Itinerários, Araraquara, n. especial, 91-100, 2003 91 AFINIDADES ELETIVAS ENTRE AS OBRAS DE GARCÍA MÁRQUEZ E ESCHER Lilian Reichert COELHO1 RESUMO: Este trabalho pretende mostrar as ligações entre um texto verbal, o conto “A terceira renúncia”, de Gabriel Garcia Márquez e os textos visuais: “Unicórnios”, “Pás- saros”, “A fita de Moebius II” e “Um outro mundo II”, de Maurits Cornelis-Escher. PALAVRAS-CHAVE: Fratura; figuralidade; estesia; figuratividade. Meu trabalho consiste em desenhar a ilusão de uma ilusão. ESCHER Procuro seguir, neste artigo, os ensinamentos que recebi do professor Ignácio Assis Silva no curso Semiótica e Artes Visuais, ministrado no primeiro semestre de 1999 aos alunos de pós-graduação da UNESP-Araraquara. Sua principal preocupação consistia em fazer que nós fôssemos capazes de lançar um olhar sobre a prática sinestésica da arte. Por isso, decidi fazer um trabalho tentando mostrar as ligações entre um texto verbal, o conto “A terceira renúncia”, de Gabriel García Márquez e alguns textos visuais pertencentes à obra de Maurits Cornelis Escher, a saber: “Unicórnios”, “Pássaros”, “A Fita de Moebius II”, “Mandala” e “Um Outro Mundo II”. Minha busca dirigiu-se ao entretexto, ao espaço comum entre diferentes textos que é, também, o verdadeiro lugar de questionamento da semiótica, sempre preocupada com a inter-relação entre diferentes linguagens. No presente artigo, a verbal e a visual. Escolhi o projeto semiótico de Greimas porque ele é não apenas um arcabouço teórico para fins exclusivos de estudos científicos, mas porque ele é, também, a abertura para uma mudança nas nossas vidas, abertura para compreendermos a existência das fraturas - rompimentos com a ordem estabelecida através da experiência estética - e das escapatórias - fugas dessa mesma ordem através do chamamento da arte. Com a leitura do livro De l’imperfection, aprendemos a ver as coisas de outro modo, diferente daquele que estamos acostumados em nossa cotidianidade. Greimas nos aponta um caminho não apenas alternativo mas preferível àquele que costumamos seguir, um caminho que nos leva às profundezas, nossas e das coisas. Um caminho 1 Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Lingüística e Língua Portuguesa – Faculdade de Ciências e Letras – UNESP – CEP 14800-901 – Araraquara – SP – Brasil. Itinerários, Araraquara, n. especial, 91-100, 2003 Itinerários, Araraquara, n. especial, 91-100, 200392 93 Lilian Reichert Coelho Afinidades eletivas entre as obras de García Márquez e Escher que nos permite uma aproximação daquilo que é inerente a nós mas a que, de tão profundo e tão familiar, esquecemos de dar a devida atenção deixando, a nós mesmos, apenas uma nostalgia e uma vida de superficialidades ao invés de uma vida de familiaridades. Como caminhada que vai rumo à simplicidade, a semiótica propõe-nos um trajeto de despojamento, da estética do buscar o mínimo para dizer o mais que real. A arte seria, então, uma espécie de poética do despojamento, ou a abertura para “a escuta do figural”, como define Zilberberg. A estrada semiótica nos leva em direção ao mítico profundo, onde ele reside e dorme, pressupondo que existe um lugar onde a distância entre o humano e a coisa se dilui. A semiótica nos indica o caminho do figural, do mais simples, do embrião do discurso. Greimas, em muitos momentos de sua obra, faz alusões à filosofia de Maurice Merleau-Ponty e ao projeto fenomenológico desenvolvido por ele, embora essa influência só apareça mais claramente em suas obras De l’imperfection e Semiótica das Paixões. Para Greimas, o que interessa não parece ser exatamente a filosofia, mas o poético que está presente na obra de Merleau-Ponty. O pensamento de Greimas cruza, de certa forma, com o de Merleau-Ponty na medida em que oferece ao sujeito uma possibilidade de mudança de estado, podendo alcançar um novo estado de subjetividade “graças à fratura que ocasiona o evento estético. Ao se perder no objeto ao qual se funde, o sujeito modifica seu estado anterior. Assim, a apreensão estética é efetivamente produção de sentido, ressemantização (...)” (OLIVEIRA, 1994, p.230) Busquei, portanto, encontrar, mesmo que uma ínfima porção daquilo que torna as coisas possíveis antes mesmo que haja as coisas, do que pré-existe, do pregnante tanto no conto de García