizaram as relações de trabalho e, ao mesmo tempo objetivaram desonerar as empresas, mediante relaxamento de diversas obrigações patronais; criação de novas modalidades temporárias e mais informais de contratação; revisão de direitos trabalhistas; ampliação do rol de atividades passíveis de terceirização, etc. Como resultado, observou-se um processo acelerado e crescente de precarização e de diferenciação do mercado de trabalho, acentuando efetiva e potencialmente as desigualdades entre os assalariados (Neto, Vieira, 2022, p. 21). O recrudescimento da agenda neoliberal no Brasil ocorreu de maneira ainda mais intensa de 2019 até 2022, sob a gestão de Jair Bolsonaro, político de extrema-direita que se elegeu na disputa eleitoral de 2018, cujo principal adversário foi Fernando Haddad, do Partido dos Trabalhadores. Neste ano, a polarização política foi ainda mais acentuada devido a tensão política instaurada a partir de 2016. Jair Bolsonaro, um ex-capitão do Exército, foi deputado federal por diversos mandatos pelo estado do Rio de Janeiro e candidatou-se à presidência em 2018 pelo Partido Social Liberal (PSL). Sua ascensão na política brasileira é explicada, por muitos autores, devido ao seu enquadramento enquanto um populista de extrema direita, que construiu sua campanha majoritariamente através do uso das redes sociais. O populismo de extrema direita advém da crise da democracia liberal, tal qual é entendida por diversos cientistas políticos, que vão afirmar sua relação direta com os efeitos perversos da globalização neoliberal (Mouffe, 2019; Brown, 2019; Mounk, 2019). É característico deste fenômeno que nos momentos de crise, o líder populista se coloque como o salvador, por meio do apelo às questões mais urgentes da vida dos indivíduos para nortear principalmente as escolhas eleitorais (Mounk, 2019). A instabilidade econômica do país, atrelada à crise política, resultou na rejeição dos governos 38 petistas, que foram constantemente associados aos processos de corrupção ventilados pela mídia e pela pressão construída pelo lavajatismo (Souza, 2021, p. 49). De caráter conservador-autoritário, com promessas de aderir a uma postura pró- mercado, de reduzir a atuação estatal e de acabar com a corrupção, Bolsonaro se elegeu à presidência da República em 2018. O processo de ascensão de Bolsonaro apresentou algumas especificidades que modificaram os padrões das eleições no Brasil, que são apresentadas na obra de Jairo Nicolau (2018). O cientista político mostra em sua análise que antes das eleições de 2018, as premissas que guiavam as análises sobre os fatores que possibilitavam a vitória de um candidato à presidência estavam ligadas a: 1. obter uma grande quantidade de dinheiro para o financiamento de campanha; 2. dispor de tempo favorável nas propagandas eleitorais e 3. construir uma rede de apoio nos estados. Contudo, Bolsonaro não contava com nenhum desses três recursos e, mesmo assim, venceu as eleições, rompendo com alguns padrões vistos nas eleições anteriores. A ausência nos debates televisivos feitos pelos meios de comunicação, o favorecimento proporcionado pela alta velocidade de propagação de mensagens via WhatsApp e as redes sociais, foram alguns dos fatores que explicaram o crescimento da figura política que ele construiu. O Brasil em 2018 entrou no que Avritzer (2019) chama de “Fim da Nova República”, uma vez que novos elementos passaram a fazer parte dessa era que ficou caracterizada pela interferência do poder Judiciário nas eleições, pela forte influência das redes sociais na difusão de informações via redes sociais e pela relativização do período violento da ditadura iniciada em 1964. Além disso, emerge no Brasil um projeto político marcado pelo apelo aos valores morais e aos princípios de mercado, sob o lema “Deus, Pátria e Família” ou “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. A meta de redução de gastos com políticas sociais observada no governo Temer, mostrou-se fortemente presente na gestão Bolsonaro desde o início de seu mandato. A EC/95 não foi revertida e o subfinanciamento das principais políticas sociais do país foi ainda mais drástico. A partir de 2018, entrou em curso no Brasil um projeto mais radical de neoliberalismo. Com a escolha de Paulo Guedes – que integrou a equipe dos Chicago Boys2 – para Ministro da Economia, Bolsonaro deixou evidente a agenda que seguiria seu governo e, desde 2 Grupo de cerca de 25 jovens economistas chilenos que formularam a política econômica neoliberal da ditadura de Augusto Pinochet, formados pela Universidade de Chicago. 