UNESP UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP LUÍS CLÁUDIO FERREIRA SILVA O ATO PERFORMÁTICO-CÍNICO: RICARDO LÍSIAS E UMA NOVA AUTOFICÇÃO ARARAQUARA 2019 LUÍS CLÁUDIO FERREIRA SILVA O ATO PERFORMÁTICO-CÍNICO: RICARDO LÍSIAS E UMA NOVA AUTOFICÇÃO Tese de Doutorado, apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Doutor em Estudos Literários. Linha de pesquisa: Teorias e Crítica da Narrativa Orientadora: Prof.ª Drª. Juliana Santini ARARAQUARA 2019 Ficha catalográfica elaborada pelo sistema automatizado com os dados fornecidos pelo(a) autor(a). Silva, Luis Cláudio Ferreira O ato performático-cínico: Ricardo Lísias e uma nova autoficção / Luis Cláudio Ferreira Silva — 2019 158 f. Tese (Doutorado em Estudos Literários) — Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", Faculdade de Ciências e Letras (Campus Araraquara) Orientador: Juliana Santini 1. Lísias, Ricardo. 2. Autoficção. 3. Literatura Contemporânea. 4. Performance. 5. Campo Literário. I. Título. LUÍS CLÁUDIO FEREIRA SILVA Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós- Graduação Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras – UNESP/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Doutor em Estudos Literários. Linha de pesquisa: Teorias e Crítica da narrativa Orientadora: Prof.ª Drª. Juliana Santini Data da defesa: 27/05/2019 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientador: Prof.ª Drª. Juliana Santini Universidade Estadual Paulista – UNESP- FCLAr Membro Titular: Prof.ª Drª. Natália Corrêa Porto Fadel Barcellos Universidade Estadual Paulista – UNESP- FCLAr Membro Titular: Prof.ª Drª. Sylvia Helena Telarolli de Almeida Leite Universidade Estadual Paulista – UNESP- FCLAr Membro Titular: Prof.ª Drª. Marisa Corrêa Silva Universidade Estadual de Maringá - UEM Membro Titular: Prof.ª Dr. Fábio Lucas Pierini Universidade Estadual de Maringá - UEM Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara Àqueles que, apesar de todas as adversidades, sempre acreditaram que eu seria capaz de atingir meus objetivos. Aos meus pais que tanto lutaram para que eu tivesse acesso à educação e por ela pudesse, mesmo sendo pobre, contestar o sistema. Aos meus antepassados, que me fizeram quem sou. Esses que enfrentaram odisseias: ou atravessando o mar, a bordo de um navio sujo, para fugir da fome, ou viajando quilômetros a pé para fugir da seca, e também da fome. Sou um pouco de todos eles! AGRADECIMENTOS Agradeço imensamente aos professores que participaram de minha formação, desde a pré-escola, passando pelos ensinos fundamental e médio, chegando na universidade, tanto nos níveis de graduação e pós-graduação. Tornei-me professor pelo exemplo desses tantos que dedicaram a vida ao ensino. Devo tudo a eles. Agradeço à professora Juliana Santini pela orientação e leitura exímia e atenta que fez desse meu trabalho. Agradeço também à banca que apontou, de maneira gentil e profissional, os problemas e pontas soltas de minha tese, fazendo com que ela evoluísse. Agradecimentos imensos aos amigos que compartilharam momentos importantes na feitura desse trabalho, apurando os ouvidos para ouvir os argumentos que eu tinha para defender essa tese e analisar se eles eram plausíveis ou não. Agradeço também aqueles que foram companheiros ao ponto de me ouvirem e me incentivarem em momentos, que não foram poucos, em que eu não me senti capaz de desenvolver esse trabalho, fazendo com que eu voltasse a acreditar em minha capacidade cognitiva e psicológica de ir até o fim. Também agradeço a todos os pesquisadores e professores que, sem mesmo saber, colaboraram, direta ou indiretamente, para a feitura dessa presente pesquisa. Ah, já ia me esquecendo. Agradeço à hipertensão, cólicas renais, síndrome de ansiedade, crises de pânico, início de depressão e os mais de vinte quilos. Sem eles a minha vida acadêmica não teria sido a mesma. Por último e não menos importante: agradeço enormemente a todas as pessoas que lutaram pela educação e justiça na história desse país. Também por eles é que lutamos sempre. E sempre seremos resistência. “Apesar de me faltarem alguns anos para os 40, já vivi o suicídio de um grande amigo, um divórcio cuja crueldade roubou-me a pele e um par de cerimônias de entrega de prêmios literários. As três circunstâncias carregam o explosivo potencial de revelar a verdade. Todas precisam virar literatura, portanto”. Ricardo Lísias, 2011. “Você acredita que uma única verdade pode tornar real uma ficção inteira? Ah, você é um homem muito ingênuo”. José Eduardo Agualusa, 2017. RESUMO O presente trabalho tem como objetivo refletir sobre a produção autoficcional de Ricardo Lísias, dando ênfase aos dois últimos romances, desse subgênero, produzidos pelo autor, a saber, Delegado Tobias (2015) e Inquérito policial: família Tobias (2016), sem perder de vista os dois anteriores: O céu dos suicidas (2012) e Divórcio (2013). A hipótese é a de que haveria uma evolução/transformação no seu fazer autoficcional, com os dois livros mais recentes marcando essa mudança, com elementos que não apareciam nas produções anteriores – nem na de outros autores. A autoficção, bem como o autor em questão, é um gênero por si só polêmico e controverso, e que muitas vezes é apontado como módo fácil de fazer literatura. Leyla Perrone- Moisés, por exemplo, é uma das vozes que discordam dessa afirmação. Cunhado na França em 1977 por Serge Doubrovsky, o subgênero, sem nenhuma conotação depreciativa no prefixo, já recebeu inúmeras abordagens de diversos estudiosos tanto na França como no resto do mundo, inclusive no Brasil. Produzido em grande quantidade neste século, chegou a incomodar o escritor Daniel Galera que disse, em 2013, esperar que o gênero fosse passageiro. Ao contrário das perspectivas, a autoficção se firmou e se reinventou, sobretudo pelas produções de Ricardo Lísias. Por isso, também apresentarei uma perspectiva histórica do termo para ver a mudança na sua compreensão, trazendo autores como, além dos já citados, Philippe Lejeune e Vincent Colonna. Como a autoficção sempre aponta para um duplo, acredito ser importante uma análise além da intratextual: a extratextual. Por isso, trago os estudos de Bourdieu sobre o campo literário para o debate, tentando analisar o percurso de Lísias e o reconhecimento de sua obra no campo, passando por discussões sobre o mercado editoral e espetacularização. O escritor também atua como um agente plural dentro do campo literário, pois também é pesquisador, tradutor e participou de grandes prêmios literários. Sua “costura” foi extremamemente importante para a sua consolidção nesse campo, sobretudo pela hipótese que apresento: Lísias constrói uma postura autoficcional também em suas entrevistas. Seu ato performático, todavia, usa de um elemento importante: o cinismo. Discutirei essas questões a partir do trabalho de Peter Sloterdjik para falar de cinismo dentro da performance na obra lisiana. Nessa reconfiguração da autoficção, Lísias utilisa ferramentas interessantes como a metaficção, o sarcasmo, redes sociais e o mashup, reconstruindo esse espelho enviesado que é a autoficção, fazendo uma espécie de dupla performance e colaborando para embaralhar ainda mais as fronteiras entre o real e o ficcional. Palavras-Chave: Ricardo Lísias; Campo Literário; Autoficção; Performance. ABSTRACT The purpose of this study is to reflect on the autofictional production of Ricardo Lísias, especially in the last two novels writed by him: Delegado Tobias (2015) and Inquérito policial: família Tobias (2016), not forgetting the two previous ones: O céu dos suicídas (2012) and Divórcio (2013). The hypothesis is: there would be an evolution / transformation in the way of the autoficction: in two most recent books would sign this change, by using some elements which were not used in the other productions – in those of the others authors either. Autofiction is a genre, as well as Lísias, controversial that is sometimes understood as an easy way to make literature. Leyla Perrone-Moisés, who occupies a theoretical place, is, for example, one of the scientists who does not agree with negative statements about the autofiction. Created in France in 1977 by Serge Doubrovsky, its has alredy been studied by a large number of scientists, either in France or elsewhere – even in Brazil. Produced in large quantities in this century, the autofiction has embarrased the writer Daniel Galera, who said, in 2013, hopes that autofiction will disapeare soon. In contrast to these perspectives, its has stabilized and recovered, especially for Ricardo Lísias new novels. For this, I will also present a historical perspective of the therm to see changes in its understanding, inviting authors like, in addition to those already mentioned, Philippe Lejeune and Vincent Colonna. As autofiction always presupposes a double, I believe that analysis is necessary because this extra-textual one. For this, I will also discuss Bordieu’s work on the literaty field, analyzing Lísias’ career and the recognition of his work in this field, including discussions on spectacularization and the book and publishing market. The writer plays the role of a plural agent in the field because he is also a researcher, translator and has may indications for important literary awards in Brasil. His articulation was extermely important for him to consolidate in this cultural field, especially for the hypothesis that I present: the autoficcion made by Lísias is also present in his interviews. However, his performative role uses an important element: cynicism. I will discuss theses questions form Peter Sloterdjik’s book to talk about cynicism in performance. In this reconfiguration of autofiction. Lísias uses interesting tools such as metafiction, sarcasm, social networks and mashup, reconstructing the mirror that is autofiction, doing a kind of double performance and collaborating to further blend the boundaries between the real and the fictional. Keyword: Ricardo Lísias; Literary field; Autofiction; Performance. LISTA DE TABELAS Tabela 1 Romances autoficcionais de Ricardo Lísias 37 Tabela 2 Entre gêneros 48 Tabela 3 Formas de Autoficção 49 SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO 12 2. CAMINHOS DA AUTOFICÇÃO: RICARDO LÍSIAS E SUA ASSINATURA AUTOFICCIONAL 28 2.1. A assinatura autoficcional de Ricardo Lísias 28 2.1.1. Conexão entre os romances 29 2.1.2. Autoficção x metaficção 31 2.1.3. Incorporação de matérias, notícias e atividades em redes sociais 34 2.2. Conceitos de autoficção 38 2.2.1. O que pensam os escritores sobre autoficção 53 3. UM AGENTE PLURAL: RICARDO LÍSIAS E O CAMPO LITERÁRIO 58 3.1. A noção de campo de Pierre Bourdieu 58 3.2. Algumas considerações sobre o mercado editorial brasileiro