Márquez quanto na obra de Escher. A fim de esclarecer a ligação entre a semiótica de Greimas e a fenomenologia de Merleau-Ponty, cito Luiz Tatit (1994): Muito mais que essa apreensão do objeto como um todo, incluindo a participação inevitável dos órgãos sensoriais, a aproximação da semiótica aos fundamentos da fenomenologia de Merleau-Ponty verifica-se, em nossos dias, no modo de aderência do sujeito ao objeto e vice-versa. (p.61-2) Isso quer dizer que, antes de inteligir, de apreender o objeto, nós o sentimos, pois o sentir é o ponto de partida do inteligível. O conceito de carnalidade em Merleau- Ponty equivale a intercorporalidade, à relação transitiva eu-outro. A busca, então, é por essa carnalidade, pelo humano que permeia todos os outros corpos. O humano está, para Merleau-Ponty, inscrito em todas as coisas. Como nos sonhos, pois, no dizer de Lyotard, dormimos sonhando e justamente a conaturalidade do corpo e do mundo é suspensa por uma imobilidade que não tem como função exclusiva banir o mundo, mas transformar nosso corpo no mundo. (PEÑUELA CAÑIZAL, 1994, p.218) A proposta é ir além do signo, descer ao infra(profundezas)-signo(figuras), onde está um sentido mítico, lá onde o lógico reencontra o mythos. Para isso, precisamos recorrer à figuralidade - a matriz fundadora do imaginário - para atingir nosso objetivo imediato e para despertar novos interesses adormecidos. Para conseguir resgatar os elementos do imaginário, parto da necessidade da reflexão sobre o caminho entre a figuratividade “cheia” da superfície do texto e sua figuratividade profunda, seguindo a análise do mito de Narciso e suas metamorfoses, tal como elaborou o professor Ignácio (1995), em sua tese de livre docência: Temos, por enquanto, de trabalhar no sentido de ver como é que essa estruturação atua, na camada profunda, organizando o substrato figurativo a partir do qual o texto entrama, molda, enforma, o tema ou temas que o discurso põe em andamento (...) Minha preocupação é ver de que modo esse nível funciona como uma espécie de matriz figurativa que estabelece como intertextos textos diferentes. (p.12) Na arte pictórica tradicional, nada que está num quadro está solto, aparece ali por acaso. Nas obras surrealistas, ao contrário, parece que algo está solto, sobra, tem autonomia. Para essa autonomização das entidades temos que encontrar um sentido, encontrar o motivo por que aquilo está ali. Pois o surrealismo deseja ir em busca daquilo que já se sabe mas que jaz sob as aparências. Ele deseja transcender a realidade, ir além do real que se nos apresenta por meio do sonho e da imaginação, pois o habitat do desejo é o onírico, o sonho, aquilo que está na prisão das profundezas do inconsciente. Nos textos surrealistas, o desejo sublimado volta ao seu lugar de origem: o corpo. A estética surrealista procura subverter a relação estereotipada entre nome e coisa, que acaba destruindo a potencialidade da linguagem. O projeto surrealista tem como missão a provocação de uma mudança na postura do seu destinatário, ou seja, o estranhamento diante do significante destroçado, o questionamento da referencialidade. Por isso considerei pertinente olhar para a obra de Escher (1898-1972), que poderia pertencer cronologicamente ao surrealismo, embora pareça que o artista preferiu transitar o mais livremente possível por diversos estilos, como o próprio surrealismo, o expressionismo e a arte pop. Escher criou imagens alucinantes, nas quais a lei da gravidade e o bom senso - leia-se, o “real” figurativo - não aparecem gratuitamente, graças, principalmente, a sua obsessão pelos cálculos milimétricos. Sua técnica baseava-se nos princípios Itinerários, Araraquara, n. especial, 91-100, 2003 Itinerários, Araraquara, n. especial, 91-100, 200394 95 Lilian Reichert Coelho Afinidades eletivas entre as obras de García Márquez e Escher geométricos e, não por acaso, Escher inspirou o movimento De Stijl, que defendia uma pintura com formas geométricas puras. Muitos dos recursos utilizados em seus trabalhos foram pesquisados na estrutura geométrica dos cristais. O objetivo de Escher parece ser o de mostrar que um desenho perfeito, todo calculado, poderia resultar num delírio. Um exemplo é a xilogravura Um Outro Mundo II. Num primeiro momento, o observador olha para o alto de uma