Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Faculdade de Ciências Humanas e Sociais de Franca GUSTAVO CARNEIRO PINTO O GERENCIALISMO APLICADO POR VINTE E OITO ANOS NA EDUCAÇÃO PAULISTA: PRECARIZAÇÃO E PERDA DE ESTABILIDADE DO PROFESSORADO FRANCA 2024 GUSTAVO CARNEIRO PINTO O gerencialismo aplicado por vinte e oito anos na educação paulista: precarização e perda de estabilidade do professorado Trabalho de Conclusão de Curso apresentado para o Curso de Direito da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” como parte das exigências para obtenção do título de Bacharel em Direito. Área de Concentração: Ciência Política. Orientador: Prof. Dr. Murilo Gaspardo. FRANCA 2024 GUSTAVO CARNEIRO PINTO O GERENCIALISMO APLICADO POR VINTE E OITO ANOS NA EDUCAÇÃO PAULISTA: PRECARIZAÇÃO E PERDA DE ESTABILIDADE DO PROFESSORADO Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Franca, para obtenção do título de Bacharel em Direito. Área de Concentração: Ciência Política Data da defesa: 02/12/2024 Banca Examinadora: ______________________________________ Prof. Dr. Murilo Gaspardo UNESP - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Franca. ______________________________________ Prof. Ms. Adolfo Raphael Silva Mariano de Oliveira. UNESP - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Franca. ______________________________________ Prof. Ms. Matheus de Vilhena Moraes UNESP - Faculdade de Ciências e Filosofia AGRADECIMENTOS Agradeço a Deus pela saúde e o amor. À minha irmã Regina, minha melhor amiga desde meu primeiro suspiro, maior incentivadora e professora da vida. Aos meus avós Aline, Regina, Benedito e Osmar, que, fisicamente ou não, sempre estiveram aqui. Aos meus pais, Ana Helena e João Bosco, a quem nunca vou poder retribuir por todo o amor, o cuidado e o respeito, mesmo em momentos em que não entendiam ou concordavam com minhas decisões. À minha companheira Isabella, que me ensina diariamente sobre o amor, carinho e compreensão, e faz de mim uma pessoa melhor. A toda a minha família, que nunca permitiu que a distância fosse um empecilho. Como sempre fiz, agradeço a oportunidade de ter grandes amigos, responsáveis por quem eu sou. A Jaú, Guilherme, Rafael, Gabriela e Adolfo, por me serem desde o primeiro momento em Franca os melhores amigos que eu poderia ter e me permitirem trilhar os caminhos mais inesperados, conhecendo o melhor e o pior de mim. A Matheus e Gustavo, agradeço por serem mais do que companheiros de teto, mas irmãos para uma vida. Aos meus amigos da turma XXXVI, Camilla, Cassiano, Isabella, Victor, Giovanna e André, que fizeram da jornada pelas ciências jurídicas mais leve, mas, sobretudo, pela amizade muito maior do que cinco anos. Aos irmãos de Barra Bonita, Ana Carolina, João Vitor, Rodrigo, Henrique, Pedro, Ana Laura, Rodolfo, Matheus, Lupino, Maycon, Saulo, Anyelle, Zeca e Leonardo, que sempre serão o meu porto seguro. Aos companheiros da Resistência/PSOL, ao lado de quem travei os mais duros combates e todos que ainda virão. “Um dia, meus olhos ainda hão de ver Na luz do olhar do amanhecer Sorrir o dia de graça Poesias, brindando essa manhã feliz Do mal cortado na raiz Do jeito que o mestre sonhava O não chorar E o não sofrer se alastrando No céu da vida, o amor brilhando A paz reinando em santa paz Em cada palma de mão, cada palmo de chão Sementes de felicidade O fim de toda opressão, o cantar com emoção Raiou a liberdade” (Luiz Carlos da Vila) PINTO, Gustavo Carneiro. O Gerencialismo aplicado por vinte e oito anos na educação paulista: precarização e perda de estabilidade do professorado. Orientador: Murilo Gaspardo. 77 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Direito) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2024. RESUMO Levando em conta o encerramento do período histórico de 28 anos de governo do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) à frente do estado de São Paulo, a presente monografia objetiva uma análise dos impactos do neoliberalismo e do gerencialismo na educação paulista. Para tanto, partindo de uma pesquisa bibliográfica e documental, buscou-se apresentar o contexto histórico da crise do estado na segunda metade do século XX, bem como o início do processo de reforma que culminaria no ganho de espaço do neoliberalismo e do gerencialismo em cenário mundial. Posteriormente, buscou-se entender as condições de surgimento do modelo gerencial e neoliberal no Brasil, inclusive atentando-se ao processo formativo do PSDB, peça elementar desse ingresso. Por fim, analisou-se minuciosamente a política educacional dos sete mandatos peessedebistas à frente da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo. A partir do longo recorte histórico aplicado, foi possível uma análise de fundo dos impactos dos modelos gerencial e neoliberal na educação pública, bem como na carreira do magistério. Palavras-chave: neoliberalismo; gerencialismo; PSDB; educação pública; estado de São Paulo. PINTO, Gustavo Carneiro. Managerialism applied for twenty-eight years in São Paulo's education: precarization and loss of teacher stability. Advisor: Murilo Gaspardo. 77 f. Undergraduate Thesis (Bachelor in Law) – Faculty of Humanities and Social Sciences, São Paulo State University "Júlio de Mesquita Filho", Franca, 2024. ABSTRACT Given the conclusion of the 28-year historical period of governance by the Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) in the state of São Paulo, this monograph aims to analyze the impacts of neoliberalism and managerialism on São Paulo’s education system. Through bibliographic and documental research, it explores the historical context of the state crisis in the late 20th century and the emergence of reforms that facilitated the global rise of neoliberalism and managerialism. It further examines their introduction in Brazil, highlighting the PSDB’s formative process as a key player. Finally, the educational policies of the seven PSDB mandates in São Paulo's State Education Secretariat are thoroughly analyzed. This historical approach enables an in-depth evaluation of the effects of neoliberal and managerial models on public education and the teaching profession. Keywords: neoliberalism; managerialism; PSDB; public education; state of São Paulo. SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO ……………………………………………………………………1 2. A CRISE DA ERA DE OURO E O NOVO PAPEL DO ESTADO……………5 2.1 REFORMA DO ESTADO: AUGE DO NEOLIBERALISMO E SURGIMENTO DO MODELO GERENCIAL ………………..…………………6 2.2 A CONSOLIDAÇÃO DO ESTADO CONTEMPORÂNEO NO BRASIL..13 2.2.1 A “ERA DE OURO” NO BRASIL E O NASCIMENTO DO NEOLIBERALISMO……………………………………………………………13 2.2.2 A BUSCA PELA REFORMA DO ESTADO BRASILEIRO…………..24 2.2.3 A IMPLEMENTAÇÃO DO NEOLIBERALISMO E DO GERENCIALISMO NO ESTADO DE SÃO PAULO……………………………………………….19 3. O NOVO DISCURSO ECONÔMICO PARA A EDUCAÇÃO PÚBLICA…....26 4. AS TRANSFORMAÇÕES DA EDUCAÇÃO PÚBLICA DE SÃO PAULO....32 4.1 A IMPLEMENTAÇÃO DA NOVA POLÍTICA EDUCACIONAL NOS PRIMEIROS GOVERNOS DO PSDB……………………………………..……34 4.2 O APROFUNDAMENTO DA NOVA POLÍTICA EDUCACIONAL E O AVANÇO SOBRE A ESTABILIDADE DO PROFESSOR………….……..….48 4.3 A CONSOLIDAÇÃO DA POLÍTICA EDUCACIONAL DA ‘ERA PSDB’ NO ESTADO DE SÃO PAULO ………………………………………………..…….53 5. CONCLUSÕES …………………………………………………………….….….61 REFERÊNCIAS ………………………………………………………………...…….6 1. INTRODUÇÃO O Brasil da década de 1990 pode ser compreendido enquanto um país em busca de um novo horizonte. Após o período do regime militar (1964-1985), o restabelecimento da democracia calhou por escancarar a necessidade de reencontro do país com algum rumo de recuperação, para posteriormente lutar pelo desenvolvimento econômico. Nas primeiras eleições diretas pós regime militar, o resultado eleitoral já expressou a tendência ideológica que triunfaria na década seguinte. Em detrimento de Luiz Inácio Lula da Silva, o povo brasileiro elegeu Fernando Collor de Mello, cuja campanha vitoriosa tinha como elementos centrais a necessidade de modernização do modelo administrativo e redução dos gastos públicos (Fausto, 2001), na contramão do que fora estabelecido pela Constituinte anos antes. Naquele momento, a economia brasileira vivia um período de alerta. Quando da posse de Collor, em março de 1990, a inflação já atingira 80% e seguiria aumentando vertiginosamente até a implementação do Plano Real, já no governo Itamar Franco, após a queda do Presidente Collor. O sucesso do Plano Real alçou o então Ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República, pelo Partido da Social Democracia Brasileira, o PSDB. Junto dele, um contundente discurso acerca da necessidade da reforma do Estado Brasileiro. Através da criação do Ministério da Administração Federal e da Reforma do Estado (MARE), Cardoso colocou na responsabilidade do economista Luiz Carlos Bresser-Pereira a redefinição do papel do Estado Brasileiro. Este, deveria deixar de cumprir um papel de responsável direto pelo desenvolvimento nacional e passaria a funcionar como ente regulador, deixando a execução nas mãos do setor privado ou da administração não-estatal (Reis, 2019). Começa a ganhar espaço o projeto da administração pública gerencial, ou gerencialismo. Essa leitura, consoante à lógica neoliberal, tinha como objetivo aplicar no setor público métodos e valores da administração privada, estabelecendo uma nova visão do cidadão como “cliente”, do estado como “agente empreendedor” e do governante enquanto “gestor”. De acordo com Tiago Siqueira dos Reis (2019): 1 “Entendemos que o gerencialismo é um movimento ideológico e prático que tem por objetivo aplicar no setor público métodos e valores culturais da administração empresarial privada. Esse movimento [...] caracteriza-se por um ‘sistema de descrição, explicação e interpretação do mundo a partir das categorias da gestão privada’”. No âmbito da União, este projeto seguiu e foi apresentado como “dossiê” no Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (Brasil, 1995). Paralelamente, com tal fortalecimento ideológico, a ideia de reforma do Estado seguiu sendo aplicada em outras esferas do Estado brasileiro, inclusive em outros governos do PSDB. No estado de São Paulo, o PSDB chega ao poder pela primeira vez no ano de 1995, com a eleição de Mário Covas para o executivo paulista. Nessa posição, o partido permaneceu por vinte e oito anos, até a eleição de Tarcísio de Freitas, pelo Republicanos, no pleito de 2022. O longo período de governo tucano (como foram popularmente conhecidos os membros do PSDB) funcionou, então, como um grande período de experimentação de diversas políticas neoliberais, expressas em diversos âmbitos da administração. A chegada e permanência do PSDB no governo paulista coincide com a reorganização da estrutura do trabalho brasileiro. A partir da leitura da qual se utiliza para a elaboração deste trabalho, compreende-se que um dos elementos centrais para essa reorganização é a presença da precarização enquanto um novo fenômeno social. Para Robert Castel (1998), a dinâmica precarizante deixa de ser um elemento acessório e passa a representar o cerne do capitalismo vigente, de modo que segmentos de emprego que já haviam conquistado significativa estabilidade voltam a ser integrados à vulnerabilidade de massa. O momento atual do sistema capitalista envolve a presença definitiva de uma “precariedade subjetiva”: uma condição de permanente insegurança de um trabalhador com o seu posto de trabalho (Linhart, 2014). No estado de São Paulo, principalmente na década de 2000, essa passa a ser a realidade de milhares de professores. Há décadas, São Paulo representa a unidade federativa com o maior número de matrículas no ensino básico. Trata-se da maior rede de ensino do país, com mais de 3 milhões de alunos matriculados em mais de 5.300 escolas públicas e 162 mil 2 docentes. Dessa forma, o impacto das políticas de arrocho nesses cargos sempre foi significativo e um objetivo dos governos tucanos. As reformas aplicadas ao ensino paulista foram apresentadas em diversas