Prisma Jur., São Paulo, v. 10, n. 1, p. 195-208, jan./jun. 2011. 195 Esse trabalho está voltado para a análise do paradoxo da moderni- dade, a partir da contraposição entre o ideário iluminista e os acon- tecimentos históricos que o sucederam, especialmente, ao longo do século XX, bem como ao estudo dos impactos desse descompasso sobre a Bioética, adotando-se como referencial epistemológico a te- oria crítica da Escola de Frankfurt. A Bioética apresenta-se como uma ciência vacilante, carente de referenciais, além de essencialmente impactada pelo esvaziamento da ética. A dessubjetivação da razão, estabelecida pela modernidade e exacerbada pelo esclarecimento, mostrou-se capaz de erigir trevas assustadoras para a humanidade e fomentar práticas bárbaras em nome de uma ciência que promete ordem e progresso. Esse paradoxo e a falácia da razão iluminista são escancarados pelo progresso científico, sempre acompanhados de as- sustadores regressos éticos e morais. Alguns exemplos disso são as pesquisas realizadas em Tuskegee e na Guatemala, e tratadas nesse estudo, que revelam até onde chega a racionalidade moderna e todos os seus desdobramentos. Palavras-chave: Bioética. Esclarecimento. Guatemala. Modernidade.Tuskegee. As trevas da razão esclarecida e as pesquisas em seres humanos em Tuskegee e na Guatemala: um caso de Bioética Taylisi de Souza Corrêa Leite Mestranda em Direito pela FCHS – UNESP. Franca – SP [Brasil] taylisi_leite@hotmail.com Patrícia Borba Marchetto Docente da Graduação em Administração Pública, Unesp-Araraquara, e no Programa de Pós-graduação da FCHS –UNESP. Franca – SP [Brasil] pmarchetto@fclar.unesp.br DOI: 10.5585/PrismaJ.v10i1.2684 Prisma Jur., São Paulo, v. 10, n. 1, p. 195-208, jan./jun. 2011.196 As trevas da razão esclarecida e as pesquisas em seres humanos em Tuskegee e na Guatemala… 1 Introdução1 Os valores modernos, decorrentes dos postulados ideológicos do ra- cionalismo, especialmente, do Esclarecimento (cujo escopo primordial foi justificar a supremacia burguesa por meio de estruturas institucionalizadas de poder), acabaram sendo paulatinamente desconstruídos historicamen- te, ou, ao menos, revelaram os antagonismos que traziam em seu bojo. As ideologias iluministas, e, posteriormente, positivistas, ao serem colocadas em prática, acabaram por se mostrar inviáveis em sua inteireza diante da realidade, e as promessas de um mundo totalmente civilizado e organiza- do, sempre orientado em direção ao progresso, tornaram-se falácias ante os acontecimentos históricos do século XX. O prometido progresso veio intrinsecamente acompanhado de regressos, pois, na esteira do pensamento frankfurtiano, se a modernidade, por um lado, produziu luzes; por outro, também produziu sombras. Isso é evidenciado pelas duas grandes guerras mundiais, especialmente, pela segunda guerra, na qual a técnica e a ciência foram elementos centrais. Ora, despontam os dilemas bioéticos num momento em que o ideário iluminista, como uma metanarrativa fundadora do saber científico, não é mais capaz de cumprir seu papel justificador dos discursos que engendrou, segundo aponta Jean-François Lyotard (1998), o que marca o início do pe- ríodo a que ele chama de pós-modernidade. Ocorre que para discutir bioe- ticamente é preciso traçar um estudo dos valores do sujeito, resgatando as categorias ontológicas relegadas ao não-lugar pelo racionalismo moderno. Nesse contexto, as concepções iluministas se mostram inaplicáveis pragma- ticamente ou negam, intrinsecamente, a evolução do conhecimento trazida pelos modernos. No entanto, ironicamente, compelem o homem pós-mo- derno a buscar soluções para conflitos éticos decorrentes desse paradoxo. Nesse âmbito, é impossível destrinchar as questões bioéticas sem recorrer à moral. Mas qual moral? Ao obstinar-se na criação de um mundo mate- rialista, regrado e promissor, no qual a ciência seria um baluarte absoluto, Prisma Jur., São Paulo, v. 10, n. 1, p. 195-208, jan./jun. 2011. 