39 então, implementou diversas ações para a consolidação do projeto neoliberal. O objetivo do ministro da Economia desde o início era o de realizar no Brasil as mesmas reformas neoliberais que foram feitas no Chile. Em 21 de agosto, Guedes publicou uma lista com empresas estatais que até o final da gestão seriam privatizadas. Embora nem todas tenham sido de fato privatizadas, desde o início desse período – gerido por um ministro da economia extremamente ortodoxo – o Brasil passou por uma série de iniciativas que resultaram na redução de direitos sociais, no enfraquecimento da proteção social e no avanço da privatização de serviços públicos. Há uma mudança radical de paradigma na dinâmica sociopolítica brasileira a partir das manifestações de 2013. Os novos atores sociais e os grupos políticos que ganham evidência e hegemonia a partir dos acontecimentos que se iniciaram neste ano, retomam a mobilização de pautas morais conservadoras e aversão às políticas públicas, principalmente as distributivas, pois, conforme a máxima neoliberal, elas são as responsáveis pelo endividamento do Estado e pela deterioração moral da população de baixa renda. Maria Ozanira da Silva (2022) pontuou a existência de dois projetos de sociedade vistos no Brasil que orientam os programas de transferência de renda: um de orientação progressista, cujo foco é a redistribuição da riqueza e a promoção de justiça social, que se articula com a rede de proteção social e promove o desenvolvimento humano. O outro, de orientação conservadora, que vê nos pobres um amplo segmento que pode ser manipulado em troca de benefícios que garantem o básico para sua sobrevivência. “Para este, os pobres devem cumprir exigências para ter acesso ao direito de viver e são controlados por diversos mecanismos burocráticos e o benefício deve ser o menor possível para não desestimular o trabalho” (Silva, 2020, p. 69). As manifestações de massa que, inicialmente tinham como demandas melhores políticas públicas e mais participação política, foram sobrepostas pelas demandas morais de outras camadas sociais, que modificaram os rumos do país que antes vinha na direção da consolidação da democracia e de redução da pobreza. O que se teve, como resultado desse processo, foi a redução da participação social, a redução de direitos e o acirramento dos conflitos de classe. No próximo tópico, apresentaremos de maneira mais precisa como chegou-se a este resultado. 3.2 O ENCOLHIMENTO DAS POLÍTICAS DE PROTEÇÃO SOCIAL SOB A GESTÃO ULTRALIBERAL 40 A partir das transformações na dinâmica política brasileira descritas acima, o que mudou com relação à estrutura e ao financiamento da política de assistência social? Sabe-se que houve uma transformação da compreensão acerca dos investimentos em políticas sociais, contudo, como isso aconteceu nas dimensões formais e informais que permeiam a agenda? Durante os quatro anos de vigência do mandato de Jair Bolsonaro, houve mudanças significativas no modelo de coordenação federativa brasileiro que afetaram diretamente as relações estabelecidas entre os entes federativos e, consequentemente, toda a estrutura da política de assistência social, com a qual o Programa Bolsa Família possuía uma relação dinâmica e complementar. A partir do ano de 2016, “[...] a burocracia estatal rapidamente, sob regência dos novos “donos do poder”, reverte o sentido das políticas sociais, que de inclusivas, passam a ser excludentes e abertamente residuais, pautadas pelo mínimo social” (Cohn, 2020, p. 151). Com a posse de Michel Temer em 2016, a ideia de sistema integrado de ações voltado ao combate geracional da pobreza foi substituída pela priorização de ações focalizadas, a exemplo do Programa Criança Feliz (PCF), da mesma forma que os recursos de financiamento nacional sofreram uma importante redução. Foi nesse governo também que a PEC 95 que congela gastos em políticas sociais por 20 anos teve aprovação no Congresso. Com recursos escassos e aumento da demanda por proteção social advinda, principalmente, do retrocesso de conquistas sociais, inicia- se novamente um processo de descentralização descoordenada tendendo a maior responsabilização dos municípios (Papi et al, apud Costa 2019, p. 133) Esse período da história brasileira abriu espaço para reformas estruturais do regime federal e este passou a se direcionar cada vez mais para o modelo de federalismo vagamente acoplado, modelo marcado por desintegração e