frentes. Dentre elas, as alterações na carreira docente representaram um grande momento de virada, inclusive responsável por estabelecer as maiores distinções de condições entre pares. Quando da aprovação da Lei Complementar 1.010/2007, responsável por criar o São Paulo Previdência (SPPrev), 46,10% dos professores estaduais não eram efetivos - o que representava mais de uma centena de docentes. A promulgação da lei é responsável por conferir estabilidade equiparada a esses servidores e criar a primeira das categorias não-efetivas. No caso, a chamada “categoria F”. A criação da temida “categoria O”, a partir da Lei Complementar nº 1.093/2009, estabelece a existência de dois grandes grupos profissionais: os estáveis e os instáveis. Nesse caso, tratam-se dos professores com contrato de trabalho por tempo determinado e com atribuição pelas diretorias de ensino, a partir da vacância de professores titulares. Além da categoria O, se estabeleceu a “categoria V”, professores eventuais sem contrato de trabalho. Ressalta-se que é comum que o educador desprovido da estabilidade se alterne entre essas duas categorias, impossibilitados de qualquer tipo de planejamento de carreira. É importante destacar que esses profissionais não só são desprovidos de estabilidade, mas também de direitos, como a assistência médico-hospitalar oferecido pelo Instituto de Assistência Médica dos Servidores Públicos Estaduais, o IAMSPE, e o acesso à previdência estadual. Um dos reflexos dessa diferenciação é o fracionamento da categoria profissional, que passa a possuir dificuldade de mobilização coletiva. Nessa nova etapa do capitalismo, as formas tradicionais de organização dos trabalhadores estão enfraquecidas, com destaque para os sindicatos. De acordo com Druck (2013): "Inúmeros estudos de pesquisadores brasileiros apontam a crise sindical como consequência da globalização financeira, do neoliberalismo, das estratégias de flexibilização e do esgotamento do padrão fordista de 3 desenvolvimento e organização do trabalho. De um lado, a ofensiva do capital cria um novo ‘regime de dominação’. [...] De outro, as direções sindicais, convencidas da inexorabilidade da precarização, adaptam-se a ela e deixam de liderar e mobilizar os trabalhadores contra o capital e suas estratégias de dominação em tempos neoliberais." Além das alterações em nível de carreira, outras ferramentas implementadas pela Secretaria de Educação do Estado de São Paulo foram relevantes na evolução do magistério paulista. Uma delas foi a implementação do Programa Ensino Integral, através do Decreto SEDUC nº 57.571/2011. A implementação do Programa se deu também através de um longo processo político e legislativo, vista inclusive enquanto uma “carreira paralela”, uma alternativa à realidade salarial dos professores estaduais. Torna-se, a partir disso, questão central para o governo de João Dória, último governo tucano eleito, inclusive inserida no novo Plano de Carreira dos professores estaduais, estabelecido através da Lei Complementar 1.374/2022. A carreira do magistério paulista sofreu severas alterações. As professoras e os professores do estado de São Paulo obtiveram alterações no formato de suas contratações, na previdência e no funcionamento da própria escola. Através deste trabalho, objetiva-se entender a evolução da carreira docente dentro do período dos governos do PSDB no estado de São Paulo. A partir da análise da legislação paulista, vai se buscar entender a influência e as nuances do neoliberalismo aplicado ao magistério. 4 2. A CRISE DA ERA DE OURO E O NOVO PAPEL DO ESTADO As décadas que se seguiram à segunda grande guerra do século XX ficaram conhecidas na historiografia como a Era de Ouro. Nos anos imediatamente seguintes ao fim do conflito, os países diretamente envolvidos nos conflitos se concentraram em sua recuperação - nesse caso, nos referimos aos europeus e ao Japão, especificamente. Tendo sido atingidos os objetivos com sucesso de maneira relativamente rápida, os efeitos do crescimento começaram a ser sentidos inicialmente pelas grandes economias, ainda na década de 1950. Na década seguinte, a prosperidade econômica atingiu outras nações. Apesar da grande expressão da Era de Ouro ter sido vista nos países capitalistas - quando ganhou vantagem em detrimento do bloco socialista, o fenômeno foi mundial, com crescimento econômico relevante inclusive por países da América Latina, Extremo Oriente e África (Hobsbawn, 1994.) Sem deixar de destacar que a sua raiz multifatorial, esse fenômeno possuiu relação direta com as escolhas econômicas dos países do primeiro mundo. Depois da traumática experiência do período entreguerras, com a grande crise da década de 1930, ficou claro que era necessário um comportamento diferente no período de recuperação econômica pós-1945. De acordo com o historiador Perry Anderson (2007, p. 409-410): “Naquele momento a ordem estabelecida no Ocidente estava ainda obcecada pelo shock da grande Depressão e enfrentado com os fortalecidos movimentos laborais que surgiam depois da Segunda Guerra Mundial. Para evitar o perigo de qualquer retorno à Primeira, e para integrar as pressões acumuladas durante a Segunda, os governos adotaram por todas as partes políticas econômicas e sociais desenhadas para controlar o ciclo econômico, sustentar o emprego, e oferecer alguma segurança material aos menos prósperos. O controle da demanda keynesiana e do bem estar social-democrata eram o selo da época, assegurando maiores níveis de intervenção estatal e redistribuição fiscal que aqueles jamais vistos no mundo capitalista.” No mesmo sentido, Hobsbawm (1994, p. 267) defendia que tanto as autoridades políticas, quanto as autoridades do mercado ocidental eram convencidas da inviabilidade do retorno ao livre mercado original naquele momento. 5 Um Estado forte era necessário inclusive para a contenção da ameaça do socialismo - à época, uma disputa real. O Estado forte dessa época era sustentado por três dimensões interligadas. A primeira era econômica, keynesiana, baseada na forte intervenção estatal na economia, em busca do pleno emprego e da garantia dos setores estratégicos. A segunda dimensão era social, materializada pelo ‘Estado de Bem-Estar Social’, ou Welfare State, baseadas na adoção de políticas públicas visando a garantia de necessidades básicas para a população. Por fim, a terceira dimensão era relativa ao funcionamento interno do Estado e funcionava com base no modelo burocrático weberiano: o aparato estatal deveria seguir impessoal, neutro e racional, servindo as necessidades da população (Abrucio, 1997, p. 6.) O sonho da Era de Ouro, porém, começa a desmoronar a partir da primeira crise do petróleo, em 1973, e esse declínio se consolida na segunda crise do petróleo, em 1979. Apesar de não possuir a radicalidade da Grande Depressão dos anos 30, as taxas de crescimento caíram e, até hoje, nunca chegaram próximas àquelas vistas no período dourado. Nesse novo período, em diversas partes do globo foi observado o retorno de fenômenos do capital como o desemprego em massa, a fome, a instabilidade e, no geral, um agudo empobrecimento da população. Nesse momento, o Estado forte de outrora passa a ser questionado. Cada uma das três dimensões outrora sustentadoras do modelo passam a ser questionadas e as duas saídas mais comuns à crise foram a redefinição do Estado na economia e a tentativa de reduzir gastos públicos na área social (Abrucio, 1997, p. 7). 2.1 REFORMA DO ESTADO: AUGE DO NEOLIBERALISMO E SURGIMENTO DO MODELO GERENCIAL As críticas à perspectiva econômica vigente foram em sua maioria dominadas pelos defensores da perspectiva ultraliberal, que resistiram à ofensiva keynesiana durante o período glorioso da Era de Ouro. De acordo com Eric Hobsbawm (1994, p. 399): “Os neoliberais afirmavam que a economia e a política da Era de Ouro impediam o controle da inflação e o corte de custos tanto no governo quanto 6 nas empresas privadas, assim permitindo que os lucros, verdadeiro motor do crescimento econômico numa economia capitalista, aumentassem.” É importante ressaltar que, de acordo com o historiador Perry Anderson (1995), apesar da audiência do neoliberalismo ter crescido a um nível de relevância pela primeira vez neste momento, o movimento surge ao final da Segunda Guerra Mundial, como uma reação ao Estado intervencionista que seria hegemônico nas décadas seguintes. Apesar de uma compreensão comum de que o neoliberalismo tenha surgido em Mont-Pèlerin, de acordo com Pierre Dardot e Christian Laval, em A nova razão do mundo (2016), o neoliberalismo nasce no colóquio de Walter Lippmann, em 1938. Nesse momento, nascem duas grandes correntes do pensamento: o chamado ordoliberalismo alemão, representada por Eucken e Ropke, e a corrente austro-americana, representada por Mises e Hayek. De acordo com Anderson (1995), a transição para o neoliberalismo não se limitou a uma mudança nas políticas econômicas; foi também uma transformação ideológica. A ênfase na eficiência do mercado e na responsabilidade individual desafiou as bases solidificadas da solidariedade social e da proteção estatal. Essa nova ideologia teve um forte impacto nas relações sociais e no conceito de cidadania, onde o indivíduo passou a ser visto primariamente como um consumidor, e não mais como um membro de uma coletividade. Ainda de acordo com Dardot e Laval (2016, p. 71, grifo do autor): “Se é verdade que a crise do liberalismo teve como sintoma um reformismo social cada vez mais pronunciado a partir do fim do século XIX, o neoliberalismo é uma resposta a esse sintoma, ou ainda, uma tentativa de entravar essa orientação às políticas redistributivas, assistenciais, planificadoras, reguladoras e protecionistas que se desenvolveram desde o fim do século XIX, uma orientação vista como uma degradação que conduzia diretamente ao coletivismo.” A explicação dada pelos neoliberais para a grande crise dos anos 70 era de que o poder excessivo dado ao movimento operário havia desestabilizado as bases da acumulação capitalista através das reivindicações excessivas acerca de salários e sua pressão pela aplicação cada vez maior de investimentos por parte do Estado em gastos sociais. Esses processos rebaixaram o nível de lucro das empresas e 7 deram abertura a processos inflacionários que, inevitavelmente, viriam a culminar em uma crise generalizada (Anderson, 1995, p. 9.) Diferente do liberalismo clássico, a sua nova versão rechaça a ideia do naturalismo liberal para adotar o ponto de vista da necessidade do liberalismo construtor, onde o Estado atua enquanto um ente mantenedor das condições da livre concorrência, garantindo a vitória dos mais aptos (Dardot; Laval, 2016). A efetividade da fixação da lógica neoliberal no capitalismo contemporâneo passa pela reformulação das formas de emprego, onde se torna cada vez mais distante a visão coletiva no mundo do trabalho: “A corrosão progressiva dos direitos ligados aos status de trabalhador, a insegurança instilada pouco a pouco em todos os assalariados pelas ‘novas formas de emprego’ precárias, provisórias e temporárias, as facilidades cada vez maiores para demitir e a diminuição do poder de compra até o empobrecimento de frações inteiras das classes populares são elementos que produziram um aumento considerável do grau de dependência dos trabalhadores com relação aos empregadores” (Dardot; Laval, 2016, p. 329.) Pela ótica marxista, o neoliberalismo surge como um mecanismo para reforçar a dominação das classes. Para Hobsbawm (1995), ao priorizar o lucro e a acumulação de capital, essa nova ordem econômica contribuiu para o aumento das desigualdades sociais e a marginalização dos trabalhadores. As políticas neoliberais, ao promoverem a desregulação e a flexibilização do mercado de trabalho, intensificaram a exploração e precarização das condições de vida dos trabalhadores, aprofundando a desigualdade social e a fragmentação do sentimento de unidade. Buscando uma síntese, entende-se que o neoliberalismo