e os agentes do campo no Brasil ao longo da história 65 3.3. Ricardo Lísias no campo literário: um estudo de caso 80 3.4. Autoficção e espetacularização 87 4. LÍSIAS: CINISMO E PERFORMANCE 100 4.1. Cinismo: considerações teóricas 100 4.2. Considerações sobre o conceito de performance 105 4.3. Cinismo e performance em Delegado Tobias 110 4.4. Cinismo e performace em Inquérito policial: família Tobias 124 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS 134 REFERÊNCIAS 137 ANEXOS 150 ANEXO A 151 ANEXO B 156 12 1. INTRODUÇÃO Ricardo Lísias é, atualmente, um dos escritores em maior evidência midiática no cenário literário nacional. E seu sucesso não se dá apenas por sua figura e postura polêmicas, características que já lhe renderam discussões acaloradas e alguns processos, e sim porque faz uma literatura desafiadora. Sua figura “multifacetada” é deveras interessante, tanto para sua inserção no campo artístico quanto para seu fazer literário que perpassa diversas plataformas. Formado em Letras pela UNICAMP (tendo cursado também Mestrado e Doutorado em literatura pela USP), estreou na literatura em 1999 quando ainda era acadêmico. Além de ser escritor e ter estudado disciplinas referentes à escrita, Lísias também é tradutor. Para chegarmos nas questões sobre autoficção e sua inserção na literatura contemporânea (para que daí falemos sobre sua maneira de trabalhar o gênero), é necessário um panorama para entender como a obra de Lísias se constrói em um âmbito geral. Ao longo de sua carreira, o escritor paulistano publicou os livros de contos Cobertor de Estrelas (1999) pela editora Rocco; Capuz (2001) e Dos nervos (2004), ambos pela Hedra; Duas praças (2005) e Ana O. e outras histórias (2007), ambos pela Globo e Concentração e outros contos (2015), pela Alfaguara. Publicou também os romances O livro dos Mandarins (2009), O céu dos suicidas (2012), Divórcio (2013) e A vista particular (2016), todos pela Alfaguara; Inquérito policial: delegado Tobias (2016) pela Lote 42 e Diário da cadeira (2017), sob o pseudônimo de Eduardo Cunha, pela Record. Mais recentemente, o autor se lançou a fazer obras que transitam entre o ficcional, o real e o ensaístico. Em 2018, publicou pela editora Oficina o livro Sem título: uma performance contra Sérgio Moro. O livro em questão discute a operação da Polícia Federal, chefiada pelo juiz paranaense, que conduziu o ex-presidente Lula à prisão. Ainda na temática política, Lísias vem publicando, desde novembro de 2018, várias versões da série Diário da catástrofe, projeto que também se encaixa nas definições do anterior. Agora, o escritor paulistano reescreve os textos a cada série de acontecimentos dentro do governo de Jair Bolsonaro. Compreende, até o momento da escrita desta tese, os volumes Transição e A pulsão de morte no poder. Quanto aos prêmios literários (elemento importante dentro do contexto contemporâneo e do qual falaremos mais no capítulo “Um agente plural: Ricardo Lísias e o campo literário”), em 2008, foi finalista do Prêmio Jabuti na categoria contos com Anna O. e outras novelas 13 (2007). Em 2010, voltou a ser finalista, agora do Prêmio São Paulo com o romance O livro dos mandarins (2009). Dois anos depois, foi eleito pela revista Granta como um dos vinte novos escritores da literatura brasileira. No mesmo ano, venceu o Prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte com o romance O céu dos suicidas (2012). Percebe-se, então, que o autor tem uma carreira rica com duas décadas de produção, o que justificaria, por si só, uma tese mais detalhada sobre sua obra. Mas, quando se fala em autoficção, percebe-se que seus textos dão um “salto”, pois envolve uma série de elementos não tão comuns ao gênero. Contando com quatro romances autoficcionais, Lísias é o autor brasileiro com o maior número de textos dentro desse subgênero romanesco. Todos eles, sobretudo os dois últimos, causaram inúmeras reações da crítica e do público leitor. O presente trabalho se justifica na medida em que se faz necessário um olhar mais detalhado sobre esses seus romances autoficcionais, no anseio de refletir sobre a construção de um texto que incorpora notícias de jornal, postagens de redes sociais, processos da vida real motivados por criações literárias etc. Minha hipótese é de que Lísias constrói uma nova autoficção no Brasil, utilizando-se de um ato performático com “pitadas” de cinismo. Outro objetivo dessa tese é a de refletir sobre o campo literário a partir das considerações de Pierre Bourdieu. Visto que o estudioso francês afirma que há um jogo de forças de vários agentes nesse campo, faz-se necessário entender por quais caminhos Lísias constrói sua imagem de escritor e consolida sua obra no campo. Na minha compreensão, a autoficção, que por si só já aponta para um elemento externo à obra, de Lísias é estendida para “fora” da obra, sobretudo nos dois últimos romances autoficcionais: Delegado Tobias (2015) e Inquérito policial: família Tobias (2016). Até porque, dentro do quadro contemporâneo que cada vez mais se afirma como plural1, Lísias parece ter claro um projeto literário. Projeto que, segundo o próprio autor, tem como um dos principais motes o incômodo. Em entrevista cedida ao projeto Conexões, do Itaú Cultural, durante a oitava edição do Encontro Internacional Conexões, realizado em 2015, Lísias fala sobre o tema. Eu pretendo fazer uma literatura que seja algo relevante para o nosso próprio tempo. Eu não tenho compromisso com outros tempos, com nada que vá além de uma procura relevante de uma literatura que não seja inofensiva. Eu pretendo produzir discursos que sejam discursos que tenham algum tipo de lugar de intervenção no mundo contemporâneo. E é esse o meu compromisso, 1 Há vários teóricos que se dedicam a estudar a literatura contemporânea, afirmando que, nos dias atuais, há uma pluralidade de temas sem que nenhum seja hegemônico. Para saber mais sobre esse quadro, com exemplos dos gêneros e estilos diferentes, ver o Anexo 1 desta tese. 14 não é um compromisso evidentemente com o mercado [...] Eu estou procurando através da linguagem literária, de meios estéticos, produzir objetos que sejam relevantes, que sejam incômodos, que sejam difíceis e que signifiquem alguma coisa para o nosso tempo. Enfim, esse é o meu primeiro compromisso (LÍSIAS, 2015). De fato, suas obras geralmente causam um incômodo no leitor e de maneira alguma sua literatura pode ser classificada como “inofensiva”. A maior parte de seus livros teve boa repercussão na mídia por tratar de temas polêmicos ou tabus. Um dos mais recentes, A vista particular (2016), tem sua narrativa quase toda ambientada no morro Pavão-Pavãozinho no Rio de Janeiro. O personagem principal, o artista visual José de Arariboia, decide fazer uma exposição no morro, e os objetos de arte são as próprias casas e moradores locais. O sucesso é tão estrondoso que o Museu do Amanhã (nome dado ao trabalho conjunto de exposição) vai parar nas Olimpíadas, no instituto Inhotim e depois na Bienal de Veneza. O romance discute os limites da arte e do espetáculo, a espetacularização da pobreza, turismo “negro”, o distanciamento da realidade, entre outros. Em entrevista cedida a Alexandre Lucchese do jornal Zero Hora, Lísias fala um pouco sobre de onde tirou a ideia para o romance. A ideia para esse livro nasceu quando eu estava hospedado em um hotel e vi um ônibus sair para levar turistas para uma favela. Há também passeios assim na fronteira entre México e Estados Unidos, local onde muitas pessoas morrem tentando atravessá-la. Esse tipo de turismo bizarro foi se naturalizando com o tempo. Hoje, as coisas mais absurdas são tomadas como naturais. Isso também gera uma crise de representação. Parece que as artes visuais e a literatura se esgotaram diante desse contexto – comenta Lísias (LUCCHESE, 2017). Sua obra é tão polêmica que chegou a ir para a justiça. Em 2015, o autor lançou um livro, que ele mesmo intitula de “e-folhetim”, chamado Delegado Tobias. É uma série de cinco e-books publicados pela e-galaxia e que não possuem versão impressa. Trata-se da história de um escritor chamado Ricardo Lísias que descobre haver um outro escritor também chamado Ricardo Lísias. Um acusa o outro de roubar suas ideias literárias. Um deles é morto e o Lísias que sobrou é julgado e condenado à prisão. Várias figuras públicas aparecem no livro, como Pedro Meira Monteiro, professor da Universidade de Princeton, e a criticista literária Leyla Perrone-Moysés. Ambos são chamados a depor a favor do personagem principal. Lísias é preso e os autos do processo constam no livro. 15 O delegado que conduz o caso acaba se tornando o responsável pela continuidade da narrativa uma vez que o autor está preso (ou morto). O problema é que a história chegou à justiça, e o Ministério Público não entendeu a “brincadeira” autoficcional. Abriu inquérito contra o autor com a alegação de falsificação de documentos. Em entrevista concedida a Artur Rodrigues da Folha de São Paulo, Lísias se defendeu dizendo “Eu não falsifiquei o documento, eu inventei o documento 2[...] A literatura foi para a página policial. Agora, virou realidade” (RODRIGUES, 2015). Professores e especialistas foram chamados a depor e conseguiram provar ao Ministério Público que se tratava de uma obra de ficção, especificamente uma obra autoficcional, e explicaram o termo e suas derivações. A Polícia Federal já havia afirmado que não julga escritores por suas obras de ficção, mas o problema é que houve um recorte da ficção, não analisando a obra como um todo. Sequer perceberam que o juiz nomeado no documento de condenação do personagem Lísias não existe e que seu livro era vendido pelos sites como uma obra ficcional: “Essa situação foi absurda e hilária. Por conta dessa confusão o e-book vendeu três vezes mais. Gosto mesmo é de inventar coisas, prefiro contestar o conceito de ficção. Acredito que a arte é um objeto de denúncia muito forte”, disse em evento na Biblioteca de São Paulo. “A justiça arquivou o pedido afirmando que não é decisão dela decidir sobre o formato de uma obra de arte”. (LÍSIAS, 2016). No fim, o caso foi arquivado pelo Ministério Público Federal. Márcio Schusterschitz da Silva Araújo, juiz designado para o caso, afirmou que não se deve confundir falsificação e ficção, dizendo que a obra de Lísias “é claramente fictícia”. Segundo ele não há nada a dizer no que tange à fé pública, “pública pela construção de documento com aproximação da realidade, mas para fins estritamente literários e sem relevância para qualquer relação jurídica em consideração” (ARAÚJO, 2015). As postagens no Facebook feitas pelo autor também foram consideradas como uma extensão da obra autoficcional e, felizmente, nada mais aconteceu. Muitas pessoas podem mesmo confundir os limites de realidade e ficção, sobretudo em um mundo com redes sociais. Lísias é um desses escritores que estão em evidência na internet. Possui um perfil no Facebook, como a maioria dos escritores brasileiros do século XXI, pelo qual divulga seus livros, 2 Na verdade, o autor inventou o conteúdo do documento. Sua forma já existe e é “emprestada” da realidade para a ficção. 