TRÁFICO DE ANIMAIS SILVESTRES E POLICIAMENTO AMBIENTAL ADILSON LUÍS FRANCO NASSARO OESTE DO ESTADO DE SÃO PAULO (1998 A 2012) TRÁFICO DE ANIMAIS SILVESTRES E POLICIAMENTO AMBIENTAL Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 1Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 1 10/03/2015 13:37:5410/03/2015 13:37:54 CONSELHO EDITORIAL ACADÊMICO Responsável pela publicação desta obra Hélio Rebello Cardoso Júnior (vice-coordenador) José Luís Bendicho Beired Lúcia Helena Oliveira Silva (coordenadora do programa) Milton Carlos Costa Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 2Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 2 10/03/2015 13:37:5710/03/2015 13:37:57 ADILSON LUÍS FRANCO NASSARO TRÁFICO DE ANIMAIS SILVESTRES E POLICIAMENTO AMBIENTAL OESTE DO ESTADO DE SÃO PAULO (1998 A 2012) Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 3Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 3 10/03/2015 13:37:5710/03/2015 13:37:57 © 2014 Editora Unesp Cultura Acadêmica Praça da Sé, 108 01001-900 – São Paulo – SP Tel.: (0xx11) 3242-7171 Fax: (0xx11) 3242-7172 www.editoraunesp.com.br www.livrariaunesp.com.br feu@editora.unesp.br CIP – BRASIL. Catalogação na publicação Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ N215t Nassaro, Adilson Luís Franco Tráfico de animais silvestres e policiamento ambiental: Oeste do Estado de São Paulo (1998 a 2012) / Adilson Luís Franco Nassaro. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2015. Recurso digital Formato: ePDF Requisitos do sistema: Adobe Acrobat Reader Modo de acesso: World Wide Web ISBN 978-85-7983-627-5 (recurso eletrônico) 1. Animais silvestres – Comércio – São Paulo. 2. Livros eletrôni- cos. I. Título. 15-20600 CDD: 328.81_______________ CDU: 330.524:504.74.052(81) Este livro é publicado pelo Programa de Publicações Digitais da Pró-Reitoria de Pós-Graduação da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp) Editora afiliada: Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 4Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 4 10/03/2015 13:37:5810/03/2015 13:37:58 Para Lúcio Baptista Nassaro, pai e amigo de todas as horas, que compartilhou tempo e espaço, despertando meu interesse para novos conhecimentos. Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 5Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 5 10/03/2015 13:37:5810/03/2015 13:37:58 Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 6Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 6 10/03/2015 13:37:5810/03/2015 13:37:58 SUMÁRIO Introdução 9 1 Atos de caça: início do ciclo do tráfico e sua coibição 27 2 Transporte: a movimentação do crime e do poder público 73 3 Cativeiro e negociação: a continuidade da prática delitiva e das ações de polícia ambiental 117 4 Diagnóstico do tráfico, políticas públicas e a perspectiva da educação ambiental 167 Conclusões 207 Referências 213 Apêndice 225 Glossário 227 Cronologia 253 Legislação de fauna 261 Ilustrações 273 Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 7Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 7 10/03/2015 13:37:5810/03/2015 13:37:58 Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 8Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 8 10/03/2015 13:37:5810/03/2015 13:37:58 INTRODUÇÃO O tráfico de animais silvestres constitui tema que provocou dis- cursos e ações na esfera do poder público e de importantes segmen- tos da sociedade civil no Brasil, nos anos que marcaram o final do século XX e a primeira década do novo século.1 Sob a justificativa de preservação das espécies, mas com as atenções voltadas à integri- dade da remanescente riqueza natural do país representada pela sua 1 Animais silvestres são aqueles identificados de forma ampla na Lei n.9.605 de 1998 (“Lei dos Crimes Ambientais”), integrando o conjunto da “fauna silvestre”, como indica o seu artigo 29, parágrafo 3o: “São espécimes da fauna silvestre todos aqueles pertencentes às espécies nativas, migratórias e quais- quer outras, aquáticas ou terrestres, que tenham todo ou parte de seu ciclo de vida ocorrendo dentro dos limites do território brasileiro, ou águas jurisdicio- nais brasileiras” (grifo nosso); o que diferencia os animais da fauna silvestre dos animais da fauna doméstica é a característica de os primeiros viverem naturalmente fora do cativeiro, na proposição da Lei n.5.197, de 1967 (“Lei de Proteção à Fauna”), que apresenta tal critério geral de qualificação: “Os animais de quaisquer espécies, em qualquer fase de seu desenvolvimento e que vivem naturalmente fora do cativeiro, constituindo a fauna silvestre, bem como seus ninhos, abrigos e criadouros naturais são propriedade do Estado, sendo proibida a sua utilização, perseguição, destruição, caça ou apanha” (artigo 1o). Ao longo do texto deste livro aparecem diversos termos/expressões não comumente utilizados pelos historiadores, por esse motivo, optou-se por apresentar um Glossário no Apêndice a fim de auxiliar a leitura; na primeira ocorrência, esses termos/expressões são destacados em itálico. Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 9Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 9 10/03/2015 13:37:5810/03/2015 13:37:58 10 ADILSON LUÍS FRANCO NASSARO diversidade biológica, várias iniciativas focadas na proteção surgi- ram a partir da vigência da Lei Federal n.9.605, de 12 de fevereiro de 1998, conhecida como “Lei dos crimes ambientais”.2 No período em estudo, o conjunto de ações de natureza pública somado às iniciativas de entidades não estatais, destacadamente as Organizações Não Governamentais (ONG), reflete a determina- ção do caput do artigo 225 da Constituição Federal – promulgada dez anos antes – com a previsão de que “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as pre- sentes e futuras gerações”3 (grifo nosso). O enunciado descreveu em sua primeira parte um direito difuso e, na segunda, instituiu a obrigação comum de defesa e de preservação desse mesmo direito considerado atemporal. Pela primeira vez um dispositivo legal – e de dimensão constitu- cional – estabeleceu no Brasil um direito daqueles que nem sequer tinham nascido. O novo patamar da fonte originária dos direitos e obrigações no país identificou, em 1988, o meio ambiente como um bem, ou status, que deveria ser incondicionalmente defendido e preservado, consignando o testamento de uma herança sobre a qual, no tempo presente, os vivos teriam garantido o seu usufruto, não sua disponibilidade plena. Mas o esforço legal das duas décadas seguintes, ainda que in- suficiente como se verá, não surgiu por acaso. O próprio capítulo reservado ao meio ambiente da Constituição Federal – Capítulo VI, 2 A legislação ambiental referente à fauna silvestre é ampla e diversificada. Para auxiliar a compreensão do seu significado e da evolução das normas específi- cas de proteção dos animais e de sua função ecológica ao longo do tempo, apre- senta-se no Apêndice deste livro um quadro geral da legislação referenciada – incluindo atos administrativos relevantes –, por ordem cronológica, junto com breve descrição do objeto de normatização. A legislação federal está disponível no site oficial do Congresso Nacional (Brasil, 2011a) e a legislação estadual (de São Paulo) no site oficial da Assembleia Legislativa do Estado (São Paulo, 2011a), repositórios oficiais das normas federais e estaduais, respectivamente. 3 Cf. Constituição da República Federativa do Brasil, de 15 de outubro de 1988. Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 10Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 10 10/03/2015 13:37:5810/03/2015 13:37:58 TRÁFICO DE ANIMAIS SILVESTRES E POLICIAMENTO AMBIENTAL 11 integrado pelo artigo 225 com seus parágrafos e incisos – foi impul- sionado por movimentação crítica de amplitude internacional que ganhou expressão a partir da década de 1970, ao mesmo tempo que se atingia um elevado grau de devastação do meio natural equiva- lente ao exponencial crescimento da população mundial e a uma explosão de consumo comprometedor dos recursos da natureza, com momento de destaque ainda na década anterior. O consumis- mo desenfreado, em um modo capitalista de organização social dominado pela competitividade, já comprometia como nunca o meio natural remanescente, em especial nos países orientados pelo desenvolvimentismo, como o Brasil. Diante da percepção de rápido esgotamento dos recursos na- turais, de um modo geral até então tratados como abundantes e mesmo infindáveis, a Conferência de Estocolmo, promovida pela Organização das Nações Unidas (ONU), de 5 a 16 de junho de 1972, propôs uma visão global e princípios comuns orientadores da preservação do que se denominou “meio ambiente humano”. A comparação do planeta com uma nave, da qual todos os povos seriam tripulantes, chamava a atenção para a capacidade limitada da natureza na absorção dos impactos da expansão da atividade humana, demonstrando a existência de oposição entre o inconse- quente crescimento econômico e a preservação do meio ambiente (Mele, 2006, p.20). Considerou-se que o ambiente não era apenas o natural, onde se encontravam intactos os valores da fauna e da flora, mas também o ambiente artificial, caracterizado pelas inovações do homem, além de que o ser humano necessitaria de qualidade de vida no meio em que habita. Com base nessa análise, acentuou-se a necessida- de de aproveitamento racional dos recursos naturais disponíveis e o relacionamento entre os dois ambientes – natural e artificial – mantendo-se como elo o ser humano e as suas intervenções a serem pautadas pela preservação dos valores ambientais essenciais à sua própria sobrevivência. Conclusões de valor simbólico e de agradável leitura, mas de difícil colocação em prática na sua pleni- tude pelos competitivos integrantes da comunidade internacional, Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 11Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 11 10/03/2015 13:37:5810/03/2015 13:37:58 12 ADILSON LUÍS FRANCO NASSARO diante da visão do consumo de recursos naturais garantidor de um “desenvolvimento a todo custo” e do modo de vida contemporâneo orientado pela lógica capitalista. O Brasil, que nessa fase vivia o “milagre econômico”, em um primeiro momento, deixou de adotar políticas públicas eficazes e compatíveis ao apelo internacional pela interpretação – tal como ocorreu em outros países não desenvolvidos – de que as nações mais ricas, pela força da sua industrialização, promoviam a mobilização mundial como forma de frear o avanço dos países em processo de desenvolvimento, restringindo-lhes a capacidade de exploração dos recursos necessários ao seu crescimento econômico (Mele, 2006, p.21). Mas a questão do meio ambiente continuou projetando-se com destaque nos acordos e nas relações internacionais, vinculando decisões com impacto político e econômico. Quanto à preservação da fauna silvestre, firmou-se marcante acordo internacional com a participação do Brasil em defesa das es- pécies mais vulneráveis à extinção, doravante listadas e especialmen- te protegidas nas relações de comércio entre os países signatários. A Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies da Flora e Fauna Selvagens em Perigo de Extinção (Cites), firmada em Wa- shington, em 3 de março de 1973, foi recepcionada oficialmente pelo Brasil em 1975, por meio de decreto legislativo e de decreto federal que, respectivamente, aprovaram e promulgaram o acordo, com todos os efeitos dele decorrentes no ordenamento jurídico do país.4 Além de apresentar listas de espécies com risco de desaparecimento em várias partes do mundo, atualizadas periodicamente, a Cites impôs regras e rigorosas condições para tal modalidade de comércio. Ainda em 27 de janeiro de 1978, foi proclamada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco), em sessão realizada em Bruxelas, a Declaração Universal dos Direitos dos Animais, contendo quatorze artigos que descreveram direitos naturais que deveriam ser respeitados pelo homem na sua relação 4 Cf. Decreto Legislativo n.54, de 24 de junho de 1975, e Decreto n.76.623, de 17 de novembro de 1975. Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 12Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 12 10/03/2015 13:37:5810/03/2015 13:37:58 TRÁFICO DE ANIMAIS SILVESTRES E POLICIAMENTO AMBIENTAL 13 com os animais (Leval, 1998, p.21). Uma das justificativas constan- tes do preâmbulo do documento diz respeito ao desconhecimento e ao desprezo dos chamados “direitos dos animais” que teriam levado o homem a “cometer crimes contra a natureza e contra os animais”. A Declaração representou um conjunto de princípios recomen- dados e não vinculou obrigações, a exemplo da Cites, essa com força de Convenção.5 A Ecologia, termo que desde 1900 designava uma subdivisão da biologia, de expressão limitada ao meio acadêmico-científico, pas- sou a ser utilizada amplamente também a partir da década de 1970 no sentido de “estudo do lugar onde se vive”, em sua acepção literal. Derivada do grego oikos, com o significado de “casa”, e de logos que significa estudo, o termo que representa a sentença “ambiente da casa” ganhou força junto com a preocupação quanto à integridade do meio natural, enfatizando a “totalidade ou padrões de relações entre os organismos vivos e o seu ambiente” (Odum, 1989, p.1). Tais relações espontâneas e necessárias a um preconizado equi- líbrio do meio ambiente capaz de garantir a continuidade da vida humana foram identificadas em seu conjunto, no ordenamento jurídico brasileiro, como função ecológica das espécies da fauna e da flora, uma construção normativa ainda sustentada pela visão antropocêntrica quanto aos desígnios da natureza. Algumas dessas 5 A doutrina do Direito no Brasil divide-se quanto à amplitude do chamado “direito dos animais”, apesar de dispositivos legais de proteção que, por exem- plo, impediram os maus-tratos aos animais (silvestres ou domésticos) em diversos momentos no país, o que será abordado oportunamente. Mesmo os estudiosos do “Direito Ambiental”, novo ramo do Direito Público relacionado principalmente com o Direito Administrativo e com o Direito Penal, resistem à ideia de que os animais seriam “sujeitos de direito” e, de outra forma, a maior parte defende que os animais são “objetos de direito” cuja titularidade pertence sempre ao homem em uma visão tradicionalmente antropocêntrica e dominante nas Ciências Jurídicas (“Os animais são bens sobre os quais incide a ação do homem. Com isso, deve-se frisar que animais e vegetais não são sujei- tos de direitos, porquanto a proteção do meio ambiente existe para favorecer o próprio homem e somente por via reflexa para proteger as demais espécies” (Fiorillo, 2000, p.89). Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 13Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 13 10/03/2015 13:37:5810/03/2015 13:37:58 14 ADILSON LUÍS FRANCO NASSARO relações espontâneas, em seu somatório, são reconhecíveis como a polinização, o ciclo da fotossíntese, o ciclo das águas, a cadeia ali- mentar, a residual fertilidade dos solos e inúmeros outros, mesmo invisíveis, mas representáveis em forma de sistema. O termo ecossistema decorreu exatamente da visão sistêmica de uma rede de fenômenos naturais interdependentes e, não obstante ter sido proposto, em 1935, pelo cientista britânico A. G. Tansley, sua concepção básica é bem mais antiga, como advertiu Eugene Odum ao enfatizar que desde a mais remota história escrita são encontradas alusões à ideia da unidade dos organismos com o am- biente e, também, da unidade dos seres humanos com a natureza. Nesse sentido, um ambiente físico em determinada área com todos os organismos que funcionam em conjunto – conexidade biótica – expressaria uma “unidade funcional básica na natureza, pois inclui tanto os organismos quanto o ambiente abiótico (não vivo); cada um destes fatores influenciando as propriedades do outro e cada um necessário para a manutenção da vida, como a conhecemos na Terra” (Odum, 1989, p.9). Nesses anos de intensa reflexão e de manifestação na década de 1970, o mundo viveu momentos decisivos quanto ao reconheci- mento da importância da relação do homem, enquanto integran- te da sociedade, com a natureza e o equilíbrio ecológico do meio ambiente, bem como os desdobramentos dessa inevitável interação, surgindo uma inovadora forma de estudar a história, como desta- cou Worster (1991, p.199), ele próprio um dos pioneiros da novel expressão historiográfica: A ideia de uma história ambiental começou a surgir na década de 1970, à medida que se sucediam conferências sobre a crise glo- bal e cresciam os movimentos ambientalistas entre os cidadãos de vários países. Em outras palavras, ela nasceu numa época de reavaliação e reforma cultural, em escala mundial. E a distinção desse emergente espaço de pesquisa se estabele- ceu na possibilidade de integração e de interação com outras dis- Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 14Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 14 10/03/2015 13:37:5810/03/2015 13:37:58 TRÁFICO DE ANIMAIS SILVESTRES E POLICIAMENTO AMBIENTAL 15 ciplinas, muito além de um simples intercâmbio entre as ciências sociais, como concluiu Drummond (1991, p.185): A história ambiental é, portanto, um campo que sintetiza mui- tas contribuições e cuja prática é inerentemente interdisciplinar. A sua originalidade está na sua disposição explícita de “colocar a sociedade na natureza” e no equilíbrio com que busca a interação, a influência mútua entre sociedade e natureza. No Brasil, destacadamente, a história ambiental apresentou ainda uma característica marcante pelos prolongamentos visíveis na chamada História do Tempo Presente ou Imediata, como acentua Martinez (2006, p.49), dado que “não se completou, até o momen- to, a ocupação territorial, o inventário exaustivo da biodiversidade e das riquezas minerais e, principalmente, a exploração econômica do país” (grifo nosso). Por isso, o historiador atento às rápidas trans- formações sociais, econômicas e políticas relacionadas à interação do homem com a natureza nas últimas décadas passa a dispor de um rico material para suas pesquisas, especialmente no segundo nível dentre os três identificados no âmbito da história ambiental por Worster: o primeiro, uma história ecológica propriamente, atin- gindo a “descoberta da estrutura e distribuição dos ambientes na- turais do passado”; o segundo, em destaque neste estudo, cuida das dimensões sociais e econômicas da referida interação do ser huma- no com o mundo natural, na análise sobre “as várias formas com as quais as pessoas tentaram transformar a natureza num sistema que produz recursos para o consumo”; e o terceiro, sobre o conhecimen- to e reações diante da natureza, em que “as percepções, ideologias, ética, leis e mitos tornaram-se parte de um diálogo de indivíduos e de grupos com a natureza” (Worster, 2002-2003, p.26). Avançando na década de 1980, os movimentos ambientalistas ganharam força e exerceram papel fundamental na conscientização da necessidade de preservação dos valores ambientais, de edifi- cação de uma legislação compatível com as questões ambientais contemporâneas e de adoção de medidas eficazes para fiscalização Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 15Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 15 10/03/2015 13:37:5810/03/2015 13:37:58 16 ADILSON LUÍS FRANCO NASSARO do aproveitamento dos recursos naturais, entre eles os da fauna sil- vestre. O Brasil passou por um processo de transição política e de restabelecimento da democracia a partir de 1985, momento em que a questão ambiental conquistou espaço nas discussões da Assembleia Constituinte e oportunidade para que se formatasse o recorrente capítulo sobre o meio ambiente na “Constituição Cidadã” de 1988. Para assegurar a efetividade do direito de todos, acrescido ao genérico “dever da coletividade”, a Constituição estabeleceu especi- ficamente ao poder público a incumbência de “proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade”.6 A enfatizada obrigação do Estado quanto à proteção da fauna, portanto, apresentou-se como absoluta por não comportar ressalvas e, também, por envolver três dimensões de tu- tela bem caracterizadas, defendendo o exercício da função ecológica dos espécimes, a integridade das espécies, e o não sofrimento dos ani- mais em geral. Dessas três dimensões decorrem as políticas públicas voltadas à proteção da fauna, que também significarão a proteção da natureza e, reflexamente, do próprio homem contemporâneo. As duas primeiras dimensões de proteção da fauna encontra- ram eco na Convenção da Diversidade Biológica (CDB), assinada durante a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, também conhecida como Cúpula da Terra, Conferência Mundial Rio 92, ou ECO-92, realizada na cidade do Rio de Janeiro, no período de 5 a 14 de junho de 1992, constituindo importante marco internacional de defesa do meio ambiente em encontro dessa vez sediado no Brasil.7 6 Cf. Parágrafo 1o, inciso VII, do artigo 225, da Constituição da República Fede- rativa do Brasil, de 15 de dezembro de 1988. 7 A CDB é uma das três chamadas “Convenções do Rio”, resultantes da Con- ferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. As outras duas Convenções são: a de “Desertificação” e a de “Mudanças Climáti- cas”. No Brasil, o Decreto Legislativo n.2, de 3 de fevereiro de 1994, ratificou a CDB, e o Decreto Federal n.2.519, de 16 de março de 1998, determinou sua execução ao promulgá-la. Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 16Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 16 10/03/2015 13:37:5810/03/2015 13:37:58 TRÁFICO DE ANIMAIS SILVESTRES E POLICIAMENTO AMBIENTAL 17 O tema biodiversidade discutido pela comunidade internacional colocou o Brasil em evidência nessa fase, por causa da grandeza do patrimônio genético em seu território, qualificando-se como o país mais biodiverso do mundo, no grupo dos países chamados mega- diversos. Tal característica foi comprovada pelos registros sobre sua fauna, entre outros indicadores, alcançando mais de cem mil espécies, entre mamíferos, aves, anfíbios, peixes, répteis, insetos e outros invertebrados, estimando-se que entre 10% e 20% de toda a diversidade no planeta se encontra no Brasil, apesar de apenas 10% serem conhecidas (São Paulo, 2009b, p.17). No aspecto da perda de biodiversidade mensurada pelo rápido e contemporâneo declínio de seus componentes – genes, espécies e ecossistemas –, não se pode desconsiderar que o tráfico de animais silvestres vem impactando a fauna ao longo de décadas no Brasil, apesar de todo o aparato legislativo, das ações dos órgãos fiscali- zadores e do contexto das recentes políticas públicas de preserva- ção.8 O controle das espécies classificadas pelo risco de extinção e a divulgação desses dados em iniciativa também recente con- firmam o declínio da quantidade de indivíduos representativos, especialmente daquelas espécies que atraem o interesse coletivo. O comércio ilegal de espécimes da fauna silvestre influiu e continua influindo na extinção de espécies, constituindo parte de duas das pressões que mais afetam a diversidade biológica, quais sejam: o uso não sustentável associado à sobre-exploração de recursos e a pre- sença de espécies exóticas invasoras, como reflexo do comércio entre fronteiras que comportam diferentes ecossistemas.9 8 Não obstante a retirada de animais silvestres do meio natural brasileiro e sua exploração para diversos aproveitamentos – inclusive por meio do comércio – ser uma prática que remonta ao período colonial, o seu formal reconhecimento como conduta criminosa e os seus maiores impactos, em geral, sobrevieram em passado recente no país, a partir da década de 1930, como será oportuna- mente analisado. 