não é apenas uma abordagem econômica, mas um projeto ideológico que reconfigura as relações sociais em função do mercado. Essa transformação tem implicações intensas para a administração pública, que se vê pressionada a abdicar de suas funções protetivas em favor de uma lógica de eficiência que ignora as necessidades sociais mais amplas. Essa mudança reflete uma reinterpretação do papel do Estado, que, ao se distanciar de suas responsabilidades sociais, contribui para o aprofundamento das desigualdades e a fragilização dos direitos coletivos. Se na seara econômica a resposta à crise foi através do neoliberalismo, no que tange à esfera administrativa do Estado, foi o início do modelo gerencial da 8 economia. Insta salientar que à época, as teorias críticas às burocracias estatais ganhavam cada vez mais espaço e o modelo burocrático-weberiano era cada vez mais atacado, tanto no meio acadêmico quanto no senso comum. Na definição de Herbert Kaufman (1981, apud Abrucio, 1997, p. 10), o sentimento antiburocrático na população tomava a forma de uma “epidemia generalizada”. Pesava contra a burocracia a visão do senso comum de que ela se tratava de um grupo corporativista, e não um corpo técnico a serviço da população - como pregava a teoria da burocracia weberiana. Vale mencionar a expressão de Dereck Rayner (1984; p. 8-9, apud Abrucio, 1997), um dos ideólogos das críticas ao modelo e ministro do governo Thatcher, de que “a ‘burocracia’ tem muitos amigos.” No mesmo período, crescia a crença popular de que o setor privado possuía um modelo ideal de gestão - ignorando os inúmeros escândalos de falência e corrupção naquele mesmo período. Esse cenário foi ideal para o surgimento do managerialism, ou gerencialismo, inicialmente na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos da América, a partir da eleição dos governos conservadores de Margareth Thatcher e Ronald Reagan, respectivamente. A oratória era de que, frente à crise econômica, era necessário um processo de reforma do Estado, a partir da retração do aparato governamental. De acordo com Reis (2018, p. 84), “a flexibilidade passa a ser a palavra de ordem na linguagem gerencialista, adequando de forma sumária os pressupostos da empresa flexível”. Junto do discurso da retração, foi sendo acoplada a narrativa da busca contínua pela qualidade do serviço ofertado, descentralização do poder e avaliação dos serviços públicos pelos usuários - que em momentos mais agudos do modelo eram chamados de consumidores. É baseado nessa lógica que boa parte das reformas administrativas realizadas no Brasil e no mundo nas últimas décadas foram realizadas. O marco fundamental da lógica do modelo gerencial é a obra de David Osborne e Ted Gaebler, Reinventando o governo (1994). Diferente do que foi tentado por alguns outros intelectuais, o objetivo dos autores não é a transposição do modelo privado para o público, dadas as naturezas diferentes, mas sim uma mudança no tamanho que o estado ocuparia na sociedade. Vejamos: “As velhas ideias da maioria dos nossos líderes comunitários e jornalistas políticos presumem que a questão mais importante é quanto governo 9 devemos ter - não que tipo de governo. [...] Não necessitamos mais governo ou menos governo: precisamos de melhor governo. Para sermos mais precisos, precisamos de uma melhor atividade governamental.” (Osborne, David; Gaebler, Ted, 1994, p. 25) Nessa nova concepção, o governo deve atuar como treinador, financiador, regulador, normatizador e operador, mas nunca enquanto operador. A “politização” dos governos seria um mal que envenena o Estado. E diferente da visão de Kaufman (1981) acerca da epidemia contra a burocracia, o problema não está nos servidores públicos, mas no sistema, que se afasta da comunidade em todos os aspectos. O conceito central do governo catalisador de Osborne e Gaebler afirma que ele deve navegar em vez de remar. Ou seja, é papel do governo direcionar os rumos do estado, incentivando e auxiliando a população e o setor privado, mas nunca de fato realiza as atividades fim de uma sociedade. São elencadas, ainda, alternativas à prestação de serviços realizada pelo governo, sendo elas a realização de parcerias público-privadas, alterações na política de investimento público, licenciamentos, contratações, reestruturação do mercado, etc. Ademais, são centrais princípios como a concorrência entre prestadores de serviços de interesse público e uma noção de planejamento estratégico que buscaria prever tendências de longo prazo. Dessa forma, como afirma o próprio título da obra, o objetivo dos autores é de proporcionar um método para a reinvenção do conceito de governo. Para isso, elencam dez princípios norteadores desse método, estruturados por Fernando Luiz Abrucio em O impacto do modelo gerencial na Administração Pública (1997, p. 32): “1. Competição entre os prestadores de serviço; 2. Poder aos cidadãos, transferindo o controle das atividades à comunidade; 3. Medir a atuação das agências governamentais através dos resultados; 4. Orientar-se por objetivos, e não por regras e regulamentos; 5. Redefinir os usuários como clientes; 6. Atuar na prevenção dos problemas mais do que no tratamento; 7. Priorizar o investimento na produção dos recursos, e não em seu gasto; 8. Descentralização da autoridade; 9. Preferir os mecanismos de mercado às soluções burocráticas; 10. Catalisar a ação dos setores público, privado e voluntário.” Porém, mesmo dentro da bibliografia gerencialista, a obra de Osborne e Gaebler é fortemente criticada. De acordo com Abrucio (1997), um dos principais 10 apontamentos feitos era relacionado à dificuldade de lidar com aspectos institucionais basilares da administração pública dos Estados Unidos - a qual eles se propõem a analisar. Vale mencionar também que Grant Jordan (1994), dentre várias críticas à Obra de Osborne e Gaebler, acusa-os de ignorar as situações onde não foram encontradas respostas. Dessa forma, segundo Jordan, perde-se o nexo explicativo, esvaziando a proposta metodológica do livro. No Brasil, Luiz Carlos Bresser-Pereira representou um dos maiores defensores da reforma administrativa, o que será trabalhado mais adiante. Por enquanto, vale destacar a sua produção acadêmica em defesa do modelo, com destaque para os princípios que, de acordo com o autor, devem nortear a administração gerencial: “1) descentralização do ponto de vista político, transferindo recursos e atribuições para os níveis políticos regionais e locais; 2) descentralização administrativa, através da delegação de autoridade para os administradores públicos transformados em gerentes crescentemente autônomos; 3) organizações com poucos níveis hierárquicos ao invés de piramidal; 4) organizações flexíveis ao invés de unitárias e monolíticas, nas quais as idéias de multiplicidade, de competição administrada e de conflito tenham lugar; 5) pressuposto da confiança limitada e não da desconfiança total; 6) definição dos objetivos a serem atingidos pelas unidades descentralizadas na forma de indicadores de desempenho, sempre que possível quantitativos, que constituirão o centro do contrato de gestão entre o ministro e o responsável pelo órgão que está sendo transformado em agência; 7) controle por resultados, a posteriori, ao invés do controle rígido, passo a passo, dos processos administrativos; e 8) administração voltada para o atendimento do cidadão, ao invés de auto-referida.” (Bresser-Pereira, 1998, p. 10) O denominador comum entre as diversas expressões do gerencialismo é relativamente simples: busca pelo aumento da produtividade, descentralização administrativa, redução da hierarquia, controle por resultados, compreensão do cidadão enquanto consumidor. De uma forma geral, pode-se compreender que entre êxitos e fracassos, o modelo gerencial enquanto plataforma para a administração pública transformou 11 esse debate, ocupando um vazio teórico deixado pela derrocada do sistema burocrático-weberiano. Abrucio (1997, p. 39) defende o seu enraizamento, ainda que não enquanto um paradigma: “O modelo gerencial, no entanto, não é um corpo teórico fechado. Ele vem sofrendo uma série de mudanças e sendo adaptado aos países em que fincou raízes. Mas mesmo assim, não é possível dizer que o managerialism se constitui num novo paradigma, no sendo de Thomas Kuhn, ou seja, um modelo que substitui por completo o antigo padrão burocrático weberiano.” O mérito do gerencialismo enquanto teoria foi ter se aproveitado do momento de questionamento social e acadêmico da burocracia para se colocar enquanto método alternativo. É inegável que, cinco décadas após o início da crise da Era de Ouro, a busca por um modelo administrativo célere e profissional segue sendo vislumbrado por uma parcela significativa da população, bem como de grupos políticos eleitos. É também importante analisar a relação do modelo gerencial com os servidores públicos. Entra em voga neste momento a introdução de métricas de desempenho e avaliação de resultados, alterando substancialmente a relação entre servidores públicos e suas instituições. Os servidores, que antes eram vistos como operadores de regras e procedimentos, passaram a ser avaliados com base em critérios de eficiência e eficácia. Nesse sentido, os críticos ao modelo afirmam que o gerencialismo representa um projeto de precarização e ataque aos direitos dos trabalhadores. No artigo Expropriação do funcionalismo público: o gerencialismo como projeto, Tiago Siqueira dos Reis (2018) afirma: “Trata-se de um projeto de reestruturação da organização do serviço público visando favorecer a edificação de uma imagem de que o setor público necessitaria urgentemente se modernizar pela via da flexibilização gerencial para se adequar ao progresso tecnológico, político, econômico e até mesmo societal. O gerencialismo, valendo-se de uma narrativa baseada na primazia da técnica, da especialização, das normas e regulamentos, buscou despolitizar a organização do serviço público, os conflitos e lutas sociais na sociedade civil em favor de interesses de poucos, distanciando-se da participação popular nas decisões estatais e no acesso aos bens e serviços públicos.” 12 A relação entre o gerencialismo e os servidores públicos é, portanto, ambivalente. Por um lado, essa abordagem pode empoderar os servidores, conferindo-lhes maior autonomia na execução de suas funções e incentivando a inovação. Mas na prática, o que é visto na maioria esmagadora dos casos a pressão por resultados pode criar um ambiente de trabalho competitivo e estressante, onde os servidores se sentem constantemente avaliados e pressionados a alcançar metas. Ainda na perspectiva crítica ao modelo de gestão gerencial, outro ponto importante a ser considerado é como a aplicação da lógica empresarial na administração pública pode levar a uma erosão do conceito de responsabilidade pública. Quando a gestão pública é reduzida a uma mera busca por eficiência, questões éticas e sociais são frequentemente relegadas a um segundo plano. A situação é ainda mais aguda nas áreas sensíveis, como saúde, educação e assistência social, onde a qualidade do serviço não pode ser medida apenas em termos de eficiência (DARDOT; LAVAL, 2016; LIMA, 2003). A crise que encerrou a Era de Ouro foi definitiva para desestabilizar o conceito de Estado no capitalismo. As novas abordagens econômicas, sociais e administrativas representaram uma busca pela diminuição da participação do Estado na vida das pessoas e, naturalmente, foram aplicadas de forma desigual nos mais diversos países do mundo, fixando-se mais ou menos no aparato estatal e, mais do que isso, no imaginário da população. Trabalhados os aspectos históricos da derrocada do keynesianismo e da burocracia weberiana, bem como as bases teóricas do surgimento do neoliberalismo e do gerencialismo, devemos avançar para a análise de como se deu o processo de desenvolvimento desses conceitos na sociedade brasileira, com suas inúmeras particularidades. 