16 posiciona-se politicamente, comenta sobre seus projetos e outros assuntos. Além de O delegado Tobias, Lísias possui outras obras que podem ser lidas como autoficcionais. Escreveu, por exemplo, o romance O céu dos suicidas (2011) sobre sua recuperação após o suicídio de um amigo muito próximo. Mas foi Divórcio (2013) o livro que mais lhe deu repercussão. O personagem principal passa por uma fase depressiva após o término de seu curto casamento. O pivô da separação foi um diário mantido por sua mulher que o narrador-protagonista teria encontrado em seu quarto. Diário cujo conteúdo apontava para uma falta de afeto de sua mulher para com seu marido, bem como uma suposta traição: “No começo do segundo semestre de 2011, tive uma espécie de incidente biográfico que causou o meu divórcio, que não saiu na revista Caras, mas ficou famoso” (RASCUNHO, 2012). O primeiro indício de que se tratava de um romance autoficcional se dá quando aparece o primeiro excerto do diário – cujos trechos, devidamente selecionados, serão mostrados até o final do romance – no qual descobrimos o nome do narrador-protagonista: Ricardo, mesmo nome do autor do livro: NY, 14 de julho de 2011 (no hotel Riverside Tower) Apesar de andar muito, o Ricardo é legal. Ele é uma boa companhia: é engraçado e de vez em quando inteligente. É que as vezes (sic) nos intervalos das caminhadas que ele quer fazer o tempo inteiro ele diz coisas inteligentes. Mas eu também não entendo: ele se recusa a ver uma peça da Broadway! Os grandes atores do mundo passaram pela Broadway, mas não adianta dizer isso. Ele não dá atenção. Mas a viagem está servindo para me mostrar que apesar disso eu casei com o cara certo para mim. Só que apaixonada eu não estou (LÍSIAS, 2013, p.10). O fato de tanto o narrador-personagem quanto o autor do romance terem o mesmo nome já aponta para que o livro possa ser uma obra autoficcional, mas é aconselhável olhar para outros elementos antes de afirmar de que se trata de um exemplar do gênero. Ao passar das páginas, vemos outras referências à vida do autor manifestadas na vida do personagem. O protagonista reflete sobre os possíveis problemas de um romance que teria escrito – ou seja, ele também é escritor – e as possíveis críticas em relação a esse texto. O nome do romance: O céu dos suicidas, mesmo título de um livro publicado por Ricardo Lísias: Um ótimo crítico apontaria como um possível problema do meu romance O céu dos suicidas, em texto generosamente elogioso, a bruxa variação da sensação de raiva para a de alegria. Mas é assim mesmo que acontece. Ele nunca viveu um trauma. Outra vez, comecei a achar que estava dentro de um livro meu. Será que escrevi essa merda toda e jamais conheci minha ex- 17 mulher? Esse diário nunca existiu. No Google, porém, Lars von Trier continua persona non grata (LÍSIAS, 2013, p. 199). Mais à frente, o narrador fala inclusive do ato de escrita do próprio romance, evidenciando ainda mais seu caráter autoficcional: A primeira vez que rascunhei esse fragmento foi no fim de janeiro de 2012, quando esquematizei com mais profundidade o romance. Estou escrevendo-o no dia 26 de agosto, um domingo. Faz mais de um ano que saí de casa. Nos primeiros seis meses, muitos jornalistas se aproximaram de mim. Almocei com alguns e tomei café com outros. Vários me procuravam semanalmente. Achei que teria novos amigos (LÍSIAS, 2013, p. 220). Se formos à busca de fatos da vida de Ricardo Lísias, veremos que ele foi realmente casado com uma jornalista e que seu casamento durou poucas semanas. Assim como o protagonista de seu romance, o autor, após se divorciar por conta de uma suposta traição, acaba encontrando na corrida um meio de se recuperar do fracasso marital. Encontra também na literatura, força para sair da dor do fim do relacionamento: Depois de circular dez dias na internet, “Meus três Marcelos” recebeu duas propostas de publicação. Aceitei uma e ao mesmo tempo resolvi me fechar para terminar o romance que estava escrevendo sobre o suicídio de um grande amigo. Lembro-me de que estava forte (LÍSIAS, 2013, p. 213). . Há inúmeras matérias e resenhas em vários jornais e revistas como O Globo, Folha de São Paulo, Piauí – onde ele publicou o conto que seria a gênese do romance Divórcio (2013) – e outros, bem como em portais especializados em literatura como o Publish News, Homo Literatus, Rascunho, Suplemento Pernambuco etc. Recentemente, uma matéria sobre o escritor foi publicada no site da revista Veja, e novamente por uma polêmica. Em 2017, Lísias publicara um livro chamado Diário da cadeia: com trechos inéditos da obra Impeachment, sob o pseudônimo de Eduardo Cunha. O problema é que o ex-senador, o Eduardo Cunha da vida real, está preso e disse à imprensa que estava escrevendo um livro com o nome de Impeachment, no qual ele fazia uma correlação entre os impedimentos de Fernando Collor de Melo e Dilma Rousseff. O imbróglio aumentou ainda mais porque ninguém sabia quem era o escritor. O editor Carlos Andreazza, do grupo editorial Record, não revelava o nome do escritor e sempre usava o pronome feminino “ela” para se referir à autoria da obra, fato que levou muitos a imaginarem que se tratasse de uma mulher. 18 Porém, após processo do verdadeiro Eduardo Cunha, o mistério público exigiu que a editora revelasse o nome do escritor: era Ricardo Lísias. Foi a vez de Cunha processar o escritor paulistano, embora sem nenhum sucesso – Lísias venceu em todas as instâncias. Novamente, o mesmo problema: entender e definir os limites da ficção. O ministério público, já “acostumado” com a obra desafiadora de Lísias, decidiu por tirar a suspensão de venda do romance: Em sua decisão derrubando a limitar, o desembargador disse que se trata de “uma obra literária de ficção, a qual tem como pano de fundo a realidade política brasileira. Em uma análise preliminar, conclui-se que não houve anonimato, vedado pela Constituição Federal, e sim a utilização de um pseudônimo em uma obra ficcional” (VEJA, 2017). No programa Conversa com Bial, da Rede Globo, Lísias se defende das acusações dizendo que a própria palavra “pseudônimo”, colocada logo após “Eduardo Cunha” na capa do livro, já resolveria a dúvida sobre a autoria. Mesmo que não se soubesse quem escrevera a obra, a palavra “pseudônimo” poderia remeter a todo mundo, menos a Eduardo Cunha. Segundo ele também, tudo isso fazia parte de um projeto no qual a própria capa não seria um paratexto e sim já pertenceria à obra de ficção em si. Se nesse caso Lísias não se serve da autoficção, seu livro Diário da cadeia (2017) se insere também, como os outros, na discussão que envolve os limites entre realidade e ficção. Em entrevista concedida a Carla Castellotti e publicada no site Vice, Lísias fala de sua obra e das polêmicas que ela costuma causar. Afirmou que, um mês depois da publicação de Divórcio (2013), foi xingado por um corredor que cruzou com ele no Parque Ibirapuera. O romance foi polêmico e causou várias dessas reações. Segundo o próprio autor, até o momento da entrevista, ele recebia quatro ou cinco mensagens sobre o livro todos os dias no seu perfil do Facebook. Em uma parte da conversa, na qual se fala sobre literatura acomodada e literatura incômoda, Lísias dá sua opinião em relação à sua obra e a de alguns outros escritores: Agora parece que está claro [que eu incomodo]. Eu faço de propósito. Não fazia de propósito antes, mas agora faço. Não imaginava que podia incomodar tanto. Tem uma escritora chamada Elvira Vigna, que é (sic) uma escritora muito efetiva, incômoda, uma escritora muito potente. O Nuno Ramos... Existem pessoas de resistência. Existem lugares que resistem, não existe um conjunto (LÍSIAS, 2015). 19 Divórcio (2013) incomodou muitas estruturas. Parece que, a partir desse ponto, o autor se dá conta de que consegue incomodar os establishments. Creio que essa obra é um divisor de águas na sua produção literária, que passa a ser cada vez mais polêmica, desafiadora e incômoda. Lísias reclama ainda sobre o posicionamento do leitor em relação à ficção – que abre também uma brecha para pensarmos sobre a autoficção. Ele não concorda que as pessoas leiam acreditando sempre em tudo o que está escrito: As pessoas precisam dar uma chance para a arte. É impressionante, elas acreditam em tudo. As pessoas sempre irão ficar fazendo a conta de quanto daquilo foi escrito é verdade. Por isso que eu continuo dizendo que é tudo verdade. A pergunta não se coloca. Está tudo escrito, a arte tem sua própria verdade (LÍSIAS, 2015). As palavras de Lísias nos levam a algumas reflexões sobre a autoficção. Primeiramente, é impossível “proibir” o leitor de fazer associações de elementos da obra com a vida pessoal do autor. Em alguns livros, a referência pode ser mais velada, em outros, mais clara, porém a referência ainda estará lá, porque senão provavelmente não se trataria de autoficção – veremos um pouco mais sobre isso adiante. Entretanto, fazer essa “conta” da qual ele fala e que os leitores fazem é uma atitude indigesta. Tentar saber exatamente o que é ficcional e o que realmente aconteceu é perder, destarte, o poder do discurso autoficcional. Na academia, o autor já é estudado há algum tempo, sobretudo no que tange às suas obras autoficcionais. Entre os artigos científicos e capítulos de livro já publicados, destaque para os textos “Ricardo Lísias: versões de autor”, escrito por Luciene Azevedo e publicado em 2013 no livro O futuro pelo retrovisor: inquietudes da literatura brasileira contemporânea, editado pela Rocco e organizado pelas pesquisadoras Stefania Chiarelli, Giovana Dealtry e Paloma Vidal, além de “Pacto com o diabo: Divórcio, de Ricardo Lísias, como um manual para compreender a autoficção contemporânea”, escrito por William Vieira e publicado em 2017 na revista Estudos de literatura brasileira contemporânea. Destaque também para um trabalho de maior fôlego: a dissertação Reflexos do eu: Ricardo Lísias e a publicização do sujeito autor na literatura brasileira contemporânea, escrita por Taíssi Alessandra Cardoso da Silva e defendida em 2016 no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Santa Cruz do Sul. Em relação ao texto de Azevedo, a autora chama a atenção para um fato interessante e irônico em relação à pesquisadora Leyla Perrone-Moisés no que diz respeito a sua opinião sobre 20 a obra de