9 As outras três pressões que completam as cinco referidas são: “a perda de hábi- tat, as mudanças climáticas e a poluição”, como indicou o secretário executivo da Convenção Sobre Diversidade Biológica, Ahmed Djoghlaf, referenciando Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 17Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 17 10/03/2015 13:37:5810/03/2015 13:37:58 18 ADILSON LUÍS FRANCO NASSARO Ocorre que, quanto mais rara a espécie, mais valioso se torna o espécime no mercado clandestino dos animais silvestres. A fórmula econômica própria de qualquer relação comercial apresentou-se al- tamente prejudicial à manutenção da diversidade biológica em face da ação do tráfico, mantendo a subtração danosa de espécimes do meio natural. Sob essa lógica econômica de valorização das caracte- rísticas de variedade e de exclusividade – que atrairia os comprado- res de animais silvestres sob o mesmo efeito de joias raras – de um modo geral, a fauna brasileira caracterizou-se desde sempre como valiosa e, portanto, como alvo de intensa exploração.10 Além do abastecimento do mercado proibido – de que passaram a se servir colecionadores e criadores ilegais ou em situação irregular em razão de restrições impostas ao comércio de animais silvestres11 –, o interesse no acesso ao patrimônio genético também aumentou junto com o avanço da biotecnologia e, com ela, as possibilidades conclusão das Partes (países) signatários em Convenção (Secretariado da Con- venção sobre Diversidade Biológica, 2010, p.7). 10 Ao estudar políticas de conservação e critérios ambientais, Eleonora Trajano (2010, p.136) registrou o interesse econômico resultante da constatação da biodiversidade como riqueza, o que torna os animais silvestres alvo do tráfico: “Variedade emerge da existência de semelhanças e diferenças observadas nos diversos níveis do universo biológico, do molecular, passando pelo indivíduo, ao ecossistêmico e da paisagem. Configura-se, assim, um sistema fractal, tanto no espaço como no tempo. Nossa própria evolução está tão imersa nesse sistema que nosso sentido estético e sistema de valores estão ligados de forma inalienável à variedade – o interessante contrapõe ao monótono, o valioso ao comum, repetido. Estamos sempre em busca do raro, do singular, do único, do que é diferente. O preço de um anel de diamante, o tráfico internacional de animais raros ou ameaçados de extinção, que a pressão imobiliária e turística sobre ilhas e os poucos remanescentes de matas preservadas etc. provam que todos valorizam e querem usufruir da variedade e da exclusividade”. 11 Em 2 de janeiro de 1934, o Decreto Federal n.23.672 (“Código de Caça e Pesca”) proibiu a caça e a venda de algumas espécies silvestres, impôs outras restrições e vedou a caça praticada por profissional (artigo 128). Em 1938, o Decreto-Lei n.794, de 19 de outubro, instituiu o “Código de Pesca”, revogando o Decreto n.23.672 na parte referente à pesca. Em 1939, houve retrocesso com o retorno da caça profissional regulamentada no Decreto-Lei n.1.210 de 12 de abril do mesmo ano (novo “Código de Caça”); todavia mantiveram-se várias das restrições impostas em 1934. Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 18Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 18 10/03/2015 13:37:5810/03/2015 13:37:58 TRÁFICO DE ANIMAIS SILVESTRES E POLICIAMENTO AMBIENTAL 19 de obtenção de lucros em razão de novos produtos derivados de pesquisas patrocinadas por empresas multinacionais com grande impulso a partir da década de 1990, projetando o século XXI como o “século biotecnológico”, título cunhado em 1999 por Jerimy Rifkin (Moreira, 2008, p.157-83). Apesar do uso corrente da expressão “tráfico de animais silves- tres” como efeito do advento de rigorosas condições para o exercício do comércio de animais da fauna silvestre – especialmente com a Lei de Proteção à Fauna, de 1967 –, não foi definido no ordena- mento jurídico brasileiro ao longo dos anos um delito específico com esse título. Nos dispositivos legais, optou-se pela indicação de condutas criminosas na relação entre homem e fauna silves- tre, envolvendo o animal vivo ou morto, suas partes, produtos ou subprodutos, com sanções estabelecidas e, desde que caracterizada a obtenção de ganho econômico, tais condutas seriam identificadas como integrantes do chamado “tráfico ilegal”. Constituem exem- plos na legislação de vigência contemporânea as condutas de: caça, apanha, venda, exposição, transporte, aquisição, manutenção em cativeiro, e utilização entre outras condutas previstas em 1998, na Lei Federal n.9.605, no caput do artigo 29 e incisos I, II e III, do seu parágrafo 1o (Lei dos Crimes Ambientais). O emprego comum e o sentido genérico da expressão “tráfico de animais”, inclusive no âmbito dos órgãos de fiscalização e dos demais atores envolvidos na proteção da fauna silvestre, sedimentou uma in- terpretação – ora registrada, e de forma inédita – de que integram o ciclo do tráfico de animais silvestres: os atos de caça (ou captura), o transporte, o cativeiro (ou guarda), e a negociação (ou comercialização) propriamente dita, que envolve atos de compra e de venda. Dessa forma, para a finalidade de pesquisa, tornou-se possível a sistema- tização do tráfico ilícito por meio das quatro esferas de conduta, em momentos distintos, cada uma delas voltada à obtenção de vantagem econômica e compondo o ciclo criminoso em uma continuidade de- litiva. Por esse motivo, o presente trabalho apresenta a divisão em capítulos, acompanhando a mesma lógica que contempla o aspecto temporal, tão caro à historiografia, evidenciando as políticas públicas Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 19Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 19 10/03/2015 13:37:5810/03/2015 13:37:58 20 ADILSON LUÍS FRANCO NASSARO de prevenção e de repressão desenvolvidas em São Paulo, destacada- mente sob a vigência da Lei dos Crimes Ambientais, de 1998. Tal como em relação ao tráfico de entorpecentes, o senso comum acolheu o vocábulo “tráfico” como sinônimo de negócio proibido. A palavra tráfico originalmente trazia o sentido de simples comér- cio – regular ou não –, mas as associações com a negociação de ob- jetos ilícitos mudaram a sua acepção mais comum, sem adjetivação, para denotar negócio proibido ou indecoroso. Com esse sentido, tornaram-se comuns as associações da palavra aos seguintes “obje- tos” de circulação: drogas, armas, animais silvestres, obras de arte, antiguidades e relíquias, órgãos humanos, escravos e, mais recen- temente, também associado à circulação de crianças para adoção ilegal e mulheres para prostituição, como modalidade de lenocínio no conjunto do tráfico de pessoas, principalmente o internacional.12 No caso dos animais silvestres existiria uma ressalva. Em 1998 foi mantida na legislação a possibilidade – já tradicionalmente acei- ta no país – de comércio legal na condição do animal, objeto da negociação, proveniente de criadouro comercial autorizado.13 Para tal circunstância regular, todavia, nunca se empregou a palavra “tráfico”, naturalmente pelo referido sentido negativo que ela já havia adquirido como efeito das associações comuns a diversas práticas ilegais já relatadas. Também não houve incentivo público para a popularização do comércio legal como alternativa ao tráfico ilícito pelo receio de se aumentar o interesse e a procura por animal silvestre e, com isso, fortalecer o mercado negro. Ainda, o comércio legal passou a ser visto com desconfiança pelos defensores da fauna silvestre, pela constatação de desvios, falta do necessário controle e apropriação de recursos naturais. A questão do tráfico de animais silvestres ganhou relevância no Brasil tanto pelo evidente prejuízo ambiental causado pela ação cri- 12 Tráfico igualmente foi associado à influência, também no sentido de negocia- ção ilícita, na conduta de aceitar oferecimentos ou receber presentes para obter de um governante ou de uma autoridade pública uma vantagem qualquer; ou de exercício de advocacia administrativa (Ferreira, 1986). 13 Inciso III, do parágrafo 1o, do art. 29, da Lei n.9.605 de 1998. Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 20Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 20 10/03/2015 13:37:5810/03/2015 13:37:58 TRÁFICO DE ANIMAIS SILVESTRES E POLICIAMENTO AMBIENTAL 21 minosa quanto em razão dos números expressivos indicados sobre a circulação ilegal contemporânea de animais silvestres. Pesquisas estimaram, no final da década de 1990, que o Brasil abasteceria de 10% a 15% do mercado clandestino de animais silvestres, e que a atividade internacional seria responsável pela circulação anual de aproximadamente dez bilhões de dólares no mundo e setecentos milhões de dólares em relação ao país. Pelo critério de circulação de valores em dinheiro, nessa avaliação, o tráfico de animais silvestres no mundo perderia apenas para o tráfico de armas e para o tráfico de drogas (Lima; Sidnei, 2000, p.29-33; Renctas, 2001).14 Diante da impossibilidade de comprovar esses valores, mas em face da percepção geral de impactos causados pela extinção de espé- cies e também de prejuízos econômicos pelo desvio de patrimônio ge- nético e, como consequência, a ineficácia de futura bioprospecção de interesse nacional, o poder público passou a investir em mais ações de fiscalização do uso e da exploração de recursos naturais e na respon- sabilização de infratores, além de instituir campanhas e programas voltados à educação ambiental, entre outras iniciativas relevantes, como a reestruturação dos órgãos envolvidos na gestão da fauna. O funcionamento de duas inéditas Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI) instaladas no Congresso Nacional constituiu sinto- ma do inconformismo quanto ao status quo. A primeira foi destina- da a investigar o tráfico ilegal de animais e plantas silvestres da fauna e flora brasileira (CPITrafi), que funcionou de 13 de novembro de 14 Mais recentemente, no final de 2012, a British Broadcasting Corporation (BBC), BBC Brasil, divulgou que um novo relatório do Fundo Mundial para a Natureza (Word Wildlife Fund – WWF, na sigla em inglês) aponta que os lucros do tráfico de animais chegam a 19 bilhões por ano e que “a atividade está ameaçando a estabilidade de alguns governos”; destaca uma “nova onda” de crime organizado ligado ao tráfico de animais entre fronteiras de países vizinhos, especialmente países africanos, em que rebeldes invadem áreas para capturar animais e obter fundos para financiar conflitos civis; nesse mesmo relatório, o WWF também sugere que o tráfico de animais e plantas seria a “quarta maior atividade comercial ilegal do mundo, perdendo apenas para o tráfico de drogas, falsificação de produtos e moedas e tráfico de pessoas” (Tráfico de animais rende US$ 19 bi por ano, diz WWF. 2012). Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 21Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 21 10/03/2015 13:37:5810/03/2015 13:37:58 22 ADILSON LUÍS FRANCO NASSARO 2002 a 21 de janeiro de 2003, e a segunda visava investigar o “trá- fico de animais e de plantas silvestres brasileiras, a exploração e comércio ilegal de madeira e a biopirataria no país” (CPIBiopi), no período de 25 de agosto de 2004 a 28 de março de 2006. O desen- volvimento dessas duas CPI veio comprovar a relevância política do tema e, por meio dos seus extensos relatórios e registros de ses- sões, demonstrou a tensão mantida entre um irregular extrativismo animal que, teimoso, perpetua-se ao longo da história do país e o esforço legal mais incisivo como resposta contemporânea do poder público a coibi-lo (Brasil, CPITrafi, 2003, CPIBiop, 2006). Também no âmbito federal, a movimentação política da primeira década do novo século foi marcada pelas disputas e pelas posições antagônicas, nesse caso entre ruralistas e ambientalistas, relativas à reforma do Código Florestal vigente desde 1965.15 As propostas le- gislativas vinham sendo discutidas na década de 1990 e, no período mais recente, quando a relatoria do projeto final buscava acordos para viabilizar a sua aprovação, cresceram as polêmicas sobre as definições das Áreas de Preservação Permanente (APP) e das Reservas Legais necessárias à manutenção da biodiversidade nacional, em oposição aos interesses sobre o seu parcial aproveitamento e regularização de espa- ços já ocupados para a produção agropecuária. Depois de aprovado o projeto considerado favorável aos ruralistas, já em 2012, a Presidência da República exerceu o poder de veto em dispositivos para alterar o Novo Código Florestal aprovado em meio à continuidade da busca de um consenso quase impossível.16 15 Cf. Lei n.4.771, de 15 de setembro de 1965 (Código Florestal então vigente). Até 1965, vigorava o Decreto n. 23.793, de 23 de janeiro de 1934 (primeiro Código Florestal). 