2.2 A CONSOLIDAÇÃO DO ESTADO CONTEMPORÂNEO NO BRASIL 2.2.1 A “ERA DE OURO” NO BRASIL E O NASCIMENTO DO NEOLIBERALISMO Se nos países do primeiro mundo o período pós-guerra representou uma era de desenvolvimento econômico e relativa pacificação social acerca do modelo vigente, a trajetória brasileira seguiu um percurso parecido. Esse período no Brasil representou uma breve experiência democrática entre dois longos períodos ditatoriais. Apesar de intercalado entre crises econômicas e políticas, a economia brasileira teve momentos de crescimento, principalmente durante o governo de 13 Juscelino Kubitschek e no chamado “milagre econômico” do período militar, de 1969 a 1973. A primeira queda de Getúlio Vargas deu início a esse novo período, e a eleição do militar Eurico Gaspar Dutra. A Assembleia Constituinte de 1946 optou pela estética liberal-democrática, apesar de seguir muito baseada na tradicional burocracia administrativa. Os direitos democráticos foram conferidos aos brasileiros alfabetizados, maiores de idade e de ambos os sexos. Nos valores, o divórcio seguiu sendo proibido, e na economia, o interesse central era no aproveitamento dos recursos minerais e na expansão da rede elétrica (Fausto, 2001). Esse curto período foi complementado pelo retorno de Getúlio Vargas (chancelado pelas urnas e encerrado com o seu suicídio), o governo de Juscelino Kubitschek e por fim, o último governo eleito por voto popular pelas quase três décadas subsequentes, com a chapa composta por Jânio Quadros e João Goulart. O governo de Juscelino Kubitschek foi um exemplo da prática econômica keynesiana no Brasil. O Plano de Metas, formulado entre 1956 e 1961, foi uma estratégia de desenvolvimento econômico que buscou modernizar o Brasil através de investimentos massivos em infraestrutura e industrialização. Segundo Celso Furtado (2000), o plano foi crucial para promover a integração nacional e a diversificação da economia, priorizando setores como transporte, energia e indústria, o que ajudou a aumentar a capacidade produtiva do país. Bresser-Pereira (2003) complementa essa análise ao destacar que a política de JK era diretamente fundamentada em princípios keynesianos, defendendo a intervenção estatal como uma forma de estimular a demanda agregada e o crescimento econômico. O plano visava não apenas a modernização da economia, mas também a criação de empregos e o aumento do consumo, refletindo uma compreensão de que o investimento público seria um motor essencial para o desenvolvimento, especialmente em um contexto de desigualdade e subdesenvolvimento. Os resultados do Programa de Metas, inclusive, foram muito relevantes, sobretudo no setor industrial. Entre 1955 e 1961, o valor da produção industrial cresceu em 80%. Já o PIB teve uma taxa anual de crescimento de 7% entre 1957 e 1961, chegando a uma taxa per capita de quase 4% - valor que representou o triplo do visto no restante da América Latina (Fausto, 2001). 14 O governo de Juscelino foi substituído pelo de Jânio Quadros, por um breve período de sete meses, momento em que renuncia à presidência e é substituído pelo seu vice, o trabalhista João Goulart. O governo de Goulart foi marcado por um leque amplo de medidas, inclusive a realização da reforma agrária e uma tentativa de reforma urbana, através de um programa de transferência de posse dos imóveis urbanos aos seus inquilinos. Porém, apesar do alardeado pela oposição, não se tratavam de medidas visando uma transição ao socialismo, como nos ensina Bóris Fausto (2001, p. 246): “As reformas de base não se destinavam a implantar uma sociedade socialista. Eram uma tentativa de modernizar o capitalismo e reduzir as profundas desigualdades sociais do país a partir da ação do Estado. Isso porém implicava uma grande mudança, à qual as classes dominantes opuseram forte resistência. O governo e os grupos de intelectuais de classe média que se mobilizaram pelas reformas de base supunham poder contar com o apoio da burguesia nacional no combate ao imperialismo e pela reforma agrária. [...] Na realidade, os membros da burguesia nacional preferiram seguir outro caminho, separando-se cada vez mais do governo, diante do clima de mobilização social e da incerteza para os investimentos.” No contexto da tentativa de realizar as reformas de base, em meio ao acirramento da crise política e ao início de uma crise econômica, veio o golpe militar que colocaria o Brasil sob um regime autoritário, repressivo e antidemocrático por 21 anos. A política econômica do governo militar, especialmente durante o "milagre econômico" (1968-1973), pode ser compreendida enquanto uma etapa inicial que pavimentou o caminho para a adoção de práticas neoliberais no Brasil. Segundo Celso Furtado (2000), a abertura ao capital estrangeiro e o incentivo a investimentos privados foram estratégias centrais para estimular o crescimento econômico, refletindo uma visão que privilegiava o mercado como motor do desenvolvimento. Bresser-Pereira (2003) complementa essa análise ao destacar que, embora a intervenção estatal tenha sido forte, algumas práticas, como a desregulamentação em certos setores e o aumento do endividamento externo, passaram a introduzir elementos que seriam característicos do neoliberalismo, como a dependência do capital internacional e a redução do papel do Estado em áreas chave da economia. Essa dinâmica gerou um paradoxo, em que a busca por crescimento acelerado 15 resultou em desigualdades e tensões sociais que se viriam a se manifestar nas crises subsequentes, antecipando as reformas neoliberais que surgiriam nos anos 1980. No período final do regime militar (de 1975 adiante), a situação do país foi se agravando, com um quadro inflacionário crescente, relacionado ao aumento da dívida externa, que transcorreu até o ano de 1983. O aumento das exportações, sobretudo de produtos industrializados, representou um alívio para a economia brasileira, que conseguiu se reativar. Dessa forma, quando da redemocratização o país se encontrava em uma situação de relativa estabilidade econômica. O balanço geral, porém, revela um período péssimo economicamente: a inflação acelerou de 40,8% em 1978 para 223,8% em 1984. Já a dívida externa mais que dobrou, passando de US$ 43,5 bilhões para US$91 bilhões (Fausto, 2001, p. 279). A estabilidade relativa encontrada na redemocratização, porém, não tardou a sucumbir. Frente à dificuldade de melhora no quadro econômico, os presidentes Sarney e, sobretudo, Fernando Collor de Mello apostaram em uma sequência de planos econômicos que não correspondiam às expectativas de seus conceptores e só viam degringolar a economia brasileira. Deixando de lado os escândalos políticos, o impeachment do presidente Collor foi o responsável por alçar ao poder o seu vice Itamar Franco. Com ele, finalmente chega ao Ministério da Fazenda a política econômica neoliberal, através do social-democrata Fernando Henrique Cardoso, então ministro do governo Itamar. De acordo com Bóris Fausto (2001, p. 292), o cenário econômico vislumbrado por Cardoso ao assumir o cargo, em janeiro de 1993, era severo, com uma inflação que beirava os 29% ao mês e chegaria aos 36% em dezembro do mesmo ano. Diferente de seus antecessores, o Plano Real, lançado em julho de 1994, apresentou resultados, finalmente contendo a crise inflacionária. O sucesso tamanho do plano econômico foi parte importante da vitória eleitoral de Fernando Henrique Cardoso, que seria eleito naquele mesmo ano o novo presidente da República Federativa do Brasil. O governo de Fernando Henrique Cardoso foi objetivo na instauração da política econômica neoliberal. Dentre os elementos que permitem enquadrá-lo desta forma, é importante ressaltar a precarização das condições de trabalho, seja através da terceirização (prevista no Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, melhor trabalhado adiante) ou do afrouxamento da fiscalização das relações de 16 trabalho por parte do estado. É emblemática a promulgação da Portaria nº 865/95, que representou uma importante pressão contrária às leis trabalhistas, engessando as possibilidades dos órgãos fiscalizadores e concentrando poder nas mãos do empregador (Vogel, 2010, p. 152). O projeto de privatizações foi também prioritário para o governo FHC. De acordo com Rodrigues e Jurgenfeld, houve um aumento significativo das privatizações, viabilizado por leis, decretos e medidas provisórias que ampliaram o alcance das privatizações para os serviços públicos e simplificaram o processo de desestatização. A Medida Provisória 841, de janeiro de 1995, alterou a Lei 8.031/1990 e criou o Conselho Nacional de Desestatização (CND), substituindo a Comissão Diretora para conferir maior agilidade ao processo. Em 1996, o Decreto 2.077 alterou normas para simplificar o processo de desestatização, permitindo ao CND fixar preços mínimos. Em 1997, a Lei 9.491 revogou a Lei 8.031 e acelerou as privatizações por meio do II PND, que passou a incluir a possibilidade de privatizar serviços públicos e instituições financeiras estaduais. Durante o primeiro governo FHC, foram desestatizadas 31 empresas, abrangendo setores como energia, telecomunicações, transporte e mineração, com arrecadação de US$ 31,9 bilhões (Rodrigues; Jurgenfeld, 2019, p. 409-410). Destaca-se também a alta taxa de juros que percorreu o governo FHC, que em agosto de 1998 atingiu a marca histórica de 49,75% ao ano, segundo o jornal Folha de S. Paulo (1998), frente a duas relevantes crises cambiais. Os mandatos de Fernando Henrique Cardoso à frente da Presidência da República consolidaram um marco fundamental na implementação de políticas econômicas neoliberais no Brasil, cujos efeitos se estenderam para além de seu mandato. A flexibilização das relações de trabalho e a ampliação da terceirização contribuíram para uma reconfiguração do mundo do trabalho, diminuindo o papel regulador do Estado e acentuando a competitividade entre os trabalhadores (Vogel, 2010). A política de privatizações, por sua vez, não apenas enxugou a máquina pública, mas também redefiniu a estrutura de diversos setores econômicos, trazendo uma maior participação do capital privado em áreas antes reservadas ao Estado, como energia e telecomunicações. A visão econômica aplicada no governo FHC é, naturalmente, relacionada às posições ideológicas de seu partido, o Partido da Social Democracia Brasileira. Apesar da reivindicação social-democrata e da busca por ocupar um espaço à 17 esquerda do PMDB em sua fundação, o PSDB sempre manifestou uma posição ideológica neoliberal. Em 1990, Cardoso afirmou: “É preciso reconhecer que a tradição social-democrática de basear sua força na crítica das desigualdades provocadas pelo mercado (isto é, pela livre exploração da força de trabalho e pela acumulação de capitais), que devem ser corrigidas por políticas sociais e fiscais, esbarra com a vaga do liberalismo triunfante. [...] A social-democracia desloca, portanto, o eixo da opção entre estatal ou privado do plano ideológico para um plano objetivo: importantes são as condições que devem ser criadas para o funcionamento da economia. A gestão predadora, patrimonialista, e a corrupção podem existir no setor estatal ou privado. Ambas são condenáveis. O mercado competitivo é o antídoto para esses males” (Fernando Henrique Cardoso, Social-Democracia Hoje, 1990, grifo meu). A identidade política do PSDB, nos primeiros anos depois de sua fundação, apresenta um dilema ideológico entre a social-democracia e a adoção de práticas de caráter neoliberal, revelando uma orientação mais próxima à direita do espectro político. Hélio Jaguaribe (1990 apud Roma, 2002), um dos principais teóricos do partido, em sua análise sobre a social-democracia, descreve esse modelo como uma tentativa de manter a economia de mercado e a iniciativa privada sob controle social, mediado por um Estado democrático. Essa visão foi central para o discurso inicial do PSDB, que buscava se diferenciar de um socialismo estatizante, mas que ainda pregava um equilíbrio entre o mercado e a justiça social. Apesar do discurso social-democrata em documentos e formações políticas, a orientação programática do PSDB era dominada por propostas liberais, especialmente no que dizia respeito à administração pública e à economia - conforme se viu na prática do governo FHC. Roma (2002) observa que, enquanto a narrativa social-democrata contribuiu para a mobilização de filiados e conferiu um viés progressista ao partido em sua origem, a direção política que assumiu cargos eletivos no partido aplicou um projeto liberal, orientado por ajustes fiscais e reformas estruturais. Dessa forma, o PSDB construiu sua identidade em torno de um discurso social-democrata, mas suas ações e políticas voltadas para a privatização, ajuste fiscal e reestruturação do Estado indicam uma aproximação com a ideologia de direita, caracterizada por uma postura liberal em relação à economia. Esse descompasso entre o discurso e a prática é o que consolida o PSDB enquanto um 18 partido de identidade, em termos de programa de governo, certamente mais alinhada aos preceitos do neoliberalismo do que aos princípios clássicos da social-democracia. Essa visão foi essencialmente aplicada nos principais governos do Partido da Social Democracia Brasileira. Em 1994, junto da eleição de Fernando Henrique Cardoso para a Presidência da República, o PSDB elege nove Senadores da República e seis Governadores. Dentre eles, Mário Covas é eleito Governador de São Paulo, dando início a uma sequência de sete eleições vencidas pelo partido no estado. 