Ricardo Lísias. Perrone-Moisés, no posfácio de Ana O. e outras histórias (2007), reconhece que o autor é um dos melhores escritores da nova geração brasileira. Porém, no mesmo texto, um pouco mais à frente, ela afirma que a qualidade do escritor paulistano se dá justamente na não incorporação de dados biográficos à sua obra, pois esse seria o princípio básico de toda boa ficção. Evidentemente que não havia como imaginar que o escritor escreveria pelo menos quatro livros, nos anos subsequentes, em que as questões biográficas estariam tão à tona. Contudo, a própria autora mudou seu posicionamento em relação ao que ela mesma chama de “boa ficção”. No seu mais recente livro, Mutações da literatura no século XXI (2016), Leyla Perrone-Moisés sai em defesa da autoficção. Azevedo (2013) ainda chama a atenção para a mudança na construção das personagens de Lísias. Segundo ela, desde os contos, já há detalhes autobiográficos, porém de maneira discreta e não tão recorrente. A partir de O céu dos suicidas (2012), a centralidade que a primeira pessoa assume é evidente e, assim, norteia praticamente toda a sua produção subsequente. Porém, há alguns indícios dessa mudança em textos “extraoficiais”, sobretudo em relação ao suicido do amigo André: Alguns desses textos já foram publicados. Sobre a rapidez (2011b) e Fisiologia da memória (2011c) foram acolhidos pelo Diário de Pernambuco. Em ambos, a menção do suicídio de André aparece integrando à trama: “Quando acordei, fui chamar o André para tomar café e o flagrei cortando a mão esquerda com um canivete... me ligaram dizendo que o André tinha se enforcado” (Sobre a rapidez) ou “o meu amigo André iria se matar [...] a polícia encontrou o corpo do meu amigo André, enforcado naquele lugar [...] o André nunca mais iria aos meus lançamentos” (Fisiologia da memória). (AZEVEDO, 2013, p. 93). Essa mudança ficou visível também nas produções independentes, campo eventualmente esquecido, mas que Azevedo considera importante. Lísias fez versões artesanais de alguns textos e enviou-os por correio a alguns destinatários pré-escolhidos. Fisiologia da solidão, que segundo Azevedo teve uma tiragem de oitenta exemplares, e Artes plásticas são dois desses exemplos. Em ambos os projetos há uma marca biográfica que se acentuará cada vez mais nos textos seguintes. O artigo de William Vieira, “Pacto com o diabo: Divórcio, de Ricardo Lísias, como um manual para compreender a autoficção contemporânea”, é importante por apontar estratégias 21 comerciais e estruturais feitas por Lísias em seu romance mais famoso. Segundo ele, o projeto assumido pelo escritor nesse livro difere dos outros publicados até então: Chamar de “extraliterárias”, porém, manifestações que contribuem para um projeto de escrita que condiciona um tipo específico de leitura parece insuficiente no caso de Divórcio, em que a engenharia discursiva em torno da obra tem outro nível. Lísias preparou o terreno de forma exemplar. Fez circular por e-mail e via redes sociais um texto no qual expunha a intimação extrajudicial enviada pelo advogado da ex-esposa com ameaças à publicação, por parte dele, de informações sobre um diário que teria sido escrito por ela e encontrado e copiado por ele, além de um libelo em favor da liberdade criativa e da literatura em si (VIEIRA, 2017, p. 187). Lísias não usa “apenas” o espaço tradicional da obra impressa. Utiliza também outros elementos, como documentos, e-mail, publicações no Facebook etc. Isso pode ser lido como uma estratégia comercial, usando outros elementos e espaços para divulgar a obra com paratextos que ajudariam a inserir o leitor na trama. Contudo, Vieira acredita que esse projeto do escritor vai além. Segundo ele, trata-se de uma estratégia que se utiliza de “espaços escriturais”, pois faz parte de um complemento da própria obra, um projeto literário em andamento. De minha parte, concordo com as afirmações de Vieira, esses elementos não são extratextuais e sim intratextuais, pois tudo o que está fora do texto tradicional ainda é parte do texto no projeto literário de Lísias. Então, para o leitor, “o efeito dessa rede textual com as mesmas referências é o de uma performance autoral inalienável, que permeará o romance e a voz atribuída a esse narrador- protagonista” (VIEIRA, 2017, p. 188). Esse é um dos recursos que Lísias utiliza na construção da sua assinatura autoficcional, que veremos no capítulo seguinte. Em se tratando, então, de autoficção, Lísias tem marcadamente quatro romances que são assim classificados: O céu dos suicidas (2012), Divórcio (2013), Delegado Tobias (2015) e Inquérito policial: família Tobias (2016). Os dois primeiros apresentam um estilo mais “tradicional” da autoficção. Os dois últimos apontam para um novo estilo autoficcional que, muitas vezes, caçoa do próprio gênero. Como já citado, o formato desses dois últimos livros é um tanto peculiar. Eles usam plataformas e estruturas diferentes dos livros tradicionais e a maneira de construir a narrativa é bem diferente. É sobre isso que falarei no primeiro capítulo, intitulado “Caminhos da autoficção: Ricardo Lísias e sua assinatura autoficcional”. É importante ressaltar que Lísias é um exemplo que corrobora o argumento da crítica especializada de que a grande marca, da literatura produzida em nossos tempos, é a pluralidade. 22 Ele próprio é, como eu mesmo já disse, multifacetado. Lísias, além de publicar contos e romances, também publica ensaios, esses últimos encrustados em uma região entre o ficcional e o real. Além disso, alterna entre obras ficcionais e autoficcionais, variando também as plataformas, utilisando-se tanto de livros com formatos mais tradicionais quanto explorando outras formas. Sobre a pluralidade da literatura contemporânea, há alguns críticos que, ao se debruçarem sobre a produção brasileira desta época, apontam que o ponto em comum, entre todos eles, é o da convivência, aparentemente pacífica, entre os estilos e temáticas. Separei quatro críticos para discutirmos, então, a produção literária nacional dos últimos anos e tentar entender como eles veem essa produção. Karl Erik Schøllhammer, em seu livro Ficção brasileira contemporânea (2009), ao analisar a ficção produzida no país nas últimas décadas, aponta para um ponto de convergência entre as obras: um novo realismo a partir de um ponto de vista periférico, completamente diferente, por exemplo, do realismo histórico, do realismo de 1930 e da literatura dos anos 1960 contra a ditadura militar. Assim sendo, em sua opinião, o realismo histórico teria um compromisso representativo, enquanto esse novo realismo faria uma espécie de questionamento das próprias possibilidades de representar: Dois argumentos se juntam aqui: uma escrita que tem urgência, que realmente “urge”, que significa, segundo o Aurélio, que se faz sem demora, mas também que é eminente, que insiste, obriga e impele, ou seja, uma escrita que se impõe de alguma forma. Ao mesmo tempo, trata-se de uma escrita que age para “se vingar”, o que também pode ser entendido, recuperando-se o sentido etimológico da palavra “vingar”, como uma escrita que chega a, atinge ou alcança seu alvo com eficiência. O essencial é observar que essa escrita se guia por uma ambição de eficiência e pelo desejo de chegar a alcançar uma determinada realidade, em vez se propor como uma mera pressa ou alvoroço temporal (SCHØLLHAMMER, 2009, p. 11). Para o teórico dinamarquês, essa escrita urgente é proeminente de nossos tempos, em uma tentativa de chegar em uma realidade, não necessariamente uma realidade exata, tal como ela é, como era no “realismo clássico”. Segundo suas afirmações, há um ponto de conexão entre literatura e realidade social, sendo a produção artística a forma transformadora da realidade. Não é mimético ao ponto de retratar objetivamente a realidade, mas se torna um realismo referencial, de alguma forma engajado socialmente, embora fosse preferível não haver uma preferência política. Schøllhammer cita Luiz Ruffato como um representante dessa tentativa de reconciliar o experimentalismo com a realidade engajada. 23 Ele diz que Ruffato faz uma espécie de imagem visual do pensamento na literatura, um trunfo no esgotamento e ofuscamento imagético em uma sociedade imagética. Em Eles eram muitos cavalos (2001), extingue-se o coletivo, explode-se a identidade em fragmentos de diálogos entre pessoas que são intraduzíveis entre si. As pessoas não se reconhecem nas outras nem usam a mesma variante linguística, embora falem o mesmo idioma. Fazendo um panorama a partir dos anos 1970, o autor cita mais de duzentas obras diferentes, mostrando esse novo realismo com a pluralidade de vertentes da produção brasileira contemporânea. Ele cita, por exemplo, Marçal Aquino e Fernando Bonassi, que buscam uma mistura de linguagem cinematográfica e publicitária. Ambos trabalham como roteiristas, publicitários, teatrólogos etc. A literatura é só uma das atividades e suas linguagens, por vezes, misturam-se. Cita também André Sant’Anna como exemplo da apropriação da linguagem da cultura de massa e expressões clichês. Sua obra está cheia de personagens emburrecidas e preguiçosas e que estão reduzidas à superfície sem apresentação psicológica. Uma produção, segundo ele, aparentada à pop art. Esses são apenas alguns dos escritores citados pelo crítico em questão, que ainda aponta várias facetas da produção atual: interesse em romances memorialistas e históricos mais tradicionais por conta do exaurimento do experimentalismo; literatura marginal e a realidade de denúncia que se tornou fenômeno pop na televisão, cinema e artes em estilo testemunhal (depoimento); no interesse pela realidade, desfaz-se a dicotomia entre ficção e não ficção, aparecendo tipos como autobiografia fictícia, romance autobiográfico etc. Então, mesmo apontando para um realismo, o teórico também acena para uma pluralidade, que parece guiar o mapeamento da produção literária contemporânea. Já Beatriz Resende (2008) diz que os estilos são variados: pode-se ter um reinvento de um brutalismo à moda de Rubem Fonseca, uma narrativa do eu, a apropriação de elementos da cultura de massa, metaficção historiográfica, literatura de deslocamento, fragmentação, literatura memorialista, entre outros. Todos convivendo entre si, sem que haja um modelo principal que deva ser seguido: É nessa obliqüidade dos discursos anti-hegemônicos que aparecem recursos que dão formas múltiplas à criação literária contemporânea: a apropriação irônica, debochada mesmo, em alguns casos, de ícones do consumo; a irreverência diante do politicamente correto; a violência explícita despida do charme hollywoodiano; a dicção bastante pessoalizada, voltada para o cotidiano privado; a memória individual traumatizada, seja por momentos anteriores da vida nacional, seja pela vida particular (RESENDE, 2008, p. 20). 