torre em forma de cubo, habitada por pássaros mecânicos. Tudo seria normal se cada um dos arcos das cinco paredes visíveis não oferecesse um ponto de vista diferente dos demais. De cada ângulo se pode ter uma visão diferente e, ao utilizar esse recurso, o artista faz com que o observador seja obrigado a mover-se, a mexer seu corpo para ver a obra. Em outro segmento de sua obra, Escher fez aquarelas que mostram bichos, muitos deles imaginários, sem deixar espaço vazio entre eles. Cada figura torna-se o fundo das figuras vizinhas e não sabemos qual delas foi a matriz que gerou todas as outras, pois todas são outras e, ao mesmo tempo, são a mesma. São exemplos a aquarela Unicórnios e o nanquim Pássaros. Conceitos como infinito, espaço e vazio estão sempre presentes em sua obra. A série A Fita de Moebius II, de 1963, em que formigas vermelhas se locomovem sobre um trilho metálico em forma de 8, explora esses conceitos, assim como suas Mandalas, pintadas com naquim em pequenos pedaços de papel. García Márquez pertence ao chamado realismo maravilhoso. No entanto, sua obra é composta de vários elementos surrealistas, como o aparecimento de seres imaginários, de transformações inusitadas e da presença do onírico. Embora não seja cronologicamente surrealista, tampouco sua obra apresenta a escrita automática defendida por André Breton. Mas o surrealismo não é só o da escritura automática, é também o do estranhamento, da nostalgia, inegável no conto de García Márquez que escolhi, como se verifica na passagem: “Quando se sentir nadando no próprio suor, em uma água viscosa, espessa, como esteve nadando antes de nascer, no útero da mãe. Talvez então esteja vivo” (1990). O surrealismo expõe também a metamorfose, como podemos ver, por exemplo, na Metamorfose de Narciso, de Salvador Dalí. Em nosso conto, embora seja uma obra escrita, percebemos que o estado inicial da metamorfose é o morto (“Estava em seu ataúde, pronto para ser enterrado, e, apesar disso, sabia que não estava morto”), passando pela transformação, que é a possibilidade de estar vivo (“Não podia estar morto, porque tinha a noção exata de tudo; da vida que girava à sua volta, murmurante. (...) Tudo negava sua morte”), até que ele atinge o estado final: a resignação face à morte (“Resignado, ouviria as últimas orações, os últimos latinórios mal-respondidos pelos acólitos. (...) Estará, porém, já tão resignado a morrer que talvez morra de resignação”) (GARCÍA MARQUEZ, 1990). O percurso figurativo da morte é apresentado pelo autor através das seguintes figuras: crânio vazio; caveira; ossos de mão descarnada, esquelética; cadáver; caixão; mortalha; ataúde; esqueleto; velas; flores nos vasos; cadaverina; carne decomposta; cortejo; carne putrefacta; féretro; cemitério. Na ocasião em que o morto do conto ouve um ruído incessante que o perturba, sou eu também, leitor, que me deparo com o ruído da minha voz lendo o conto - mesmo que não esteja lendo em voz alta. Daí a intercorporeidade entre o “morto”, o livro e o leitor. Compartilhamos o mesmo espaço, a mesma perturbação produzida pelo ruído, que foge ao controle, assim como a situação do morto. Entende-se por afinidades eletivas o encontro de dois objetos distantes - pelo menos de acordo com o código - que se aproximam pela figuratividade. A aproximação, que pode parecer tematicamente insólita à primeira vista, deixa de o ser pela figuratividade compartilhada pelos diversos elementos. É o caso do conto de García Márquez e das obras de Escher, que propus analisar. Greimas (1990) assim define a figuratividade: A figuratividade não é um simples ornamento das coisas, ela é essa tela do parecer cuja virtude consiste em entreabrir, em deixar entrever, graças a ou por causa de sua imperfeição, como que uma possibilidade do além-sentido. Os humores do sujeito encontram assim a imanência do sensível. (p.77) O que Greimas quer dizer é que a perfeição mata o sentido e que somente a imperfeição é que pode provocar o rompimento da expectativa, ela é a responsável pelo despertar do sentido. Greimas nos incita a refletir sobre a necessidade de se percorrer um caminho inverso até “o grão das coisas”, à vivência despojada, silenciada com a coisa, antes dela se transformar em objeto. Não basta lermos, vermos, ouvirmos, tocarmos enfim, sentirmos os