2.2.2 A BUSCA PELA REFORMA DO ESTADO BRASILEIRO Voltando o foco para a perspectiva da administração pública, apesar de se apoiar em uma política econômica baseada majoritariamente no intervencionismo, foi de interesse do governo militar uma reforma que buscava restringir o tamanho do corpo burocrático do estado brasileiro. De acordo com Abrucio (1997, p. 40), o Decreto-Lei nº 200/1967 representou a primeira tentativa de uma reforma administrativa brasileira. Somando-se a ele, Gerald Caiden (1991 apud Abrucio 1997, p. 40), afirma que a originalidade e o caráter vanguardista do Decreto trouxeram à tona conceitos de descentralização e flexibilidade que foram cruciais para as discussões subsequentes sobre gestão pública. Luciano Martins (1995) observa que a falta de regras claras para regular as relações entre o governo e a administração paraestatal resultou em tensões contínuas, demonstrando que, embora o decreto tenha sido um precursor valioso, sua implementação incompleta limitou o potencial para transformar a administração pública em um sistema verdadeiramente gerencialista. Ainda assim, analisando o texto do Decreto-Lei nº 200/1967, percebe-se claramente aspectos do managerialism: “Art. 94. O Poder Executivo promoverá a revisão da legislação e das normas regulamentares relativas ao pessoal do Serviço Público Civil, com o objetivo de ajustá-las aos seguintes princípios: I - Valorização e dignificação da função pública e ao servidor público. II - Aumento da produtividade. III - Profissionalização e aperfeiçoamento do servidor público; fortalecimento do Sistema do Mérito para ingresso na função pública, acesso a função superior e escolha do ocupante de funções de direção e assessoramento. 19 IV - Conduta funcional pautada por normas éticas cuja infração incompatibilize o servidor para a função. V - Constituição de quadros dirigentes, mediante formação e aperfeiçoamento de administradores capacitados a garantir a qualidade, produtividade e continuidade da ação governamental, em consonância com critérios éticos especialmente estabelecidos. VI - Retribuição baseada na classificação das funções a desempenhar, levando-se em conta o nível educacional exigido pelos deveres e responsabilidade do cargo, a experiência que o exercício dêste requer, a satisfação de outros requisitos que se reputarem essenciais ao seu desempenho e às condições do mercado de trabalho. [...] VIII - Concessão de maior autonomia aos dirigentes e chefes na administração de pessoal, visando a fortalecer a autoridade do comando, em seus diferentes graus, e a dar-lhes efetiva responsabilidade pela supervisão e rendimento dos serviços sob sua jurisdição. [...] XIII - Estímulo ao associativismo dos servidores para fins sociais e culturais” (Brasil, 1967). Relembrando os argumentos aplicados pela bibliografia do managerialism, encontram-se princípios importantes nesse trecho do decreto, como a busca pelo aumento da produtividade, o estímulo à formação autônoma do servidor, a criação de bonificações por mérito, a descentralização da autoridade, etc. De acordo com Martins (1995), a reforma promovida pelo Decreto-Lei nº 200/1967 foi orientada por dois aspectos principais. Primeiro, buscava diretrizes normativas centralizadas no governo federal, incluindo a criação de um plano geral de governo, planos setoriais plurianuais, novas normas para alocações orçamentárias e a programação de despesas de médio prazo, visando introduzir previsibilidade. Em segundo lugar, a proposta era diversificar a natureza dos órgãos estatais, como autarquias e empresas públicas, para promover a descentralização funcional do Estado, delegando autoridade à administração indireta para alcançar as metas governamentais. Dessa forma, a reforma representou uma divisão de trabalho entre as agências e estruturas estatais. Vale mencionar também a visão de Bresser-Pereira acerca das consequências obtidas pelo Decreto, que representavam uma prática contrária ao método gerencial. 20 “O Decreto-Lei 200 teve, entretanto, duas consequências inesperadas e indesejáveis. De um lado, ao permitir a contratação de empregados sem concurso público, facilitou a sobrevivência de práticas patrimonialistas e fisiológicas. De outro lado, ao não se preocupar com mudanças no âmbito da administração direta ou central, que foi vista pejorativamente como “burocrática” ou rígida, deixou de realizar concursos e de desenvolver carreiras de altos administradores. O núcleo estratégico do Estado foi, assim, enfraquecido indevidamente através de uma estratégia oportunista do regime militar, que, ao invés de se preocupar com a formação de administradores públicos de alto nível, selecionados através de concursos públicos, preferiu contratar os escalões superiores da administração através das empresas estatais.” (Bresser-Pereira, 1998, p. 11) Em suma, o Decreto-Lei nº 200/1967 apresentou um plano de reforma administrativa que, na perspectiva do gerencialismo, foi ambicioso e inovador, visando uma modernização da gestão pública brasileira. Entretanto, contradições como a persistência de práticas clientelistas e a ausência de um fortalecimento efetivo da administração direta acabaram por impedir a sua implementação. Essa combinação de inovação e manutenção de práticas tradicionais ilustra a complexidade do processo de reforma do Estado no Brasil, mostrando que, apesar de avançar em algumas frentes, a proposta esbarrou em resistências que comprometeram sua eficácia plena. Dessa forma, podemos dizer que a reforma da estrutura administrativa do estado brasileiro ficou congelada até o ano de 1995, com o início do governo de Fernando Henrique Cardoso. Na mesma esteira das reformas neoliberais que iria realizar, o governo do PSDB, de Cardoso, assumiu a modernização da administração enquanto maior prioridade, de modo que em agosto do seu primeiro ano de governo envia ao congresso a Proposta de Emenda Constitucional nº 173, que versava acerca de uma reforma do estado brasileiro. Silva (2004) afirma que o Governo de Fernando Henrique Cardoso adotava um discurso que atribuiu a responsabilidade pela crise econômica mundial ao modelo de Estado vigente nas últimas décadas, caracterizado por uma forte intervenção na economia e elevados gastos sociais. Nesse contexto, a solução proposta para a crise, inclusive no Brasil, envolve uma reforma do Estado. É importante destacar que, para boa parte da literatura gerencialista brasileira, o processo da redemocratização, expressado sobretudo pela Constituinte 21 de 1988, representou um retrocesso no processo de reforma do estado. Para Abrucio (1997, p. 40), a Constituição Federal de 1988 tornou as características do híbrido administrativo brasileiro mais protegidas por uma legislação ainda mais rígida. De acordo com o autor, embora essa rigidez tenha contribuído em alguns casos para preservar aspectos positivos do modelo burocrático weberiano, em muitas situações, acabou favorecendo o corporativismo dos servidores públicos em detrimento dos interesses da sociedade. Além disso, ele ressalta que o modelo weberiano já não é mais capaz de responder a diversos desafios administrativos enfrentados pelo Estado-nação. Ainda em 1995, é publicado o Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado (Brasil, 1995). O PDRAE, como ficou conhecido, tinha a finalidade de definir objetivos e estabelecer diretrizes para a reforma da administração pública brasileira, de acordo com o próprio Fernando Henrique Cardoso, que assina a apresentação do plano. Melhor do que ninguém, as primeiras palavras do PDRAE explicam a visão do governo sobre o aparato estatal: “A crise brasileira da última década foi também uma crise do Estado. Em razão do modelo de desenvolvimento que Governos anteriores adotaram, o Estado desviou-se de suas funções básicas para ampliar sua presença no setor produtivo, o que acarretou, além da gradual deterioração dos serviços públicos, a que recorre, em particular, a parcela menos favorecida da população, o agravamento da crise fiscal e, por consequência, a inflação.” (Brasil, 1995, p. 9) Vale ressaltar que o texto do PDRAE reafirma a tese de que a Constituição de 1988 foi um freio na reforma do estado que vinha sendo elaborada pelo regime militar. Os autores acusam o processo da transição democrática de ter operado um “loteamento de cargos públicos” para os envolvidos, processo que é chamado de “novo populismo patrimonialista” (Brasil, 1995, p. 27). O Plano Diretor, então, aprova uma nova estrutura organizacional, composta por quatro diferentes setores, sendo eles: a) núcleo estratégico (o governo em si, que toma as decisões estratégicas e cobra o cumprimento das mesmas); b) atividades exclusivas (onde se localiza os poderes do estado de regulamentar, fiscalizar e fomentar, como polícia, previdência, agências fiscalizadoras, etc.); c) serviços não-exclusivos (o setor onde o Estado atua de forma concorrencial a outras organizações não-estatais ou privadas, como hospitais e universidades) e; d) 22 produção de bens e serviços (área de atuação exclusiva do setor privado, mas ainda ligadas ao Estado, como empresas do ramo da infraestrutura). Dentro da administração dos setores que permanecem sob controle do estado, o PDRAE determina a instauração do modelo gerencial: o Núcleo Estratégico deve realizar a transição dos procedimentos burocráticos para as técnicas gerenciais de forma progressiva; já as Atividades Exclusivas do Estado passariam diretamente para o modelo gerencial (Costa, 2000, p. 71). A reforma determinou também a criação das agências executivas e das agências reguladoras. O Ministério da Administração e Reforma do Estado, estabelecido em 1998 sob a chefia de Luiz Carlos Bresser-Pereira, fortaleceu também o projeto de terceirização: "Outra linha de ação no sentido da reorganização do Estado é a expansão da contratação indireta dos serviços de apoio administrativo, com a conseqüente redução de pessoal e de estruturas(...) Desde 1996, foram extintos cerca de 28 mil cargos vagos e outros 72 mil serão extintos, após a aposentadoria de seus ocupantes.