197 LEITE, T. de S. C.; MARCHETTO, P. B. a natureza seria completamente dominada, e o trabalho seria sinônimo de alienação e automação, o homem acabou por desumanizar-se. Conquanto, as inovações científicas da atualidade têm compelido esse mesmo homem a entrar em contato com sua essência, coagindo-o a “humanizar-se” nova- mente, na medida em que se depara com as questões da biotecnologia, pois não há como debater bioética sem tocar na esfera dos axiomas, que lança novas luzes sobre a estreiteza trevosa da racionalidade instrumental. 2 Bioética e razão esclarecida O termo “bioética” foi inicialmente proposto pelo Professor Van Rensselaer Potter (1971), da Universidade de Wisconsin, nos EUA, que adotou uma concepção ecológica, por entender que uma das principais pre- ocupações da ciência insurgente deveria ser a relação do homem com o meio ambiente, por meio da interface entre conhecimentos biológicos e humani- dades. A cunhagem da expressão significou o reconhecimento acadêmico da necessidade de construção de um novo pensamento, primeiramente, ten- do por estopim a iminente e insustentável crise ambiental mundial. A inerência do método cartesiano, do utilitarismo, e da especiali- zação positivista do conhecimento nas ciências biológicas e na produção de tecnologia negava sistematicamente o diálogo com o pensamento filo- sófico, e a ética foi totalmente apartada da razão instrumentalizada des- de os postulados renascentistas; porém, no fim do século XX, após todo o caos produzido pela cavalgada moderna, tornou-se imprescindível um movimento revisionista. Ainda que tímida e limitadamente, esse é o es- copo do surgimento da Bioética. Posteriormente, Beuchamp e Childress desenvolvem o principialismo, como uma deontologia basilar orientado- ra de condutas médicas que envolvem apreciação ética (BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2001). Prisma Jur., São Paulo, v. 10, n. 1, p. 195-208, jan./jun. 2011.198 As trevas da razão esclarecida e as pesquisas em seres humanos em Tuskegee e na Guatemala… A bioética, como ética aplicada, é filha da falência da ética como valor universalmente estabelecido, ainda mais numa pós-modernidade que já não comporta verdades pré-concebidas. Assim, a bioética surge como reação à desumanização do homem, reduzido a mero objeto na lógica materialista do lucro e da acumulação, em que a razão instrumentaliza tudo o que en- contra, num processo constante de reificação, incapaz de determinar os ob- jetivos supremos da vida. Todavia, se, por um lado, a existência da bioética é prova da ausência de ética geral e da redutibilidade axiológica do saber reifi- cante; por outro, suas demandas são reais e requerem uma resposta urgente. Somente no decurso do século XX – quando há a exacerbação da dialética do esclarecimento, assustadoramente capaz de produzir claridade e escuridão, seguindo o diagnóstico de Adorno e Horkheimer (2006, p. 94) – a ciência efetuou centenas de importantes descobertas no campo da medicina, que ensejam diversos dilemas bioéticos na atualidade. Antes de tais possibilidades se tornarem concretas, não havia porque o homem in- vocar valores éticos para discutir tais demandas; porém, sendo elas uma realidade, é inexorável fazê-lo. Com a crise axiológica da pós-modernidade e a ciência encastelada no mito, não há critérios ou referenciais claros para dirimir todos esses problemas. Na prática, quando as demandas bioéticas se apresentam, a tendência é que os médicos e pesquisadores adotem o que lhes for mais conveniente, geralmente, imbuídos da lógica utilitarista ou do encantamento pela razão. Leopoldo e Silva, Segre e Selli (2006) situam o surgimento da bioéti- ca (e da pós-modernidade, por