24 Nesse quadro de pluralidade, a autoficção seria, então, apenas uma das vertentes da literatura produzida atualmente. Um dos trabalhos mais importantes sobre a literatura contemporânea produzida no Brasil é de Flávio Carneiro, em seu livro No país do presente, ficção brasileira no início do século XXI (2005). O pensamento de Carneiro foge da estrutura tradicional da história da literatura que procura encaixar escritores em certos períodos como modelo mais didático para estudo. Contudo, ao contrário do que pode parecer, seu texto tem também um perfil didático, mesmo sendo um olhar que vem de dentro do próprio nicho de escrita – Flávio Carneiro também é escritor e fala da produção com propriedade. Segundo ele, a produção contemporânea se encontra em um momento no qual um inimigo não precisaria mais ser combatido – não se escreve contra os românticos ou contra uma ditadura. A escrita é plural e está aparentemente livre da obrigação de levantar bandeiras, é o que ele diz. Sequer a cultura de massa assusta. Se, no discurso modernista, as mídias poderiam ser usadas de uma maneira crítica, quase que como um medo de “contágio”, nessa produção contemporânea esse medo se perde e a apropriação dos elementos midiáticos se dá de maneira mais profunda. Seu próprio texto segue a linha da diminuição significativa entre alta cultura e cultura de massa. Ao analisar a sociedade contemporânea, Carneiro, seguindo uma postura žižekiana, cita exemplos da literatura mais popular, o romance policial: A literatura atual age diferente (da literatura moderna). Em primeiro lugar, existe uma nova linguagem de massa: a da televisão, com um ritmo ainda mais veloz que o do cinema e promovendo uma mescla de estilos até então inimaginável, tanto nos diversos formatos – jornal, programa de variedades, de auditório, novela, talk show, esporte et. – como nos anúncios publicitários. A diferença maior, no entanto, não está aí e, sim, numa nova forma de aproximação, mais íntima que a dos modernistas, entre literatura em dia. Agora, a literatura deixa de considerar como de menor valor um discurso estético para as massas. Desaparece, ou se torna mais sutil, a crítica ideológica, marcante nos movimentos anteriores. Cria-se uma literatura antenada com o mercado, ou seja, uma literatura que não apenas se utiliza dos recursos linguísticos da mídia, como também se interessa em atingir o mesmo público almejado por ela (CARNEIRO, 2005, p. 24). Como característica desse universo, o autor cita o deslocamento. Entende-se como deslocamento a morte das ideologias estabelecidas entre esquerda e direita3 e o aparecimento 3 Como o livro foi escrito em 2009, pode-se sim afirmar que, naquele momento, ao menos no Brasil, não havia tanta segmentação entre as divisões políticas clássicas de esquerda e direita. Entretanto, a partir das manifestações políticas (protestos) de 2013, essa dualidade voltou a ficar marcada (ocasionando o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, eleita democraticamente), intensificando-se nas eleições de 2018, com a vitória do candidato de extrema direita Jair Bolsonaro. 25 de uma postura múltipla e multifacetada, herança da contracultura. Há, também, o deslocamento dos grandes projetos para os projetos particulares. É o fim, ou ao menos a diminuição considerável de força, das missões, e a focalização em projetos, como ele mesmo diz, menos pretensiosos. Carneiro (2005) também cita a ideia da poética do inacabamento, na qual o silêncio pode acarretar uma maior significação estética. Como ele diz, esse silêncio não é mais imposto, mas produzido intencionalmente, uma transgressão silenciosa brusca. Essa ideia vai ao caminho inverso da afirmação da violência pelo impacto citada por Resende (2008). Tudo isso caminha para uma nova trilha de produção que é pautada em um mundo de incompletude e incertezas. Embora destoem nesse ponto, tanto a obra de Resende como a de Carneiro conduzem para um entendimento de pluralidade no cenário atual. Outro estudo importante sobre a produção artístico-literária atual foi desenvolvido pela pesquisadora argentina Florencia Garramuño. Em seu livro Frutos Estranhos (2014), título emprestado de uma instalação feita pelo artista brasileiro Nuno Ramos, obra de difícil definição e caracterização, Garramuño aposta no inespecífico, no não pertencimento da estrutura e linguagem artísticas a uma ideia de arte específica: No interior da linguagem literária, vários tipos de especificidade – nacional, pessoal, genérica, literária – são dissolvidos num número cada vez mais importante de textos que exibem uma intensa porosidade de fronteiras. Na literatura mais recente – sem contar aqueles textos que incorporam fotografias, desenhos ou alguma outra linguagem artística – o que estou chamando de “aposta no inespecífico” pode percorrer lugares heterogêneos e diversos (GARRAMUÑO, 2014, p. 16-17). No seu entendimento, a arte contemporânea diminui as fronteiras entre linguagens que eram consideradas específicas de meios diferentes. Por exemplo, a relação entre literatura e jornalismo, que já existe desde o século XIX (vide folhetins), acentuar-se-ia na literatura contemporânea, produzindo romances com uma linguagem próxima à da reportagem; a linguagem coloquial e de senso comum se misturaria com uma linguagem mais elaborada e elitizada; imagens poderiam ser introduzidas em romances como uma linguagem que ajudasse a compor o sentido da obra e haveria uma relação mais íntima entre literatura e cinema. Desse modo, essas linguagens que pertenciam a meios diferentes acabam se intercruzando nas artes. No mundo contemporâneo, assim sendo, o artista seria, metaforicamente falando, uma espécie de “criança” com uma “caixa de brinquedos antigos”, da qual ele se serviria, escolhendo seus objetos a sua vontade, para montar e fazer o seu próprio 26 “brinquedo”, que adquiriria novo sentido justamente pela mescla de elementos aparentemente distantes e/ou contradizentes. Para corroborar o que a pesquisadora argentina afirma, podemos citar o romance Fantasias eletivas (2014), de Carlos Henrique Schroeder, cujo protagonista, funcionário de um hotel, tem um amigo travesti apaixonado por fotografias e a elas se dedica nas horas vagas. A produção desse personagem é exibida em uma exposição – tanto na narrativa quanto na própria estrutura do livro e essas fotografias não são meramente ilustrativas, mas ajudam a compor toda a significação da obra. Eis, então, um exemplo do que Garramuño diz sobre inespecificidade. Outro romance contemporâneo que mistura elementos de linguagens aparentemente distintas pertence a Lourenço Mutarelli e dialoga fortemente com a sétima arte. Que o cinema tem se interessado pela literatura não é notícia nova, acontece desde que se percebeu que ele tinha um potencial narrativo. Sobretudo após a intervenção de George Méliès, não cessam as adaptações das páginas para as telonas. O efeito contrário, embora menos frequente, não é incomum. O livro de Mutarelli, Miguel e os demônios ou nas delícias da desgraça (2009), dialoga com uma linguagem cinematográfica, trazendo para literatura uma estrutura de roteiro que fica evidente logo no início nas passagens “Tela branca” e “A câmera se afasta, revelando a mosca que se debate contra o para-brisa” (MUTARELLI, 2009, p. 5). Nove Noites (2006), de Bernardo Carvalho, é outro desses romances de difícil conceptualização, uma vez que mistura elementos provenientes de esferas diferentes. Como diz Garramuño: Carvalho exercitava neste texto uma escrita plural que combinava a escrita jornalística, a indefinição autobiográfica, o diário pessoal e o informe antropológico, e que além disso se situava, tanto pelo próprio espaço em que se passava a narração como pelos problemas que apresentava numa espécie de espaço transnacional em que distintos meios acadêmicos – a Columbia University, a Universidade de São Paulo, o Lévi-Strauss estruturalista – e as políticas internacionais e nacionais – o Estado Novo e a “good neighborhood policy” – se mesclavam com a etnologia dos índios krahôs da Amazônia brasileira na construção de um enredo complexo que destruía também as identidades certas tanto de personagens como do mesmo narrador do romance (2014, p.36-37). É nítido que o pensamento contemporâneo, ao menos por esses quatro conceituados críticos que acabei de citar, conluie para a uma arte inespecífica. O escritor não tem modelos estabelecidos a serem seguidos, pode mesclá-los e também trazer para a literatura discussões provenientes de outros campos de estudo e emprestando outras linguagens. Há nisso mais um elemento que aponta a contemporaneidade de Lísias. Diário da cadeia (2017), por exemplo, 27 concebe, também como ficção, a capa do livro. O nome que ali aparece é de Eduardo Cunha (pseudônimo), ficcionalizando também um elemento paratextual que serve para dar informações gerais e não ficcionais. Os livros mais recentes de Lísias, que estão sendo escritos e reescritos, aproximam-se da linguagem da arte performática, que é efêmera. Uma apresentação geralmente não é repetida e os livros da série Diário da catástrofe (2018-2019) recebem novas versões a cada grande reviravolta do atual governo. Os dois livros que escolhi para uma análise mais detalhada nesta tese também se apropriam de elementos não ficcionais. Delegado Tobias (2015) é composto por várias imagens de Facebook, notícias de jornal, entre outros. Inquérito policial: família Tobias (2016), por sua vez, é todo estruturado como se fosse um processo judicial, com depoimentos e outros documentos arquivados em uma pasta, fazendo com que forma e conteúdo se conectem. Falarei mais sobre os dois textos no capítulo seguinte, mostrando como ambos são concebidos e como colaboram para a construção da assinatura autoficcional de Lísias. Em suma, a tese vem apresentada da seguinte maneira: O capítulo intitulado “Caminhos da autoficção: Ricardo Lísias e sua assinatura autoficcional” versa sobre os conceitos gerais de autoficção e sobre a assinatura ficcional de Ricardo Lísias. Nesse momento, os romances em questão serão os quatro autoficcionais: O céu dos suicidas (2012), Divórcio (2013), Delegado Tobias (2015) e Inquérito policial: delegado Tobias (2016). A partir daí, discuto a evolução do conceito de autoficção, desde sua gênese até os dias atuais, sobretudo Serge Doubrovsky e Vincent Colonna, “chamando” também os escritores para o debate a respeito do termo. O capítulo seguinte, intitulado “Um agente plural: Ricardo Lísias e o campo literário”, versa primeiramente sobre os agentes do campo literário segundo as teorias do sociólogo francês Pierre Bourdieu em seu livro As regras da arte (1996). Entre esses agentes, que aponto ao longo do capítulo, aparece o próprio mercado editorial, a quem darei atenção mais destacada, sobretudo na discussão a respeito da sociedade do espetáculo. O último capítulo, intitulado “Lísias: cinismo e performance”, tratará, como o título já aponta, das questões de cinismo e performance, analisando os romances Delegado Tobias (2015) e Inquérito policial: família Tobias (2016). 