(...) As atividades exercidas pelos servidores que ocupavam estes cargos estão sendo contratadas junto a fornecedores privados” (MARE, 1998, p.19/20, apud Costa, 2000). Através desses mecanismos, a reforma do estado aplicada pelo governo de Fernando Henrique Cardoso teve como resultado o abalo à estabilidade das carreiras do funcionalismo público, com destaque à Lei Complementar nº 96/1999, que estabeleceu que o pagamento de servidores públicos municipais e estaduais deveria respeitar o teto de 60% da respectiva receita corrente líquida. A reforma administrativa promovida pelo governo de Fernando Henrique Cardoso, a partir de 1995, representou uma guinada significativa na organização do Estado brasileiro. Inspirado pelas reformas neoliberais, o governo PSDB priorizou a modernização da administração pública, formalizada através do Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE) e da Proposta de Emenda Constitucional nº 173. Essas iniciativas propuseram uma reestruturação das funções estatais, com a adoção de práticas gerenciais e a transferência de atividades não exclusivas para o setor privado, enquanto reservavam ao núcleo estratégico do Estado as decisões essenciais de regulação e fiscalização. A crítica à Constituição de 1988, considerada um freio no processo de reforma, destaca a tensão entre a preservação de elementos do modelo burocrático 23 e a implementação de um novo paradigma gerencial. As reformas também consolidaram mecanismos como a criação de agências reguladoras e a ampliação da terceirização de serviços, refletindo uma nova forma de atuação do Estado que buscava maior eficiência e racionalidade no uso de recursos públicos. 2.2.3 A IMPLEMENTAÇÃO DO NEOLIBERALISMO E DO GERENCIALISMO NO ESTADO DE SÃO PAULO Conforme já discutido, apesar da opção pela roupagem social-democrata, o PSDB sempre trilhou o seu caminho a partir da cartilha neoliberal e gerencial, através de ações e políticas de privatização, controle fiscal e reestruturação estatal. O auge de poder do partido se deu no período de 1995 a 2002, quando ocupou a Presidência da República e foi o partido com mais governadores eleitos. Dessa forma, foi possível a implementação efetiva das políticas de reforma do estado e da economia não só nacionalmente, mas fortalecida e continuada pelos governadores desses estados. Em artigo publicado na Folha de S. Paulo, Bresser-Pereira (1994) deixa claro: “Em 3 de outubro, com a eleição de Fernando Henrique para a Presidência da República, foi dado o passo fundamental do Brasil no sentido da modernidade com justiça social. Em 15 de novembro, com a eleição de Mário Covas para o governo do Estado de São Paulo, apoiado por um grande acordo político da sociedade paulista, teremos o segundo e decisivo passo nesse sentido.” A situação do estado de São Paulo no pleito que elegeu Covas era de déficit financeiro, com o aumento da dívida estatal e a queda da arrecadação. Em seu plano de governo, o então candidato Mário Covas expressava a política neoliberal do PSDB como solução para a crise orçamentária, a partir da defesa da privatização da FEBEM, creches, presídios, a “reorientação” do papel de estatais como a Nossa Caixa, a Sabesp e a Cesp e a revisão dos incentivos fiscais (Freire, 1994). De fato, ao final dos gestões de Mário Covas à frente do estado de São Paulo, foram privatizadas as estatais do ramo da energia (CPFL, Eletropaulo e Cesp), do fornecimento de gás (Comgás) e diversas rodovias, como a Anhanguera (SP-330), Presidente Castelo Branco (SP-280) e Imigrantes (SP-160), sempre sob a justificativa da busca pelo aumento da arrecadação e aumento na eficácia administrativa do estado. Além da ofensiva sobre as estatais, a principal marca do 24 governo Covas foi a utilização do raciocínio neoliberal e gerencial nas mais diversas pastas, através das novas políticas empregadas. 25 3. O NOVO DISCURSO ECONÔMICO PARA A EDUCAÇÃO PÚBLICA Para introduzir a discussão sobre o modelo neoliberal na educação, é importante retomar brevemente a discussão de como esse paradigma redefine o papel do Estado e os valores que regem a sociedade contemporânea. De acordo com Dardot e Laval (2016, p. 191): Na realidade, essas novas formas políticas [neoliberais] exigem uma mudança muito maior do que uma simples restauração do “puro” capitalismo de antigamente e do liberalismo tradicional. Elas têm como principal característica o fato de alterar radicalmente o modo de exercício do poder governamental, assim como as referências doutrinais no contexto de uma mudança das regras de funcionamento do capitalismo. Revelam uma subordinação a certo tipo de racionalidade política e social articulada à globalização e à financeirização do capitalismo. Em uma palavra, só há “grande virada” mediante a implantação geral de uma nova lógica normativa, capaz de incorporar e reorientar duradouramente políticas e comportamentos numa nova direção. Andrew Gamble resumiu esse novo rumo na frase: ‘Economia livre, Estado forte’. A expressão tem o mérito de destacar o fato de que não estamos lidando com uma simples retirada de cena do Estado, mas com um reengajamento político do Estado sobre novas bases, novos métodos e novos objetivos. O que exatamente quer dizer essa frase? Naturalmente, podemos enxergar nela o que as correntes conservadoras querem que ela contenha: um papel maior da defesa nacional contra os inimigos externos, da polícia contra os inimigos internos e, de modo mais geral, dos controles sobre a população, sem esquecer o desejo de restauração da autoridade estabelecida, das instituições e dos valores tradicionais, em particular os ‘familiares’.” Esse novo movimento, que promove uma economia regulada a uma distância “segura” e aberta ao mercado, redefine também as expectativas e responsabilidades dos indivíduos na sociedade. Sob o neoliberalismo, a noção de investimento é deslocada para o indivíduo, que passa a ser visto como responsável pelo seu próprio sucesso ou fracasso, legitimando assim os cortes de investimento estatal em áreas como a educação e a saúde (Zafalão, 2021). A responsabilidade individual é central nesse processo, alimentando uma cultura de competição e de autogerenciamento, na qual o Estado assume um papel de "investidor" que orienta e direciona os recursos, mas espera que os cidadãos assumam as rédeas de seu desenvolvimento. 26 A precarização do trabalho é um aspecto fundamental dessa lógica neoliberal, assumindo novas formas e intensidades. Conforme ensina Bourdieu (1998 apud Druck 2013), a precarização se tornou um fenômeno global, fruto das políticas neoliberais e da mundialização do capital, que não resulta de uma inevitabilidade econômica, mas de uma escolha política. A instabilidade e a insegurança passam a ser características permanentes nas relações de trabalho, afetando diversos setores, inclusive o da educação, onde profissionais são incentivados a adotarem uma postura de empreendedorismo individual, muitas vezes em detrimento da estabilidade e dos direitos coletivos. Essa dinâmica de precarização não se limita aos aspectos materiais, mas também abrange uma "precariedade subjetiva", como descrito por Linhart (2006). Mesmo trabalhadores que possuem contratos permanentes ou atuam no setor público enfrentam sentimentos de insegurança, ansiedade e isolamento no ambiente de trabalho. Isso ocorre devido à intensificação das exigências profissionais e à falta de apoio institucional, o que leva muitos a se sentirem incapazes de dominar suas atividades e constantemente pressionados a adaptar-se às demandas da gestão moderna. Na educação, essa subjetividade precária é particularmente visível, à medida que professores e outros profissionais são levados a competir entre si e a se responsabilizarem por resultados sem contar com os devidos recursos. A gestão neoliberal da educação, portanto, acelera uma visão individualista dos profissionais, que precisam constantemente provar seu valor e adaptabilidade em um ambiente de trabalho cada vez mais instável. A ideia de autonomia, que poderia ser positiva, é frequentemente usada como um eufemismo para transferir ao indivíduo a responsabilidade por problemas estruturais do sistema, como a falta de investimentos e a intensificação das condições de trabalho (Linhart, 2014). Essa realidade faz com que os profissionais da educação enfrentem uma pressão crescente para atingir metas e resultados, em um contexto de insegurança que afeta tanto suas condições objetivas quanto seu bem-estar subjetivo. Nesse cenário, a educação deixa de ser vista como um direito social a ser garantido pelo Estado e se torna um campo de investimento, onde os indivíduos devem "empreender" sua própria formação e desenvolvimento. As políticas educacionais neoliberais acabam reforçando um modelo no qual o sucesso escolar é visto como fruto de esforços individuais, ignorando as desigualdades estruturais e as necessidades de apoio e recursos para todos os alunos e educadores (Druck, 2013). 27 Dessa forma, a responsabilidade pelo desempenho educacional é transferida para cada indivíduo, esvaziando o papel do Estado na garantia de uma educação de qualidade e equitativa para todos. A discussão sobre o modelo neoliberal na educação precisa considerar também a teoria do capital humano e o papel da meritocracia, que sustentam e legitimam as mudanças nas políticas educacionais. A teoria do capital humano, desenvolvida por Gary Becker (1964), sustenta que os investimentos em educação, formação profissional e outras habilidades individuais são fundamentais para aumentar a produtividade dos trabalhadores, o que, por sua vez, impulsionaria o crescimento econômico. A ideia central é que, ao melhorar o desempenho individual, os trabalhadores tornam-se mais eficientes e capazes de gerar maior riqueza para si e para a sociedade. Nesse modelo, a responsabilidade pelo sucesso recai sobre os indivíduos, que devem investir em si mesmos, enquanto o Estado se posiciona como um facilitador, e não como um garantidor de proteção social. Essa perspectiva sobre a educação passa a representar um mecanismo para as políticas neoliberais que, ao enfatizar o papel do indivíduo na construção de seu próprio sucesso, acabam legitimando o corte de investimentos do Estado na educação. De acordo com Zafalão (2021), a ênfase na motivação individual para investir em sua própria formação e qualificação sustenta os sucessivos cortes nos investimentos públicos - que ainda serão devidamente trabalhados. Essa abordagem ignora as desigualdades estruturais e transfere aos indivíduos a responsabilidade de superar barreiras sociais, econômicas e educacionais, reforçando um ambiente competitivo que valoriza a autonomia e a autogestão. Nesse contexto, a meritocracia ganha destaque como um valor central na educação neoliberal. Originalmente, a ideia de meritocracia buscava substituir as antigas estruturas aristocráticas, onde a posição social era determinada pela linhagem, por um modelo baseado nas habilidades e no esforço individual (Kreimer, 2001). Esse discurso, que surgiu no século XVIII com a emergência da modernidade, promovia ideais de igualdade de oportunidades e soberania popular. No entanto, no contexto neoliberal, a meritocracia é instrumentalizada para justificar a desigualdade, sob a premissa de que cada pessoa colhe os frutos de seu esforço individual, independentemente das condições sociais de partida. 