consequência), no mundo, após a declaração de Nuremberg, quando, pela primeira vez, discutiram-se os limites éticos de experimentos com seres humanos, em razão das pesquisas realizadas em Auschwitz e em outros campos de concentração. Tais experiências são os exemplos mais patentes das trevas trazidas pela modernidade, decorrentes do eclipse da razão, em que, segundo Horkheimer, paradoxalmente, a de- sumanização do pensamento afeta os fundamentos basilares da civilização ocidental (HORKHEIMER, 2007). O auge da civilização produz uma Prisma Jur., São Paulo, v. 10, n. 1, p. 195-208, jan./jun. 2011. 199 LEITE, T. de S. C.; MARCHETTO, P. B. nova espécie de barbárie, a extremada exacerbação da razão produz abso- luta desrazão, e isso se concretiza historicamente em episódios como o do holocausto, Tuskegee e Guatemala. As Lumières, que tanto objetivaram a derrocada dos mitos religiosos e absolutistas, esculpiram uma mitificação mais rija que qualquer outra: a da razão, da ciência e do saber. A reificação do ser humano e a instru- mentalização do conhecimento edificam os contornos da ciência moder- na, que entram em crise agora, a partir das reivindicações pós-modernas. Ao descortinar as ilusões iluministas, principalmente após a segunda guerra mundial, a humanidade ressentiu-se das consequências das luzes, pois estava obscurecida pela inexorabilidade da escuridão do holocausto. Contudo, vale ressaltar que práticas bárbaras em nome da ciência e do progresso não foram privilégio apenas dos nazistas, como evidenciam os casos tratados aqui. Foi nesse período que a humanidade passou a clamar pelo resgate da verdadeira racionalidade – a que humaniza, e não a que bestializa. Esse foi o principal substrato dos protestos de maio de 1968, por exemplo, na luta pela efetivação dos direitos humanos, prometidos pelo esclarecimento e reiterados em 1948, e pela concretização dos seus ideais emancipatórios. E a bioética despontou justamente nesse contexto, como uma tentativa de recuperar a subjetividade humana (OSELKA; GARRAFA, 1998). Esse processo que passava necessariamente por uma ruptura com o positivismo e pelo diálogo constante entre as diversas searas do conhecimento, incluindo- se o multiculturalismo, a ética e a filosofia. Da anterior dicotomização entre o “eu” (esvaziado de substância) e a natureza (degradada a simples material a ser dominado), surgiu a necessidade de integração de valores, justamente em decorrência da absurda evolução científico-tecnológica e seus impactos tanto na humanidade quanto no meio ambiente. Havia chegado, portanto, o momento de se repensar a razão e a ciência (inclusive a ciência jurídica), pelo que se propõe um enfrentamento crítico das problemáticas bioéticas, à luz da Escola de Frankfurt. Prisma Jur., São Paulo, v. 10, n. 1, p. 195-208, jan./jun. 2011.200 As trevas da razão esclarecida e as pesquisas em seres humanos em Tuskegee e na Guatemala… 3 Tuskegee e Guatemala: a barbárie da razão instrumental Partindo do diagnóstico de Adorno e Horkheimer acerca da dialéti- ca do Aufklärung, que, ao se exacerbar uma racionalidade oca de conteúdo subjetivo ela se expande até culminar em outra forma de barbárie, e não em civilização, como prometera (ADORNO; HORKHEIMER, 2006), pode- se traçar um paralelo entre a razão moderna e as práticas assustadoras rea- lizadas ao longo de todo o século XX, especialmente, aquelas sobre as quais se debruça esse artigo, quais sejam: Guatemala e Tuskegee. Para a primeira geração da Teoria Crítica, o esclarecimento é um pensamento tão extremis- ta, que, no limite, faz violência a si próprio, isto é, quando seus paradigmas não atendem mais à função de sua própria manutenção, são prontamente substituídos, sem remorsos – ao que Adorno denomina dialética negativa (ADORNO, 2009). A bioética é um fenômeno decorrente justamente des- se paradoxo