objetos em termos gestálticos - da forma que nos apresenta o pensamento - mas as pulsões devem ser levadas em conta, o desejo, o imaginário, onde reside a memória, a nostalgia do corpo. Na metamorfose tudo muda, menos o essencial, sempre permanece algo comum, a dobradiça de Merleau-Ponty. O figural é, segundo Peñuela Cañizal (1986), a “deformação do espaço expressivo de que se valem as forças invisíveis do desejo para insinuar sentidos que remetem à emoção e ao encantamento das situações recônditas”. (p.53) Passo, de agora em diante, a olhar com mais atenção para as obras escolhidas como objeto de análise neste artigo. No conto, um ruído persegue o morto bem como, na obra de Escher, encontramos a sugestão de vibrações do universo. Ambos ligam-se ao audível. Um pelo ruído Itinerários, Araraquara, n. especial, 91-100, 2003 Itinerários, Araraquara, n. especial, 91-100, 200396 97 Lilian Reichert Coelho Afinidades eletivas entre as obras de García Márquez e Escher “selvagem”, “indomável”, segundo expressões de Dufrenne; outro, pelo efeito de vibração quase silenciosa tal qual a do cosmo. A oposição movimento versus rigicidade aparece tanto no conto quanto na obra de Escher. Ao mesmo tempo, unicórnios e pássaros, seres que sugerem movimento por serem animais alados, estão aprisionados pelo obsessivo preenchimento do espaço - ao contrário dos trabalhos de Giorgio de Chirico, por exemplo, que deixa grandes espaços vazios em suas obras. No conto, o morto - mesmo estando morto - cresce, preenche o espaço do caixão, vai vivendo a sua morte como se fosse uma vida diferente, uma vida rija, aprisionada pela morte. A vida é marcada pelo movimento, pela renovação incessante, pelo ritmo perene mas, nesse momento, esbarra num paradoxo: o morto-vivo. Vive porque cresce, embora esteja morto, portanto, rijo. Podemos verificar o crescimento do morto pela passagem: “Saberemos de sua vida pelo crescimento, que também continuará normalmente”, diz o médico à mãe do morto-vivo. Num outro trecho: “Logo, ele começou a crescer dentro do caixão, de tal maneira que, a cada ano, podiam tirar um pouco de lã do último travesseiro, para dar- lhe margem ao crescimento”. Em Escher, são as mandalas e o universo que indicam a expansão, o crescimento, bem como a insistência em representar seres alados. A situação do morto-vivo do conto assemelha-se à metamorfose de Eco, ou seja, resta uma forma física mínima - embora no conto isso não seja explícito - e, paradoxalmente, resta a lucidez, a capacidade de pensar e de compreender os acontecimentos. Segundo os dois modelos de metamorfose que encontramos propostos na tese de mestrado de Valéria Ferreira (orientada pelo prof. Ignácio), podemos dizer que, no conto de García Márquez, o trajeto vai da plenitude figurativa ao mínimo figurativo (FERREIRA, 1993). No início do conto, o morto-vivo percebe que “algo se havia desadaptado em sua estrutura material de homem firme (...)” e que “Seus braços se haviam reduzido e eram agora os braços de um anão; uns braços pequenos, gorduchos, adiposos” (GARCÍA MARQUEZ, 1990). A tensão se dá, e aí percebemos a transformação em direção ao mínimo figurativo, quando o morto-vivo descobre que não vai mais crescer: “Sabia que não cresceria mais. E ele sabia que agora estava ‘realmente’ morto”. Seguindo o caminho do despojamento, temos: “Já os músculos, os membros, não respondiam como antes, pontuais ao chamado do seu sistema nervoso” (GARCÍA MARQUEZ, 1990). O processo de transformação continua: “sentiu que sua pele amolecera” (...) “o organismo começara a se decompor, a apodrecer, como o corpo de todos os mortos”; “o corpo se decompusera com o calor da noite anterior. Sim. Estava apodrecendo” (1990). Unicórnios e pássaros são seres alados, mas, enquanto o pássaro é pássaro em virtude do vôo, o unicórnio é um cavalo que voa, ou seja, eqüinidade e capacidade de voar aliam-se num ser imaginário que é real em sua existência apenas de tinta, tela e papel. O infinito é, em Escher, corroído por grandes formigas vermelhas, daí a “rotundidade”, se assim posso dizer, comum ao movimento de vida cíclico do morto- vivo-morto. Outra afinidade entre o conto e a obra de Escher é a durabilidade, a insistência do artista em repetir as formas (unicórnios e pássaros) e de García Márquez em fazer o morto vibrar