28 2. CAMINHOS DA AUTOFICÇÃO: RICARDO LÍSIAS E SUA ASSINATURA AUTOFICCIONAL 2.1 A “assinatura” autoficcional de Ricardo Lísias Ricardo Lísias é um dos autores nacionais que mais exploram a autoficção e, nesse gênero em questão, aborda frequentemente alguns temas e situações que constituem a base inicial para o que chamo de sua assinatura autoficcional, o seu modo de fazer autoficção. São eles: o suicídio do amigo André; o fim de um curto casamento com uma jornalista após o protagonista descobrir, lendo o diário pessoal da esposa, que ela o havia traído enquanto cobria o Festival de Cannes; a sua participação na revista Granta, que escolheu os vinte melhores escritores brasileiros da nova geração; a sua curta carreira como enxadrista, quando participou de torneios nacionais e um torneio no Chile; sua carreira como escritor e seus livros publicados; sua formação em letras. No já citado texto de Azevedo (2013), escrito logo após a publicação de Divórcio, a pesquisadora chama a atenção para esses elementos recorrentes que colaboram para uma assinatura autoral de Lísias: Ora, se pudermos apostar na “guinada subjetiva” como um gesto performático de inscrição de um nome de autor, de inscrição de uma assinatura literária, então, temos várias evidências da estratégia dispersiva aqui comentada: os mesmos motes temáticos – o apelo a uma intimidade mezzo fake, o retorno do narrador solitário e dolorido com a morte de seu melhor amigo, com a separação conjugal -, recuperados em publicações distintas, entregues quase sem intervalo, parecendo todas reescrever, reelaborar o mesmo texto (AZEVEDO, 2013, p. 108). Porém, isso ainda é muito pouco para afirmar que Lísias possui uma marca autoficcional que o diferenciaria dos outros escritores que também exploraram o gênero. É preciso lembrar que, após a publicação do texto de Azevedo, mais três romances autoficcionais foram escritos pelo autor. Eventos biográficos, que são imprescindíveis para a autoficção, também aparecem nos outros romances acima citados. Para exemplificar essa assinatura de Lísias no gênero, separei mais alguns elementos que, acredito, marcam a peculiaridade de sua construção romanesca autoficcional. 29 2.1.1 Conexão entre os romances Desde o primeiro romance autoficcional, Lísias estabelece um elo, uma corrente a ligar os romances. Cronologicamente, o romance seguinte cita o anterior, conectando-os entre si. Em O céu dos suicidas (2012), primeiro dos romances autoficcionais, o nome de Ricardo Lísias aparece apenas uma vez: “Eu não via clima para badalação, mas aceitei. Logo avistei meu parente. Por trás de uma mesa, ele acenou e depois me chamou pelo nome: — Ricardo Lísias” (LÍSIAS, 2012, p. 69). Antes disso, havia apenas um indício de que se tratava de autoficção: quando faz referência ao seu avô, ele cita o nome João Lísias. Nesse seu primeiro passo autoficcional, o personagem homônimo ao autor não é escritor, mas filatelista. Lísias, o personagem, é atormentado por uma culpa, que ele se auto impõe, de ter “colaborado” com o suicídio do amigo André. Mas como o personagem não é escritor, não há nenhuma referência ao romance O livro dos mandarins (2009). Em Divórcio (2013), seu segundo livro de autoficção, aparecem referências ao romance anterior, O céu dos suicidas (2012), como no seguinte trecho: “Só pode ser ficção. No meu último romance, O céu dos suicidas, o narrador enlouquece e sai andando. Agora, fiquei louco e estou vivendo minhas personagens” (LÍSIAS, 2013, p. 15). Ao todo, o título do romance anterior aparece onze vezes em Divórcio. Boa parte das referências é sobre o processo de escrita do referido livro: “na porta, lembrei-me do pen drive com o que tinha escrito até ali do romance O céu dos suicidas. Por sorte estava perto do celular que eu também tinha deixado para trás” (LÍSIAS, 2013, p. 22); “confirmar o curso de narrativas curtas; retomar aos poucos O céu dos suicidas. Preciso encerrá-lo em novembro” (LÍSIAS, 2013, p. 35); “Preciso dar aula, confirmar a viagem ao Recife e, a todo custo (escrevi mesmo “a todo custo”), retomar O céu dos suicidas (LÍSIAS, 2013, p. 58). Quando não fala do processo de escrita, ou de sua retomada, o narrador fala sobre a publicação do referido livro, seu lançamento e recepção pela crítica que prefere focar as atenções em Divórcio do que no seu predecessor: Entre as tantas listas que guardei, tenho uma com as opiniões dos jornalistas fofoqueiros sobre esse romance. Todos falaram sem ler. A redação está sendo feita em paralelo à divulgação do meu romance anterior, O céu dos suicidas. Tenho ido a alguns eventos e sempre há uma pergunta igual: é verdade que você está escrevendo um romance sobre o seu primeiro casamento? (LÍSIAS, 2012, p. 77). 30 Em relação aos livros anteriores, há uma menção ao Livro dos mandarins (2009): “Apaixonei-me pela minha ex-mulher no dia do lançamento de O livro dos mandarins” (LÍSIAS, 2013, p. 12). Os livros anteriores não são mencionados. Em Delegado Tobias (2015), há uma referência clara a Divórcio (2013), texto que o antecede. Na estrutura fragmentada do e-book, há uma conversa na rede social Facebook, onde Paulo Tobias, o delegado, conversa com Lísias, pedindo para que esse pare de persegui-lo, ameaçando denunciar o autor. Tobias também diz: “Comecei a ler o seu livro Divórico (sic) e achei um absurdo! Você não tem vergonha de contar a sua vida desse jeito não?” (LÍSIAS, 2015, p. 15-volume 5). O romance seguinte, Inquérito policial: família Tobias (2016), cita algumas vezes o romance anterior Delegado Tobias (2015). Na verdade, a própria existência desse novo texto se deve à publicação do anterior e seus desdobramentos na justiça. No plano ficcional, Lísias está em um interrogatório na delegacia para falar sobre o processo que ele move contra João Cezar Varella, sócio da editora Lote 42. Em uma de suas respostas, ele cita o livro que antecede o Inquérito policial: família Tobias. Que inquerido se são suas personagens os sócios da editora Lote 42, como então João Cezar Varella apresentou-se de fato a essa autoridade policial, respondeu que é a mesma confusão que envolve seu e-book Delegado Tobias: instâncias da justiça brasileira resolveram investigar obras de ficção (LÍSIAS, 2016, sn). Entre os livros anteriores de Lísias, apenas mais um é citado. O romance Divórcio (2013) também é citado em Inquérito policial: família Tobias (2016). Aparece durante o diálogo em que os sócios da editora lote 42 decidem fazer a denúncia ao ministério público de que Lísias teria falsificado documentos em seu último livro. 1. Thiago para os sócios: O Ricardo Lísias escreveu dizendo que está em crise e que não acha uma ideia para juntar os três sobrinhos do delegado em um livro só. Estou com medo de ele desistir. 2. João: De jeito nenhum. Temos um contrato, ele tem que fazer. A gente processa ele. Não processaram ele por causa do tal Divórcio? (LÍSIAS, 2016, s/n). É possível ver, então, que, excetuando O céu dos suicidas (2012), os romances autoficcionais de Ricardo Lísias citam obras anteriores do escritor. Eis uma das marcas 31 autoficcionais do autor. Conexões entre obras não é novidade4 na literatura, mas na autoficção é a primeira vez que acontece. É a técnica do mashup. Em seu texto Ricardo Lísias: versões de autor (2013), Luciene Azevedo já identifica um procedimento similar a esse, utilizado nos contos anteriores às publicações dos romances. A reiterada preocupação do personagem de Cobertor de estrelas com a sujeira dos pés, que era considerada pelo menino como um empecilho à possibilidade de mobilidade social, é, curiosa e ironicamente, ressaltada na fala de Maria em Duas praças: “Sem falar na sujeira: aqueles moleques todos têm manchas no pé que não saem nunca” (2005ª, p. 35). O procedimento merece realce por insinuar uma estratégia de composição que trabalha a partir da reapropriação do próprio texto, um texto “plagiando” o outro, insinuando a reelaboração permanente, fazendo mashup da própria criação (AZEVEDO, 2013, p. 86). O mashup é uma ferramenta muito usada na música, em vídeos e até mesmo no ciberespaço. Geralmente, trata-se de uma produção baseada em uma outra ou uma nova composição que reintegre elementos de outra obra. Pode ser ainda uma espécie de recombinação de dados de outras fontes. Esse procedimento já era utilizado por Lísias nos seus contos e foi incorporado à sua autoficção, fazendo com que se torne um elemento importante na constituição da sua assinatura autoficcional. Entretanto, nos romances, não há exatamente uma reapropriação do próprio texto, mas uma reapropriação de temáticas regurgitantes relacionadas às próprias obras que aparecem com frequência, fazendo com que os livros se conectem formando uma cadeia, um citando o outro de maneira direta e servindo até como um sustentáculo (ou pretexto, porque não?) para a construção de nova obra – caso de Delegado Tobias (2015) x Inquérito policial: família Tobias (2016). 