UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA ―JULIO DE MESQUITA FILHO‖ FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA DA MENTE, EPISTEMOLOGIA E LÓGICA Renata Silva Souza O PROBLEMA DA IDENTIDADE PESSOAL ANALISADO A PARTIR DE UMA PERSPECTIVA FILOSÓFICO-INTERDISCIPLINAR MARÍLIA 2017 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA ―JULIO DE MESQUITA FILHO‖ FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA DA MENTE, EPISTEMOLOGIA E LÓGICA RENATA SILVA SOUZA O PROBLEMA DA IDENTIDADE PESSOAL ANALISADO A PARTIR DE UMA PERSPECTIVA FILOSÓFICO-INTERDISCIPLINAR Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Filosofia da Faculdade de Filosofia e Ciências - Universidade Estadual Paulista ―Júlio de Mesquita Filho‖ - UNESP, campus de Marília, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Filosofia Área de Concentração: Filosofia da Mente, Epistemologia e Lógica Orientadora: ProfªDrª Maria Eunice Quilici Gonzalez Agência Financiadora: CAPES MARÍLIA 2017 Souza, Renata Silva. S729p O problema da identidade pessoal analisado a partir de uma perspectiva filosófico-interdisciplinar / Renata Silva Souza. – Marília, 2016. 102 f. ; 30 cm. Orientador: Maria Eunice Quilici Gonzalez. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Filosofia e Ciências, 2016. Bibliografia: f. 99-102 1. Personalidade. 2. Sistemas auto-organizadores. 3. Filosofia da mente. I. Título. CDD 128.2 RENATA SILVA SOUZA O PROBLEMA DA IDENTIDADE PESSOAL ANALISADO A PARTIR DE UMA PERSPECTIVA FILOSÓFICO-INTERDISCIPLINAR Dissertação de Mestrado, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia, da Faculdade de Filosofia e Ciências - UNESP, campus de Marília, como parte do requisito para obtenção do título de Mestre em Filosofia. Exemplar apresentado para exame de qualificação Área de concentração: Filosofia da Mente, Epistemologia e Lógica Linha de Pesquisa: Ciência Cognitiva, Filosofia da Mente e Semiótica Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria Eunice Quilici Gonzalez Agência Financiadora: CAPES Data de Defesa – 31/08/2017 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: __________________________________________________________________________ Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria Eunice Quilici Gonzalez Universidade Estadual Paulista ―Júlio de Mesquita Filho‖ - Faculdade de Filosofia e Ciências, Campus de Marília __________________________________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Mariana Claudia Broens Universidade Estadual Paulista ―Júlio de Mesquita Filho‖ -Faculdade de Filosofia e Ciências, Campus de Marília __________________________________________________________________________ Prof. Dr. Ivo Assad Ibri Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. __________________________________________________________________________ Suplente Interno: Prof. Dr. Hércules de Araújo Feitosa __________________________________________________________________________ Suplente Externo: Prof. Dr.ª Juliana Moroni AGRADECIMENTOS Inicio os agradecimentos com o pensamento de Paulinho da Viola, em sua canção ‗Timoneiro‘. Disse Paulinho: ―E quando alguém me pergunta como se faz pra nadar explico que eu não navego, quem me navega é o mar [...]‖. Assim se deu no decorrer desta pesquisa. A metáfora do mar se estende àqueles/as que me auxiliaram no decorrer da execução deste trabalho. É sempre muito difícil nomear cada pessoa que propiciou o itinerário dessa viagem. No entanto quero enfatizar minha gratidão à querida mestra timoneira, Maria Eunice Quilici Gonzalez, que me conduziu durante todo esse percurso de descobertas afetivo-intelectuais. Meus sinceros agradecimentos aos/às professores/as do programa de pós-graduação em filosofia, em especial ao professor Lauro Frederico Barbosa da Silveira, pela dedicação e trabalho incessante para que outras pessoas possam navegar pelos mares filosóficos. Aos professores avaliadores, Mariana Broens, Edna Alves e Ivo Assad Ibri, agradeço pela generosidade e prontidão com que aceitaram nosso convite para composição da banca avaliadora, bem como pelas valiosas sugestões e críticas que contribuíram para a expansão de horizontes e caminhos filosóficos a serem percorridos. Também agradeço aos suplentes por aceitarem participar do processo de avaliação deste trabalho, são eles: Juliana Moroni, Hércules de Araújo Feitosa, Alexander Gerner. Aos/às colegas do grupo GAEC (Grupo Acadêmico de Estudos Cognitivos), pelo incentivo e aprendizagens coletivas. À querida Edna Bonini, secretária do departamento de filosofia, agradeço pela orientação que sempre dispensou a mim - desde o início de meus estudos na graduação. Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, CNPq, agradeço pelo auxílio financeiro, sem o qual a execução desta pesquisa seria comprometida. Quero registrar, de igual maneira, outro agradecimento todo especial e carinhoso aos meus familiares. Obrigada pai, Hildebrando Azevedo Souza, e, mãe, Zenuzia Silva Souza, por representarem o porto seguro em momentos de instabilidade dessa viagem; também por me auxiliarem a construir e aprimorar, dia após dia, o barco que habilita o trânsito pelas embarcações da vida. Ao meu irmão, Ricardo Silva Souza, agradeço pelo carinho e pelo incentivo que sempre me proporcionou. Aos meus avós queridos, Maria Ribeiro Silva, Cleunice Azevedo, e Francisco Azevedo, agradeço por brindarem nossa história com o exemplo de vida calcado na luta, na poesia e na imaginação. Agradeço também ao meu sobrinho Vicenzo por intensificar o lado lúdico da vida, pelo sorriso que conforta e abriga. Talvez as palavras não sejam capazes de traduzir sentimentos, o de gratidão talvez se aproxime à imagem da imensidão do mar e à suavidade de sua música. Quem sou eu? Perguntou-se em grande perigo. E o cheiro do jasmineiro respondeu: eu sou o meu perfume (Clarice Lispector). Eu existo, estou vendo, mas quem sou eu? (Clarice Lispector). RESUMO O objetivo deste trabalho é analisar o problema da identidade pessoal em uma perspectiva filosófico-interdisciplinar. O problema da identidade pessoal consiste na dificuldade de se estabelecer critérios que possibilitem (ou não) a identificação de características constantes de um indivíduo, como sendo o mesmo, apesar das inúmeras mudanças a que é suscetível ao longo da vida. Analisaremos o problema da identidade pessoal empregando recursos da filosofia da mente, da Teoria dos Sistemas Complexos (TSC) e da filosofia da informação, os quais sustentam o eixo interdisciplinar de nossa pesquisa. Na perspectiva da TSC, ênfase é dada ao modo pelo qual as partes de um sistema interagem entre si em diferentes escalas. Os conceitos de auto-organização, emergência e de complexidade, centrais à TSC, servirão como recursos de investigação do problema da identidade pessoal. Analisaremos, como um estudo de caso, possíveis implicações de modificações corporais concebidas pelos defensores do projeto transhumanista de aprimoramento humano radical. Com a análise dos pressupostos filosóficos subjacentes ao projeto transhumanista, pretendemos ilustrar aspectos da pesquisa filosófico-interdisciplinar na investigação do problema da identidade pessoal. Palavras-chave: Identidade pessoal. Transhumanismo. Auto-organização. Filosofia da mente. Sistemas complexos. ABSTRACT The aim of this work is to investigate the problem of personal identity from a philosophical- interdisciplinary perspective. The problem of personal identity concerns the difficulty of establishing criteria that allows (or not) the identification of constant characteristics of an individual that remains the same despite the many changes that occur throughout his/her life. We will address this problem by employing resources available from the areas of Philosophy of Mind, Complex Systems Theory (CST), and Philosophy of Information (this emphasizes the interdisciplinary nature of the proposed research). From the perspective of CST, emphasis is given to the ways in which different parts of a system interact with each other at various levels. The concepts of self-organization, emergence, and complexity, which are central to CST, can be of assistance in the investigation the problem of personal identity. We will analyze, as a case study, possible implications of bodily modifications conceived by proponents of the transhumanist project of radical human enhancement.Using an analysis of the philosophical criteria on which the transhumanist project is founded, we intend to illustrate ways in which aspects of philosophical and interdisciplinary research can be used to investigate the problem of personal identity. Keywords: Personal Identity. Transhumanism. Self-organization. Philosophy of Mind. Complex Systems. SUMÁRIO Introdução ....................................................................................................................... 11 1. Identidade Pessoal e o problema mente-corpo .......................................................... 20 Apresentação ......................................................................................................... 21 1.1 Identidade Pessoal e o problema mente-corpo na Filosofia da Mente............. 21 1.2 Identidade Pessoal na concepção dualista substancial ..................................... 27 1.3 A natureza da mente na perspectiva materialista ............................................. 32 1.4 A natureza da mente na perspectiva funcionalista ........................................... 37 1.5 A concepção externalista de mente .................................................................. 40 Resumo do capítulo ........................................................................................................ 43 2. Identidade pessoal na perspectiva dos sistemas complexos ...................................... 45 Apresentação ......................................................................................................... 46 2.1 Antecedentes do paradigma da complexidade ..................................................... 46 2.2 O paradigma da complexidade: conceitos basilares para o estudo do problema da identidade pessoal ..................................................................................................... .53 2.3 Identidade pessoal e a dinâmica interativa de sistemas não lineares ................... 57 2.4 Emergência na constituição da identidade pessoal .............................................. 60 2.5 Parâmetros de ordem e de controle na constituição da identidade pessoal ......... 65 Resumo do capítulo ........................................................................................................ 69 3. Concepções de Pessoa na contemporaneidade .......................................................... 71 Apresentação ......................................................................................................... 72 3.1 Múltiplos ambientes e Identidade pessoal ....................................................... 72 3.2 Transhumanismo e identidade ......................................................................... 75 3.3 Identidade pessoal e Auto-organização ........................................................... 82 3.4 Pessoalidade e complexidade: reflexões no contexto do transhumanismo ...... 86 3.5 Transhumanismo e revolução verde: monoculturas da mente? ....................... 89 Resumo do capítulo ........................................................................................................ 92 Conclusão Geral ............................................................................................................. 94 Referências ..................................................................................................................... 