entre a vida e a morte, entre dois estados, a saber: o não morrer e o não viver. Esse estado de latência é perturbador, instalador de uma nova ordem, em que o inteligível não pode explicar ou entender logicamente a situação que se apresenta na sua totalidade. Observamos tanto em Escher quanto em García Márquez a manifestação da “lei do crescimento aberto” definida por René Huyghe. No primeiro, pelo símbolo do infinito, pelas mandalas e pela repetição exaustiva, como no caso dos unicórnios e dos pássaros. No conto, a vida do morto-vivo é medida pela mãe – literalmente, com uma fita métrica - pelo crescimento de seu corpo. O ruído que tanto o perturba também vem em movimentos espiralados: “Crescia, cada vez mais, em espirais sucessivas, e o golpeava por dentro, fazendo vibrar sua coluna vertebral com uma vibração alterada, desproporcionada pelo ritmo certo de seu corpo” (HUYGUE, [19?]). A espiral é o exemplo máximo da renovação constante, como afirma Roland Barthes (1990): O simbolismo da espiral é oposto ao simbolismo do círculo; este é religioso, teológico, aquela, como círculo desviado para o infinito, é dialética: na espiral, as coisas voltam, mas em um outro nível: há retorno na diferença, não repetição na identidade (para Vico, pensador audacioso, a história do mundo seguia o movimento de uma espiral). A espiral regulamenta a dialética do antigo e do novo, graças a ela, não somos obrigados a pensar: tudo está dito, nada é primeiro, no entanto, tudo é novo. (p.198) Se olharmos atentamente para a obra de Escher, pelo menos para a porção que propus analisar, podemos constatar que, mesmo as formas aparentemente criadas pela imaginação humana não passam de um movimento rumo às formas da natureza, como afirma René Huyghe: “Derechef l’imagination humaine, croyant inventer de nouvelles formes, coïncide avec celles de la nature enclot en son étendue et obéit à la même ‘loi secret’ qu’invocait Goethe.” ([19?], p.14) E, por falar em formas da natureza, o morto-vivo do conto percebe que Um dia - no entanto - sentirá que se desmorona seu sólido esqueleto; e quando tratar de mencionar, de examinar cada um de seus membros, não os encontrará. Sentirá que não tem forma exata definida, e saberá resignadamente que perdeu Itinerários, Araraquara, n. especial, 91-100, 2003 Itinerários, Araraquara, n. especial, 91-100, 200398 99 Lilian Reichert Coelho Afinidades eletivas entre as obras de García Márquez e Escher sua perfeita autonomia de vinte e cinco anos e que se converteu num punhado de pó sem forma, sem definição geométrica (GARCÍA MARQUEZ, 1990). Aqui ocorre um processo inverso ao que ocorre em Escher, cuja obra é constituída pelo preenchimento do espaço, pelas formas geométricas perfeitamente arranjadas. No conto, o percurso vai em direção do aniquilamento da forma, da forma humana para o amorfo. Ainda seguindo os passos de Huyghe, descobrimos que, ao universo, resta a energia, cuja manifestação se dá através de um movimento vibratório subjugado por um ritmo perpétuo, como atesta a cinética, por exemplo. No conto de García Márquez, é através de um “ruído interminável” que se apresenta o ritmo: Girava dentro do crânio vazio, surdo e pungente. Uma casa de abelhas se havia levantado nas quatro paredes de sua caveira. Crescia, cada vez mais, em espirais sucessivas, e o golpeava por dentro, fazendo vibrar sua coluna vertebral com uma vibração alterada, desproporcionada com o ritmo certo de seu corpo. (GARCÍA MARQUEZ, 1990) Os animais imaginários de Escher são exemplos da visibilidade do invisível já que, como afirma Mikel Dufrenne (1991) Mais l’invisible n’est pas l’autre du visible, il en est le fond, ce qui le charge, ce qui lui confère de l’épaisseur (...) C’est du fond de l’invisible, qui est puissance de visible, que l’oeil se prémédite: pour la métamorphose de l’être en apparaître (p.83-4). Em “A terceira renúncia”, é o “cheiro” que dá aos leitores a visibilidade da morte. “Tudo negava sua morte. Tudo menos o “cheiro”. Depois de pensar que tudo não passava de um sonho e de constatar que não podia acordar, o morto-vivo percebe seu novo estado: “De todos os modos, persistia o “cheiro”. Isto é, o corpo putrefato, a morte física. Se anteriormente ele apenas parecia estar morto, agora ele é morto. Tal transformação - a do ser em parecer - é