tensionamentos nas relações intergovernamentais. Com relação ao pacto federativo, Bolsonaro contrapôs o modelo cooperativo ao aderir ao modelo dual. A lógica dualista que esteve em curso durante seu governo pressupôs grande autonomia local e reduzida participação do governo central na articulação e na gestão das políticas públicas. Em países como o Brasil, cuja sociedade é marcada por iniquidades e desigualdades históricas em múltiplas dimensões, a conformação de um regime federal vagamente acoplado tende, portanto, a agravar as heterogeneidades estruturais e as forças fragmentadoras delas derivadas, tornando muito mais difícil e problemática a coesão e a harmonização socioespacial e comprometendo, consequentemente, as perspectivas de desenvolvimento econômico e social do país. (Neto, Vieira, 2014, p. 26) O antigo Ministério do Desenvolvimento Social foi transformado em Ministério da Cidadania, abrigando diversas pastas e perdendo seu caráter estratégico na coordenação nacional na política de Assistência Social (Papi et al, 2022). Junto a isso, houve também a 41 redução de investimentos que obrigaram os municípios a assumirem as responsabilidades com o financiamento da política. O estudo de Papi, Joner e Madeira (2022) aponta que houve uma intensificação do processo de desfinanciamento da política de AS, o que, consequentemente, afetou toda a estruturação do SUAS. O contingenciamento de recursos, a limitação de oferta e reestruturação de serviços e os ataques aos canais institucionais de participação da política de AS têm sido os mecanismos utilizados pelo novo governo (Papi et al, 2022, p. 157). Ancorado na ideia de adotar uma política fiscal rígida – exigida pelo capital financeiro – somada à opção de não implementar políticas sociais direcionadas ao enfrentamento da questão social, o SUAS passou a ser afetado em sua gestão e processo de financiamento. Entre 2016 e 2017, a redução do orçamento da AS é perceptível, em especial do financiamento direcionado aos serviços do SUAS. (Papi et al, 2022, p. 146) No ano de 2019, o governo de Jair Bolsonaro cancelou 1,3 milhão de benefícios do Bolsa Família em todo o Brasil, excluindo mais de 1 milhão de famílias do programa, segundo dados do Ministério da Cidadania (2020). O número de famílias beneficiadas caiu de 14,3 milhões para 13,5 no segundo semestre de 2019 (Oliveira, 2020). A fila de espera para a concessão do Programa Bolsa Família aumentou e mais de 1 milhão de segurados da previdência social passaram a aguardar a concessão de benefícios (Cohn, 2020). “Durante o governo Bolsonaro, o programa passou pelo período mais longo de baixo índice de entrada de novos beneficiários de sua história (Tomazini, 2022, apud, Resende 2020, p. 84). No caso do Benefício de Prestação Continuada (BPC), houve por parte do governo federal tentativas de restringir a concessão do benefício, a exemplo do veto presidencial ao Projeto de Lei 3055/973 aprovado pelo Congresso Nacional, que elevava de um quarto de salário mínimo para meio salário mínimo a renda per capita dos beneficiários elegíveis ao programa, que serviria para ampliar o acesso ao benefício destinado a idosos com mais de 65 anos ou com deficiência incapacitante, em extrema vulnerabilidade durante a pandemia. O veto foi derrubado pelo Congresso Nacional e a concessão do benefício foi ampliada. Contudo, a ampliação perdeu a validade por não ter sido regulamentada e em 2021 retomaram-se os critérios de elegibilidade que atendiam somente às famílias com renda per capita de um quarto do salário mínimo. Com isso, mais de 500 mil pessoas perderam o direito ao BPC4. Entre as suas promessas de campanha, estava a promessa do pagamento do 13º para beneficiários do programa. No ano de 2019, foi publicada medida provisória que definia o 3 Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/628600-GOVERNO-VETA-PROPOSTA-QUE-AMPLIAVA- CANDIDATOS-A-BENEFICIO-ASSISTENCIAL 4 Disponível em: https://www.andes.org.br/conteudos/noticia/bolsonaro-retoma-limitacoes-do-bPC-e-500-mil-devem-perder- direito-ao-beneficio1/page:218/sort:Conteudo.created/direction:desc 42 pagamento do 13º, que ocorreu somente no ano de 2019, a pedido do próprio governo (Tomazini, 2022). Sob a justificativa de falta de orçamento, o governo não deu continuidade a esse benefício e alguns analistas afirmam que a medida foi uma estratégia para esconder o fato de que não houve inclusão de novas famílias no programa durante o segundo semestre de 2019 (Tomazini, 2022, apud, Bartholo, 