99 11 Introdução Ela se olhou ao espelho enquanto lavava as mãos e viu a ―persona‖ afivelada no seu rosto (Clarice Lispector). 1 O que é ser uma pessoa? Quais são os processos subjacentes ao desenvolvimento de uma identidade pessoal? Tais questionamentos representam a mola propulsora da investigação que se segue. Essas questões serão investigadas a partir de uma perspectiva filosófico- interdisciplinar, que envolve a filosofia da mente, a filosofia da informação, a ciência da complexidade, antropologia e a sociologia. A noção de pessoa considerada nessa perspectiva parece suscitar mais problemas do que soluções. Contudo, nos propomos a investigar a hipótese, H1, segundo a qual a identidade pessoal emerge de um dinâmico processo informacional que se instaura e se desenvolve em contextos complexos (informacionais e ecológicos). O conceito de pessoa, conforme verificaremos neste trabalho, é apropriado de diversas formas sob o prisma de determinadas sociedades. Em virtude de diferenças próprias ao local de formação das pessoas, diferentes tipos de hábitos, crenças, e significados são incorporados aos seus hábitos individuais – importantes para o processo constitutivo de sua identidade. No que diz respeito ao entrelaçamento das noções de identidade pessoal e ambiente social, Elias (1994, p.150) chama atenção ao recorrente e curioso fenômeno: [...] cada pessoa singular, por mais diferente que seja de todas as demais, tem uma composição específica que compartilha com outros membros de sua sociedade. Esse habitus, a composição social dos indivíduos, como que constitui o solo de que brotam as características pessoais mediante as quais um indivíduo difere dos outros membros de sua sociedade (ELIAS, 1994, p.150). A ideia de que nossa identidade pessoal se constitui em virtude de relações estabelecidas socialmente, em dado nicho, está em consonância com as hipóteses de Mauss, em Sociologia e Antropologia. Mauss (2005) apresenta uma revisão sintetizada da noção de pessoa e de seus múltiplos significados, que variam em virtude de contextos culturais e históricos – que incluem, vale lembrar, a relação do corpo como elemento significativo na comunicação e práticas sociais. Para tanto, Mauss apresenta uma análise da relação entre 1 Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. 12 pessoalidade e organizações sociais, focalizando seu estudo em sociedades como a dos índios Pueblos - habitantes do Estado do Novo México - e de civilizações antigas e contemporâneas. Mauss (2005, p. 373) ressalta que nas sociedades dos indígenas Pueblos, a noção de pessoa atrela-se intimamente à ―Existência de um número determinado de pronomes pelo clã; definição do papel exato que cada um desempenha na figuração do clã e expressão por esse nome‖. A dinâmica de identificação de uma pessoa se dá a partir de hierarquização de papéis desempenhados por dado agente no seio de tal sociedade. Para os índios Pueblos, ressalta Mauss (2005, p. 375), a noção de pessoa está diretamente vinculada ao ―[...] seu clã, mas já destacado dele no cerimonial, pela máscara, por seu título, sua posição, seu papel, sua propriedade, sua sobrevivência e seu reaparecimento na terra num de seus descendentes dotados das mesmas posições, pronomes, títulos, direitos e funções‖. É digno de nota lembrar que em etnias indígenas, como a Araweté – povos que residem na região norte do Brasil, outras formas de relações são estabelecidas tanto em relação ao nome em correlação à pessoalidade, quanto às funções desempenhadas no interior da comunidade. Conforme observou Viveiros de Castro (1992, p. 132- 133): Ao contrário de outras sociedades indígenas brasileiras, onde os nomes marcam posições sociais e papéis cerimoniais, chegando quase a terem a função de títulos, entre os Arawéte os nomes ao mesmo tempo são individualizantes – ninguém pode trazer o mesmo nome que outra pessoa viva, e muitas são as pessoas com nomes que não foram usados por ninguém no passado – e curiosamente ―impessoais‖ e relacionais. Viveiros de Castro (1992, p.130) acrescenta que, na etnia Araweté, a troca de nomes que marca a passagem da infância para a vida adulta diz respeito a um evento bastante específico no contexto familiar/matrimonial, a saber, o nascimento do primeiro filho: ―Para os Araweté, ser adulto é ter filhos‖ (VIVEIROS de CASTRO, 1992, p.129). No que diz respeito a esse ritual de troca de nomes, o pensador acrescenta que, em geral, ―[...] os pais tendem a ser conhecidos pelo nome do primogênito, mesmo se este foi uma criança que morreu pequena‖ (VIVEIROS de CASTRO, 1992, p.129). Na observação de Viveiros de Castro, o ritual de nomeação não mantém relação com a ideia de perpetuidade ou reencarnação de almas via nomes, tampouco, acrescenta o pensador, ―[...] se transmitem as relações de parentesco do antigo portador do nome para a criança nominada (como ocorre em outros grupos indígenas) (VIVEIROS de CASTRO, 1992, p. 131). Já no que se refere às funções desempenhadas no seio da comunidade Araweté, Viveiros de Castro (1992, p.88) realça que: 13 Como em toda sociedade não-industrial, pequena e morfologicamente simples, a vida cotidiana araweté reserva às categorias e atitudes de parentesco um papel maior. As formas de cooperação econômica, os arranjos residenciais, os alinhamentos políticos – tudo isto é função das relações de parentesco, por consanguinidade ou afinidade, entre as pessoas. As diferenças entre etnias e localidades às quais os indivíduos pertencem parecem indicar a diversidade de significações estabelecidas entre funções, nomes, identidade coletiva e individual. Voltando à análise das práticas subjacentes aos indígenas Pueblos, bem como a relação estabelecida por esses em relação ao ritual de nomeação, Mauss (2005, p. 378) observa que as diversas etapas porque passa dado indivíduo no seio de sociedades como essa, são marcadas pelo ritual de renomeação e retitulações constantes: [...] da criança, do adolescente, do adulto (masculino e feminino); o adulto também possui um nome como guerreiro ([sic] não as mulheres), como príncipe e princesa, como chefe e chefa, [...], e para o cerimonial particular que lhes pertence, para sua idade de retiro, seu nome da sociedade [...]; enfim, são nomeados: sua ―sociedade secreta‖ na qual são protagonistas. A importância do nome, e da troca de nomes que marcam a mudança gradativa da identidade do agente, em tais sociedades, relaciona-se a um aspecto de igual importância no processo oriundo dos rituais, a saber: promoção da perpetuidade das almas e das coisas (MAUSS, 2005, p. 377). Mauss salienta que a perpetuidade das almas (2005, p. 377), ―[...] só é garantida pela perpetuidade dos nomes dos indivíduos, das pessoas. Essas agem apenas como representantes e, inversamente, são responsáveis por todo o seu clã, suas famílias, suas tribos‖ 2 . Em resumo, o cerne definidor de pessoa, em sociedades indígenas que seguem princípios análogos aos dos Pluebos, está atrelado aos papeis sociais, religiosos e corporais (como o uso de máscaras, rituais, etc), desempenhados pelo agente no seio de tal organização - papel esse que se altera em virtude do gênero e das etapas de desenvolvimento do agente participante, e que, de alguma forma, desempenha um relevante papel na manutenção desse sistema organizativo. 2 De forma diversa às práticas dos indígenas Pueblos, na qual o ritual de nomeação possui uma dimensão sagrada, momento pelo qual se faz contato com as divindades, Elias (1994, p.151) nos lembra que, nas sociedades nacionais essa dimensão é esvaída, já que: ―[...] toda criança recém-nascida tem que ser registrada perante o Estado para ser posteriormente reconhecida como cidadão do país e precisa da certidão de nascimento em muitas ocasiões de seu crescimento e durante a vida adulta‖. 14 De forma análoga à explicitação da noção supracitada de pessoa, Mauss (2005, p. 384) enfatiza que é possível comparar, de certo modo, tais sociedades às tradições presentes em civilizações orientais como a antiga China, na qual: ―A ordem dos nascimentos, a hierarquia e o jogo das classes sociais fixam os nomes, a forma de vida do indivíduo [...] A China conservou as noções arcaicas. Mas, ao mesmo tempo, retirou da individualidade todo caráter de ser perpétuo e indecomponível‖ 3 . A breve concepção de pessoas nas sociedades apresentadas parece estar vinculada à ideia de que uma pessoa se faz na relação com os membros de uma sociedade, representando papeis indispensáveis para a continuidade da mesma. A noção de responsabilidade, ainda que com suas devidas reservas, está presente de forma bastante explícita, já que o funcionamento e manutenção da dinâmica social depende, sobremaneira, da atuação comprometida e responsável dos indivíduos que incorporam os papeis designados pelo seu grupo. Mauss argumenta que as estruturas sociais próprias de cada povo/civilização provêem diferentes funções e restrições que permitem o florescimento de tipos de identidades pessoais diversas. Em um contexto semelhante, Elias (1994, p.21) acrescenta que o indivíduo e a sociedade estão entretecidos como em uma espécie de: [...] tecido de relações móveis que a essa altura já se precipitaram nela como seu caráter pessoal. E aí reside o verdadeiro problema: em cada associação de seres humanos, esse contexto funcional tem uma estrutura muito específica. Numa tribo de criadores nômades de gado, ela é diferente da que existe numa tribo de lavradores; numa sociedade feudal de guerreiros é diferente da existente na sociedade industrial de nossos dias e, acima disso tudo, é diferente nas diferentes comunidades nacionais da própria sociedade industrial. Em concordância com Elias e Mauss, entendemos que a identidade pessoal depende do contexto de relações de que o agente participa. Em adição à dimensão da representação de papéis em um contexto situado e incorporado às ações dos indivíduos – elementos esses de crucial importância para a constituição da pessoalidade, Mauss (2005, p.385) acrescenta que o significado contemporâneo mais familiar que temos da noção de pessoalidade teve origem entre os romanos, haja vista que, no entendimento dos mesmos: [...] a ‗pessoa é mais do que um elemento de organização, mais do que um nome ou o direito por um personagem e a uma máscara ritual, ela é um fato fundamental do direito. [...] esse princípio ainda governa as divisões de 3 Tal hipótese é polêmica, e sua verificação requer um aprofundamento nos estudos da cultura chinesa, que escapa aos objetivos deste trabalho. 15 nossos códigos. Mas trata-se aqui do resultado de uma evolução particular ao direito romano. A noção de pessoa veiculada à concepção de entidade portadora de direitos e deveres acrescenta novidades no plano interativo agente-ambiente. Como rememorado por Mauss, o acréscimo desse elemento à noção de pessoa abriu precedentes para a exclusão de grupos em face de sua manipulação de acordo com interesses vigentes na época - vide o exemplo dos escravos. Em virtude da concepção que se tinha a respeito dos escravos, qual seja: a de não possuir ―[...] personalidade, não possuir seu corpo, não ter antepassados, nome, cognome, bens próprios [...]