28 A noção de capital humano, ao ser incorporada pelas organizações multilaterais como OCDE e Banco Mundial, reforça a ideia de que a educação é um investimento pessoal que gera retornos monetários e sociais (Becker, 1964). O trabalhador passa a ser visto como um empresário de si mesmo, que deve continuamente investir em sua própria formação para manter-se competitivo no mercado de trabalho (Gentili, 1998). Essa interpretação serve como um suporte ideológico para as transformações do capital, que demanda profissionais flexíveis, polivalentes e dispostos a se adaptar rapidamente às mudanças do mercado (Catani, 2006), transformando-se em um mecanismo muito relevante para a etapa atual do capitalismo. No campo educacional, essa lógica se traduz na valorização de uma pedagogia das competências, que se concentra em desenvolver habilidades práticas e comportamentais nos alunos, preparando-os para o mercado de trabalho. Essa abordagem reflete a "nova razão do mundo" descrita por Dardot e Laval (2016), onde a formação dos sujeitos é orientada para maximizar a produtividade e a eficiência, em detrimento de uma educação crítica e humanista. Os currículos passam a valorizar menos os saberes tradicionais e mais as capacidades de adaptação e inovação, alinhando-se à necessidade de formar sujeitos "empreendedores de si mesmos". Dessa forma, o impacto das políticas neoliberais na educação se aplica diretamente todos os envolvidos no processo formador: “Assim, no campo da educação, as políticas neoliberais atingem não somente a gestão do trabalho de professores e professoras, mas também implica a formulação de currículos. [...] A inserção no mercado, conferida pela educação escolar, nessa perspectiva, é de um trabalhador ou trabalhadora flexível, polivalente, empreendedor (empresário de si mesmo), com capacidades de continuamente se transformar e tornar-se mais eficaz. Se educar para o emprego significa também educar para o desemprego, as noções de educação permanente e empregabilidade permitem, na lógica neoliberal, reverter essa relação: agora o trabalhador pode ser o empresário de si mesmo e ser responsável por si mesmo (sujeito empreendedor). O professor ou a professora são responsáveis pelos resultados e pelo processo de seu trabalho mais produtivo ou não. O professor e a professora são compreendidos, nessa perspectiva, como proprietário de seu capital humano, portanto, teria que refletir sobre as relações entre custo e benefícios para fazer escolhas e amealhar mais capital.” (Zafalão, 2021, p. 29, grifo meu) 29 Vale ressaltar que a visão da educação como promotora de igualdade por meio da meritocracia é amplamente criticada por autores como Gaudêncio Frigotto (1984), que aponta que a educação, por si só, não consegue superar as desigualdades estruturais da sociedade capitalista. A ideia de que a escolarização tem como consequência elevar a posição social e econômica dos indivíduos desconsidera os múltiplos fatores que influenciam as oportunidades de sucesso, como a origem social, o acesso a recursos de qualidade e as redes de apoio social. Assim, a promessa de mobilidade social pela educação revela-se, na maioria das vezes, como um mito que reforça a legitimação das desigualdades existentes. A crítica de Frigotto é corroborada pela análise de Castel (2009), que vê na individualização das responsabilidades um processo que aprofunda a precarização dos trabalhadores, reduzindo-os a uma massa de indivíduos isolados, sem acesso a bens coletivos e sem suporte diante das dificuldades impostas pelo mercado de trabalho. Essa individualização se manifesta também no ambiente escolar, onde os professores e os alunos são estimulados a competir entre si, ao invés de serem encorajados a construir uma comunidade educacional baseada na solidariedade e no apoio mútuo. Stephen J. Ball afirma: “Paralelamente e relacionado a isso, o gerencialismo tem sido o mecanismo central da reforma política e da reengenharia cultural do setor público nos países do norte nos últimos 20 anos [... ]. O gerencialismo desempenha o importante papel de destruir os sistemas ético-profissionais que prevaleciam nas escolas, provocando sua substituição por sistemas empresariais competitivos. Isso envolve “processos de institucionalização e desinstitucionalização”, em vez de ser uma mudança “de uma vez por todas”, é um atrito constante, feito de mudanças incrementais maiores e menores, mudanças essas que são em grande número e discrepantes.” (Ball, 2005, p. 544-545, grifo meu) Dessa forma, passa a ser um instrumento interessante o ato de deslocar para o indivíduo a responsabilidade pela sua própria formação e sucesso. Assim, o conjunto da teoria do capital humano com a lógica meritocrática promove uma visão 30 de educação que atende às demandas do novo mercado vigente, mas que falha em proporcionar uma verdadeira igualdade de oportunidades. 31 4. AS TRANSFORMAÇÕES DA EDUCAÇÃO PÚBLICA DE SÃO PAULO A categoria dos servidores públicos da educação do estado de São Paulo é uma das maiores do país há décadas. Com relação aos estudantes, em 1995 a rede estadual contava com 6,6 milhões de alunos matriculados. Haviam problemas relacionados ao alto índice de reprovação e de evasão. Dessa forma, em um momento de crise financeira, fazia sentido que um grande objetivo do governo fosse uma reformulação na forma como era pensada a política educacional. O método escolhido pelos governos do PSDB para sanar essa crise foi a implementação dos modelos gerencial e neoliberal. De forma geral, o que se viu foi um processo de precarização do ensino público, marcado por alguns principais momentos. A maior alteração ocorrida foi a progressiva perda de estabilidade entre os professores. Conforme já trabalhado, a estabilidade, inicialmente uma garantia para os servidores da rede pública, passou a ser questionada pelo método gerencial, que a entendia conforme uma porta aberta para a ausência de controle e piora na qualidade do serviço prestado. Novaes (2009, p. 19) afirma: “Desde a segunda metade dos anos 90, os profissionais da educação da rede estadual paulista têm sofrido os impactos da política educacional empreendida pela SEE/SP no que diz respeito às precárias organizações de trabalho e organizações de escola, traduzidas na elevada razão professor/aluno, na ausência de um projeto consistente de formação em serviço, na manutenção de processos de itinerância e rotatividade, ocasionado por um processo anacrônico de atribuição de aulas, no elevado absenteísmo docente, além da responsabilização individual dos professores pelo fracasso escolar dos alunos.” O processo de retirada gradual da estabilidade dos quadros da administração pública é um movimento contrário ao iniciado pela Constituição Federal de 1988, que, através de seu Artigo 40, concedeu estabilidade a todos aqueles que já haviam sido aprovados em concurso público e possuíam dois anos de exercício do cargo, sem necessidade de estágio probatório. Dessa forma, é possível observar de maneira nítida as diferenças entre as visões aplicadas pela Constituinte e pelos governos do PSDB. Oliveira (2004) destaca o aumento da precarização do emprego no magistério público, que em alguns estados já se equiparam ao número de trabalhadores 32 efetivos. Além disso, fatores como o arrocho salarial, a necessidade de respeito ao piso salarial nacional, a inadequação ou ausência de planos de cargos e salários, e a perda de garantias trabalhistas e previdenciárias, decorrente dos processos de reforma do Aparelho de Estado, contribuem para esse cenário de instabilidade. O projeto de reforma educacional aplicado no decorrer dos governos do PSDB pode ser compreendido em grandes etapas - que não são dissociadas. Fernandes et al (2024) divide o processo em implementação (governos Covas I e II, governo Alckmin I), intermediário/aprofundamento (governo Serra) e consolidação (governos Alckmin II e III). Utilizando um raciocínio semelhante, podemos dizer que a primeira fase, que teve início na gestão de Mário Covas, deu início ao processo de reestruturação pedagógica e funcional. Nesse momento, as principais palavras de ordem eram descentralização e aumento da produtividade. O aumento da produtividade, vale dizer, tem duplo objeto: o interesse é por aumentar o rendimento acadêmico dos alunos, bem como a atuação dos professores. Passa-se a ser utilizado uma série de métricas avaliativas. Já a descentralização se instaura enquanto uma prática progressiva de repasse das responsabilidades, sobretudo ao professor e aos trabalhadores das Diretorias de Ensino. A etapa posterior é relacionada à fragmentação da categoria docente, através do aumento do número de contratações sem estabilidade. Esse processo, que possuiu idas e vindas, se consolidou a partir do ano de 2009, através da Lei Complementar nº 1.093, responsável pela criação da chamada “Categoria O” e dos professores eventuais. Ao final do período, ainda é válido ressaltar a ofensiva dos governos do PSDB sobre o programa das escolas de tempo integral. Esse é mais um caso de programa audacioso que foi colocado em prática através do trabalho ostensivo dos professores, que, mediante uma recompensa financeira e cargas horárias exaustivas, foram os responsáveis pelo funcionamento dessas escolas. Além disso, nessa fase foram implementados importantes mecanismos de gestão, como o Plano de Ação Participativo (PAP) e o Método de Melhoria de Resultados (MMR). Ao final desse período começam a aparecer indícios da crise interna que viria a resultar na derrocada do PSDB. Apesar disso, como o direcionamento ideológico para a educação seguiu semelhante, optamos por mantê-los unidos em uma mesma “etapa”. 33 Contornos políticos e a mobilização da comunidade escolar permearam esses processos. Da mesma forma, como já foi sinalizado, não se pode imaginar que essas etapas ocorreram, de fato, separadas em “blocos”. Essa fragmentação representa apenas uma tentativa de aglutiná-las, facilitando a compreensão e visão cronológica. Ademais, essas etapas não podem ser compreendidas enquanto projetos esparsos: todas elas fazem parte do mesmo processo de reforma do estado e de colocação em prática de uma nova política educacional. 4.1 A IMPLEMENTAÇÃO DA NOVA POLÍTICA EDUCACIONAL NOS PRIMEIROS GOVERNOS DO PSDB De acordo com José Luís Sanfelice (2010), pode-se afirmar que as intervenções mais profundas visando a reforma educacional paulista foram realizadas ainda nas gestões de Mário Covas, junto da secretária Tereza Roserlei Neubauer da Silva. Essa gestão da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo foi responsável pelo estabelecimento de um conjunto de medidas e projetos que foram eficazes no estabelecimento do “novo discurso econômico” para a educação pública (Zafalão, 2021). Este sistema de mudanças é tratado por Viriato (2001) enquanto um “quebra-cabeça” abrangente, que de modos distintos atinge todos os envolvidos na comunidade escolar, enfraquecendo-a conforme a reforma avança. No início de seu mandato, o governador Mário Covas determinou novas diretrizes para a política educacional, que visavam “a revolução na produtividade dos recursos públicos que, em última instância, deverá culminar na melhoria da qualidade do ensino” (SÃO PAULO, 1995). Uma leitura atenta já percebe que o objetivo primário da revolução é o aumento da produtividade dos recursos. Em última instância, enquanto consequência, é que vem a possibilidade de melhoria na qualidade de ensino. Todos os comunicados e documentos que partiram do Governo e da Secretaria de Educação à época partilhavam do mesmo diagnóstico: um quadro catastrófico, onde a maior parte da culpa é distribuída entre os operadores do sistema - sejam os gestores ou, sobretudo, os professores (Goulart, 2004). É importante destacar que no primeiro documento oficial relacionado ao assunto (D.O.E.; 1995 apud Goulart, 2004, p. 75), a SEE/SP defende que o impacto da informatização e da internacionalização da economia tinham como consequência 34 a exigência de um novo perfil de cidadão. Ainda, tratam a educação enquanto parte essencial do sucesso econômico e social de qualquer país (Ibid., p. 08). O documento exprime uma visão clara em defesa do gerencialismo, de modo que atribui aos serviços estatais um claro caráter parasitário e afirma que a ineficiência da gestão pública é relacionada a uma crescente centralização e burocratização. Partindo deste diagnóstico, o governo Covas buscou estabelecer uma nova política educacional que alterasse o papel do Estado, deixando de se entender enquanto o prestador de serviços educacionais em si para um papel de agente formulador da política educacional (Goulart, 2004, p. 77). É importante destacar esse elemento, que será vislumbrado de forma nítida em uma série de políticas estabelecidas. Ademais, sugere que a maior dificuldade da educação paulista não é o ingresso na escola, mas sim a sua permanência. Dessa forma, defende desde o início programas que estimulem a progressão escolar e atuem na contenção da evasão. De acordo com