16 Cf. Lei n.12.651, de 25 de maio de 2012, aprovou o Novo Código Florestal, ao passo que a Lei n.12.727, de 17 de outubro do mesmo ano, promoveu altera- ções resultantes dos vetos da Presidência da República em Medida Provisória, almejando-se uma posição intermediária diante dos anseios dos dois grupos em oposição, como verificado em sua Mensagem n.484 de 2012, encaminhada ao presidente do Senado Federal, com as justificativas nela apresentadas. Destacou-se, no discurso presidencial, a busca do “equilíbrio entre preser- vação ambiental e garantia das condições para o pleno desenvolvimento do Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 22Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 22 10/03/2015 13:37:5810/03/2015 13:37:58 TRÁFICO DE ANIMAIS SILVESTRES E POLICIAMENTO AMBIENTAL 23 No estado de São Paulo, a atuação policial-ambiental no período imediatamente posterior à Lei dos Crimes Ambientais de 1998 sig- nificou a parte mais visível do esforço legal em defesa do meio am- biente na unidade federativa com maior concentração populacional e geração de riquezas no país. Ainda que se avaliem como insufi- cientes as iniciativas para fazer frente à atuação criminosa no tráfico de animais, será demonstrado que, na mesma fase, o policiamento ambiental investiu no exercício de polícia ostensiva e de preserva- ção da ordem pública ambiental, na condição de modalidade espe- cializada de polícia militar realizada pelo efetivo do seu Comando de Policiamento Ambiental (CPAmb), com quatro Batalhões de Polícia Ambiental (BPAmb).17 Com sedes de companhias, pelotões e bases operacionais em várias cidades do estado – no total de 117 –, passou a absorver praticamente toda a ação de campo antes dividi- da com os agentes do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), órgão federal executor do Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama), que compreende a gestão de fauna no território nacional.18 potencial social e econômico dos imóveis rurais” e do “equilíbrio adequado à necessidade de proteção ambiental com a diversidade da estrutura fundiária brasileira” (Mensagem n.484). 17 O CPAmb está sediado em São Paulo, capital, e coordena o 1o BPAmb (sede na capital), o 2o BPAmb (sede em Birigui, responsável pela área da presente pes- quisa, no oeste paulista), o 3o BPAmb (sede no Guarujá) e o 4o BPAmb (sede em São José do Rio Preto). Essa é a mais recente estrutura e nomenclatura disciplinadas pelo Decreto Estadual n.46.263, de 9 de novembro de 2001. Até então, o nome da atividade especializada da Polícia Militar era “Policiamento Florestal e de Mananciais”, com seu comando central em São Paulo exercido pelo antigo Comando de Policiamento Florestal e de Mananciais (CPFM) a quem estavam subordinados os Batalhões de Polícia Florestal e de Mananciais (BPFM), na mesma disposição. O efetivo de policiais militares ambientais para atuação em São Paulo – atualmente em torno de 2.300 homens – sempre foi maior que o número de agentes do Ibama para todo o Brasil. 18 Em 31 de agosto de 1981, a Lei Federal n.6.938 estabeleceu a Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA), seus fins e mecanismos de formulação e apli- cação e constituiu o Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama). Essa lei indicou a posição e atribuição dos diversos órgãos em nível federal, estadual e municipal no âmbito do Sisnama. O Ibama foi criado pela Lei n.7.735, de em Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 23Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 23 10/03/2015 13:37:5810/03/2015 13:37:58 24 ADILSON LUÍS FRANCO NASSARO O estudo dos boletins de ocorrência do policiamento ambiental relacionados ao tráfico de animais silvestres no oeste paulista, além de possibilitar um diagnóstico pelos números apresentados em uma visão quantitativa e localizada, como amostragem, favoreceu a análise qualitativa em face dos registros do inspirador campo nomi- nado “histórico” que cada um deles comporta. Sobre a pesquisa, promoveu-se minucioso estudo dos registros dos boletins de ocorrência policial-ambiental (BOPAmb) de inter- venções que resultaram apreensão de animais silvestres na área do 2o Batalhão de Polícia Militar Ambiental (2o BPAmb), identificada como “oeste do estado de São Paulo”, formalizados nos anos que seguiram à vigência da Lei dos Crimes Ambientais de 1998, parti- cularmente de 1999 a 2009 (com indicativos de incidência de tráfico de animais silvestres). Nesse propósito, sobreveio a dificuldade de reunião dos documentos, pela dispersão das 23 sedes da área de circunscrição envolvendo quatro companhias, com seus pelotões e grupos policiais na ampla área do batalhão, cada qual com arquivo próprio, resultando na recuperação dos 327 boletins de ocorrên- cia policial-ambiental. Cada conjunto de documentos (boletim e seus anexos) foi catalogado e estudado sobre: dados numéricos das apreensões, espécies apreendidas, tipos de enquadramento legal e outros dados relevantes. Ainda, além da exploração de diversas fontes bibliográficas, foram realizadas entrevistas e foram analisa- dos: relatórios técnicos de órgãos especializados, toda a legislação ambiental relacionada à fauna, matérias jornalísticas e dados do Sistema de Administração Ambiental (SAA) do CPAmb. 22 de fevereiro de 1989, como autarquia federal dotada de personalidade jurí- dica de direito público, autonomia administrativa e financeira, vinculada ao Ministério do Meio Ambiente, vindo a ocupar a posição da antiga Secretaria Especial do Meio Ambiente (Sema) no Sisnama (note-se que a Sema e a autar- quia Superintendência do Desenvolvimento da Pesca (Sudepe) foram extintas pela mesma Lei n.7.735/89, que criou o Ibama, enquanto a Superintendên- cia do Desenvolvimento da Borracha (Sudhevea) e o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF) foram extintos pela Lei n.7.732, de 14 de fevereiro do mesmo ano). Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 24Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 24 10/03/2015 13:37:5810/03/2015 13:37:58 TRÁFICO DE ANIMAIS SILVESTRES E POLICIAMENTO AMBIENTAL 25 Diante da riqueza de relatos de policiais, com autênticas re- presentações de acontecimentos que interessam ao historiador, optou-se por transcrever fragmentos de alguns deles em abertura de capítulos e em alguns itens respectivos, com citação no próprio texto ou em notas, como oportunidade de fundamentar a análise e ainda subsidiar a argumentação apresentada sobre cada momento do tráfico de animais silvestres e as ações desenvolvidas para evitá- -lo ou para coibi-lo. Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 25Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 25 10/03/2015 13:37:5810/03/2015 13:37:58 Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 26Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 26 10/03/2015 13:37:5810/03/2015 13:37:58 1 ATOS DE CAÇA: INÍCIO DO CICLO DO TRÁFICO E SUA COIBIÇÃO Polícia Militar Ambiental detém 12 caçadores, apreende 27 armas, munições e 140 quilos de carne em operação regional: atua- ram policiais de Assis, Ourinhos, Marília, Bauru, Prudente e Tupã.1 A matéria publicada com destaque em diário de notícias da ci- dade de Assis (SP), no dia 6 de abril de 2011, demonstra que a caça irregular prossegue no estado de São Paulo apesar das proibições legais, e, por outro lado, descreve a ação repressiva dirigida à desmo- bilização de pessoas que subtraem e matam animais silvestres para auferirem vantagem econômica. Cada boletim de ocorrência lavrado por integrante da equipe condutora contém relato da ação policial e sua análise, juntamente com a leitura dos registros divulgados na im- prensa regional, o que permite compreender também a forma de ação criminosa. No caso evidenciado, ela foi baseada na obtenção de carne – em grande parte de capivara – e sua revenda para particulares na própria região, ou o seu beneficiamento para a venda como linguiça.2 1 Título de matéria publicada no periódico Jornal de Assis, de 6 de abril de 2011, p.7. 2 Cada ocorrência ambiental atendida por uma ou mais equipes policiais gera em situação normal um BOPAmb e uma equipe é designada “condutora”. O “condutor” é o responsável por reunir informações e lavrar o boletim e Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 27Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 27 10/03/2015 13:37:5810/03/2015 13:37:58 28 ADILSON LUÍS FRANCO NASSARO A falta de um predador natural da capivara, como a onça, possibi- litou a multiplicação do maior roedor do mundo em vários pontos do interior de São Paulo. A caça predatória praticada pelo homem contra a onça pintada – uma espécie símbolo da fauna brasileira – por causa de sua pele ou para proteção do gado, e ainda a pressão do desmata- mento e da ocupação de seu hábitat revelaram como consequência um evidente desequilíbrio na cadeia alimentar. Desse modo, as po- pulações de capivara, de lebre e de javali passaram a causar prejuízos às lavouras e, em alguns casos, graves problemas de saúde pública.3 No estágio contemporâneo da intervenção humana, mesmo diante da conhecida proibição da caça de animais silvestres, pessoas mantêm-se convencidas de que exercem um direito natural tanto em razão dos estragos que os grandes grupos de capivaras – de até 120 indivíduos por bando – causam em plantações quanto pela noção de que a “abundância” do recurso legitimaria seu desautoriza- do aproveitamento. E na situação anterior de caça às onças, a percep- ção de legitimidade da conduta dos caçadores também se mostrava clara e buscava-se justificá-la pelos prejuízos que o felino causaria ao rebanho local e à segurança dos moradores da região. Nos dois momentos o homem significou a novidade capaz de desestabilizar as autuações respectivas, além de apresentar as partes e provas reunidas no distrito policial para prosseguimento dos registros e providências próprias de polícia judiciária. O caso relatado tem características diferentes do padrão usual; por se tratar de uma grande operação policial envolvendo cumprimento de mandados de busca e apreensão encerrados no dia 5 de abril de 2011 e, diante da prisão de várias pessoas com diferentes tipos de envolvimento, foram lavrados diversos boletins por diferentes equipes participantes da complexa ação fiscalizadora (somaram-se 17 BOPAmb, todos de 5.4.2001, de números: 110400 a 110411; 110415 a 110417; 110419 a 110420, do 2o Pelotão – Assis/ SP, da 4a Companhia, do 2o Batalhão de Polícia Ambiental). 3 Descobriu-se que a capivara é hospedeira do carrapato-estrela (Amblyomma cajennense) que, infectado, transmite a febre maculosa ao homem (bactéria Rickettsia rickettsii). “As capivaras que habitam principalmente duas áreas do parque podem abrigar carrapatos-estrela, uma espécie de inseto que incuba a febre maculosa. Essa febre não atinge as capivaras, mas é perigosa para seres humanos e animais domésticos que podem desenvolver a doença” (Dagnino, 2008. p.45-77, p.61). Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 28Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 28 10/03/2015 13:37:5810/03/2015 13:37:58 TRÁFICO DE ANIMAIS SILVESTRES E POLICIAMENTO AMBIENTAL 29 ou, em avaliação menos drástica, de equacionar a seu favor a relação de interdependência entre seres vivos em determinado ecossistema. A caça da onça e a caça da capivara são apenas exemplos de uma permanente atividade humana que trouxe e continua trazendo impactos ambientais no Brasil, especialmente pela sua associação ao comércio. A notável influência dessas intervenções, de outro lado, levou o aparato normativo – que se avalia imprescindível para o regramento da vida em sociedade e para preservar as condições necessárias a esse fim – a ser aperfeiçoado para definir os atos ir- regulares caracterizadores da caça ilegal, que é ponto de partida do tráfico de animais silvestres. A caça, como sabemos, não é fenômeno recente ou localizado. A ação antrópica que evidencia a superioridade do homem diante dos outros animais, não somente pela capacidade física, é tão antiga quanto a própria existência da espécie humana. Ainda, no meio natural, a caça é anterior ao homem e, como decorrência da cadeia alimentar, o animal mais forte caça o mais fraco – ou o menos capaz – para se alimentar. No território que se denominou brasileiro, múl- tiplas utilidades alcançadas pela captura de espécimes silvestres perpetuaram o extrativismo animal em um espaço geográfico que, além de imenso, ainda comportava notável concentração de diversi- dade biológica imediatamente reconhecível em sua ocupação. Compreendida como a captura do animal no seu meio natural, abatido ou não, a caça era praticada muito antes da chegada dos co- lonizadores portugueses na sua empossada parte do Novo Mundo. Como meio de subsistência, por exemplo, era realizada pelos índios tupis na área coberta pela floresta hoje conhecida por Mata Atlân- tica e, nesse caso, com características culturais marcantes como ilustrou Warren Dean (1996, p.55): “Os caçadores tupis eviden- temente experimentavam complexas interações psíquicas com sua caça. Atribuíam almas aos animais e se identificavam profunda- mente com eles. Um caçador não consumia ele mesmo a caça que havia abatido, por medo de vingança do animal”. O processo de colonização caracterizado pela extração de rique- zas naturais mais conhecidas e requisitadas como o pau-brasil e o ouro explorou também a fauna silvestre, mantendo-se os atos de Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 29Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 29 10/03/2015 13:37:5810/03/2015 13:37:58 30 ADILSON LUÍS FRANCO NASSARO caça como fonte de alimentos para subsistência e de lucros, mesmo após a formação do Estado brasileiro. A análise de informações constantes na Coleção de leis do Brasil, especialmente as Decisões de governo e relatos de cronistas e viajantes que percorreram o Brasil na primeira metade do século XIX permite “visualizar os mecanis- mos de acumulação primitiva do capital, pelas pressões exercidas sobre os espaços, a natureza e a força de trabalho”, apresentando-se como exemplo de extrativismo animal a caça de animais como o macaco guariba, para a obtenção regular de peles utilizadas para o ornamento de barretes militares da cavalaria dos corpos de Guarda Cívica criados em 1823 e a caça de animais silvestres diversos para obtenção de carne para atender hábitos alimentares comuns, como descreveu Martinez (2007, p.51-62). O macaco guariba é uma espécie emblemática da fauna cine- gética – conjunto dos animais alvos de caçadores – que, em face do insistente extrativismo caracterizado pela caça realizada por profissionais, ou mesmo pela primitiva caça de subsistência, quase foi extinta.4 A mudança da prática de caça de subsistência por comunidades ocupantes de ricos ecossistemas para um modo de extrativismo ani- mal voltado ao comércio, portanto de características profissionais, aumentou a pressão sobre o hábitat de espécies silvestres. Destaca- damente no final do século XIX, em diversos pontos do território, a ação desenvolvida como complementar passaria a constituir uma atividade lucrativa “que fez com que muitos trabalhadores autôno- mos se empenhassem na captura de animais silvestres como onças, capivaras, jacarés, ariranhas e uma diversidade de aves. Além dos ribeirinhos, a caça passou a ser intensificada por outros trabalhado- res rurais” (Borges, 2010, p.310). Em particular, no caso do espaço territorial que compreende o atual estado de São Paulo, notam-se alguns fatores que influencia- 4 Por meio da Portaria n.1.522, de 19 de dezembro de 1989, e da Portaria n.45- -N, de 27 de abril de 1992, o Ibama tornou pública a lista oficial de espécies da fauna brasileira ameaçadas de extinção, em que consta o guariba como primeiro primata citado: o Alouatta belzebul belzebul, Linnaeus 1766, Família Cebidae. Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 30Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 30 10/03/2015 13:37:5810/03/2015 13:37:58 TRÁFICO DE ANIMAIS SILVESTRES E POLICIAMENTO AMBIENTAL 31 ram decisivamente a mudança de sua paisagem. Essa vasta área que une leste e oeste compreende um centro geográfico do território brasileiro por sua configuração natural que define largos corredo- res desenhados por extensos rios navegáveis e planícies com solos férteis paulatinamente ocupados. O hábitat de várias espécies sil- vestres foi irremediavelmente alterado pela supressão da vegetação original, na medida em que se abriam amplos domínios para as plantações de café cada vez mais distantes da capital, favorecidas pela extensão da ferrovia que possibilitava o escoamento da pro- dução já no início do século XX. Além dessa grave pressão sobre os ecossistemas do meio natural paulista, a caça constituiu fator que marcou a sua ocupação e que ainda se manteve por longo tempo.5 Os espaços remanescentes de vegetação nativa também sofre- ram impacto da caça em todo o país. A visão de uma floresta vazia, ou seja, de um ecossistema sem representação de parte relevante de sua fauna original característica e, portanto, ecologicamente empo- brecida e até condenada em alguns casos, não é algo surreal como constatou Redford na sua pesquisa publicada em 1992, sob o insti- gante título The empty forest. Na análise dos efeitos da intervenção humana, particularmente pela prática da caça comercial e da caça de subsistência, suas conclusões indicam que a pressão no meio natural teria determinado em várias partes do mundo, inclusive no Brasil, a condição de florestas desprovidas de animais originalmen- te característicos do respectivo espaço geográfico, especialmente aqueles de maior porte (Redford, 1992, p.412). Se a caça não é um fenômeno contemporâneo, deve-se reconhe- cer que diversos sinais da permanência dessa interferência humana continuam evidenciados no extenso território brasileiro, em vários casos por questão de sobrevivência de comunidades em dependên- cia direta dos recursos do meio natural. Nesse sentido, demonstrou- 5 Até as décadas de 1920/1930 a caça constituía-se em principal recurso para a obtenção de carne. Como efeito da destruição das florestas e o estabelecimento das propriedades privadas (fatores limitadores de vida itinerante), a caça de subsistência ou mesmo para complementação alimentar começou a perder espaço (Candido, 1975, p.55). Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 31Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 31 10/03/2015 13:37:5810/03/2015 13:37:58 32 ADILSON LUÍS FRANCO NASSARO -se, em 1999, a existência de caça em assentamentos rurais, como é o caso do assentamento Japuranã, em Nova Bandeirantes, no Mato Grosso, notando-se que, dos 113 mamíferos de dezessete espécies capturados por quatorze caçadores de nove famílias, em um período de seis meses, houve a seguinte distribuição: 85,8% para consumo da carne; 8% em razão de prejuízos às plantações, caracterizando uma caça de controle; 6,2% foram mortos por representarem perigo aos cães utilizados na caça (Trinca; Ferrari, 2006, p.155). Outra pesquisa publicada em 2007 revelou proporção parecida no assenta- mento Nova Canaã, em Porto Grande, no Amapá, abrangendo 257 animais caçados no período de doze meses, entre 2005 e 2006, na se- guinte disposição: 73,5% foram abatidos para o consumo da carne; 18,7% foram caçados por atacarem criações domésticas; 5,4%, por representarem perigo aos cães de caça; e 2,4%, para controle da po- pulação da área, com o animal morto sem aproveitamento (os três últimos itens configuram caça de controle e predatória quando sem aproveitamento do animal) (Ferreira et al., 2012). Muito além da simples caça de subsistência ou daquela de ca- racterística profissional, manteve-se outra voltada à satisfação de um recorrente desejo de dominação da natureza pelo homem, compreendida como caça esportiva, vinculada ou não ao consumo da carne do animal ou à utilização, ou venda, de seus produtos e subprodutos. Ela representa relevante componente cultural no desenvolvimento socioeconômico do país e integra o imaginário de aventura em razão dos desafios próprios dessa atividade em face de uma inexplorada e imensa riqueza faunística no meio natural, idealizada com suas representações particulares, e também pela tradição europeia de associação da caça à nobreza, na percepção de que caçar é esporte de nobres.6 6 E. P. Thompson (1987, p.22) apresentou na obra Senhores e caçadores um quadro completo das tensões no século XVIII, na Inglaterra, entre o grupo de oligarcas e grandes fidalgos, de um lado, e, de outro, plebeus conhecidos como “Negros” que se associavam e, disfarçados, praticavam atos de caça – especialmente visando os cervos – em áreas exclusivas para o esporte dos nobres, nas “propriedades dos súditos de Sua Majestade”. A forte reação do Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 32Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 32 10/03/2015 13:37:5810/03/2015 13:37:58 TRÁFICO DE ANIMAIS SILVESTRES E POLICIAMENTO AMBIENTAL 33 Ainda, na literatura, os relatos de caça buscaram demonstrar atos de heroísmo de personagens reais ou fictícios,7 ou registros em caráter autobiográfico no trabalho de memorialistas8 e de técnicas de um conhecimento particular dos iniciados em repertório identi- ficado como uma verdadeira “arte da caça”.9 Por essa amostra das atividades de caça em suas dimensões econô- mica e sociocultural em perspectiva histórica, identificam-se alguns tipos ou modalidades: a de subsistência; a profissional ou voltada ao comércio, regular ou não; a amadora ou esportiva; a de controle; a predatória. Em muitos casos, captura-se ainda hoje o animal para ser negociado, vivo ou morto, inteiro ou não, e por vezes transfor- mado em múltiplos objetos de algum valor comercial. No ciclo do tráfico, além do corpo do animal, constituem atrativos também os seus produtos e subprodutos para obtenção de vantagem econômica. A caça no Brasil diante da legislação de fauna A caça constitui o momento inicial do ciclo do tráfico de ani- mais silvestres e sua ilegalidade é identificada na legislação especial grupo dominante veio com a imposição da chamada “Lei Negra” que passou a punir com enforcamento os infratores que insistiam na caça considerada ilegal (a quem não estava legitimado a exercê-la), entre outras infrações descritas na norma que vigorou por cem anos (1723 a 1823): “O principal conjunto de infrações era a caça, ferimento ou roubo de gamos ou veados, e a caça ou pesca clandestina de coelhos, lebres e peixes. Eram passíveis de morte se os infrato- res estivessem armados e disfarçados, e, no caso dos cervos, se os delitos fos- sem cometidos em qualquer floresta real, estivessem os delinquentes armados e disfarçados ou não”. 7 Exemplo das famosas “Caçadas de Pedrinho”, em obra publicada em 1933 por Monteiro Lobato (1962. p.3-118). 8 Exemplo da obra Memórias de caçador, de 2001 (Juliani, 2001). 9 A literatura portuguesa, por exemplo, é rica em títulos que registram conhe- cimentos sobre a atividade de caça por diletantismo. Na área da falcoaria – caça com auxílio de aves de rapina – destaca-se o clássico Ferreira (1616). No campo da cinegética – caça como arte, especialmente com auxílio de cães – destaca-se Gama (1866). Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 33Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 33 10/03/2015 13:37:5810/03/2015 13:37:58 34 ADILSON LUÍS FRANCO NASSARO voltada à fauna. A partir da década de 1930, ocorreram expressivas mudanças no ordenamento jurídico que representaram iniciativas de proteção à fauna no Brasil, como resultado da opção pela regula- mentação e pela restrição aos atos de caça. As circunstâncias em que surgiram as leis especiais, tendo por objeto a relação entre os homens e os animais silvestres, revelam uma dinâmica particular e caracterizam momentos distintos, porém interligados em um mesmo processo. Tais normas guardam inafastável vínculo com a tensão entre a exploração dos recursos faunísticos e o esforço do poder público objetivando controle do extrativismo animal. Do mesmo modo, as ações de prevenção e de repressão ao trá- fico de animais silvestres, tanto em relação aos animais captura- dos como em relação a outros nascidos em cativeiro em situação irregular, mantêm indissociável vínculo com as mudanças cíclicas observadas no país, identificando-se cinco momentos distintos: até 1934, de 1934 a 1967, de 1967 a 1988, de 1988 a 1998, após 1998. A abordagem teórico-metodológica, portanto, volta-se à análise do próprio texto legal citado, com destaque para o seu encadeamen- to lógico e cronológico, considerando, ainda, a escassa literatura especializada sobre o tema, tanto no que diz respeito aos manuais de direito quanto à própria produção historiográfica. Pretende-se, por outro lado, enriquecer a distinta área de conhecimento carac- terizada pela transversalidade da temática ambiental, com foco na fauna silvestre. Patrimonialismo: cenário anterior a 1934 O Brasil era ainda um país predominantemente agrícola até 1930. Não houve censo nesse ano, mas o censo de 1920 indicou ape- nas 16,6% da população vivendo em cidades de vinte mil habitantes ou mais e 70% com ocupação em atividades agrícolas (Carvalho, 2001, p.54). No meio rural, a caça de animais silvestres significava importante recurso para alimentação, além de meio de aquisição de valiosos produtos para troca ou comercialização. Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 34Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 34 10/03/2015 13:37:5810/03/2015 13:37:58 TRÁFICO DE ANIMAIS SILVESTRES E POLICIAMENTO AMBIENTAL 35 O aproveitamento econômico do objeto da caça até 1934 não representava irregularidade simplesmente pela qualidade silvestre do animal comercializado, suas partes, produtos ou subprodutos, salvo nas hipóteses de algumas proibições quanto a espécies e à procedência de caça por áreas de restrição como as tradicionais cou- tadas.10 As situações de ilicitude do aproveitamento econômico da caça, de modo geral, se configuravam pela questão da propriedade de particular ou do Estado eventualmente desrespeitada e, como regra, a captura de animais silvestres e sua negociação eram comuns e regulares. O animal sem dono constituía res nullius, na mesma acepção do direito romano de propriedade.11 Na condição de bem não in- tegrado ao patrimônio alheio, poderia vir a pertencer àquele que o caçasse, como resultado do próprio sentido de dominação do meio natural identificado por Keith Thomas (1989, p.31) e manifesto na ocupação de espaços ainda não dominados: “Com efeito, ‘civiliza- ção humana’ era uma expressão virtualmente sinônima de conquis- ta da natureza”. No início do século XX, a proteção legal da fauna no Brasil manteve uma perspectiva privada quanto à relação existente entre 10 Martinez (2007, p.60-1) cita a Decisão de Governo 23, do Ministério do Reino, de 2 de maio de 1821, em que foi abolida na Ilha do Governador a coutada, palavra que significa espaço de mata ou terra onde se cria caça reser- vada aos nobres, proibindo-se aos demais a pesca e a caça: “A motivação deri- vou do ‘quanto são geralmente prejudiciais à agricultura as coutadas abertas, principalmente em sítios que pelas suas matas virgens e terras não roteadas, necessariamente devem conter muitos animais daninhos’. O direito exclusivo de caça também foi suprimido, ‘devassando-se a qualquer para a caça todo o terreno que nela estava compreendido’”. 11 “O Direito Romano fazia distinção entre res nullius, res derelictae e unes omnium. Res nullius são as coisas sem dono e que nunca foram apropriadas, res derelictae são as que o proprietário abandonou ou renunciou e res com- munes omnium ‘aquelas coisas comuns que são suscetíveis de apropriação parcial, como quando alguém apanha um pouco d’água de um rio público’” (Machado, 2004, p.730). O autor distingue nessa explicação os institutos da propriedade disponível do Direito Romano e cita Clóvis Bevilacqua (1955) na definição de res communes omnium, encontrada no seu Código civil comentado). Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 35Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 35 10/03/2015 13:37:5810/03/2015 13:37:58 36 ADILSON LUÍS FRANCO NASSARO o homem e os animais, influenciada pela recorrente visão patri- monialista. O legislador preocupou-se em coibir condutas lesivas aos semoventes – animais em geral –, objetivando protegê-los en- quanto bens jurídicos incorporados ou passíveis de incorporação ao patrimônio particular pelo valor econômico a eles agregado. Para tanto, classificou-os como bens móveis, com a característica de “bens suscetíveis de movimento próprio”, na definição precisa do artigo 47 do Código Civil de 1916, em redação atribuída a Clóvis Bevilacqua.12 A possibilidade de apropriação pela captura dos animais soltos era prevista pelo artigo 593 (incisos I e II) desse códex: “São coisas sem dono e sujeitas à apropriação: I – os animais bravios, enquanto entregues à sua natural liberdade; II – os mansos e domesticados que não forem assinalados, se tiverem perdido o hábito de voltar ao lugar onde costumam recolher-se [...]” (grifo nosso). O Capítulo III também possuía um título específico “Da caça” e outro “Da pesca”, tratando das relações patrimoniais envolvendo animal caçado ou pescado. No caso da caça, o título referido abran- geu cinco artigos: Art. 594. Observados os regulamentos administrativos da caça, poderá ela exercer-se nas terras públicas, ou nas particulares, com licença de seu dono. Art. 595. Pertence ao caçador o animal por ele apreendido. Se o caçador for no encalço do animal e o tiver ferido, este lhe perten- cerá, embora outrem o tenha apreendido. Art. 596. Não se reputam animais de caça os domesticados que fugirem a seus donos, enquanto estes lhes andarem à procura. 12 O “Código Civil de 1916” que entrou em vigência em 1o de janeiro de 1917 (com texto integral aprovado e consignado na Lei n.3.071, de 1o de janeiro de 1916) permaneceu em vigência por 86 anos. Em 10 de janeiro de 2003 foi revogado em razão do início da vigência do novo Codex (Lei n.10.406, de 10 de janeiro de 2002). O objetivo do Código longevo estava previsto logo no seu artigo 1o: “Este código regula os direitos e obrigações de ordem privada concernentes às pessoas, aos bens e às suas relações”. Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 36Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 36 10/03/2015 13:37:5810/03/2015 13:37:58 TRÁFICO DE ANIMAIS SILVESTRES E POLICIAMENTO AMBIENTAL 37 Art. 597. Se a caça ferida se acolher a terreno cercado, murado, valado, ou cultivado, o dono deste, não querendo permitir a entrada do caçador, terá que a entregar, ou a expelir. Art. 598. Aquele que penetrar em terreno alheio, sem licença do dono, para caçar, perderá para este a caça, que apanhe, e respon- der-lhe-á pelo dano que lhe cause. (grifo nosso) Portanto, como reflexo no campo da responsabilização penal, caracterizavam-se normalmente crimes de ordem patrimonial como o furto, pela defesa da propriedade em razão do território em que se encontrava o animal, ou mesmo da expectativa de propriedade do criador, do caçador e do pescador. Centralização e avanços na proteção: de 1934 a 1967 De 1930 a 1934, o Brasil viveu uma fase revolucionária que resultaria modificações no cenário político e social. O país inicia um processo de transição do domínio das elites rurais para outro domínio influenciado pela industrialização e pela urbanização. De- pois do período de revezamento no poder central entre São Paulo e Minas Gerais, que marcou a Primeira República, Getúlio Vargas assume a liderança de um governo provisório, na condição de chefe da revolução vitoriosa de 1930, sob grande expectativa popular de mudanças e de desenvolvimento do país (Silva, 1964, p.7). Superada a fase revolucionária, o cenário político e institucional favoreceu inovações legislativas também relacionadas à proteção dos recursos naturais ao longo da mesma década. Pode-se explicar esse quadro pela influência de lideranças voltadas à defesa da natu- reza e a construção de um projeto político para o país que priorizava a modernização e a busca de maior inserção internacional. O rápido avanço da degradação resultante do processo de ocupação de novas áreas para o plantio mobilizou intelectuais vinculados a instituições científicas e associações cívicas, culminando com a realização da Primeira Conferência Brasileira de Proteção à Natureza, entre 8 e 15 de abril de 1934. Ao pensar a proteção da natureza, esse grupo unia Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 37Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 37 10/03/2015 13:37:5810/03/2015 13:37:58 38 ADILSON LUÍS FRANCO NASSARO preocupações como a criação de áreas protegidas a amplo projeto de “construção da nacionalidade”, garantindo espaço nas deliberações do governo Vargas e colaborando “na formulação e aprovação de uma série de leis, decretos e regulamentos pertinentes, bem como na criação dos primeiros parques nacionais” (Franco; Drummond, 2009, p.22). Nesse período teve advento o Código de Caça e Pesca de 1934, decreto federal que permitiu identificar atos de comércio ilícito de animais, com regras mais rigorosas impostas para a caça e co- mercialização de animais silvestres. As várias restrições previstas por esse Código envolveram, além da proibição de caça “exercida por profissionais”, a captura de animais considerados úteis à agri- cultura, de “pássaros canoros de ornamentação” e de outros de pequeno porte, a captura em locais de domínio público ou em locais de domínio privado sem autorização do proprietário ou represen- tante, a caça sem a licença estabelecida – no caso a amadora –, a caça nas zonas urbanas e suburbanas e em áreas interditadas, ou mediante utilização dos seguintes instrumentos: visgos, esparrelas, alçapões, arapucas, gaiolas com chamarizes, redes, laços, mundéus, armadilhas de qualquer espécie, “armas que surpreendam” a caça, explosivos, venenos, bem como, à noite, o emprego de fachos e faróis. Restaram, portanto, poucas possibilidades para o exercício de caça regular não profissional, realizada somente em espaços particulares e no meio rural, com restrições diversas relacionadas às espécies animais de interesse e ao uso de armas e instrumentos especificados.13 Em 1939, ocorreu um retrocesso na legislação de fauna, quando foi imposto por decreto-lei um novo Código de Caça,14 revogando o anterior de 1934. Apesar de manter várias das restrições em vigência e ainda impor outras nos seus artigos 6o e 9o, o diploma legal autori- zou o exercício profissional da caça, ao definir duas modalidades de 13 O Decreto n.23.672, de 2 de janeiro de 1934, instituiu o “Código de Caça e Pesca”. O seu artigo 128 estabeleceu as proibições e restrições ora reproduzidas. 14 Decreto-Lei n.1.210, de 12 de abril de 1939. Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 38Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 38 10/03/2015 13:37:5910/03/2015 13:37:59 TRÁFICO DE ANIMAIS SILVESTRES E POLICIAMENTO AMBIENTAL 39 agente: o caçador profissional e o caçador amador. O primeiro seria aquele que procura, com o produto obtido, auferir lucros; o segundo seria aquele que “visa fim exclusivamente esportivo” (artigo 7o). A transcrição de três dispositivos desse Código é suficiente para assinalar que a caça foi reconhecida como regra a partir de 1939: artigo 1o – “A caça pode ser exercida em todo o território nacional, desde que as disposições deste Código sejam observadas”; artigo 4o – “Os animais silvestres, observadas as proibições dos artigos 6o e 9o, podem ser objeto de caça”; artigo 9o, parágrafo segundo – “A caça com armas de repetição a bala, de calibre superior a 22, só é permitida para os grandes carniceiros e em distância superior a três quilômetros, de qualquer via férrea ou rodovia pública”. A definição da atividade de caça, pelo emprego do verbo caçar, foi apresentada também na mesma lei e pela primeira vez, com- preendendo-se que o legislador, em 1939, formulou-a com vis- tas aos animais silvestres, como segue: “Artigo 3o – Caçar é o ato de perseguir, surpreender ou atrair os animais silvestres, a fim de apanhá-los vivos ou mortos”. De fato, a caça de animais domés- ticos foi prevista como uma situação especial, pela possibilidade de esses apresentarem aspecto selvagem: “Artigo 5o – Ficam tam- bém sujeitos à caça os animais domésticos que, abandonados, se tornarem selvagens”. Ainda, em face da forte presença de clubes de tiro, principalmente no sul do país, o decreto-lei assinado pelo presidente gaúcho Getúlio Vargas estabeleceu que: “Artigo 3o, pa- rágrafo único – É também considerado caça o ato de abater pombos domésticos praticado pelos membros das sociedades de tiro ao voo, nos ‘stands’ respectivos”. Em 1943, surgiu outro Código de Caça, revogando o de 1939.15 Apesar de trazer novo detalhamento sobre as condições para exer- cício da caça – ao apresentar 97 artigos contra 67 do anterior –, não alterou a estrutura básica de autorizações e restrições definidas na codificação anterior. Manteve esse código a caça profissional como modalidade permitida, mesmo com regulamentação restritiva que 15 Decreto-Lei n.5.894, de 20 de outubro de 1943. Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 39Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 39 10/03/2015 13:37:5910/03/2015 13:37:59 40 ADILSON LUÍS FRANCO NASSARO caracterizou o período identificado por uma maior preocupação para com a proteção dos recursos naturais. Mesmo diante das novas restrições legais protetivas, deve-se admitir que o Estado perpetuava a cultura da caça ao incentivar o comércio de animais silvestres capturados no meio natural, en- quanto a sociedade em geral prestigiava a imagem do caçador. Prova da aceitabilidade dos atos de caça profissional ou amadora nesse período é o lançamento da obra Vocabulário de caça, de Clado Ribeiro Lessa (1944), pela Companhia Editora Nacional, integran- do a popular Coleção Brasiliana (número de catálogo 239). O Estado e a conservação: de 1967 a 1988 No âmbito da legislação federal, o momento posterior a 1964 foi caracterizado por um movimento generalizado de centralizações no país mediante decretos, sobressaindo-se o ano de 1967 em relação ao quadro institucional dos órgãos voltados ao uso dos recursos na- turais. Foi criado o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Flores- tal (IBDF), por meio do Decreto-Lei n.289, de 28 de fevereiro de 1967, extinguindo-se o então Departamento de Recursos Naturais Renováveis (DRNR), o Conselho Florestal, o Instituto Nacional do Mate e o Instituto Nacional do Pinho, para dar lugar ao referido órgão federal.16 Também é de 1967 a Lei n.5.197, de 3 de janeiro, conhecida como Lei de Proteção à Fauna. No propósito de tutelar amplamente os animais silvestres, definiu a fauna silvestre e proibiu o exercício da caça profissional no país (não a amadora, que foi por ela regu- lamentada), revogando o anterior Código de Caça. Desse modo, estabeleceu logo em seu artigo 1o que: “Os animais de quaisquer espécies em qualquer fase do seu desenvolvimento e que vivem naturalmente fora do cativeiro, constituindo a fauna silvestre, bem 16 Teresa Urban (1998, p.105) descreveu: “A criação do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF) foi uma alquimia autoritária, bem ao estilo da época”. Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 40Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 40 10/03/2015 13:37:5910/03/2015 13:37:59 TRÁFICO DE ANIMAIS SILVESTRES E POLICIAMENTO AMBIENTAL 41 como seus ninhos, abrigos e criadouros naturais são propriedade do Estado, sendo proibida a sua utilização, perseguição, destruição, caça ou apanha”. O Estado mencionado é o ente federal, ou seja, a União. A proibição do comércio – que se refere diretamente à questão do tráfico – foi objetivamente prevista como segue: “Artigo 3o – É proibido o comércio de espécimes da fauna silvestre e de produtos e objetos que impliquem na sua caça, perseguição, destruição ou apanha”; e o parágrafo 1o do mesmo artigo determinou a exceção pela origem do animal em criadouro artificial: “Excetuam-se os espécimes provenientes legalizados”. Mesmo não empregando a expressão “tráfico de animais silvestres”, o dispositivo estabeleceu a regra geral da proibição do comércio e, por esta razão, é certo afir- mar que a Lei Federal n.5.197/67 constituiu o marco regulatório na questão do tráfico ilícito de fauna silvestre no país. Quanto à caça amadora, estabeleceu a Lei de 1967, logo no seu primeiro artigo (parágrafo primeiro), que: “se peculiaridades regio- nais comportarem o exercício da caça, a permissão será estabelecida em ato regulamentador do Poder Público Federal”. A partir desse ponto, os artigos seguintes especificaram várias possibilidades de exercício da caça autorizada – de caráter esportivo –, tradicional no sul do país, até incentivando “a formação e o funcionamento de clubes e sociedades amadoristas de caça e de tiro ao voo objetivando alcançar o espírito associativista para a prática desse esporte” (arti- go 6o, letra “a”). Por esse motivo, apesar do preconizado caráter de “proteção à fauna” e proibição da caça profissional, paradoxalmen- te, a lei também passou a ser conhecida como “Código de Caça”. O primeiro artigo da lei tornou indisponível a apropriação do objeto jurídico tutelado na condição de bem público pertencente à União, refletindo a percepção de limitação do recurso natural “fauna silvestre” na segunda metade da década de 1960. Diante dessa avocação do Estado em uma verdadeira estatização dos re- cursos da fauna integrada pelos animais que “vivem naturalmente fora do cativeiro”, leis posteriores continuaram a estabelecer como Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 41Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 41 10/03/2015 13:37:5910/03/2015 13:37:59 42 ADILSON LUÍS FRANCO NASSARO condição de sua exploração a obtenção de autorização, licença e concessão expedidas pelo órgão público competente, circunstância harmonizada com a titularidade do Estado – como ente federal – em relação ao referido bem jurídico. Na mesma linha dos anteriores Códigos de Caça, vislumbrou- -se quanto aos animais domésticos a hipótese de “que se tornem selvagens ou ferais” por abandono, quando seria autorizada sua utilização, caça, perseguição ou apanha (artigo 8o, parágrafo único). Nota-se que a lei foi ajustada especificamente à relação do homem com os animais considerados silvestres, iniciativa explicável por uma maior vulnerabilidade desse grupo em decorrência da acentua- da ocupação humana de seus ecossistemas. Não obstante essa cir- cunstância, a regulamentação de caça – não profissional – ocupou a maior parte do texto legal. Com base no patamar de legislação que considerou a fauna sil- vestre propriedade do Estado, surgiu o contemporâneo conceito de “bem ambiental” como tratamento jurídico aplicado à fauna, cujos titulares são indeterminados – em oposição ao antigo res nullius –, uma vez que, teoricamente, todos os homens têm interesse em re- lação ao meio ambiente, caracterizando-se o interesse difuso pelo reconhecimento da função ecológica do animal, anterior ao seu valor individual eventualmente observado na esfera econômica. Posteriormente, a própria Constituição Federal de 1988 veio a es- tabelecer o aspecto difuso do meio ambiente como “bem de uso comum do povo” e preconizou a proteção dos elementos que o viabilizam no seu artigo 225 (e parágrafos), entre eles a fauna. A condição da fauna silvestre como propriedade do Estado já em 1967 implicaria o seu domínio, mas não a disponibilidade do objeto, como no regime ordinário. Desse modo, a propriedade do Estado estaria afetada pelo “interesse comum” e, confirmando tal interpretação original, mesmo a Exposição de Motivos à Lei de Proteção à Fauna de 1967 ressaltou que “a fauna silvestre é mais que um bem do Estado: é um fator de bem-estar do homem na biosfera”. Por fim, reconheceu-se doutrinariamente que o traço Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 42Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 42 10/03/2015 13:37:5910/03/2015 13:37:59 TRÁFICO DE ANIMAIS SILVESTRES E POLICIAMENTO AMBIENTAL 43 característico da Administração Pública de estar vinculada não a uma vontade, mas a um fim – o interesse comum – cobriu com um manto protetor a fauna silvestre, que passou a constituir um bem público: “A fauna silvestre não constitui bem do domínio privado da Administração Pública ou bem patrimonial – do qual a União possa utilizar-se para praticar atos de comércio” (Machado, 2004). A vigência da norma, no entanto, não trouxe efeitos imediatos quanto ao aspecto da proibição do comércio de animais silvestres, seus produtos e subprodutos, em razão das iniciais dificuldades de recursos humanos e logísticos do IBDF para o cumprimento de suas atribuições em todo o país: Em 1969, com a Lei de Proteção à Fauna já em vigor, o Brasil exportou 1.670 toneladas de couros e peles de animais silvestres, um volume bem maior do que o de anos anteriores, quando a caça profissional ainda não era proibida. Somente em abril de 1971, quatro anos depois de promulgada a Lei de Proteção à Fauna, foi eliminada definitivamente a possibilidade de exportação de peles sob a justificativa de que se tratavam de “estoques antigos”. Cal- cula-se que as exportações de 1969 correspondam a setenta mil peças de peles de onça e gatos-do-mato, no mínimo. (Urban, 1998, p.107) Em 1973, um ano depois da Conferência de Estocolmo, foi criada no Brasil a Secretaria Especial do Meio Ambiente (Sema), ligada diretamente à Presidência da República e instalada no ano de 1974. Paulatinamente, as restrições da Lei de Proteção à Fauna passaram a ser colocadas em prática mediante a atuação de estrutu- ras estaduais de fiscalização como ocorreu no estado de São Paulo com a então “Polícia Florestal e de Mananciais” (na condição de segmento especializado de polícia militar), no país de dimensão continental em que apenas os órgãos centrais não teriam condições de agir com plena eficiência. Ainda, no aspecto da responsabilização penal, até 1988 a legis- lação brasileira atribuía ao ato de caça irregular a classificação de Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 43Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 43 10/03/2015 13:37:5910/03/2015 13:37:59 44 ADILSON LUÍS FRANCO NASSARO contravenção penal, ou seja, a de um delito menor.17 No entanto, por forte pressão do movimento ambientalista na década de 1980, essa situação mudaria radicalmente. A força dos ambientalistas e o rigor penal: de 1988 a 1998 A Lei n.7.653, de 12 de fevereiro de 1988, conhecida como “Lei Fragelli”, surgiu com o objetivo de prontamente coibir a matança e o comércio de animais silvestres no Brasil, particularmente os jacarés no Pantanal Mato-Grossense em razão da comercialização do couro, e alterou substancialmente a Lei de Proteção à Fauna, de 1967. O texto da lei que foi proposto pelo ex-governador do Mato Grosso e senador José Fragelli, presidente do Senado de 1985 a 1987, criminalizou com rigor as condutas irregulares envolvendo caça, abrangendo perseguição, destruição, apanha, além da utiliza- ção e outras condutas relacionadas aos animais silvestres, seus pro- dutos e subprodutos, definidas nos diversos artigos da mesma lei. A aplicação da Lei de Proteção à Fauna com as inovações da Lei n.7.653, de 1988, tornou-se particularmente difícil, não somente para os agentes de fiscalização, mas também para os representantes do Ministério Público e para os juízes criminais, pois as condutas irregulares foram incriminadas com previsão de penas gravosas de reclusão, e também os delitos nela descritos foram definidos como inafiançáveis.18 Então, como todos os animais silvestres se 17 Artigos 189 a 191 do “Código de Caça e Pesca” de 1934; inciso XXXI, do artigo 3o, da “Lei de Proteção dos Animais” de 1934; artigo 46 do “Código de Caça” de 1939; artigo 63 do “Código de Caça” de 1943; e artigo 27 da “Lei de Proteção da Fauna”, de 1967 (que foi posteriormente revogado pela Lei no 7.653, de 1988, “Lei Fragelli”). Todos esses dispositivos definiam, nos respec- tivos diplomas legais, as condutas relacionadas à caça irregular em regra como contravenções penais. 