2022). De acordo com o que foi apresentado na primeira seção desta Dissertação, os programas de transferência de renda no Brasil só puderam estruturar-se de maneira mais efetiva a partir do processo de coordenação da política de assistência social e do fortalecimento desse sistema, pois estes possuem um mesmo sistema de estruturação e sua integração foi o que permitiu a expansão do atendimento e uma maior qualidade aos destinatários (Coutinho, 2014). Isso significa que os processos ocorridos na política de AS foram sentidos também pelo Programa Bolsa Família, devido à articulação existente entre as duas políticas. Ainda durante a campanha eleitoral, o então candidato Jair Bolsonaro verbalizou o que seria uma expressão do seu projeto político conservador-autoritário quando proferiu as seguintes frases: “Vamos botar um ponto final em todos os ativismo no Brasil” e “Mais Brasil, menos Brasília” (Pinheiro; Direito, 2023, p. 6). Na prática, isso representou mudanças significativas nos espaços participativos de decisão no campo da assistência social, que acabaram por reduzir o debate público e empobrecer a qualidade democrática acerca da assistência social e das políticas de transferência de renda de 2019 a 2022. Segundo análise de Marina Pinheiro e Denise Direito (2023), foi constatada a existência de um processo de desdemocratização nos aspectos informais da política, que enfraqueceram a articulação dos conselhos e comissões que durante muito tempo tornaram a política de AS mais democrática. De acordo com as autoras, os principais sistemas de participação existentes na assistência social — Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS), conferências nacionais e Comissão Intergestores Tripartite (CIT) — foram afetados em suas dimensões informais, uma vez que embora não tenham sido alteradas as regras formais que regulamentam esses sistemas, durante o período prevaleceu “[...] um baixo interesse do Executivo na inclusão desses espaços em discussões relevantes para a política, associado ao fortalecimento do projeto autoritário” (Pinheiro; Direito, 2023, p. 9). [...] nos últimos anos, a CIT, assim como as conferências e o CNAS, tem vivido momentos turbulentos e de esvaziamento das pautas analisadas. Esses aspectos são sentidos de diversas formas nos seus trabalhos, como na redução no número de resoluções – e, consequentemente, de pactuações – e até mesmo no de reuniões. (Pinheiro; Direito, 2023, p. 30) 43 No caso do CNAS, instância que foi essencial para a consolidação e expansão da prestação dos serviços socioassistenciais no território nacional a partir da Constituição de 88: As análises de conteúdo das deliberações apontam para diversos conflitos entre o CNAS e o governo federal nos últimos anos, o que, em determinados momentos, resultou na sua fragilização ou na subtração de sua participação em processos de tomada de decisão e na elaboração das iniciativas na área da assistência social e que afetam o Suas. (Pinheiro; Direito, 2023, p. 28) Entre as estratégias informais de enfraquecimento do CNAS, tem-se: mudanças no perfil dos representantes indicados pelo governo federal, baixa diversidade de representação, perda de cargos de alto comando que eram benéficos para a articulação política e redução de assuntos relevantes levados para discussão pelo conselho. E o que significou, na prática, a frase “Menos Brasília, mais Brasil”? Conforme concluem as autoras, poderia ter significado o empoderamento dos estados e municípios para que pudessem adequar a política de assistência social na ponta, mas, na realidade, ela representou somente o enfraquecimento do papel de coordenação do governo federal (Pinheiro, Direito, 2023). O processo de desmonte da proteção social “[...] implica a quebra da expectativa de direitos, portanto, a quebra da possibilidade de projetos de futuro por parte de largos setores da sociedade” (Cohn, 2020, p. 157). Sob a gestão de Jair Bolsonaro, houve demonstração clara da falta de priorização sobre a assistência social, uma vez que o combate à pobreza e à extrema pobreza não eram centrais para sua agenda. Para ser efetivo em seu papel de luta contra a pobreza, o Bolsa Família teve de contar com políticas econômicas, de saúde, de educação, de assistência social etc. (Tomazini, 2022). Com o subfinanciamento dessas outras áreas, que se institucionaliza a partir da EC/95, toda a implementação do Programa foi comprometida, o que comprometeu, consequentemente, o acesso a serviços por parte da população beneficiária do programa. 