‖ (MAUSS, 2005, p.387), tais indivíduos eram excluídos do rol da pessoalidade. Mauss (2005, p.390) ressalta, ainda, que a concepção de pessoa civil adiciona: [...] cada vez mais um sentido moral ao sentido jurídico, um sentido de ser consciente, independente, autônomo, livre, responsável. A consciência moral introduz a consciência na concepção jurídica ao direito. Às funções, honrarias, cargos e direitos, acrescenta-se a pessoa moral consciente. O breve panorama dos trabalhos de Mauss (2005), Viveiros de Castro (1992) e de Elias (1994) servem de inspiração para a reflexão que desenvolveremos sobre o processo de desenvolvimento da concepção de pessoa em diferentes culturas e períodos históricos. Em face da hipótese, H1, segundo a qual a identidade pessoal emerge de um dinâmico processo informacional que se instaura e se desenvolve em contextos complexos, influencia a formação identitária das pessoas, investigaremos se, na contemporaneidade, há alguma novidade para o estudo do problema da identidade pessoal. No seio de práticas difundidas em sociedades contemporâneas industrializadas, presenciamos, por exemplo, a gradual e crescente utilização de tecnologias que visam a um suposto aprimoramento de nossas capacidades físicas e cognitivas. A ideia de que podemos substituir partes de nosso corpo com o fim de aprimorar a identidade humana - nas esferas coletivas e individuais - é um pressuposto assumido e defendido pelos proponentes do projeto transhumanista, e surge, de acordo com nossa compreensão, em um contexto específico do desenvolvimento civilizatório. Nesse contexto, deparamo-nos com a demanda pelo alto desempenho e produtividade, que são valorizados e incentivados, sobretudo, pelas novas possibilidades de interação inauguradas pelas tecnologias de comunicação e informação (TICs). 16 A demanda pela alta produtividade e alta performance na dinâmica social cria novos imperativos, como, por exemplo, a necessidade de superar a condição física. O corpo biológico do agente por vezes é tido como obsoleto e deficiente, já que está em descompasso com o ritmo veloz de estímulos informacionais propagados pelas novas mídias de interação e comunicação. Práticas de criação de identidade virtual, como a criação de avatares, bem como as possibilidades de interação em tempo real com pessoas de outras culturas (participação em debates no âmbito global, que diz respeito às questões de gênero, ambiental, político- econômica, dentre outras), são viabilizadas em virtude das comunicações em redes e dispositivos eletrônicos. Múltiplos ambientes e identidades são criadas através de interações entre indivíduos e ambientes digitais, com o auxílios das tecnologias da informação (daqui para frente, TICs). Essas interações, como sugerido por Santaella (2004), permitiriam que estejamos livres das limitações espaço temporais impostas pelo corpo, pois o agente passaria a estar imerso em um amplo universo de escolhas disponibilizados por esses dispositivos digitais. Segundo Santella, (2005), as TICs colocam novos desafios para pensarmos os limites do corpo (bem como da identidade individual e coletiva), em virtude de uma de suas dimensões bastante significativas: a reconfiguração das fronteiras entre corpo biológico e ambiente virtual-artificial. Ela argumenta que estamos em transição para um estágio do desenvolvimento humano no qual essas fronteiras são cada vez mais problematizadas. A gradual convergência do ser humano com as TICs, tanto no âmbito intercororal quanto no plano intracorporal (SANTAELLA, 2005), traz à tona questões sobre a identidade pessoal na contemporaneidade – dando ensejo a novidades e desafios. Além dos múltiplos ambientes em que interagimos, como, por exemplo, o ambiente físico imediato e suas demais ramificações – cidade, país, dentre outros, as TICs inauguram novos contextos interativos, como os ambientes virtuais. Em face da complexidade de elementos envolvidos na dinâmica formativa de identidades, um problema metodológico se coloca: que estratégias adotar na análise de inúmeros elementos, sociais, ecológicos, biológicos, psicológicos, dentre outros, que se entrelaçam na dinâmica de formação da identidade pessoal? A nossa proposta metodológica aponta para a importância do olhar sistêmico, filosófico-interdisciplinar, no que diz respeito à dinâmica interativa humana com o ambiente - bem como de conceitos que a representem. O olhar sistêmico, interdisciplinar, em face a dada problemática, é o que caracteriza a metodologia de análise subjacente ao pensamento complexo. O método em questão 17 recomenda que um problema deva ser analisado de forma a considerar, em várias escalas e perspectivas, a intrincada relação dinâmica entre agente/ambiente – ou entre um sistema e os demais subsistemas que o integram (MORIN, 2008). Assim, no que diz respeito à investigação do problema da identidade pessoal, apesar de não haver consenso entre os filósofos sobre a estratégia metodológica adequada para investigá-lo, lançaremos mão da vertente de estudo subjacente aos estudos dos sistemas complexos, assumindo a hipótese de que a pessoa é um produto emergente de um processo dinâmico situado e incorporado em um ambiente específico. De acordo com Elias (1994, p.152), a investigação de problemas como o da identidade pessoal ao longo do tempo requer conceitos que expressem a ideia de processo e de desenvolvimento. Nas palavras do mesmo: O problema da identidade individual durante a vida inteira não pode ser intelectualmente apreendido, como agora podemos ver com mais clareza, enquanto não se levar em conta a natureza processual do ser humano e não se dispuser de instrumentos conceituais adequados, de símbolos linguísticos para identificar o processo de desenvolvimento. (ELIAS, 1994, p. 153). Na perspectiva processual da identidade pessoal, ênfase é dedicada às relações sígnicas (que incluem gestos, linguagem verbal, vestuário, pintura corporal, dentro outros) que se estabelecem entre as partes de um sistema e sua influência no processo de formação da identidade do indivíduo situado em seu contexto dinâmico. Argumentaremos que as relações sígnicas que constituem a identidade dos indivíduos podem ser explicitadas a partir dos conceitos da sistêmica, como os de auto e hetero-organização, emergência, parâmetros de ordem e de controle, não-linearidade, sistemas complexos. Em síntese, sob o prisma da complexidade, defenderemos a hipótese segundo a qual a identidade pessoal pode ser entendida como produto emergente de uma rede de comunicação estabelecida entre indivíduo-ambiente. Como um estudo de caso ilustrativo da hipótese em questão, H1, analisaremos pressupostos subjacentes ao projeto de aprimoramento radical, também conhecido como projeto transhumanista. Nas raízes do projeto transhumanista há o pressuposto da possibilidade de melhoria de capacidades humanas através de recursos tecnológicos. Tal possibilidade contempla o ser transhumano, ou seja, aquele que está em transição rumo à meta de eliminar o envelhecimento e de aprimorar substancialmente suas capacidades intelectuais, físicas e 18 psicológicas (BOSTROM, 2003, 2005; KURZWEIL, 2005). Como ressalta Santaella, o processo de transição já foi iniciado com as TICS (abordaremos essa questão na seção 3.1), assim como pela interferência de cirurgias de correção estética e de substituição orgânica. Em face do cenário no qual os processos de transformação (no plano individual e social) são intensificados, investigamos a dinâmica de desenvolvimento da identidade pessoal bem como as possíveis consequências de um direcionamento hetero-organizado desse processo, proposto pelos transhumanistas. A notável abrangência interdisciplinar do projeto transhumanista (fundamentado na computação, biotecnologia, química, ciências sociais, inteligência artificial, filosofia, entre outros) ilustra alguns de seus aspectos, dentre os quais ressaltamos o problema da identidade pessoal. Nesse contexto, a questão norteadora de nossa análise, Q1, pode ser assim formulada: ao se alterar, através de recursos tecnológicos, a natureza qualitativa das relações constitutivas de um organismo, altera-se também radicalmente a identidade desse organismo? A fim de investigar a questão Q1, temos como ponto de partida, no Capítulo 1, uma análise panorâmica acerca das principais perspectivas filosóficas do problema mente-corpo e de sua relação com o problema da identidade pessoal, dentre as quais destacamos: o dualismo substancial, a teoria da identidade mente e cérebro, o funcionalismo, e a concepção externalista de mente. A análise de tais perspectivas teóricas nos auxiliou a refletir sobre os antecedentes do paradigma da complexidade, que envolve várias dessas dimensões (biológica, funcional, ambiental) na caracterização de uma pessoa. No Capítulo 2, apresentamos os antecedentes do paradigma da complexidade, bem como o arcabouço teórico e metodológico desse paradigma que fundamentou nossa investigação acerca dos estudos da identidade pessoal processual, destacando, assim, os conceitos de sistemas, sistemas complexos, não-linearidade, emergência, parâmetros de ordem e de controle. Por fim, no Capítulo 3, apresentamos aspectos centrais da noção de pessoa na contemporaneidade, resgatando elementos subjacentes às dinâmicas sociais contemporâneas que se baseiam em relações pautadas no paulatino deslocamento de relações presenciais (situadas e incorporadas) para o ambiente virtual; ilustrando tais reflexões, apresentamos, como estudo de caso, sugerindo possíveis correlações entre tais pressupostos de deslocamento de relações situadas e incorporadas ao projeto transhumanista. Por fim, apresentamos antecedentes da noção de aprimoramento radical no âmbito da agricultura bem como suas similaridades com a narrativa dos proponentes do transhumanismo. 19 Admitindo, para efeito de análise, os pressupostos do projeto transhumanista na dinâmica de modificação e aprimoramento da identidade individual, bem como sua efetivação nas esferas mais fundamentais de nossas relações interpessoais, o seguinte problema, concernente à identidade pessoal, é analisado: (Q2) de que forma podemos caracterizar a noção de pessoa na contemporaneidade, em face aos projetos em curso como os do transhumanismo? Ainda que não tenhamos uma resposta definitiva para as questões Q1 e Q2, elas nos motivam a refletir, na perspectiva filosófico-interdisciplinar, sobre temas e problemas prementes da contemporaneidade. 20 1. Identidade Pessoal e o problema mente-corpo Fotografia: Oleksandr Hnatenko 4 O que é que uma pessoa é, assim, por detrás dos buracos dos ouvidos e dos olhos? (João Guimarães Rosa) 5 4 Fonte: https://askepticaldesigners.files.wordpress.com/2013/10/oleksandr-hnatenko-gnato-surreal-moment-in- photography-11.jpg. 5 Grande Sertão: Veredas. 21 Apresentação A busca pela compreensão da natureza da mente suscitou divergentes concepções e teorias explicativas a respeito das principais características constitutivas da mesma e de sua relação com o corpo. O ímpeto investigativo de tal busca se fundamenta na tentativa de encontrar elementos passíveis de fornecer subsídios à descrição dos processos subjacentes ao desenvolvimento e formação identitária dos organismos. O tema da identidade pessoal, na filosofia da mente, passa, em geral, pelo estudo da relação mente-corpo. Nessa trajetória, o presente capítulo investiga algumas das concepções clássicas do problema mente-corpo, em quatro seções: Em 1.1, investigamos o problema mente-corpo na perspectiva da filosofia da mente, bem como sua relação com o problema da identidade pessoal. Nas seções 1.2, 1.3, 1.4 e 1.5 apresentamos as principais propostas explicativas, oferecidas na filosofia da mente, do problema mente-corpo, a saber, respectivamente: dualismo substancial, teoria da identidade mente e cérebro, funcionalismo, e a concepção externalista de mente. Por fim, analisamos os ecos dessas propostas no que concerne ao problema da identidade pessoal. 1.1 Identidade Pessoal e o problema mente-corpo na Filosofia da Mente Quem sabe direito o que uma pessoa é? (João Guimarães Rosa) 6 O problema mente-corpo, na filosofia da mente, pode ser assim enunciado: ―[...] qual é a relação entre mente e corpo? Ou, alternativamente, qual é a relação entre propriedades mentais e físicas?