2.1.2 Autoficção e Metaficção Uma das características da obra autoficcional de Ricardo Lísias é o discurso metaficcional, recurso raramente encontrado em outras obras do gênero publicadas no Brasil. Em vários momentos, o autor chama a atenção para a ficcionalidade do texto que está 4 Stephen King é um dos exemplos mais claros de como há conexões entre romances aparentemente tão diferentes. Em seu multiverso, embora a maioria das histórias se passe no estado do Maine, as histórias vão se conectando, mesmo que em pontos pequenos. Para saber mais, consultar: https://www.simonerocateli.com.br/como-it-a-coisa- se-conecta-com-todas-as-outras-historias-de-stephen-king/. https://www.simonerocateli.com.br/como-it-a-coisa-se-conecta-com-todas-as-outras-historias-de-stephen-king/ https://www.simonerocateli.com.br/como-it-a-coisa-se-conecta-com-todas-as-outras-historias-de-stephen-king/ 32 escrevendo. Isso acontece em todas as obras selecionadas para análise aqui. Em Divórcio (2013), por exemplo, ele chama a atenção para o processo de escrita do próprio capítulo que estamos lendo. De novo, estou cometendo um erro. Pretendia concluir este capítulo dizendo que o choque entre o ruído interno que sempre precisei ordenar e a indiscrição da mulher por quem me apaixonei cegou-me e me fez cometer o maior erro da minha vida (LÍSIAS, 2013, p. 38). Aliás, nesse romance, Lísias começa a fazer seu jogo performático, que veremos com mais calma no capítulo “Lísias: cinismo e performance”. O narrador brinca com o leitor ao longo do romance dizendo, em alguns momentos, que tudo aquilo que lemos se trata de invenção. Divórcio é um livro de ficção em todos os seus trechos. Agradeço às três pessoas que foram fundamentais no processo de recuperação que ele recria, mas que não aparecem na trama. No caso, a profissão delas é o ponto de partida da minha gratidão: meu muito obrigado ao psicanalista Tales Ab’Saber, ao professor de xadrez (LÍSIAS, 2013, p. 113). Em outros momentos, afirma que tudo aquilo aconteceu de verdade e não há uma palavra de ficção, como no trecho a seguir: “acabo de achar a folha com as frases autobiográficas que redigi naquele dia. Um pouco abaixo do meio, depois do comentário sobre o enterro da minha avó, escrevi várias vezes com caneta vermelha: ACONTECEU NÃO É FICÇÃO” (LÍSIAS, 2013, p. 13). Essa postura colabora diretamente para o jogo meta- autoficcional que o autor pretende – e realiza. Em Delegado Tobias (2015), há ainda mais recorrência ao discurso metaficcional. O delegado estaria deprimido, começando mesmo a acreditar que sua existência não era real depois de tanto ouvir que ele era apenas um personagem de ficção. A imprensa afirma que a prisão de Lísias é injusta, pois tudo o que ocorre naquele universo diegético é ficcional. Além disso, alguns professores, após serem chamados para depor e esclarecer essa questão de autoficção, são presos porque riem da confusão que os policiais fazem entre ficção e realidade. Segundo a informação que temos, durante um depoimento à polícia, uma professora chamada Leyla Perrone-Moisés acabou detida por desacato à autoridade. Um professor chamado Fábio de Souza partiu em defesa da colega e acabou preso também. Antes de ser detido junto com os outros, o jornalista Manuel da Costa Pinto telefonou para um canal de TV em que trabalha e contou o que estava acontecendo. Ele veio aqui à delegacia explicar que o 33 conflito é desnecessário, pois tudo não passa de autoficção (LÍSIAS, 2015, p. 10-volume 1). O quarto e último romance autoficcional na linha cronológica das publicações de Lísias vai ainda além: é todo construído sob o pretexto de que se trata de ficção. No depoimento que dá à polícia, João Cezar Varella, editor da Lote 42, processado naquele momento por Lísias por tê-lo denunciado ao ministério público por falsificação de documentos sob pretexto de auxiliá- lo em um momento de bloqueio ficcional. O delegado não entende que tudo se passa no âmbito ficcional e que aquele diálogo mesmo é parte de um livro de ficção. O interrogado, então, para provar sua afirmação, mostra a ficha catalográfica do livro do qual eles participam. O autor Ricardo Lísias, quando interrogado dentro da diegese, também corrobora as afirmações do réu, dizendo que a denúncia foi apenas em caráter ficcional e que a cena desenvolvida por eles está sendo lida, naquele exato momento, por um leitor. Inquirido a respeito da Notícia de Fato n 123.376.2373849/2016-46: RESPONDEU QUE é autor da denúncia, mas apenas no âmbito da ficção; QUE inquirido que âmbito seria esse, afirmou que o desse livro que o leitor tem em mãos, mas não uma Delegacia de Polícia Federal [...] QUE inquirido se não deve aceitar que quem determina o que é e o que não é suficiente é essa autoridade policial, respondeu que em sua obra de jeito nenhum; QUE inquirido das razões disso, afirma que só ele decide o que deve entrar ou não em sua obra e de jeito nenhum a polícia ou a justiça (LÍSIAS, 2016, sn). O discurso metaficcional é um recurso novo e pouco recorrente na autoficção. É um elemento constituinte da assinatura construída por Lísias em seus textos desse gênero. Com exceção do romance Brochadas (2015), de Jacques Fux, e de Tijucamérica (2015), de José Trajano, não encontrei esse recurso em nenhuma outra obra autoficcional. No seu jogo metaficcional, que às vezes recusa o rótulo de ficção querendo se afirmar como verdade, Lísias “brinca” com a mente dos leitores e seguidores no seu perfil do Facebook, por vezes admitindo que tudo é verdade e que ele está sendo mesmo procurado por um delegado de nome Tobias. Em uma das postagens, Lísias anunciou que um certo delegado Paulo Tobias o procurou para dizer que a história narrada em Delegado Tobias era real, e que isso estaria trazendo transtornos à sua vida profissional e pessoal. Lísias chegou mesmo a criar e divulgar online uma ilustração que, para todos os efeitos, tinha toda a aparência de um documento oficial, emitido pela Justiça Federal de São Paulo. O documento fictício constituiria parte de um processo movido pelo delegado Tobias contra Lísias, o autor de Delegado Tobias. Um trecho do “documento” afirma, por exemplo, que o delegado Tobias ordena a 34 imediata suspensão das vendas do e-book, e exige também a “proibição do uso da palavra ‘autoficção’”. Evidentemente, tanto o delegado Tobias, que dá nome à série, como o delegado Tobias, a quem Lísias se refere em seu perfil no Facebook e nos outros volumes da série, são personagens do escritor. Eles não existem de verdade. Eles “são reais apenas no universo da ficção”, ainda que o livro de Lísias não seja precedido de um disclaimer que deixe isso explícito para o leitor (ARAÚJO, 2016, p. 156). Desse modo, é possível perceber como o jogo metaficcional também é uma peça importante na construção do universo criativo de Lísias, tanto dentro do próprio texto narrativo quanto em outras plataformas como a internet. É importante ressaltar que as redes sociais da contemporaneidade estão na rotina de uma enorme parcela da população brasileira, e, consequentemente, é honesto deduzir que os seguidores do perfil de Lísias também são seus leitores, o que nos possibilita entender que essa interação entre o autor e seus leitores via internet também contribui para a leitura, interpretação e imersão no mundo ficcional de Lísias. Logo, percebemos que o autor utiliza recursos autoficcionais e metaficcionais cuidadosamente de modo que os dois não colidam, mas sim se complementem para enriquecer a produção literária. E o leitor seria chamado, então, para completar o sentido do texto, criticando seu próprio modo de produção: “Nesse sentido, podemos dizer que o denominador comum da metaficção é criar, simultaneamente, a ficção e fazer uma declaração a respeito dessa atividade. É importante perceber a insatisfação da ficção contemporânea com os valores tradicionais, principalmente com o realismo do século XIX” (CORSI, 2014, p. 73). 2.1.3 Incorporação de matérias, notícias, atividades em redes sociais. Esse processo se dá mais claramente nos dois últimos romances autoficcionais, a saber, Delegado Tobias (2015) e Inquérito policial: família Tobias (2016). No caso do primeiro, Lísias adotou, entre outras estratégias, a de incorporar reações do público em relação ao próprio livro. Por conta de sua estrutura fragmentada, com muitos trechos que parecem estar incompletos ou inacabados, com frases que terminam no meio de uma palavra e com recortes de jornais que não podem ser lidos na íntegra (além do quarto fascículo vir em branco), o público começou a reclamar que o livro vinha com defeito. Essas reações e reclamações já são citadas dentro da própria obra em questão. Mas e o preso? Pediu o trancamento do inquérito policial, já que tudo não passaria de autoficção. No pedido, ainda, Coimbra Bastos Neto alega que 35 mesmo a definição de leitor médio não é cara, já que os leitores de Delegado Tobias têm afirmado as mais disparatadas coisas sobre o livro, inclusive que ele vem com defeito das lojas (LÍSIAS, 2015, p. 14-volume 2). Como parte da construção desse mesmo livro, Ricardo Lísias criou um perfil falso na rede social Facebook: era um perfil, como vimos, do personagem Paulo Tobias, delegado responsável pela investigação de assassinato no livro. Ele interage e conversa com as pessoas. Comentários do público no perfil de Tobias foram incorporados ao livro, com um processo cuidadoso de desfocar as fotos e os nomes dessas pessoas reais para que não houvesse qualquer tipo de problema judicial. Em outros momentos, o personagem interage também com próprio autor via inbox. Ele ameaça Ricardo Lísias, a quem ele chama de “Luísias”, por escrever posts citando o delegado e tece comentários sobre o romance Divórcio (2013). Prezado Ricardo Luísias: para de escrever na minha página ou te denunciarei pro Facebook. Me deixe em paz! Cordialmente. Delegado Tobias. Comecei a ler o seu livro Divórico e achei um absurdo! você não tem vergonha de contar da sua vida desse jeito não? Bem, só para de envolver o meu nome e boa sorte. Me esqueça Luísias!!! Adeus! Apague aquele post me citando imediatamente!!! (LÍSIAS, 2015, p. 30-volume 5). Uma matéria escrita por Raquel Cozer e publicada na Folha de São Paulo foi também incorporada ao livro. A jornalista faz menção às apropriações feitas por Lísias na constituição do livro, chamando assim a atenção ao risco que a própria matéria que ela escrevia fosse utilizada na ficção do escritor paulistano. E a matéria foi anexada ao livro. O e-book “Delegado Tobias”, que Ricardo Lísias lançou pela e-galáxia no dia 8 e chegou ao topo da lista de livros digitais mais vendidos na Amazon, é apenas o primeiro de cinco volumes de um folhetim virtual do autor. Fragmentada, a trama – na qual Ricardo Lísias é acusado de ter assassinado Ricardo Lísias – brinca com a ideia de autoficção e se alimenta da repercussão na internet e na imprensa (o que significa que esta nota corre o risco de sair do jornal para entrar na literatura). (LÍSIAS, 2016, s/n). Quanto a Inquérito policial: Família Tobias (2016), a própria existência do romance é fruto do processo contra o escritor, acusado de ter supostamente falsificado documentos do ministério público. Antes de virar literatura, virou peça teatral com o próprio escritor interpretando a si mesmo, embaralhando ainda mais os conceitos de autoficção. Dentro do plano da ficção, descobre-se que os editores da Lote 42 é que fizeram a denúncia, pois Lísias, em contrato com a editora, passava por um momento de crise na criação. 