44 4 AUXÍLIO EMERGENCIAL E AUXÍLIO BRASIL: Formulação e implementação No final do ano de 2019, o mundo assistiu à disseminação do vírus Sars-Cov, responsável pela grave doença da Covid-19 que viria a se alastrar por diversos países do globo, afetando o Brasil, principalmente, no início de 2020. De modo geral, a gestão da pandemia no país ocorreu de maneira desastrosa. Foram registradas mais de 700.000 mortes em razão da doença, até o ano de 2023. Estudos recentes evidenciam que durante a pandemia, as ações do governo federal não só ficaram marcadas pela omissão frente aos inúmeros problemas gerados pelo cenário pandêmico, como também efetivamente contribuíram para a sua piora. Justamente no momento em que as respostas governamentais deveriam ser articuladas para fornecer respostas rápidas e efetivas às demandas criadas pela crise, o que vimos foram ações descoordenadas e a promoção de um campo beligerante de disputa federativa com os Estados e municípios (Leite et al. 2021, Abrucio et al. 2020). De acordo com Leite e Meirelles (2022), houve omissão de responsabilidade do governo enquanto coordenador das ações a serem tomadas; produção de narrativas que iam contra os parâmetros científicos; processo de desfinanciamento sistemático do Sistema Único de Saúde, principalmente em um momento em que o gasto social deveria justamente ter aumentado, devido aos inúmeros casos de infectados pela doença (Leite, Meirelles, 2022, p. 106). Tal ausência por parte do governo federal em um contexto em que historicamente este ente foi protagonista, afetou as capacidades dos municípios e produziu ainda mais desigualdades no acesso aos serviços de saúde (Leite, Meirelles, 2022). O processo de descoordenação federativa na pandemia evidenciou-se principalmente durante a movimentação em torno da aquisição das vacinas contra a Covid-19. O Governo Federal agiu de maneira omissa na aquisição dos imunizantes, seguindo critérios anti- científicos e afetando a estrutura do Programa Nacional de Imunizações, programa antes reconhecido por sua eficiência. Diante de tal cenário, os governos estaduais viram-se responsáveis pela negociação dos imunizantes, cuja determinação deveria vir do Ministério da Saúde, mas não veio. Na ocasião, o governador do estado de São Paulo exerceu protagonismo na compra das vacinas por meio do Instituto Butantan e adquiriu milhões de doses da vacina, que foram as primeiras a serem aplicadas na população brasileira (Leite, Meirelles, 2022). “Como consequência, a falta de coordenação federal na formulação e na condução das estratégias de vacinação contra a COVID-19, aspecto estruturante do PNI, tornou a sua implementação pelos municípios um processo altamente complexo, heterogêneo e desigual.” (Leite, Meirelles, 2022, p. 115) A falta de coordenação na formulação e condução das 45 estratégias culminou no agravamento das desigualdades (Leite, Meirelles, 2022). Contudo, uma importante medida adotada pelo governo, em meio ao período de crise, foi a distribuição do chamado Auxílio Emergencial. Embora sua implementação tenha contado com um processo conflituoso entre os poderes legislativo e executivo, o benefício foi capaz de se aproximar do que seria uma política de renda mínima no país e mitigou muitos dos impactos da pandemia na situação econômica dos brasileiros. O auxílio, como era indicado pelo próprio nome, possuía caráter urgente e emergencial, não sendo necessariamente um programa de governo duradouro e robusto de garantia de renda mínima, mas durante o período de implementação ele serviu para garantir um mínimo social para muitos dos brasileiros. Nesta seção, serão apresentados os principais processos, atores e interesses envolvidos na formulação e execução do benefício, uma vez que os resultados obtidos com ele impulsionaram a criação do Auxílio Brasil. 4.1 A POLÍTICA DE AUXÍLIO EMERGENCIAL EM MEIO À PANDEMIA DE COVID-19 Em março de 2020, iniciou-se uma forte pressão popular e parlamentar pela aprovação de um auxílio financeiro que garantisse a mitigação dos efeitos da crise e, assim, o Auxílio Emergencial foi instituído em duas versões: uma em 2020 e outra em 2021. A gestão Bolsonaro durante o ano de 2020 mostrou-se resistente quanto à implementação do Auxílio, o que gerou alguns conflitos com o legislativo, que foram solucionados com o sancionamento do projeto que garantia sua distribuição. Ainda no mês de março de 2020, o Ministro da Economia Paulo Guedes anunciou que seria distribuído um voucher para