‖ 7 (STANFORD ENCYCLOPEDIA OF PHILOSOPHY). Na análise do referido problema, ressalta Maslin (2009, p.13), procura-se saber em que consistem realmente os estados mentais; se são esses: [...] em última instância de natureza física, à semelhança dos processos envolvidos, por exemplo, na fotossíntese, ou são eles totalmente de caráter imaterial, nada tendo em comum como o mundo físico, como as almas e os espíritos são tradicionalmente concebidos. O estudo do problema mente corpo, sob uma perspectiva filosófico-interdisciplinar, assim como o da identidade pessoal, parece extrapolar os domínios da física, haja vista que: 6 Grande Sertão: Veredas. 7 The mind-body problem is the problem: what is the relationship between mind and body? Or alternatively: what is the relationship between mental properties and physical properties? 22 Seres humanos possuem (ou parecem possuir) tanto propriedades físicas quanto propriedades mentais. Pessoas possuem (ou parecem possuir) o tipo de propriedade atribuída nas ciências físicas. Essas propriedades físicas incluem tamanho, peso, forma, cor, movimento no espaço e tempo, etc. Mas elas também possuem (ou parecem possuir) propriedades mentais, que nós não atribuímos a objetos tipicamente físicos. Essas propriedades envolvem consciência (incluindo experiência perceptual, experiência emocional dentre outros), intencionalidade (incluindo crenças, desejos, e outros), e elas estão sob posse de sujeitos ou de um self 8 . (STANFORD ENCYCLOPEDIA OF PHILOSOPHY) O problema da identidade pessoal se caracteriza pela dificuldade de se estabelecer critérios que possibilitem a identificação de características constantes de um dado indivíduo - apesar das inúmeras mudanças a que é suscetível ao longo da vida. Dito de outro modo: como pode haver identidade pessoal em vista do constante fluxo de mudanças pelas quais passamos? A investigação do referido problema, como sugerido, vincula-se ao problema mente-corpo, uma vez que pessoas são constituídas por mentes e corpos. Uma série de problemas permanece nessa vinculação preliminar: em que medida os aspectos corporais e ambientais influenciam o processo de constituição de mentes e, por conseguinte, de uma identidade pessoal? Seria a mente a responsável pela identidade do indivíduo? Aprofundaremos essas questões nas seções seguintes. Retornando à questão do problema mente-corpo, e de sua relação com o problema da identidade pessoal, Maslin enfatiza que ―[...] experiências [mentais] devem existir como sendo experiências de alguém ou de algum ser. A ideia de que poderia haver experiências soltas e separadas flutuando por aí, como se fossem sem ligação a algum ou outro sujeito, não parece fazer sentido [...]‖ (MASLIN, 2009, p.13). Nesse contexto, buscamos compreender se critérios que possibilitem elucidar a natureza da mente propiciariam o entendimento da identidade pessoal. No entendimento de Baker (2007), uma pessoa não é idêntica ao seu corpo. O aspecto biológico, de acordo com a pensadora, não é suficiente para caracterizar uma pessoa enquanto tal. De forma geral, o corpo, para Baker, é uma condição necessária, mas não suficiente, para a constituição daquilo que a mesma entende por pessoa. A condição suficiente, pelo seu prisma de análise, corresponderia à perspectiva de primeira pessoa. 8 Humans have (or seem to have) both physical properties and mental properties. People have (or seem to have) the sort of properties attributed in the physical sciences. These physical properties include size, weight, shape, color, motion through space and time, etc. But they also have (or seem to have) mental properties, which we do not attribute to typical physical objects These properties involve consciousness (including perceptual experience, emotional experience, and much else), intentionality (including beliefs, desires, and much else), and they are possessed by a subject or a self. 23 Baker (2007) defende a hipótese segundo a qual a noção de pessoa está vinculada à capacidade de seres conscientes possuírem uma perspectiva de primeira pessoa – capacidade essa que, vale ressaltar, habilitaria e alicerçaria a capacidades dos agentes em representarem, entre outros conteúdos, seus deveres e direitos em um nicho social 9 . Em uma caracterização geral, Baker (2007, p. 68) apresenta sua hipótese principal acerca da noção de pessoa. Segundo ela: [...] quando uma pessoa passa a existir, um novo objeto também passa a existir [...] O que distingue a pessoa de outros tipos primários (como planeta ou organismo humano) diz respeito a essas possuírem necessariamente perspectivas de primeira pessoa. Quando um organismo humano desenvolve uma perspectiva de primeira pessoa, uma coisa nova - uma pessoa - vem à existência. 10 (BAKER, 2007, p. 68, tradução nossa). Baker (2007, p. 68) argumenta que a diferenciação entre as categorias de pessoa e de humano não remete a uma concepção dualista da identidade. A noção de pessoa, segundo a pensadora, é uma propriedade derivativa do corpo e de suas relações contextuais, às quais, por sua vez, dão origem à percepção de si (em primeira pessoa) em vários níveis. Ela enfatiza que: [...] dizer que uma pessoa não é idêntica ao seu corpo não significa que a pessoa é idêntica ao corpo-mais-alguma-outra-coisa (como uma alma). David de Michelangelo não é idêntico ao pedaço de mármore mais-alguma- outra-coisa. Se x constitui y e x é totalmente material, então y é totalmente material. O corpo humano (o que eu preciso para ser idêntico a um organismo humano) é totalmente material e o corpo humano constitui a pessoa humana. Portanto, a pessoa humana é totalmente material. A pessoa humana é tão material como o David de Michelangelo o é. 11 (BAKER, 2007, p.68, tradução nossa). As características materiais (corpo biológico) são, dessa forma, necessárias – porém não suficientes - para a emergência de propriedades qualitativas (percepção de si mesmo em vários níveis). Assim como a estátua de Michelangelo quando situada em outro contexto e/ou 9 Como vimos no início deste trabalho, a noção contemporânea de pessoa comumente propagada está atrelada à representação de direitos e deveres civis, originada entre os romanos. 10 [...] when a person comes into being, a new object comes into being – an object that is a person essentially. What distinguishes person from other primary kinds (like planet or human organism) is that persons have first- person perspectives necessarily. When a human organism develops a first-person perspective, a new thing – a person – comes into existence. 11 As I have emphasized, a person is not identical to her body. But to say that a person is not identical to her body does not mean that the person is identical to the body-plus-some-other-thing (like a soul). Michelangelo‘s David is not identical to a piece-of-marble-plus-some-other-thing. If x constitutes y and x is wholly material, then y is wholly material. The human body (which I take to be identical to a human organism) is wholly material and the human body constitutes the human person. Therefore, the human person is wholly material. A human person is as material as Michelangelo‘s David is. 24 nicho social perderia o seu significado e valor estético, a percepção de si mesmo/a certamente seria alterada em contextos nos quais diferentes hábitos, preceitos morais, códigos e regras civis, capacidades auto-perceptivas do corpo (estatura, membros sensórios motor, etc.) fossem ou se dessem em uma conjuntura diversa. A partir da configuração da concepção backeriana de pessoa, dotada de um corpo situado em um ambiente ecológico, social e cultural, resta-nos investigar do que se trata, no entendimento da mesma, a perspectiva de primeira pessoa. De acordo com Baker (2007, p. 69, tradução nossa): A perspectiva de primeira pessoa é uma habilidade muito peculiar que todas e somente as pessoas têm. É a capacidade de conceber a si mesmo como a si mesmo, a partir do interior, por assim dizer. A evidência linguística de uma perspectiva forte [robust] de primeira pessoa vem do uso de pronomes em primeira pessoa embutidos em frases com verbos linguísticos ou psicológicos - por exemplo, 'Eu me pergunto como vou morrer ' ou 'Eu prometo que vou ficar com você'. Se eu quero saber como eu vou morrer, ou eu prometo que vou ficar com você, então estou pensando em mim como eu mesma; Eu não estou pensando em mim de forma alguma na terceira pessoa [...] Qualquer coisa que questiona acerca de sua própria morte ipso facto tem uma perspectiva de primeira pessoa e, portanto, é uma pessoa 12 . A partir do quadro referencial da relação entre a perspectiva de primeira pessoa e a pessoalidade, entendemos que a própria perspectiva de primeira pessoa pode ser pensada como produto emergente da relação com os outros ‗eus‘, ou, dito de outra forma, da influência da perspectiva de terceira pessoa na constituição da perspectiva de primeira. Nesse sentido, Elias (1994, p.152) entende que: ―[...] a palavra ‗eu‘ careceria de sentido se, ao proferi-la, não tivéssemos em mente os pronomes pessoais referentes também às outras pessoas‖. Em consonância com a polêmica hipótese backeriana de que a pessoa humana é constituída, sobretudo, pelo desenvolvimento de ferramentas conceituais-linguísticas – que possibilitam formas verbais de auto-referencialidade, Elias (1994, p.156) acrescentará que elas representam: [...] um dos principais fatores a [distinguir os seres humanos] dos demais organismos, quer se trate de formigas ou macacos, é sua já mencionada capacidade de produzirem um efeito especular. Têm certa capacidade de 12 A first-person perspective is a very peculiar ability that all and only persons have. It is the ability to conceive of oneself as oneself, from the inside, as it were. Linguistic evidence of a robust first-person perspective comes from use of first-person pronouns embedded in sentences with linguistic or psychological verbs – e.g., ‗‗I wonder how I Will die,‘‘ or ‗‗I promise that I Will stay with you‖. If I Wonder how I will die, or I promise that I‘ll stay with you, then I am thinking of myself as myself; I am not thinking of myself in any third person way [...]. Anything that can Wonder how it will die ipso facto has a first-person perspective and thus is a person. 25 saírem de si mesmos e se confrontarem, de modo que conseguem ver-se como que no espelho de sua consciência. Tendo como base de referência a caracterização supracitada da perspectiva de si mesmo, que inclui a dimensão linguística como elemento central na constituição da identidade pessoal, Baker (2007, p. 69) argumenta que uma pessoa, ainda que perca a memória de suas vivências e histórias passadas, pode, ainda assim, possuir uma percepção de si, percepção essa evidenciada através do uso linguístico, por exemplo, de pronomes autorreferentes. Baker (2007) lança mão do teste da linguagem (à maneira de Descartes?) para colocar à prova características que, em seu entendimento, são pertencentes apenas ao âmbito humano. No entanto, diferentemente de Descartes, Baker argumenta que animais não- humanos superiores de igual maneira podem possuir uma perspectiva de primeira pessoa, mas uma autopercepção rudimentar – percepção essa que, ainda assim, não faria de tais indivíduos pessoas propriamente dita. Investiguemos seus argumentos. Baker (2007, p. 76-77, tradução nossa) considera que: [...] um ser com uma perspectiva rudimentar de primeira pessoa é um ser senciente, um imitador, e um agente intencional. Bebês humanos têm perspectivas rudimentares de primeira pessoa [...] Há inúmeras pesquisas que mostram que eles são imitadores desde o nascimento. [...] Bem como os animais não humanos superiores parecem satisfazer as condições para possuírem perspectivas rudimentares de primeira pessoa. A observação de animais domésticos como cães e gatos sugere que eles têm perspectiva rudimentar de primeira pessoa. Eles são sencientes – sentem dor, por exemplo 13 . Apesar de reconhecer a capacidade de animais não humanos e crianças de possuir uma perspectiva rudimentar de primeira pessoa, Baker (2007, p. 79, tradução nossa) afirma que ―[...] bebês humanos são pessoas e mamíferos superiores não-humanos não são pessoas (ou provavelmente não o são)‖ 14 . Dessa forma, caberia a seguinte indagação: se animais não humanos superiores e bebês humanos possuem uma perspectiva rudimentar de primeira pessoa, por que os últimos seriam pessoas enquanto os primeiros estariam à margem de tal denominação? Em resposta a tal questão, Baker (2007, p. 79, tradução nossa) argumenta que: 13 So, a being with a rudimentary first person perspective is a sentient being, an imitator, and an intentional agent. Human infants have rudimentary first-person perspectives. [...]