possível porque, para ser, o objeto deve primeiro parecer que é ao sujeito que olha, como afirma Landowski (1994): Ao ser, portanto, qualquer que seja o objeto considerado - e o sujeito que olha -, não se tem nenhum acesso senão pela mediação do parecer. Embora escondendo o primeiro (ou por essa mesma razão), é ele, o parecer - e ele só - que pode significar o ser, e quiçá, até certo ponto e indiretamente, revelá-lo. (p.241) Olhar o que parece, então, deixa de ser mera função orgânica para tornar-se pulsão. A tangibilidade é expressa por García Márquez na oposição osso/pele. Se, como afirma Dufrenne (1991), “(...) lorsque la peau est ce qu’il y a de plus profond parce qu’elle nourrit l’expérience du fond où le sujet se perd” (p.105), o morto do conto está desprovido desse contato intercorporal, ele só pode tocar nele mesmo, pois ninguém mais tocará seus ossos, que também não têm a capacidade peculiar da pele que é a de sentir o toque do outro. “Quando - à vista de um cadáver - percebeu que era seu próprio cadáver. Olhou-o e se apalpou. Sentia-se intangível, inespacial, inexistente. Ele era verdadeiramente um cadáver, e já estava sentindo, sobre seu corpo jovem e doentio, a passagem da morte” (GARCÍA MARQUEZ, 1990). Há então, a passagem a um novo estado: o da morte como anulação do táctil, do sensual, por meio da transformação da vida em morte. A tensão constante entre o vazio e o cheio na obra de Escher provoca uma reflexão sobre a neutralidade geralmente concedida ao vazio que, visto de outra maneira, nunca é neutro, pois, dele, brota um chamado ao preenchimento. Nós não percebemos o chamamento porque o nosso relacionamento banal com as coisas faz com que elas pareçam cheias e é para isso que García Márquez parece alertar: para o despertar para o vazio, para deixarmos de lado o bombardeio sígnico e voltarmo-nos para as coisas, para o que grita das coisas até mesmo através do vazio. “Sentiria o vazio do corpo suspenso nos ombros dos amigos, enquanto sua angústia e seu desespero se avolumariam a cada passo do cortejo” (1990). Enfim, este artigo nada mais é do que uma breve introdução, uma pequena e tímida viagem às obras de Escher e de García Márquez, nas quais procurei reconhecer alguns traços comuns que podem nos ajudar a apreciar a imperfeição – nossa e do mundo. Descobri, durante a tarefa de compor esse texto, que é possível encontrar afinidades em lugares onde ela antes parecia não estar: entre duas obras tão diferentes como a de um escritor colombiano e de um artista holandês, por exemplo. A figuratividade nos permite esse encontro, essa aproximação à primeira vista insólita mas que, depois de considerada uma camada mais profunda, revela- nos tais afinidades em sua profundeza mítica. No entanto, minha principal descoberta foi, de fato, um grande presente: conhecer uma pessoa especial que, embora vivesse num patamar muito superior ao meu (falo por mim, pelo contato que pude ter), sabia conviver cordial e carinhosamente com aqueles que cruzassem seu caminho. O professor Ignácio. Aquele que, como disse na minha dissertação de mestrado, me “patemizou” para sempre. COELHO, L. R. Elective affinities between García Marquez and Escher´s works. Itinerários, Araraquara, n. especial, p. 91-100, 2003. ABSTRACT: This paper establishes tries to establish the relations between a verbal text, the short story “A terceira renúncia” by Gabriel Garcia Márquez and the visual texts “Unicórnios”, “Pássaros”, “A fita de Moebius II” and “Um outro mundo II”, by Maurits Cornelis-Escher. KEYWORDS: Fracture; figurality; esthesia; figurativity. Itinerários, Araraquara, n. especial, 91-100, 2003100 Lilian Reichert Coelho Referências BARTHES, R. O óbvio e o obtuso: ensaios críticos III. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. DALÍ, S. As inconfessáveis confissões de Salvador Dalí. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1976. DUFRENNE, M. L’oeil et l’oreille. Paris: Jean-Michel Place, 1991. FERREIRA, V. As metamorfoses e o efeito de sentido fantástico na obra de Murilo Rubião. 1993. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Araraquara. GARCÍA MARQUEZ, G. A terceira renúncia. In: ________ . Olhos de cão azul. 10.ed. Rio de Janeiro: Record, 1990. GREIMAS, A. J. 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