18 O artigo 34 da Lei de Proteção à Fauna, com a nova redação da Lei n.7.653, de 1988, estabeleceu: “Os crimes previstos nesta lei são inafiançáveis e serão apurados mediante processo sumário, aplicando-se, no que couber, as normas Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 44Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 44 10/03/2015 13:37:5910/03/2015 13:37:59 TRÁFICO DE ANIMAIS SILVESTRES E POLICIAMENTO AMBIENTAL 45 encontravam tutelados mediante severa imposição legal, a pena e as condições processuais tornaram-se visivelmente desproporcionais à conduta considerada lesiva à fauna silvestre, causando distorções na aplicação da legislação.19 Dessa forma, por exemplo, um morador da área rural surpreen- dido por um policial nos limites de sua propriedade caçando um tatu para se alimentar era preso em flagrante – prisão inafiançável – e poderia ser condenado a três anos de reclusão pela prática da caça ilegal.20 Se, porém, o mesmo indivíduo, com bons antecedentes e residência fixa, não tivesse caçado o tatu e sim praticado um homi- cídio, responderia à ação penal em liberdade.21 Grande foi o impacto da lei com sua publicidade garantida pelos noticiários televisivos de apreensões e prisões de traficantes “gran- des” ou “pequenos” em razão do aspecto da inafiançabilidade e das penas impostas. Por esse motivo, mesmo após a revogação dos dispositivos rigorosos em 1998, com a nova Lei dos Crimes Am- bientais, a norma manteve como efeito, durante muito tempo na opinião pública, a sensação de inflexível punibilidade do tráfico de animais silvestres. do Título II, Capítulo V, do Código de Processo Penal”. Sem a possibilidade de arbitramento de fiança, o acusado deveria responder ao processo recolhido à prisão. 19 No caso da caça comum (não profissional) a pena foi estipulada de um a três anos de reclusão, ao passo que a caça profissional ou o comércio, de dois a cinco anos, também de reclusão. 20 Interpretação do artigo 1o combinado com o parágrafo 1o, do artigo 27 e artigo 34 da Lei n.5.197 de 1967 (Lei de Proteção à Fauna), com as alterações da Lei n.7.653, de 12 de fevereiro de 1988. 21 O homicídio simples foi descrito no caput do artigo 121 do Código Penal (Decreto-Lei n.2.848 de 1940): “Matar alguém. Pena – reclusão, de seis a vinte anos”, no caso do homicídio qualificado (parágrafo 2o do artigo 121) a pena prevista é de reclusão de doze a trinta anos. Conforme artigo 310 do Código de Processo Penal – CPP (Decreto-Lei n.3.689 de 1941) o juiz concede liberdade provisória ao réu diante da inocorrência de hipóteses que autorizam a prisão preventiva (artigo 312 do CPP); em síntese: no Brasil constitui regra o réu responder ao processo em liberdade, se essa liberdade não significar algum eventual prejuízo ao andamento do processo. Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 45Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 45 10/03/2015 13:37:5910/03/2015 13:37:59 46 ADILSON LUÍS FRANCO NASSARO Mais de dez anos depois era ainda comum pessoas imaginarem que “vai preso” aquele que matar um animal silvestre e não aquele que matar uma pessoa, pois o segundo “poderia responder ao pro- cesso em liberdade”, enquanto o primeiro, não. Mas, nem todos os traficantes deixaram de praticar o crime nos anos de sanção rigorosa que se seguiram, ou mesmo depois da vigência da “Lei da inafian- çabilidade da caça de animais silvestres”, como também restou conhecida a Lei n.7.653, de 1988. Outra questão interessante ainda na década de 1980 e relaciona- da particularmente ao estado de São Paulo é a posição contundente adotada no projeto da Constituição Estadual objetivando coibir definitivamente a caça em solo paulista, sob influência do texto da Constituição Federal de 1988 e também da Lei Fragelli. De fato, o artigo 204 da Constituição do Estado de São Paulo de 1989, conce- bida na sequência da Constituição Federal, veio a estabelecer que: “fica proibida a caça, sob qualquer pretexto, em todo o Estado”. A partir de então, discutiu-se no meio jurídico e doutrinário se o legis- lador pretendeu incluir nessa proibição as modalidades de caça de subsistência, científica e de controle. O entendimento majoritário indicou que não, pois, contrário senso, em São Paulo o indígena es- taria impedido de caçar para sua sobrevivência, biólogos não conse- guiriam licença válida para coletar material zoológico para estudos, especialistas não poderiam capturar espécimes para acasalamento e perpetuação de espécies em extinção e, também, não seria possível o controle de pragas causadas por espécies nocivas à saúde humana ou a simples remoção de espécimes em locais com superpopulação.22 Ainda para compreensão do sentido do artigo 204 da Consti- tuição do Estado de São Paulo (“Fica proibida a caça, sob qualquer pretexto, em todo o Estado”), sob o seu propósito original, convém conferir o texto da Emenda n.360 do Projeto da Constituição Esta- dual de 1989, de autoria de Oswaldo Bettio, deputado estadual que combateu duramente a prática da caça amadorística, motivando a 22 Nesse mesmo entendimento: Bechara (2003, p.168) e M. Nassaro (2004b, p.575-92). Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 46Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 46 10/03/2015 13:37:5910/03/2015 13:37:59 TRÁFICO DE ANIMAIS SILVESTRES E POLICIAMENTO AMBIENTAL 47 vedação generalizante da prática de caça sob a expressão: “Ama- dorística ou profissional, apresentada sob qualquer disfarce, como chamado ‘manejo de fauna’, a caça é uma atividade que não pode ser permitida, pelos danos irreparáveis que causa à ecologia. Só no Rio Grande do Sul os predadores da natureza obtiveram proteção aos seus objetivos, através de um convênio que vem sendo questionado pelas entidades ecológicas” (grifo nosso). E finalizou o proponente: “O Estado de São Paulo deve firmar uma posição que não admita dúbias interpretações, mantendo a rigorosa proibição de qualquer tipo de caça, única forma de se proteger a nossa fauna das ambições desmedidas de caçadores irresponsáveis. Sala das Sessões, em 28- 07-89” (M. Nassaro, 2004, p.586). Na verdade, durante forte campanha pela preservação das es- pécies silvestres, os movimentos ambientalistas na década de 1980 conseguiram êxito quanto à previsão de proibição da caça no es- tado de São Paulo, de forma genérica, tendo a seu favor a opinião pública que já tornara possível, em nível federal, a imposição de severas sanções aos atos de caça ilegal previstos na Lei n.5.197/67, mediante as inovações da Lei n.7.653/88 que classificou os atos de caça ilegal como crimes inafiançáveis. Toda essa movimentação ocorreu, na verdade, como uma reação, porque, naquele período, quando se falava em caça no Brasil, remetia-se automaticamente à tão alardeada caça predatória ao jacaré no Pantanal Mato-Gros- sense, situação que realmente merecia rápida repressão do poder público e que motivou grande divulgação na imprensa, em especial nos noticiários televisivos. A referida mudança da legislação federal acompanhada de vigorosa atuação dos órgãos de fiscalização rever- teu o quadro a tal ponto que, duas décadas depois, o grande número de jacarés no Pantanal provocou a retirada da espécie da lista de pe- rigo de extinção e pesquisadores da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) defenderam a possibilidade de manejo da espécie para aproveitamento econômico.23 23 Trata-se da espécie Caimam crocodilus yacare, popularmente conhecida como “jacaré-do-pantanal”. Pesquisadores como o biólogo Marcos Eduardo Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 47Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 47 10/03/2015 13:37:5910/03/2015 13:37:59 48 ADILSON LUÍS FRANCO NASSARO Conforme entendimento majoritário, em São Paulo, o que res- tou absolutamente proibido com imposição do art. 204 da Consti- tuição do Estado foi a caça amadorística, levando-se em conta que a caça predatória – profissional ou sanguinária – já era proibida em razão da legislação federal em vigor (Lei de Proteção à Fauna, de 1967). O dispositivo não se referiu aos atos de caça relacionados na Lei n.5.197/67, mas sim às “modalidades de caça” reconhecidas pela doutrina especializada, que também constitui fonte de inter- pretação jurídica. Nesse sentido, as caças de controle, a científica e a de subsistência, por se tratar de situações extraordinárias, não teriam sido objeto de abordagem no texto da Constituição do Esta- do de São Paulo para encontrar respaldo, por outro lado, na legis- lação federal. Reconheceu-se que a prática de modalidades excepcionais de caça é necessária em certas circunstâncias e deveria ser admitida para a garantia da saúde pública (controle),24 da própria perpe- tuação das espécies animais (científica)25 e para a preservação da cultura indígena reconhecida na Lei Maior, igualmente quanto ao exercício dos direitos originários dos índios sobre as terras que legi- timamente ocupam (art. 231, da Constituição Federal). Coutinho (2004), da Embrapa Pantanal, publicaram conclusões indicativas da viabilidade do manejo da espécie, diante da constatação da existência de aproximadamente quatro milhões de indivíduos no meio natural: “a espécie encontra-se amplamente distribuída por toda planície pantaneira, podendo alcançar as maiores densidades até então relatadas para qualquer outra espécie de crocodiliano no planeta (150 indivíduos/ km2)” (Coutinho, 2004). 24 A Lei de Proteção à Fauna (Lei n.5.197/67) estabelecia no parágrafo 2o do seu artigo 2o: “Será permitida mediante licença da autoridade competente, a apanha de ovos, lavras e filhotes que se destinem aos estabelecimentos acima referidos, bem como a destruição de animais silvestres considerados nocivos à agricultura ou à saúde pública” (grifo nosso). 25 A mesma Lei n.5.197/67 estabelecia no seu artigo 14: “Poderá ser concedida a cientistas, pertencentes a instituições científicas, oficiais ou oficializadas, ou por estas indicadas, licença especial para a coleta de material destinado a fins científicos, em qualquer época”, e advertia no parágrafo 3o: “As licen- ças referidas neste artigo não poderão ser utilizadas para fins comerciais ou esportivos”. Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 48Miolo_Trafico_de_animais_silvestres_(GRAFICA).indd 48 10/03/2015 13:37:5910/03/2015 13:37:59 TRÁFICO DE ANIMAIS SILVESTRES E POLICIAMENTO AMBIENTAL 49 Diminuição da pena e aumento da multa: de 1998 até a atualidade Se a Lei Fragelli mostrou-se rigorosa demais na punição dos crimes contra a fauna silvestre, particularmente aqueles relacio- nados à caça e ao comércio ilegal, de modo contrário, a Lei Federal n.9.605, de 12 de fevereiro de 1998 (Lei dos Crimes Ambientais), buscou viabilizar a conciliação quanto aos delitos praticados contra o meio ambiente em geral. A mudança foi imediatamente notada pela diminuição drástica das penas e pelo fato de o infrator não mais permanecer preso durante o processo, como ocorria por ocasião da anterior inexistência de possibilidade de pagamento de fiança em casos de prisão em flagrante. A pena básica de seis meses a um ano de detenção para os crimes contra a fauna passou a caracterizar os delitos como de “menor potencial ofensivo” e, portanto, sujeitos a um regime processual rápido – o chamado procedimento sumarís- simo – com a possibilidade de conversão da pena em prestação de serviços à comunidade ou mesmo em pagamento de cestas básicas.26 Incompreensível e até surpreendente para muitos ambienta- listas e estudiosos do direito ambiental a nova classificação legal em razão de que o potencial ofensivo considerado pelo legislador referiu-se à lesividade e ao valor do bem jurídico tutelado. No caso da integridade da fauna silvestre, não seria possível uma explicação lógica além de uma rápida diminuição do rigor anterior, considera- do de fato excessivo. Fundamentadas, portanto, as críticas que a lei recebeu em razão da dosimetria nas novas possibilidades de sanção. 26 O rito sumaríssimo desse processo esp