. There is abundant research to show that they are imitators from birth. [...] Higher non-human mammals seem to meet the conditions for having rudimentary first- person perspectives as well. Observation of household pets like dogs and cats suggests that they have rudimentary first-person perspectives. They are sentient – they feel pain, for example. 14 [...] human infants and higher non-human mammals all have rudimentary first-person perspectives, but I hold that human infants are persons and higher non human mammals are not persons (or probably not). 26 O que distingue o bebê humano de um chimpanzé é que a perspectiva rudimentar de primeira pessoa dos primeiros é preliminarmente desenvolvida para adquirir uma perspectiva de primeira pessoa forte [robust], mas a perspectiva rudimentar de primeira pessoa de um chimpanzé não se trata de algo preliminar para nada além 15 . Dessa forma, prevalece, supostamente, a hipótese pela qual ser uma pessoa requer a autopercepção não apenas do âmbito corpóreo – já que animais-não humanos a possuem –, mas também do âmbito intelectivo, no qual é possível ser referência de si mesmo. A prova de que tal habilidade de fato existe, segundo Baker (2007), pode ser obtida a partir do teste da linguagem: pessoas formulam sentenças nas quais são objeto de seu próprio pensamento. Essa habilidade é entendida por Baker (2007, p. 70-71, tradução nossa) como capacidade de possuirmos ―vida interior‖. De acordo com a mesma: ―Apenas os seres com vida interior são pessoas, e um mundo povoado por seres com vida interior é ontologicamente mais rico do que um mundo povoado sem seres com vida interior. 16 Entendemos que a hipótese acima apresentada é problemática em virtude de considerar a noção de pensamento (ou, mais especificamente, pensamento sobre si mesmo) estritamente vinculado à linguagem verbal. No entanto, embora a hipótese de Baker – segundo a qual a pessoalidade estaria vinculada à capacidade de manipulação simbólica - dê ensejo a uma série de problemas, entendemos que essa capacidade auto-referencial linguística represente (mais) um elemento bastante importante na formação da identidade dos indivíduos ao longo do tempo. Em virtude de sua concepção de que pessoas são os únicos seres capazes de iniciar um diálogo que possa culminar em uma decisão moral, entendemos que essa habilidade está ancorada na utilização da linguagem verbal e da autopercepção de si (perspectiva de primeira pessoa) – que, vale lembrar, sempre ocorre em face às relações de alteridade estabelecidas em dado nicho social. Em suma, introduzimos brevemente a relação entre o problema mente-corpo e sua relação com o problema da identidade pessoal, ilustrando-a, preliminarmente, a partir do trabalho de Baker (2007). Como vimos, Baker defende a hipótese segundo a qual o corpo do agente é necessário, mas não suficiente, para caracterizar um agente enquanto pessoa. A 15 What distinguishes the human infant from the chimpanzee is that the human infant‘s rudimentary first-person perspective is developmentally preliminary to having a robust first-person perspective, but a chimpanzee‘s rudimentary first-person perspective is not preliminary to anything further. 16 Only beings with inner lives are persons, and a world populated with beings with inner lives is ontologically richer than a world populated with no beings with inner lives. P. 70 What make us ontologically special are our first-person perspectives. 27 capacidade de auto referenciar-se, na concepção de Baker, é o que delimitaria a identidade de dado agente. No intento de aprofundar o estudo de possíveis correlações entre os problemas mente- corpo e o da identidade pessoal, esboçaremos, a seguir, um panorama de suas principais perspectivas filosóficas de análise. 1.2 Identidade Pessoal na concepção dualista substancial Mas o que é que sou então? Uma coisa que pensa. (DESCARTES). 17 A concepção dualista substancial, no âmbito de estudos do problema da identidade pessoal, pode ser compreendida, por exemplo, através da distinção cartesiana entre substância pensante (mente) e extensa (corpo) (DESCARTES, 2000). Parte-se do princípio de que a substância pensante (imaterial) não está sujeita às leis físicas, e de que ela não se altera em função de mudanças corporais ou ambientais. Tendo como referência a concepção dualista cartesiana, poderíamos compreender, previamente, que o que confere identidade ao agente seria a razão ou ‗eu‘ pensante, que, embora se relacione com o corpo, permanece substancialmente inalterável - e é independente do ambiente no qual dado agente se situa. Nas palavras de Descartes (2000, p. 128): [...] há uma grande diferença entre o espírito e o corpo, pelo fato de o corpo, por sua natureza, ser sempre divisível e de o espírito ser inteiramente indivisível. Pois, com efeito, quando considero meu espírito, ou seja, eu mesmo na medida em que sou somente uma coisa que pensa, nele não posso distinguir nenhuma parte, mas concebo-me como uma coisa única e inteira. E, conquanto todo o espírito pareça estar unido a todo o corpo, todavia, estando separados de meu corpo um pé, ou um braço, ou alguma outra parte, é certo que nem por isso haverá algo suprimido de meu espírito. A alma (substância pensante) é, segundo Descartes, a responsável por conferir o sentido de unidade ao indivíduo. Embora o indivíduo possa sofrer alterações corporais, como a amputação de um membro e ou possíveis danos em suas funções motoras, o senso de si seria preservado em virtude da razão do eu pensante. O pensamento seria restrito aos seres humanos, o que lhes conferiria o traço marcante de sua identidade. Na quinta parte do discurso do método, em consonância com os atributos da alma e de sua distinção da matéria, Descartes (1996, p. 66) assinala diferenças entre os animais não-humanos e humanos, a saber: 17 Meditações Metafísicas. 28 ambos se assemelham em sua dimensão corporal, no entanto, apenas os seres humanos possuem a capacidade de pensar, pois só eles possuiriam uma mente ou alma. Nesse contexto, ele ressalta que (1996, p. 66): [...] depois do erro dos que negam Deus [...], não há outro que afaste mais os espíritos fracos do caminho reto da virtude do que imaginar que a alma dos animais seja da mesma natureza da nossa, e que, por conseguinte, nada temos a temer nem a esperar depois desta vida, como ocorre com as formigas; ao passo que, quando se sabe o quanto elas diferem, compreendem-se muito melhor as razões que provam que a nossa é de uma natureza inteiramente independente do corpo e que, por conseguinte, não está sujeita a morrer com ele; depois por não vermos outras causas que a destruam, somos naturalmente levados a julgar que ela é imortal. Dito de outro modo, o atributo corporal, que compartilhamos com outros animais, pertenceria ao ―[...] mundo tridimensional da física, um mundo inteiramente explicável em termos de partículas móveis de tamanho e figura especificados‖, enquanto a mente ou substância pensante, atributo exclusivamente humano, pertenceria ao ―[...] domínio do pensamento [...] cujas características essenciais são inteiramente independentes da matéria e completamente inexplicáveis pela linguagem quantitativa da física‖. (COTTINGHAM, 1999, p. 13-14). Em virtude das especificidades de ambas as substâncias, na perspectiva de Descartes, acrescenta-se, como sugerido por Ryle (2011, p.13), que a primeira seria passível de mensuração e observação, enquanto a segunda, contrariamente, só seria passível de acesso na perspectiva de primeira pessoa. Na compreensão de Ryle (2011, p.13), a divisão proposta pelo dualismo substancial implicaria na composição do seguinte cenário: Os processos e estados corporais podem ser verificados por observadores externos. Assim a vida corporal de um homem é um assunto tão público quanto a vida de aniimais e répteis e até mesmo os cursos de árvores, cristais e plantas [...] Uma pessoa vive portanto através de duas histórias colaterais, consistindo uma no que acontece no e ao seu corpo, a outra no que acontece na e à sua mente. A primeira é pública, a segunda privada. Os acontecimentos da primeira história fazem parte do mundo físico, os da segunda são acontecimentos do mundo mental. Assumir os pressupostos cartesianos, segundo Ryle, implicaria a defesa da hipótese segundo a qual o agente, através dos processos de introspecção e autoconsciência, teria acesso direto e privilegiado aos seus estados mentais. Ao contrário, os fenômenos físicos seriam, nas palavras de Ryle, ‗públicos‘ e passíveis de serem colocadas em xeque, por exemplo (como o faz Descartes com a adoção da dúvida hiperbólica), em virtude das limitações dos sentidos. 29 Em adição aos processos de introspecção, que confirmariam a patente essencialidade da identidade do ser pensante, há outros argumentos apresentados por Descartes a respeito da plausibilidade de sua hipótese acerca da existência essencial de uma mente em seres sencientes como os humanos. Segundo o mesmo, a fala seria uma prova da existência da mente – suposição essa que excluiria do rol da subjetividade animais não-humanos e máquinas. O argumento utilizado pelo pensador se assentou no teste da linguagem. O fato de que nos comunicamos significativamente com outras pessoas através da linguagem verbal seria uma das evidências de que teríamos a singular capacidade de pensar (própria de seres portadores de mente). No entendimento de Descartes: [...] se houvesse máquinas assim que tivessem os órgãos e o aspecto de um macaco ou de qualquer outro animal sem razão, não teríamos nenhum meio de reconhecer que elas não seriam, em tudo, da mesma natureza desses animais; ao passo que, se houvesse algumas que se assemelhassem a nossos corpos e imitassem as nossas ações tanto quanto moralmente é possível, teríamos sempre dois meios muito certos para reconhecer que, mesmo assim, não seriam homens verdadeiros. O primeiro é que nunca poderiam servir-se de palavras nem de outros sinais, combinando-os como fazemos para declarar aos outros nossos pensamentos. [...] E o segundo é que, embora fizessem várias coisas tão bem ou talvez melhor do que algum de nós, essas máquinas falhariam necessariamente em outras, pelas quais se descobriria que não agiam por conhecimento, mas somente pela disposição de seus órgãos. (DESCARTES, 1996, p.63). Tomando em consideração situações nas quais animais não humanos e máquinas, por ventura, pudessem imitar a fala humana (como o papagaio, por exemplo), Descartes enfatiza que é preciso cautela para não se incorrer no erro de: [...] confundir as palavras com os movimentos naturais, que expressam as paixões e podem ser imitados tanto pelas máquinas quanto pelos animais; nem pensar, como alguns autores antigos, que os animais falam, embora não entendamos sua linguagem. Pois, se fosse verdade, já que eles têm vários órgãos correspondentes aos nossos, poderiam fazer-se entender tanto por nós como por seus semelhantes. (DESCARTES, 1996, p.65). Descartes (1996, p.65) defende ainda a hipótese do funcionamento estritamente mecânico do movimento de animais não humanos, afirmando que, diferentemente de seres humanos, possuidores de alma, ―[...] sua natureza opera de acordo com a disposição de seus órgãos, assim como se; vê que um relógio, composto apenas de rodas e de molas [...]