da dialética negativa. A lógica esvaziadora de subjetividade da modernidade, idônea para suportar o sistema capitalista, retirou a huma- nidade do sujeito moderno, pela dessubjetivação ontológica da razão, pela universalização homogeneizante de tudo e de todos, pela transformação do trabalho em atividade nada libidinal, pela reificação forjada pelo fetichismo da mercadoria, e pior, pela coisificação das pessoas por meio do consumis- mo patológico. Nesse contexto, a razão moderna tornou-se um instrumento e sen- do apreendida pelo positivismo, que reduz a metodologia de pesquisa aos procedimentos utilizados na física, tornou-se uma concepção de ciência au- tomatista, progressista e esvaziada de autorreflexão. Nesse cenário, as ci- ências naturais passaram a ser o instrumento primordial de dominação da natureza que impulsiona o progresso, e a natureza, desqualificada, é maté- ria caótica que deve ser classificada, quantificada e manipulada, pois a razão moderna precisa eliminar o incomensurável. Uma vez que o racionalismo quer combater toda forma de mitificação, e o fundamento dos mitos é jus- Prisma Jur., São Paulo, v. 10, n. 1, p. 195-208, jan./jun. 2011. 201 LEITE, T. de S. C.; MARCHETTO, P. B. tamente a projeção do subjetivo sobre o natural, reificar a natureza é pressu- posto do processo civilizatório. A cobaia é, assim, um simples exemplar em laboratório, totalmente diversa da oferenda, pelas construções semióticas em torno de um objeto de sacrifício aos deuses, por exemplo. O descolamento absoluto entre o avanço da tecnologia e os funda- mentos morais das práticas científicas é um produto da lógica racional moderna, que passa pela dicotomização entre sujeito e objeto, revela-se cartesiana pelo utilitarismo, pelo pragmatismo, pelo Iluminismo e pelo po- sitivismo científico. O “cogito” de Descartes propugna que a existência do sujeito é absoluta, uma vez que dotada de razão. Todas as outras formas de existência são inferiores, relegadas ao lugar do objeto cognoscível, que pode ser totalmente compreendido e dominado. Essa proposição permite a aloca- ção de seres humanos no lugar de objeto, desde que não sejam considerados “sujeitos” no sentido de uma razão obscurecida e instrumental. Assim, os indígenas, durante a colonização das Américas; os escravos negros africa- nos em seu desenvolvimento; os judeus para os nazistas; e novamente os negros e mulatos em Tuskegee e na Guatemala – todos foram classificados por discursos pretensamente científicos e pseudorracionais, dentro da ra- zão moderna, capaz de sustentar o paradigma de que não se tratavam de sujeitos e, por isso, poderiam ser objeto de pesquisa. Em 09 de dezembro de 1946, após oito meses de julgamento, o Tribunal de Nuremberg condenou vinte e três alemães (vinte médicos), pelos brutais experimentos realizados em seres humanos. Em 19 de agos- to de 1947, o Tribunal divulgou as sentenças, classificando os acusados como criminosos de guerra e cominando sete penas de morte. Além das sentenças, publicou o Código de Nuremberg, um marco na história da humanidade, pois, pela primeira vez, foi estabelecida uma recomendação internacional sobre os aspectos éticos envolvidos na pesquisa em seres hu- manos. As potências vencedoras da guerra (Estados Unidos, Inglaterra e União Soviética) foram responsáveis pelo julgamento e pela elaboração do Código (SHUSTER, 1997). Enquanto isso, cientistas norte-americanos Prisma Jur., São Paulo, v. 10, n. 1, p. 195-208, jan./jun. 2011.202 As trevas da razão esclarecida e as pesquisas em seres humanos em Tuskegee e na Guatemala… realizavam experiências semelhantes às perpetradas pelos alemães, em ple- no território estadunidense. Segundo a denúncia de Heller (1972), de 1932 a 1972, o Serviço de Saúde Pública dos Estados Unidos da América reali- zou uma pesquisa, cujo projeto escrito