Novaes (2009), através de um comunicado da SEE ainda em 1995 foram determinadas três diretrizes centrais para a educação paulista. A primeira delas seria a racionalização da rede administrativa. Essa diretriz exprime a insatisfação do governo Covas com a estrutura administrativa da secretaria da educação, que estaria “dividida em comportamentos estanques, com áreas de atuação superpostas, sem uma política clara e capaz de unificar as suas diferentes instâncias e dimensões, além de distanciada dos problemas da escola” (Novaes, 2009, p. 14). O “remédio” para essa situação seria a reconstrução do aparato administrativo, pautado na agilidade e flexibilidade. A segunda diretriz seria a descentralização e desconcentração administrativa. Sem reduzir as funções articuladores do Estado - de acordo com o comunicado, a diretriz visaria multiplicar os centros de poder e democratizar a aplicação das normas. Referente a isso, Martins (2003) aponta uma entre os conceitos de “descentralização” e “desconcentração”. De acordo com o autor, as políticas aplicadas não tiveram os efeitos desejados, mas, sim, transferiram responsabilidades administrativas. Por fim, a terceira diretriz é relativa aos novos padrões de gestão, que se daria mediante ao estabelecimento de parcerias, da flexibilidade para adotar novas soluções e de novas iniciativas, como a racionalização do fluxo escolar, a instituição de mecanismos de avaliação de resultados, o aumento da autonomia administrativa, 35 financeira e pedagógica das escolas. É interessante analisar que, apesar de ter ocorrido um processo de transferência de responsabilidade administrativa e pedagógica para as unidades, a liberdade pedagógica foi progressivamente reprimida, a partir do estabelecimento de currículos cada vez mais fechados e dos supracitados mecanismos de avaliação de resultados. A aplicação desse novo programa para a educação paulista foi estabelecida através de um conjunto de medidas denominado Reforma da Educação da Rede Pública Estadual, através de três agrupamentos. O primeiro agrupamento previa a racionalização de recursos públicos, através de práticas relacionadas ao ensino, como o Cadastramento Geral dos Alunos, o Programa de Reorganização das Escolas da Rede Pública Estadual, o Programa de Progressão Continuada, Reorganização Curricular e Novo Plano de Carreira. O segundo se centrava no compartilhamento da responsabilidade pelo oferecimento do ensino fundamental, seja através da municipalização ou de parcerias entre estado e municípios. O terceiro agrupamento tinha como objetivo a desconcentração administrativa, principalmente através da extinção das Divisões REgionais de Ensino, a criação do SARESP (Sistema de Avaliação e Rendimento Escolar de São Paulo) e o estabelecimento de normas regimentais para as escolas (Oliveira, 1999 e Nery, 2000 apud Goulart, 2007). Para melhor visualização das alterações realizadas nesse primeiro mandato de Mário Covas, cabe o Cronograma das Medidas da SEE - 1995/1998 (Goulart, 2007, p. 80): QUADRO I CRONOGRAMA DAS MEDIDAS DA SEE/SP - 1995/1998 (Goulart, 2007, p. 80) Ano Mês Medida Regulamentação Janeiro Extinção das DREs Decreto nº 39.902 de 01/01/95 Março/Abril Indicação dos Dirigentes Resolução SE nº 2 de 06/01/95 1995 Agosto Cadastramento dos Alunos Decreto nº 40.290 de 31/08/95 Novembro Reorganização da Rede - Parecer do CEE nº 674 de 08/11/95 - Decreto nº 40.510 de 04/12/95 - Resolução SE nº 265 de 04/12/95 Fevereiro Municipalização Decreto nº 40.673 de 16/02/96 36 1996 Março SARESP Resolução SE nº 27 de 29/03/96 Julho Classes de Aceleração - Parecer CEE nº 170 de 24/04/1996 - Resolução SE nº 77 de 03/06/96 Plano de Carreira Lei Complementar nº 836 de 30/12/1997 1997 Dezembro Escola nas Férias Resolução SE nº 165 de 25/11/1997 Progressão Continuada - Instrução conjunta CENP/COGESP/CEI 13/02/1998 - Deliberação CEE nº 9/97 - Indicação CEE nº 5/98 de 15/04/1998 - Resolução SE nº 20 de 05/02/98 Dispõe sobre reclassificação de alunos - Resolução SE nº 67 de 06/05/1998 Dispõe sobre recuperação paralela 1998 Janeiro Reorganização Curricular - Instrução Conjunta CENP/COGESP/CEI 13/02/1998 - Resolução SE nº 04 de 15/01/1998 Março Normas Regimentais para as Escolas Estaduais Parecer CEE nº97/1998, aprovado em 18/03/1998 No primeiro ano do Governo Covas, foram quatro grandes mudanças no funcionamento da rede estadual de ensino, conforme descrito no quadro. A primeira delas se tratou da extinção das 18 Divisões Regionais de Ensino - DREs, que, de acordo com Viriato (2001, p. 88), tinham como função o controle das práticas administrativas e pedagógicas nas unidades escolares. A partir dessa determinação, a função foi incorporada pelas Diretorias de Ensino. Essa mudança se liga diretamente à segunda determinação, que foi a indicação dos Dirigentes Regionais de Ensino, através de um processo seletivo e a submissão de um Plano de Trabalho. Tratou-se de um passo importante para a implementação dos novos projetos da Secretaria de Educação. O cadastramento dos alunos da rede estadual paulista foi realizado em alinhamento com o censo de matrícula do Ministério da Educação (MEC). Esse processo informatizou as matrículas e atribuiu um número de Registro Geral (Identidade) a cada aluno, considerando apenas os que frequentavam regularmente as aulas. Segundo Viriato (2001), essa medida visava eliminar os chamados “alunos fantasmas”, estimados em 286.000 entre 1995 e 1999. O cadastramento também possibilitou à Secretaria um controle preciso sobre o número de matrículas, classes, 37 escolas e professores, informação crucial para ações subsequentes, como a municipalização e a reorganização da rede. A reorganização da rede, iniciada em 1995, reestruturou as escolas estaduais, separando os alunos de acordo com suas séries em diferentes prédios. Essa reorganização dividiu as escolas em quatro tipos, com separação entre os estudantes da 1ª a 4ª série, da 5ª a 8ª série e do ensino médio. A SEE justificou a mudança tanto pelo melhor aproveitamento de recursos, uma vez que muitas escolas estavam subutilizadas, quanto por razões pedagógicas, como a concentração da carga horária dos professores em uma única escola e a criação de ambientes de aprendizagem mais adequados às diferentes faixas etárias. Em 1996, 70% das escolas já haviam passado por essa reorganização, preparando a estrutura física para a municipalização. Em paralelo, os dados da SEE demonstram uma redução de 8.016 escolas, diminuindo o atendimento ofertado. O processo de municipalização foi iniciado pelo Decreto nº 40.673, de 16 de fevereiro de 1996, que instituiu parcerias entre o Estado e os municípios, permitindo a transferência temporária de patrimônio e professores por até cinco anos, além de parcerias com o setor privado. A partir de 1998, a implementação do Fundef (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério), criado pela Emenda Constitucional nº 14 de 1996, reforçou esse processo ao priorizar o financiamento do ensino fundamental. O Fundef distribuía os recursos de acordo com o número de alunos matriculados nas redes de ensino, estabelecendo um valor mínimo por aluno/ano, e incentivava a transferência de responsabilidades educacionais para os municípios. A partir do processo de municipalização, o número de municípios do estado de São Paulo com rede de ensino própria passou de 121 em 1996 para 442 em 1998 (APEOESP; Ação Educativa, 2001, p. 07, apud Goulart, 2004, p. 86). O Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (SARESP) foi implementado em 1996 como um sistema de avaliação institucional. De acordo com a SEE, o objetivo principal era a obtenção de dados sobre o desempenho dos alunos do ensino fundamental e médio, orientando decisões sobre as políticas educacionais do Estado (Viriato, 2001 apud Goulart, 2004, p. 86). O SARESP foi apresentado como uma avaliação externa, baseada em objetivos mínimos a serem alcançados pelos alunos. Os testes seriam elaborados de forma centralizada, sem a participação das escolas, e os resultados, divulgados para a 38 sociedade, com a expectativa de fomentar uma reflexão coletiva sobre a qualidade da educação pública paulista. Para Fernandes et al. (2024), a criação do SARESP enquanto um sistema de avaliação sofreu forte influência do contexto internacional, sobretudo através da Declaração Muncial sobre Educação para Todos (1990). Na Declaração, a defesa da universalisação da educação básica é feita a partir da oferta de um método de ensino que possa ser quantificado, estimulando um processo de reorganização escolar e redimensionamento do trabalho docente. O projeto de Classes de Aceleração, iniciado como piloto e expandido em 1998, buscava reduzir a defasagem idade-série, que atingia 30% dos alunos até a 4ª série e 40% a partir da 5ª série (Viriato, 2001). O projeto foi direcionado aos estudantes que estavam fora da idade esperada para as séries iniciais do ensino fundamental. As turmas eram formadas por 20 a 25 alunos, acompanhados por professores escolhidos pelos diretores com base em sua competência e disposição para o desafio. Esses professores recebiam suporte pedagógico e material didático específico. A iniciativa visava acelerar o aprendizado dos alunos e garantir que eles se alinhassem à série correspondente à sua idade (Goulart, 2004, p. 87). O programa Escola nas Férias teve início em 1997, oferecendo aos alunos do ensino fundamental reprovados a oportunidade de frequentar, por três semanas, cinco horas de aula diárias, visando a aprovação para a série seguinte. Em 1998, o programa tornou-se obrigatório e foi estendido ao ensino médio, independente do número de disciplinas em que o aluno tivesse sido reprovado e sem exigir um índice mínimo de frequência (Oliveira, 1999). A SEE justificou a iniciativa como uma forma de valorizar as potencialidades dos alunos e promover um processo de aprendizado contínuo e dinâmico (Viriato, 2001). A Progressão Continuada foi implementada em 1997 pela Deliberação 9/97 do Conselho Estadual da Educação (CEE), organizando as escolas em dois ciclos: o Ciclo I (1ª a 4ª série) e o Ciclo II (5ª a 8ª série). O regime de progressão continuada buscava garantir a continuidade do processo de ensino e aprendizagem, sem reprovação durante os ciclos. Incluía avaliações contínuas, atividades de reforço, recuperação, e outras medidas de apoio ao estudante. A CEE justificou a mudança como benéfica tanto pedagogicamente, ao preservar a autoestima dos alunos, quanto economicamente, ao reduzir os custos com repetência e evasão escolar, 39 possibilitando um melhor uso dos recursos educacionais (CEE, 1997). Vale mencionar um trecho de comunicado da SEE: “a perda, por repetência e evasão, de 30% de todos os alunos que cada ano frequentam a escola estadual de primeiro e segundo graus, inexplicável do ponto de vista pedagógico, inaceitável do ponto de vista social e improdutivo do ponto de vista econômico” (SÃO PAULO, 1995a, grifo meu). O Plano de Carreira, regulamentado pela Lei Complementar n° 836/97, foi uma resposta às demandas do magistério paulista, que, até 1997, era regido pelo Estatuto do Magistério Público de São Paulo (Lei n° 444/85). Embora o estatuto anterior tenha representado avanços, como a gratificação por trabalho noturno e a ampliação das horas-atividade, as políticas salariais dos governos de Orestes Quércia e Luiz Antonio Fleury Filho precarizaram a evolução na carreira ao priorizar gratificações em vez de um aumento real do piso salarial. A aprovação do novo plano se deu após três anos de debates e trouxe importantes mudanças. A principal foi a substituição do conceito de hora-aula por hora-relógio, onde a aula passou a ser contabilizada como 60 minutos, resultando na redução do número de aulas semanais e na permanência maior dos professores nas escolas. As jornadas de trabalho foram alteradas, concentrando mais aulas em menos professores, de modo que ocorreu a dispensa de funcionários e forçou os que permaneceram a ministrar mais aulas. No que diz respeito