‖. 30 Tendo em vista um breve panorama dos principais argumentos de Descartes em defesa da divisão dualista substancial, explicitaremos algumas objeções de Ryle (2011) àquele. Uma delas diz respeito à seguinte questão, sumariamente reformulada: como é possível a interação de duas substâncias completamente distintas (substancial e corporal)? Na compreensão de Ryle (2011, p.14): [...] o problema de como a mente e o corpo de um indivíduo se influenciam mutuamente é notoriamente carregado de dificuldades teóricas. O que a mente deseja é executado pelas pernas, braços e língua; [...] as caretas e os sorrisos denunciam a disposição da mente, e os castigos corporais conduzem, pelo menos assim se espera, ao aperfeiçoamento moral. Mas as transações efetivas entre os episódios da história privada e os da história pública permanecem misteriosas, dado que por definição não podem pertencer a nenhuma delas. Para além da referida problemática, Ryle apresenta uma segunda crítica, de igual pertinência, no que tange à suposição de Descartes de que temos acesso privilegiado aos nossos estados mentais. A referida crítica, segundo Ryle (2011, p. 15-16), encontraria suporte na teoria do inconsciente freudiano, descrita por aquele da seguinte forma: As pessoas são movidas por impulsos cuja existência repudiam vigorosamente. Alguns dos seus pensamentos diferem daqueles que confessam, e alguns dos atos que pensam ter desejo de praticar não são na verdade desejados por elas. As pessoas são profundamente enganadas por algumas das suas próprias hipocrisias e ignoram efetivamente fatos da sua vida mental que segundo a teoria oficial lhe deviam ser patentes. O argumento de que ignoramos fatos de nossa vida mental também é ilustrado por Morin (2007) por meio dos seguintes exemplos: a mentira para si – ou auto engano – e os fenômenos de dupla e multi personalidades. No que tange ao primeiro, Morin (2007, p. 88) ressalta aspectos de ―[...] nossa aptidão à duplicação e, ao mesmo tempo, nossa aptidão a camuflar para nós mesmos essa duplicação, pois o Ego mentiroso consegue se auto convencer da sua própria sinceridade‖. Já no que se refere aos fenômenos de dupla e multi personalidades, o pensador destaca que: [...] estes nos revelam que duas personalidades diferentes podem habitar um mesmo indivíduo e ignorar-se. Cada uma dessas personalidades dispõe do seu próprio temperamento, da sua própria voz de sua própria linguagem, da sua própria caligrafia, às vezes até de seus tiques e das suas próprias doenças. Mais recentemente, foram, parece, descobertos indivíduos dispondo de mais de 20 personalidades, todas singulares e irredutíveis (MORIN, 2007, p.88). 31 Os exemplos em questão explicitam, como indicado, fragilidades do argumento cartesiano de que temos acesso privilegiado aos nossos estados mentais. O problema advindo dessa suposição, como bem assinala Ryle (2011, p. 15-16), resultaria no seguinte impasse – decorrente, tão somente, da adoção de uma postura solipsista: Que espécie de conhecimento pode ser assegurado sobre o funcionamento da mente? Por um lado de acordo com a teoria oficial [dualismo cartesiano], uma pessoa tem conhecimento direto da melhor espécie imaginável do funcionamento da sua própria mente. Por outro lado, uma pessoa não tem acesso direto de nenhuma espécie aos eventos da vida interior de outra. [...] O acesso direto ao funcionamento de uma mente é um privilégio dessa própria mente; à falta desse acesso privilegiado, o funcionamento da mente está inevitavelmente oculto para qualquer outra pessoa. Em adição às problemáticas acima elucidadas, Ryle (2011) enfatiza outros aspectos de difícil solução no que concerne ao solipsismo metodológico, subjacente à concepção dualista substancial. Ao assumi-lo, aceita-se, por exemplo que, ao entrar em contato com dado indivíduo, teríamos acesso apenas às suas manifestações corpóreas - tidas como públicas - e não aos seus estados mentais, considerados privados e exclusivos - estritamente - àqueles/as a que pertencem. A postura em questão é objetada por Ryle na pergunta que se segue: se o acesso aos estados mentais é restrito, como saber se outras pessoas possuem mentes ou se são andróides disfarçados de humanos? A dificuldade indicada pelo pensador caracteriza o conhecido ―problema das outras mentes‖. Em suma, apresentamos a hipótese cartesiana segundo a qual somos compostos de duas substâncias distintas (material, constitutiva do corpo, e imaterial constitutiva da mente). Vimos que, de acordo com Descartes, o cerne definidor de um indivíduo reside em sua capacidade de pensar 18 , capacidade essa que, embora se relacione com o corpo, não estaria exposta às degradações da matéria - motivo pelo qual a mente pode ser concebida como um elemento relevante para garantir a essência identitária do sujeito que não se confunde com o corpo, embora esteja unido a ele na vida do sujeito. A partir das objeções de Ryle, apontamos lacunas subjacentes ao dualismo substancial na explicação da mente - e da identidade da pessoa - atrelada, tão somente, ao atributo do pensamento (mente). Como vimos, as hipóteses de Descartes a respeito da mente como essência pensante distinta do corpo mostram-se frágeis e insuficientes no que tange à 18 O que é uma coisa que pensa? Isto é uma coisa que duvida, que concebe, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina também e que sente. (DESCARTES). 32 fundamentação explanatória do problema da identidade pessoal. A seguir, apresentaremos uma das teorias que supostamente supriria as lacunas do dualismo substancial. 1.3 A natureza da mente na perspectiva materialista Que é que havia nas suas vísceras que fazia dela um ser? (Clarice Lispector). 19 No intento de resolver algumas das questões deixadas em aberto na perspectiva do dualismo cartesiano, iniciou-se, em meados dos anos 50, a elaboração de propostas que versavam sobre a teoria materialista da mente. Os avanços científicos operados no âmbito de estudos das estruturas microscópicas de nossa fisiologia, no período em questão, também passaram a ser vistos com grande entusiasmo pelos pesquisadores interessados no funcionamento da mente e de sua possível correlação com o funcionamento cerebral. A perspectiva materialista da mente tem como uma de suas hipóteses centrais a ideia de que a continuidade de algumas características corporais serviria de critério para a identificação de traços que permanecem na pessoa no processo de seu desenvolvimento. A referida hipótese se confirmaria, por sua vez, através de procedimentos que possibilitem a verificação de aspectos contínuos da permanência física da pessoa, a saber: impressão digital, identificação do DNA, dentre outras (VIANA, 2011). A concepção materialista da identidade pessoal possui diversas vertentes, tendo como elemento em comum a hipótese segundo a qual não é preciso que o corpo, como um todo, permaneça o mesmo para identificar uma pessoa, mas apenas características que se mostrarem permanentes. Esse é o caso da concepção cerebrocentrista, que enfatiza áreas cerebrais que desempenham certas funções de forma relativamente estáveis (PERRY, 2003; CHURCHULAND, 2004). Na obra Matéria e Consciência, Churchland (2004) apresenta a teoria materialista reducionista da mente, também conhecida como a teoria da identidade tipo-tipo. A tese central dessa teoria consistiu na seguinte hipótese: estados mentais são estados físicos do cérebro. Dito de outro modo, nas palavras do próprio pensador: ―[...] cada tipo de estado ou processo mental é numericamente idêntico a (é uma e mesma coisa que) algum tipo de estado ou processo mental no interior do cérebro ou no sistema nervoso central‖. (CHURCHLAND, 2004, p. 52-53). 19 Conto – Uma galinha. 33 Na perspectiva de análise supracitada, procura-se pela explicação mais simples do funcionamento mental humano - capaz de explicitar sua totalidade fenomênica. Ainda que Churchland (2004, p.53) enfatize o fato de que ―[...] até agora, não temos suficiente conhecimento para poder efetivamente estabelecer as identidades apropriadas, [...] a teoria da identidade está comprometida com a ideia de que a pesquisa sobre o cérebro irá um dia revelá-las‖. No intento de ilustrar as vindouras possibilidades de comprovação da hipótese em questão, Churchland apresenta alguns paralelos entre a proposta de compreensão da mente - a partir dos pressupostos materialistas - a alguns exemplos concernentes ao domínio da história da ciência, a saber: as descobertas relativas à compreensão sonora: ―Sabemos hoje [por exemplo] que o som é simplesmente uma sucessão de ondas de compressão que viajam pelo ar e que a propriedade de um som de ser agudo é idêntica à propriedade de ter uma frequência oscilatória alta‖. (CHURCHLAND, 2004, p. 53). De forma análoga ao exemplo supracitado, Churchuland (2004, p. 53), põe em relevo a descoberta de que tanto os fenômenos relacionados à frieza ou do calor de um objeto podem ser explicados a partir da análise de movimentação de moléculas. O alto movimento cinético de moléculas corresponderia ao calor, enquanto o frio, por seu turno, ao seu contrário. Em seu entendimento: [...] os antigos princípios continham [por exemplo] as noções de ―calor‖, ―é quente‖ e ―é frio‖, e os novos princípios contêm, em vez disso, as noções de ―energia cinética molecular total‖, ―tem uma alta energia cinética molecular média‖ e ―tem baixa energia cinética molecular média‖ (CHURCHULAND, 2004, p.54). Os exemplos supracitados sugerem uma redução dos estados mentais aos estados cerebrais. Assume-se, por essa perspectiva, que duas explicações acerca do funcionamento dos processos mentais – como é o caso da concepção dualista substancial - são prescindíveis. De acordo com Churchland, a redução interteórica - operacionalizada pela teoria da identidade -, diria respeito não a uma simplificação grosseira, mas ao movimento de colocar as coisas em seu devido lugar. Na perspectiva materialista a linguagem mentalista (psicologia popular) é redutível à linguagem pertencente ao domínio descritivo da atividade neuronal. O que hoje entendemos por ―estados mentais‖, argumenta o defensor da teoria da identidade, é idêntico aos estados do cérebro. Por esse prisma, Churchland (2004, p. 55) acentua que: Tudo que precisaríamos seria uma neurociência bem-sucedida em termos de explicação, que se desenvolvesse a ponto de implicar uma ―imagem 34 especular‖ dos princípios e pressupostos que constituem o arcabouço conceitual de nosso senso comum para os estados mentais, uma imagem na qual os termos para os estados do cérebro ocupariam as posições ocupadas pelos termos para os estados mentais nos pressupostos e princípios do senso comum. Transportando os pressupostos - e exemplos - da teoria supracitada para questões acerca da identidade pessoal, podemos pensar na hipótese segundo a qual há uma série de atividades físico-químicas em nosso corpo que exercem crucial influência no modo como pensamos, sentimos e experienciamos nossas relações interpessoais e ambientais mais basilares. Como sugere Araujo (2016), tipos de tumores ou danos que afetem o cérebro, por exemplo, podem desencadear certos tipos de personalidade (como traços de agressividade ou hiperssexualidade). No entendimento de Araújo (2016, p. 376): Parte do nosso caráter moral talvez resulte também de nossa história evolucional, de genes, de hormônios e de outros fatores sobre os quais não temos nenhum controle direto, e que apenas aos poucos começamos a compreender melhor. Esses fatores, não menos do que a nossa capacidade para a deliberação racional ou para assimilarmos os valores de nossa própria sociedade, contribuem para que um indivíduo se sinta inclinado a agir de modo mais cooperativo e benevolente, ou mais egoísta e violento. No que diz respeito à nossa capacidade de agir de forma cooperativa (como ações altruísticas e/ou empáticas), o exemplo em voga nas discussões filosófico-interdisciplinares, acerca do bio-aprimoramento (conhecido também como mood enhancement, daqui para frente aprimoramento de emoções), refere-se ao hormônio ocitocina 20 . Nas palavras de Liao e Roache (2011, p.974, tradução nossa): Embora o altruísmo e a empatia tenham grandes componentes culturais e sejam fortemente afetados pelas escolhas morais individuais, há evidências de que eles também têm bases biológicas. De fato, os sujeitos de teste que receberam hormônio pró-social com ocitocina estavam mais dispostos a compartilhar dinheiro com estranhos (Zak et al., 2007) e a comportar-se de maneira mais confiável (Zak et al., 2005). Além disso, um inibidor de reabsorção de noradrenalina aumentou o engajamento e a cooperação social e reduziu o auto-foco durante um jogo de motivos mistos (Tse & Bond, 2002). Ademais, a ocitocina parece melhorar a capacidade de ler o estado emocional de outras pessoas, o que é importante para a empatia (Domes et al., 2007). Isso sugere que a administração desses produtos químicos a 20 ―Ocitocina (OT) é hormônio peptídico sintetizado no hipotálamo e armazenado na neurohipófise‖. (SANTOS, 2014). 