nunca foi localizado, que envolveu 600 homens negros, pobres e analfabetos, sendo 399 portadores de sífilis e 201 não, na cidade de Macon, no estado do Alabama, inicialmente chama- do “Untreated Syphilis in the Male Negro”, e, posteriormente, “Tuskegee Study” (REVERBY, Hastings Center Report, 2010). O objetivo do Estudo Tuskegee (nome do centro de saúde onde foi realizado) era observar a evo- lução da doença, livre de tratamento. Dizia-se a esses homens apenas que possuíam “bad blood”, sob promessas de cura, e auxílio para alimentação, moradia e até enterro gratuito. O desconhecimento acerca do próprio diag- nóstico fez com que a sífilis se proliferasse muito entre a população negra local. Inclusive, fazia parte da proposta de observação científica analisar as consequências da sífilis congênita quando esses homens tinham filhos. O que se conhece hoje a respeito da doença se deve, em boa parte, a esses expe- rimentos científicos (REVERBY, 2001). Ao mesmo tempo em que se faziam testes com pessoas na Europa, também se faziam nos Estados Unidos, que se arvoraram juízes do nazis- mo, mas que reproduziam o mesmo comportamento que tanto condena- vam. Recentemente, a Casa Branca desculpou-se por outro caso semelhante na Guatemala. De 1946 a 1948, o governo dos EUA financiou um experi- mento num hospital psiquiátrico daquele país, onde cientistas americanos infectaram deliberadamente pacientes com sífilis, a fim de observar a evo- lução da doença (STEIN, 2010). Em todos esses casos, nota-se que há um denominador comum: tanto os cientistas nazistas quanto os norte-america- nos estavam absolutamente comprometidos com o progresso da ciência mo- derna, que é, naturalmente, antiética. Essa ciência é filha da razão eclipsada da modernidade, que só opera com base em paradigmas e resultados. Não há questionamento ético onde qualquer conteúdo subjetivo foi afastado. Prisma Jur., São Paulo, v. 10, n. 1, p. 195-208, jan./jun. 2011. 203 LEITE, T. de S. C.; MARCHETTO, P. B. Afirma Susan Reverby, pesquisadora norte-americana dedicada a revelar as mazelas desses experimentos: In part, this re-remembering of “Tuskegee” happens because the in- juries from the Study and the myriad other experiences of Black America with health care could not be healed by a lawsuit, Senate hearings, a federal investigating committee, the histories that were written about the Study, or even the federal apology o”ered by President Bill Clinton. Other injustices, too, lacking labels or formal recognition become part of the reference to “Tuskegee”. Furthermore, day-to-day encounters by Black Americans in the arena of health care reopen old wounds, and “Tuskegee” becomes the word reached for to explain the mistrust and unease. “Tuskegee” is not merely a metaphor or symbol of the Study, then, but for a lived experience and memory of multiple events.(REVERBY, Postgraduate Medical Journal, 2010, p. 27). Portanto, “Tuskegee” não foi um evento isolado, mas um ícone de como a ciência moderna procede. Verificou-se que enquanto o conhecimen- to técnico expandiu os horizontes da atividade e do pensamento humanos, a autonomia individual do homem, bem como sua capacidade de opor re- sistência, de imaginar, elucubrar e tecer críticas sofreram notória redução. O avanço dos recursos técnicos de informação fez-se acompanhar de um processo de paulatina desumanização. São os reflexos da razão eclipsada, que Horkheimer explora com maestria (2007). Um pensamento cegamente pragmatizado perde absolutamente seu caráter superador e sua potencial relação com a verdade (ADORNO; HORKHEIMER, 2006, p. 13) Segundo eles, o racionalismo relaciona-se finalisticamente com deter- minados procedimentos, não se importando com a racionalidade real desses propósitos. Na modernidade iluminista, o ontológico cede lugar absoluto ao teleológico. Assim, o pensamento pode servir para qualquer empreita- Prisma Jur., São Paulo, v. 10, n. 1, p. 195-208, jan./jun. 2011.204 As trevas da razão esclarecida e as pesquisas em seres humanos em Tuskegee e na Guatemala… da (boa ou má), consubstanciando-se em mera faculdade de coordenação, cuja eficiência pode ser incrementada pelo afastamento das emoções, desde que produza resultados eficazes. A razão, obnubilada, renuncia a qualquer questionamento crítico. Na lógica instrumental moderna, razão é mera- mente a faculdade de classificação, inferência e conclusão, não importando qual o conteúdo específico das ações (HORKHEIMER, 2007). Por isso, a concepção moderna de ciência justifica perfeitamente a relação estreita que se estabeleceu pela ideologia nazista entre intolerância, genocídio e progres- so (inclusive científico). Os EUA julgaram os alemães, mas mantinham as mesmas práticas, porque a barbárie dos experimentos em seres humanos é própria de uma ciência absolutamente acrítica e desumanizada. É, justamente, essa ciên- cia que todos nós reproduzimos e adoramos totemicamente. Nesse cenário, escandalizar-se com essas ações é como se estivesse negando a razão moder- na, sob pena de hipocrisia. Assim, se acreditamos que práticas como as de Auschwitz, Tuskegee e Guatemala são inaceitáveis e que o papel da bioética é traçar limites à cavalgada da racionalidade instrumental, precisamos rever todo o pensar esclarecido, ou continuaremos mergulhados no horror das trevas da modernidade. 4 Considerações finais Por todo o exposto, é também altamente oportuno pensar a bioé- tica no âmbito da filosofia, pois a bioética surge diante de nós como um signo de nossa era – enquanto amarga a inconsistência axiológica e a redutibilidade ética, traz em seu bojo diversas demandas palpáveis que anseiam arduamente por uma resposta – e é por si só, necessariamente, uma práxis e uma ciência multidisciplinar. A filosofia, em geral, enfren- ta o desafio de se reestruturar a partir dos destroços de uma modernida- de cujo racionalismo instrumental a condenou ao limbo da indiferença. Prisma Jur., São Paulo, v. 10, n. 1, p. 195-208, jan./jun. 2011. 205 LEITE, T. de S. C.; MARCHETTO, P. B. A bioética, por sua vez, deve ser pensada filosoficamente, ainda que na esfera médica. Os estudos que dela se ocupam se restringem à casu- ística, pela indagação pontual das possibilidades de condutas médicas ou intervenções jurídicas nesse ou naquele impasse ético, decorrente do avanço da biotecnologia. Porquanto, se cabe à filosofia a inteligência da integração da teoria com a realidade concreta, e Medicina atual precisa dialogar com os outros ramos do conhecimento, sob uma perspectiva crítica, ainda mais ululante quando se trata de bioética. O transporte acrítico do modus moderno de se fazer ciência, ape- gado ao método positivista, ao cartesianismo e ao racionalismo lógico- formal não é capaz de resgatar a ética, apartada da ciência pela razão esclarecida. Na realidade, a bioética, concebida nos moldes desse cien- tificismo amoral, somente será uma reprodução técnica dos saberes e fa- zeres já existentes, e o principialismo é um exemplo patente disso. Não se pode mais reverberar o tecnicismo centrado nos interesses do capital e dos países centrais desse sistema, ou nenhuma ética e vida serão possíveís. Se, ontem, os judeus, nos campos nazistas, e os negros, nos experimentos norte-americanos, puderam se converter em objetos de pesquisa pelo pro- cesso de dessubjetivação racional burguês-capitalista de matriz cartesia- na, hoje, com o recrudescimento das pressões das Nações Unidas acerca dos processos discriminatórios étnicos, restou somente um elemento que ainda pode sobrepujar a subjetividade, sem escandalizar a comunidade científica sobremaneira: a pobreza. Agora, os experimentos arriscados são realizados na África e na