35 indivíduos pode nos ajudar a agir em conjunto para resolver problemas importantes 21 . No limite, as hipóteses da redução das emoções a certo tipo de estado cerebral parece permanecer nos pressupostos veiculados pelo aprimoramento de emoções, já que ao se alterar os estados corporais, como o nível de ocitocina no corpo, se alteraria, em igual medida, padrões de conduta do indivíduo – como, por exemplo, a propensão à colaboração. Pelo prisma do aprimoramento de emoções, os padrões afetivos, importantes para a constituição da identidade pessoal, são em certa medida redutíveis ao funcionamento cerebral – como, por exemplo, pela produção e regulação de hormônios em nosso organismo. Além do emprego de drogas sintéticas para o aprimoramento de estados mentais, outra possibilidade de ilustrar a concepção materialista da mente, no âmbito de discussões sobre a identidade pessoal, reside em experimentos mentais, como aquele proposto por Perry (2003). Ele propõe que imaginemos uma situação na qual seja possível a aplicação de uma moderna técnica de duplicação de cérebros. Em vista de tal possibilidade, Perry conjectura a seguinte situação: Roscoe - um réu sentenciado -, antes de cometer suicídio, se submete ao procedimento de duplicação de cérebros para evitar as penalidades advindas do julgamento de seus crimes. O cérebro do suposto criminoso, após o procedimento de duplicação, é realocado em Jeff, diagnosticado com morte cerebral, que, ao final do procedimento, herda de Roscoe as suas memórias. As lembranças que Jeff herda de Roscoe recolocam o problema da identidade pessoal na medida em que a identidade do indivíduo tem no cérebro, supostamente responsável pelas suas memórias, um parâmetro central. Perry (2003, p.17) finaliza o experimento com o possível desfecho do caso: [...] reconhecemos a possibilidade de ter a mesma pessoa sem que esta possua o mesmo corpo, quando falamos de sobrevivência no paraíso ou inferno, ou reencarnação. Estas podem ser fantasias religiosas, mas elas mostram que pelo menos faz sentido ter a mesma pessoa quando nós não temos, em qualquer sentido comum, o mesmo corpo ou o mesmo animal. 21 Mood enhancement drugs could potentially help with such collective action problems. While altruism and empathy have large cultural components and are strongly affected by individual moral choices, there is evidence that they also have biological underpinnings. Indeed, test subjects given the prosocial hormone oxytocin were more willing to share money with strangers (Zak et al.,2007), and to behave in a more trustworthy way (Zak et al., 2005). Also, a noradrenaline re-uptake inhibitor increased social engagement and cooperation, and reduced self-focus during a mixed-motive game (Tse & Bond, 2002). And, oxytocin appears to improve the capacity to read other people‘s emotional state, which is important for empathy (Domes et al., 2007). This suggests that administering these chemicals to individuals could help us act together to solve important problems. 36 Nosso criminoso descobriu uma maneira de sobreviver à morte de seu corpo. O réu não é Jeff, com um novo cérebro e delírios, mas Roscoe, com um novo corpo e um cérebro duplicado. 22 Na perspectiva cerebrocentrista, o que confere identidade ao indivíduo não é seu corpo entendido como um todo, mas uma parte dele responsável pelas suas lembranças e capacidade linguística e cognitiva. No contexto da abordagem em questão, é importante ressaltar que, caso outro órgão fosse transplantado em Jeff, como um rim ou coração, o problema da identidade pessoal não se colocaria. Embora os exemplos apresentados por Perry e pelos experimentos desenvolvidos no âmbito do aprimoramento de emoções possa nos persuadir a assumir propostas apresentadas no corpo teórico da teoria da identidade tipo-tipo, parece que tal perspectiva apresenta lacunas explicativas no que diz respeito a uma possível superação do dualismo cartesiano, a saber: como, do substrato físico (ilustrado pelo funcionamento cerebral, se dá a emergência de propriedades não físicas (sentimentos, crenças, perspectiva de primeira pessoa, dentro outras)? Como crenças e/ou desejos poderiam se situar em um lugar específico (no caso em questão, no cérebro)? O aprimoramento de emoções, embora possua uma base ligada ao aspecto físico, de fato ocorreria com a ingestão de determinadas substâncias sintetizadas? Embora não tenhamos respostas definitivas para os problemas acima explicitados, entendemos que o foco apenas nas atividades neurais não seria suficiente para analisar, de forma satisfatória, a natureza subjacente aos processos mentais de dado organismo e menos ainda para a análise da identidade pessoal, já que, como veremos adiante, na perspectiva da complexidade, por exemplo, os estados neurais diriam respeito a apenas uma faceta da cognição do individuo. Em suma, entendemos que as concepções dualista e materialista aqui esboçadas deixam lacunas (cada uma a seu modo) na explicação de correlações entre mente, corpo e identidade pessoal. Em ambas as teorias apresentadas, ênfase especial fora conferida às propriedades intrínsecas da atividade mental. No caso da primeira – dualismo substancial-, o que confere unidade/identidade a dado organismo diz respeito às características da natureza imaterial da mente, que, conforme indicado, embora se relacione com o corpo não está sujeita às leis físicas - e tampouco necessita delas para existir. No caso da segunda – materialismo 22 ―[…] we recognize the possibility of having the same person without having the same body when we talk of survival in heaven or hell, or reincarnation. These may be religious fantasies, but they show that it at least makes sense to have the same person when we don‘t have, in any ordinary sense, the same body or the same animal. Our criminal figured out a way of surviving the death of his body. The defendant is not Jeff, with a new brain and delusions, but Roscoe, with a new body and a duplicate brain.‖ 37 reducionista-, por conseguinte, a mente seria correlata ao funcionamento intrínseco do cérebro e das atividades neurais que lá ocorrem. Pelo prisma do materialismo, as características do funcionamento cerebral seriam, em última análise, responsáveis por conferir identidade/unidade a dado organismo, em virtude de sua capacidade de armazenamento de memórias do indivíduo ao longo de seu desenvolvimento. A travessia de ideias por ambas correntes teóricas do problema mente-corpo e da identidade pessoal, sugere a seguinte indagação - por Maslin (2009, p.13) formulada: ―[...] deveria o dilema, físico ou não físico, que parece se impor a nós aqui [a partir da perspectiva dualista substancial e materialista reducionista], ser rejeitado em favor de outras abordagens da natureza da mente?‖. A fim de analisarmos essa questão, parece pertinente apresentarmos a perspectiva funcionalista da mente, que, em certa medida, arrisca-se a eliminar dicotomias entre aspectos físicos e não físicos. Vejamos a seguir os pressupostos assumidos nessa proposta. 1.4 A natureza da mente na perspectiva funcionalista No trabalho, de autoria de Putnam (1975), intitulado The nature of mental states, o mesmo argumentará em favor da substituição da concepção de mente veiculada pela abordagem materialista (identidade tipo-tipo) por uma forma supostamente mais adequada de leitura dos fenômenos mentais, qual seja, a teoria funcionalista da mente (ou visão computacional da mente). Nas palavras do próprio pensador, a perspectiva por ele inaugurada caracterizou: [...] uma reação contra a idéia de que nossa matéria é mais importante do que nossa função, de que o nosso ‗o que‘ é mais importante do que o nosso ‗como‘. Meu ‗funcionalismo‘ insistiu que, em princípio, uma máquina [...], um ser humano, uma criatura com uma química de silício, e, se houvesse espíritos desencarnados, um espírito desencarnado, poderiam trabalhar bem, quando descritos no nível relevante de abstração, e que é simplesmente errado pensar que a essência da nossa mente é nosso 'hardware'. (PUTNAM, 1975, tradução nossa). 23 Em lugar das suposições prescritas pelos estudiosos da teoria materialista acerca da natureza da mente, a proposta de Putnam é alicerçada na ideia de que estados mentais (como 23 […] a reaction against the idea that our matter is more important than our function, that our what is more important than our how. My ‗functionalism‘ insisted that, in principle, a machine, a human being, a creature with a silicon chemistry, and, if there be disembodied spirits, a disembodied spirit could all work much the same way when described at the relevant level of abstraction, and that it is just wrong to think that the essence of our mind in our ‗hardware 38 as dores, por exemplo) tratam de estados funcionais do organismo analisado como um todo, não se restringindo, assim, a descrições que se detém a apenas uma parte do corpo (o cérebro) ou em tipos de corpos específicos (corpos biológicos). A proposta em questão estaria apoiada na ideia de ―realização múltipla‖ que, segundo, Putnam (1975, p.434), enseja a dinâmica de dado sistema assentada em ―[...] estados distintos S1, S2... Sn que se relacionam entre si e com os outputs motores e inputs sensoriais [...]‖ 24 . Nesse caso, sentir dor [um tipo de estado mental] seria análogo a ter um tipo adequado de organização funcional que possibilite o processamento do estímulo informacional recebido (input) e sua resposta (output). Os mecanismos pelos quais as funções mentais operariam, na perspectiva de análise funcionalista, podem ser descritos, em resumo: [...] em termos de inputs, outputs e relações com outros estados mentais [...]. O estado mental, concebido como uma função, não engloba nada mais do que o sistema de relações descritas em termos de inputs, outputs e outros estados mentais, que por sua vez são também funcionalmente analisados. (MASLIN, 2009, p.131). A partir da dinâmica do funcionamento mental acima ilustrada, Putnam (1975) assume a hipótese de que é possível estabelecer semelhanças do funcionamento mental entre dois sistemas analisados, haja vista a importância que o mesmo confere às funções exercidas por dado agente em detrimento de sua constituição material. Desse modo, entendemos que a habilidade de aprender e de executar determinadas funções caracterizariam aspectos significativos da identidade do sistema. Em suma, de acordo com Putnam (1975, p.437-438), a teoria tipo-tipo é problemática, pois sequer sabemos, na prática, o que caracteriza o ―[...] estado cerebral de um animal quando afirmamos que está com dores; e temos pouco ou nenhum conhecimento da sua organização funcional, exceto num sentido grosseiro e intuitivo 25 ‖. Nesse contexto, Putnam compreende que seja mais plausível considerar a dor (ou estados mentais) como relacionada aos estados funcionais do organismo/sistema do que privilegiar uma parte químico-física específica da qual sabemos pouco a respeito de seu funcionamento. Ainda que o funcionalismo, em princípio, pareça ser uma via interessante para analisar o problema mente-corpo (bem como sua relação com o problema da identidade 24 [...] distinct states S1, S2... Sn, which are related to one another and to the motor outputs and sensory inputs […]. 