América Latina, porque se o judeu e o negro não podem mais arbitrária e livremente serem alocados na posição de objeto, ainda restam os apelos da miséria (BERLINGER; GARRAFA, 2001). Uma vez que a racionalidade moderna não deixará de perpetrar a barbárie em nome do progresso, continuaremos reféns da mitificação da ciência e das vicissitudes do Capital, por meio da razão instrumental, que não hesi- ta em reificar grupos minoritários e/ou excluídos em nome desse suposto progresso, produzindo incontáveis “Tuskegee”. Prisma Jur., São Paulo, v. 10, n. 1, p. 195-208, jan./jun. 2011.206 As trevas da razão esclarecida e as pesquisas em seres humanos em Tuskegee e na Guatemala… Urge uma revisão da relação do homem com a razão instrumental e com a técnica. A mera existência da bioética, com todas as preocupações que traz e todos os debates e estudos que mobiliza demonstram essa ne- cessidade. Somente poderemos efetivar os direitos humanos formalmente garantidos e erigir uma Bioética que realmente resgate os conteúdos subjeti- vos e críticos da razão, se formos capazes de romper com as mazelas profun- das da modernidade, perpetradas magistralmente dela razão esclarecida, desumana, acrítica e instrumental, e pelo sistema capitalista. Nota 1 Trabalho apresentado no III CONGRESSO INTERNACIONAL DA REDBIOÉTICA DA UNESCO, na Universidad El Bosque, Bogotá, Colômbia, em 26 de Novembro de 2010. Darkness of enlightened reason and research in human beings in Tuskegee and Guatemala: a Bioethics case This work is aimed at examining the paradox of modernity, from the opposition between Enlightenment ideals and historical events that followed, especially during the twentieth century, as well as to study the impact of mismatch on Bioethics, adopting as a reference epistemo- logical critical theory of the Frankfurt School. Bioethics presents itself as a shaky science, devoid of references, and primarily impacted by the emptying of ethics. The reason desubjectivation established by and ex- acerbated by modern enlightenment, was able to erect dark scary for humanity and promote barbaric practices in the name of a science that promises order and progress. This paradox and the fallacy of reason enlightened by scientific advances are wide open, always accompanied by ethical and moral returns scary. Some examples are the surveys con- ducted in Tuskegee and Guatemala, and treated in this study, which show how far modern rationality and all its consequences Key words: Bioethics. Enlightenment. Guatemala Modernity. Tuskegee. Prisma Jur., São Paulo, v. 10, n. 1, p. 195-208, jan./jun. 2011. 207 LEITE, T. de S. C.; MARCHETTO, P. B. Referências ADORNO, T.W. Dialética negativa. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. ______; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 2006. BEAUCHAMP, T.L; CHILDRESS, J.F. 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Prisma Jur., São Paulo, v. 10, n. 1, p. 195-208, jan./jun. 2011.208 As trevas da razão esclarecida e as pesquisas em seres humanos em Tuskegee e na Guatemala… SHUSTER, E. “Fifty Years Later: the significance of the Nuremberg Code, 337”. In: The New England Journal of Medicine, pp. 1436-1440, ed. 13-11-97. Disponível em http://content.nejm.org/cgi/content/full/337/20/1436. Acesso em 20 jun.2011. STEIN, R. “U.S. apologizes for 1940s syphilis inoculation experiment in Guatemala”. In: The Washington Post, October 1, 2010. Disponível em: http://voices. washingtonpost.com/checkup/2010/10/us_apologizes_for_1940s_experi.html. Acesso em 23 jun..2011. recebido em 31 mar. 2011 / aprovado em 3 jun. 2011 Para referenciar este texto: LEITE, T. de S. C.; MARCHETTO, P. B. As trevas da razão esclarecida e as pesquisas em seres humanos em Tuskegee e na Guatemala: um caso de Bioética. Prisma Jurídico, São Paulo, v. 10, n. 1, p. 195-208, jan./jun. 2011.