25 We do not in practice know anything about the brain state of an animal when we say that it in pain; and we possess little if any knowledge of its functional organization, except in a crude intuitive way. 39 pessoal), uma das objeções cabíveis, feitas, posteriormente, pelo próprio Putnam (1995), reside na dificuldade de estabelecer uma espécie de sistema de equivalência entre agentes humanos e não humanos (como máquinas) no que concerne às funções por eles desempenhadas. Já que, pelo prisma funcionalista, o indivíduo é definido em relação às suas funções, não seria forçoso afirmar que haveria a possibilidade futura de equiparação entre as funções de um organismo humano e o de uma máquina – caso ambos sejam capazes de realizar funções similares. Embora o raciocínio pareça ser plausível, Putnam (da maturidade) argumentará que a equivalência sugerida sequer existe entre diferentes comunidades/nichos sociais humanos, pois, dependendo da comunidade sob análise, o significado dessas funções poderá ser diferente (PUTNAM, 1993, p. 443). Em objeção à sua proposta inicial em defesa do funcionalismo, Putnam (1993, p.443) oferece o seguinte exemplo a respeito das crenças constituídas em comunidades sociais humanas: […] o conteúdo de nossas crenças e desejos não é determinado pelas propriedades individualistas do falante, mas depende de fatos sociais sobre a comunidade linguística de que o falante é um membro e de seu ambiente físico. Por exemplo, observei o fato de que especialistas (ou outros oradores de quem dependemos) estão preparados para considerar certas propriedades como "ouro real", ainda outras como "olmos" [elm trees], certas coisas como "alumínio", e assim por diante, ajudam a fixar a extensão desses termos. A fixação da extensão depende da cooperação e da deferência linguística. A referência não é fixada pelo que está "na cabeça" dos oradores. 26 Nessa passagem, Putnam coloca em relevo a importância da história de longa duração de agentes na constituição de uma de suas funções mais fundamentais, como a construção social de crenças e atribuição de seus significados. O significado e a extensão das crenças dependem, sobremaneira, do ambiente no qual o indivíduo se desenvolveu ao longo do tempo, bem como das relações entre eventos estabelecidas na interação conjunta com os demais habitantes de dada localidade. Dito de outro modo: não bastaria focalizar nossa atenção nas funções mentais de dado organismo (humano ou não humano) para entender a formação da identidade de um indivíduo no seu sistema de crenças significativas, crenças essas que são socialmente compartilhadas. 26 […] the content of our beliefs and desires is not determined by individualistic properties of the speaker but depends on social facts about the linguistic community of which the speaker is a member and on facts about the physical environment. For example, I pointed out that the fact that experts (or other speakers on whom we rely) are prepared to count certain things as ‗real gold‘, certain things as ‗elm trees‘, certain things as ‗aluminium‘, and so on, helps to fix the extension of these terms. The fixing of extension depends on cooperation and linguistic deference. Reference is not fixed by what is ‗in the heads‘ of speakers. 40 Em suma, vimos que a análise funcionalista, inicialmente proposta por Putnam, descreve a mente a partir de múltiplas interações funcionais. Essa proposta foi rejeitada pelo próprio Putnam da maturidade, que apontou para a necessidade de se considerar o contexto social, ecológico, entre outros, na caracterização da natureza dos estados mentais. Nessa perspectiva, entendemos que a identidade pessoal residiria não apenas no conglomerado organizacional que habilitaria pessoas a realizar múltiplas funções, mas também no contexto sócio-eco-cultural. O contexto propiciaria elementos importantes para a compreensão dos parâmetros que influenciaram (e influenciarão) a formação e desenvolvimento de crenças significativas das pessoas. Nesse sentido investigaremos na próxima seção a concepção externalista de mente, que ressalta a importância de aspectos corpóreos e ambientais na constituição da identidade pessoal. 1.5 A concepção externalista de mente Para compreendermos a concepção externalista de mente, lançaremos mão de uma abordagem que auxilie na ilustração da intrincada relação que o indivíduo estabelece com seu ambiente no processo de constituição de funções mentais/cognitivas. Apresentaremos, brevemente, uma corrente de estudos que se opõe às abordagens materialistas, ao funcionalismo clássico e ao dualismo cartesiano, a saber: a perspectiva da cognição situada e incorporada (CIS) (VARELA et al, 1945; THELEN, 2001; SHAPIRO, 2011; WILSON; FOGLIA, 2013). Conforme observaram Wilson e Foglia (2013) a tradição filosófica ocidental sobre os estudos da mente considerou o corpo (assim como suas relações com o ambiente): [...] irrelevante ou periférico para a compreensão do conhecimento e da cognição. O dualismo cartesiano, a visão de que as mentes são constituídas por um tipo de substância fundamentalmente diferente dos corpos, evoluiu para uma tradição epistemológica que informou várias vertentes da ciência cognitiva 27 (WILSON; FOGLIA, 2013, tradução nossa). Na perspectiva cartesiana, bem como na concepção computacional de mente, consideram os pesquisadores supracitados, o corpo do agente e o contexto no qual esse corpo está situado são de pouca (ou nenhuma) relevância para explicar as funções 27 [...] irrelevant or peripheral to the understanding of knowledge and cognition. Cartesian dualism, the view that minds is constituted by a fundamentally different kind of substance than are bodies, evolved into an epistemological tradition that has informed various strands of cognitive science. 41 mentais/cognitivas do agente (WILSON; FOGLIA, 2013). Na concepção computacional da mente, por exemplo, Wilson e Foglia (2013, tradução nossa) enfatizam que: [...] sistemas sensórios-motores, embora objetos razoáveis de indagação por direito próprio, interessam na compressão da cognição apenas na medida em que fornecem entrada sensorial [input] e permitam a saída [output] comportamental. Idealmente, mesmo os organismos sem um corpo, como os cérebros em um compartimento ou programas de computador sofisticados, poderiam, em princípio, exibir habilidades cognitivas extraordinárias e sofisticadas 28 . Em objeção às concepções tradicionais da mente, a perspectiva da CIS enfatizará a relevância de aspectos ambientais, corporais e sociais tidos como secundários no desenvolvimento cognitivo/mental. Exploremos inicialmente a ideia de ‗incorporação‘. De acordo com Thelen (2001, p.1, tradução nossa): Dizer que a cognição é incorporada, significa que ela surge das interações corporais com o mundo. Deste ponto de vista, a cognição depende dos tipos de experiências decorrentes de ter um corpo com capacidades particulares perceptivas e motoras que estão inseparavelmente ligadas e que juntas formam a matriz na qual raciocínio, memória, emoção, linguagem e todos os outros aspectos da vida mental estão mesclados. 29 Por esse prisma de análise, que considera os movimentos sensório-motores, em sua relação com o ambiente, relevantes para a cognição, Wilson e Foglia (2013) agruparam três tipos de implicações assumidos nos estudos da cognição incorporada e situada, a saber: 1) diferenças significativas na forma de realização de [uma função] muitas vezes se traduzem no processamento cognitivo; 2) algoritmos que constituem a cognição às vezes refletem as peculiaridades do corpo físico; e 3) falhas para incluir informações sobre o corpo na descrição da mente conduz a abordagens que são fundamentalmente enganosas e equivocadas. 30 (Tradução nossa). 28 [...] sensorimotor systems, although reasonable objects of inquiry in their own right, are of interest in understanding cognition only insofar as they provide sensory input and allow for behavioural output. Ideally, even organisms without a body, such as brains in a vat or sophisticated computer programs, could in principle exhibit extraordinary and sophisticated cognitive skills. 29 To say that cognition is embodied means that it arises from bodily interactions with the world. From this point of view, cognition depends on the kinds of experiences that come from having a body with particular perceptual and motor capabilities that are inseparably linked and that together form the matrix within which reasoning, memory, emotion, language, and all other aspects of mental life are meshed. 30 (1) significant differences in embodiment often translate into differences in cognitive processing, (2) algorithms that constitute cognition sometimes reflect the peculiarities of the physical body, and (3) failure to 42 Em defesa dos pressupostos subjacentes à CIS, ambos os pesquisadores oferecem exemplos bastante significativos, dentre os quais destacamos pelo menos três: 1) o papel desempenhado pelo corpo em atividades cognitivas como a execução de um problema aritmético; 2) A relevância dos movimentos corporais na percepção visual; 3) a relação entre corpo e ambiente e a emergência de conceitos espaciais. No exemplo (1) Wilson e Foglia (2013) enfatizam que o ato de contar com os dedos auxilia na assimilação e aprendizagem de conceitos matemáticos, bem como facilita, em alguns casos, a operacionalização de cálculos aritméticos. O ato em questão, acrescentam os pesquisadores mencionados ―[...] indica que um envolvimento ativo e direto do corpo na execução de uma tarefa cognitiva simplifica sua carga de trabalho computacional‖ 31 (WILSON; FOGLIA, 2013, tradução nossa). Já no que se refere à percepção visual (2), Wilson e Foglia (2013) colocam em relevo o papel desempenhado pelo corpo, como, por exemplo, as propriedades subjacentes ao sistema visual, na experimentação das cores e, em virtude dessa experiência, a possibilidade de conceitos referentes às cores. A percepção depende dos movimentos corporais, uma vez que: O que percebemos está determinado pelo que fazemos para perceber. Por exemplo, ser um observador móvel é entender que grande parte do ambiente pode ser revelado e explorado através de movimentos apropriados da cabeça e dos membros, ou que, para obter informações novas, é preciso se virar em resposta a um ruído inesperado 32 (Tradução nossa). Em defesa da perspectiva situada e incorporada da mente/cognição, Wilson e Foglia (2013, tradução nossa) ressaltam a relevância do ambiente e da corporeidade do agente na elaboração de conceitos espaciais. Segundo eles: ―[...] criaturas longas e planas não seriam capazes, como nós, de conceber o mundo em termos de 'frente', 'volta', 'para cima' e para baixo'. Esses conceitos surgem e são articulados graças tanto ao corpo particular que temos quanto às formas específicas em que ele transita dentro e através do espaço‖. 33 include information about the body in the description of the mind leads to accounts that are fundamentally misleading and misguided. 31 [...] indicates that an active and dir