36 A denúncia poderia fazer com que ele pudesse voltar a escrever e, finalmente, publicar um livro com eles. Um dos anexos do livro, que tem um formato inovador, imitando um dossiê de processo, é uma matéria que saiu na Folha Ilustrada em 2014 sobre a promoção feita pela editora durante a Copa do Mundo de futebol disputada no Brasil. Ninguém esperava o massacre ocorrido no jogo desta terça (dia 8), mas poucos apostaram tanto na vitória do Brasil quanto os donos da Lote 42. A pequena editora prometeu, em sua loja virtual, desconto de 10% em seus livros, durante 24 horas, para cada gol tomado pela seleção no jogo contra a Alemanha. Após a surra por 7 a 1, a editora manteve a promessa e deu 70% de desconto. A superpromoção gerou intenso burburinho nas redes sociais. Três horas após o fim da partida, todo o estoque da editora, cerca de 2.000 livros, estava esgotado. A Lote 42 vem fazendo essa promoção em todos os jogos do Brasil na Copa. Como a seleção não tomou mais do que um gol nas partidas anteriores, os descontos não tiveram muita repercussão (LÍSIAS, 2016, s/n). Esses elementos, então, ajudam Ricardo Lísias a criar a sua própria assinatura autoficcional, diferindo do que geralmente se faz no gênero no Brasil atualmente. Sua inovação está não só na reincidência dos temas, como vimos do tipo mashup, mas também na inclusão de elementos metaficcionais, bem como na incorporação de notícias, matérias e conversas nas redes sociais. Sobre todos esses tópicos, Araújo acredita ainda que eles estejam intimamente interligados nesse novo universo com a internet e redes sociais. Obras de metaficção e autoficção, portanto, podem se referir hoje em dia não apenas a outras obras já publicadas, mas também aos elementos pré-textuais do livro, a postagens nas redes sociais, e a documentos ficcionais que podem ter sido criados anteriormente mesmo ao livro como produto a ser comercializado no mercado editorial. Esses textos – elementos pré-textuais, postagens na internet, e documentos ficcionais – são “externos” à obra, mas eles são também indissociáveis dela (ARAÚJO, 2016, p. 156). Por isso acredito que a obra de Lísias usa desses recursos tão contemporâneos, como a internet, para a construção de sua obra. O paratexto teria apenas uma função de ilustrar ou explicar algo. As redes sociais e matérias de jornal, processos e outros se constituem como desdobramentos da obra do autor. Até porque a internet, queira ou não, interfere na questão literária. Desde sua popularização, trata-se de uma ferramenta de venda, divulgação, leitura e até mesmo um suporte 37 para a criação, seja com blogs, seja na incorporação desses elementos em uma obra impressa. Pode, inclusive, reconfigurar a própria compreensão do que é literário: Chegamos, enfim, ao caso mesmo da literatura fora de foco: literatura e internet, mas, aqui, a internet como ferramenta de desconfiguração do literário. Embora tenhamos muitas respostas sobre o que seja literatura, basta perguntar a diferentes leitores, certamente é possível imaginarmos uma configuração própria para o texto literário, que, inicialmente, relaciona-se à ficção e verossimilhança, depois forma e conteúdo, representação e símbolo, linearidade e encadeamento, até questões que se relacionam com gênio criativo, engajamento, transversão, revolução (MUNARI, 2011, p. 4) Em livros que usam de elementos extraliterários, fica a reflexão sobre o que é literário. Em Inquérito policial: família Tobias (2016) aqueles documentos, como nota fiscal e outros, são literários? Em Delegado Tobias (2015), todas aquelas matérias, forjadas ou não, são literárias? Para Munari sim: “O que seria o texto literário aí? Seria o texto verbal, os vídeos, a música, os outros textos que foram trazidos para dentro dele” (MUNARI, 2011, p. 7). Por fim, para sintetizar as características dos romances autoficcionais publicados pelo autor, fiz uma tabela explicativa: O CÉU DOS SUICIDAS (2012) DIVÓRCIO (2013) DELEGADO TOBIAS (2015) INQUÉRITO POLICIAL: FAMÍLIA TOBIAS (2016) QUANTO AO PROTAGONISTA Homônimo não escritor Homônimo escritor Homônimo escritor Homônimo escritor QUANTO À METAFICÇÃO Não metaficcional Metaficcional Metaficcional Metaficcional QUANTO À CONEXÃO DOS ROMANCES Sem referências a livros anteriores Inúmeras referências ao livro O céu dos suicidas Cita uma vez o romance Divórcio Cita inúmeras vezes o Delegado Tobias, ao qual, umbilicalmente, está ligado. 38 QUANTO À PLATAFORMA Formato clássico de livro Formato clássico de livro E-book em cinco fascículos Livro impresso em formato processual. QUANTO AO NARRADOR Primeira pessoa Primeira pessoa Terceira pessoa Terceira pessoa OUTROS Incorporação de notícias e conversas de Facebook. Composto por documentos de inúmeras naturezas. Tabela 1 Romances autoficcionais de Ricardo Lísias 2.2 Conceitos de autoficção Nos últimos anos, houve uma popularização do termo “autoficção”, cujo sentido não parece estar esclarecido para todos que o utilizam, tanto nos meios literários quanto na imprensa jornalística ou estudos acadêmicos. A publicação cada vez mais constante de obras que dialogariam com esse “subgênero” romanesco faz aumentar ainda mais as diferentes classificações que o termo recebe. Não que haja necessidade de uma voz uníssona nas definições da autoficção, mas talvez seja preciso fazer um recuo histórico e ver a evolução do termo discutido por especialistas, principalmente de base francesa5, para tomarmos uma posição em relação a ele. Até porque, atualmente, muitas obras6 estão sendo chamadas de autoficcionais sendo que, na verdade, não são. As opiniões aqui trazidas não são apenas oriundas de estudos teóricos, mas também dos próprios autores que produzem obras que são geralmente classificadas como autoficcionais. Trarei, também, alguns exemplos de autoficção produzidas nos últimos anos no Brasil. Aparentemente contraditório, pois uniria dois termos opostos, autobiografia e ficção, o conceito dá continuidade à discussão criada entre os status de realidade e ficção. O neologismo 5 A maioria dos pesquisadores que se propõe falar de autoficção é francesa. Começou com o embate de Serge Doubrovsky e Philippe Lejeune no final dos anos 1970 e se estendeu pelos anos seguintes, sobretudo com as intervenções de Vincent Colonna entre outros. 6 Obras com fortes traços biográficos acabam, por desconhecimento a respeito do termo, sendo classificadas como autoficção sendo que, na verdade, não são. Entre as obras brasileiras publicadas no século XXI que acabam sendo lidas dessa maneira, destaque para K – Relato de uma busca de B. Kucinski, O ano em que vivi de literatura de Paulo Scott e até mesmo Órfãos do Eldorado de Milton Hatoum. 39 aparece pela primeira vez, oficialmente, na quarta capa do romance Fils (1977), a partir de um desafio que o escritor francês Serge Doubrovsky propõe como uma espécie de revide a uma afirmação feita pelo teórico Philippe Lejeune no livro Le pacte autobiographique (1975). Nesse livro teórico, eis o que diz Lejeune: Le héros d’un roman déclaré comme tal, peut-il avoir le même nom que l’auteur? Rien n’empêcherait la chose d’exister, et c’est peut-être une contradiction interne dont on pourrait tirer quelques effets. Mais, dans la pratique, aucun exemple ne se présent à l’esprit d’une telle recherche (LEJEUNE, 1996, p. 31)7. Leujeune (1996), apesar de não poder afirmar que isso já exista, acredita ser possível que haja um romance cujo protagonista tenha o mesmo nome do autor, mas que isso seria um elemento que o aproximaria fortemente da autobiografia. Nos seus estudos sobre os dois gêneros, ele tenta separar e mostrar os elementos que distanciariam o romance da autobiografia, entendendo que essa última é também uma arte. Segundo ele, o gênero autobiografia seria uma narração em prosa, cujo tema tratado é a vida individual ou história de uma dada pessoa. A identidade do narrador/personagem principal remeteria ao próprio autor e haveria uma espécie retrospectiva de narração. Em outras palavras, há um pacto autobiográfico que distingue o gênero autobiografia do romance, bem como de outros gêneros vizinhos à autobiografia, tais como memórias, biografias, diários íntimos etc. Fils (1977) mostra que é possível haver um narrador homônimo ao autor, mas que, apesar disso, não faz com que a obra em questão seja uma autobiografia. O protagonista do livro tem o mesmo nome do autor, mesma nacionalidade e também é professor e crítico universitário em Nova Iorque, assim como o escritor Serge Doubrovksy. O livro parece ter sido, então, uma resposta de Doubrovsky àquela afirmação feita por Lejeune. É preciso entender que o trabalho de Lejeune foi fundamental em sua época. Quando ele se propôs a refletir sobre a autobiografia, os ecos da “morte do autor”, pregada por Roland Barthes, é que guiavam os estudos literários. Segundo a lógica estruturalista, o autor não faz parte do texto, pois não é linguagem, componente linguístico, ficando à parte nos estudos do texto. Por isso se falou em “morte do autor”. Segundo Foucault (2012), “não se trata da manifestação ou da exaltação do gesto de escrever, nem fixação de um sujeito numa linguagem; 7 O protagonista de um romance pode ter o mesmo nome de seu autor? Nada impediria que isso existisse, apesar de que seja talvez uma contradição interna que geraria alguns efeitos. Mas, na prática, nenhum exemplo se apresentou até agora (TRADUÇÃO MINHA). 40 é uma questão de abertura de um espaço onde o sujeito da escrita está sempre a desaparecer” (FOUCAULT, 2012, p. 35). Nesse panorama, o autor perdia sua força em relação ao texto, que ganhava sua independência em relação àquele. Não fazia sentido falar de autor, uma vez que ele era uma espécie de “entidade de papel”. Logo, a autobiografia era praticamente excluída dos estudos daquele período. Então, as reflexões de Lejeune, embora incipientes e revistas depois pelo próprio autor ao longo dos anos, foram fundamentais para trazer novamente à tona a relação da figura do autor com a obra. Em outras palavras, era o ressurgimento do autor nas discussões literárias. Lejeune inova com o seu “pacto autobiográfico”, uma concepção de contrato de leitura entre o autor e o leitor, o que seria inadmissível no ideário vigente de autonomia do texto. Esse contrato de leitura consiste nos princípios de veracidade e de identidade entre Autor, Narrador e Personagem-protagonista (A = N = P). O leitor toma o texto como a “verdade do indivíduo”, marcando assim a diferença entre romance e autobiografia (ou memórias). No romance, o compromisso com a realidade é flou, diferentemente da autobiografia, em que o pacto de veracidade traz consequências legais para o autor (ele é responsável pelo que afirma, seja isso verdade ou não, ele terá de se justificar, pois está comprometido). Tal comprometimento é impensável no campo romanesco, em que o princípio de invenção e de não-identidade caracterizam o gênero (FAEDRICH, 2014, p. 19). Lejeune, então, tem papel fundador no campo das reflexões sobre autobiografia e gêneros que a cercam. Ao longo dos anos, o próprio Lejeune reconhece a imaturidade de seu texto, mas corrobora a importância de se refletir nesse campo de trabalho. É partir dos estudos sobre autobiografia que “nasce” a problematização da autoficção. Parece então que a autoficção surge como um desvio fictício da autobiografia. Ela seria baseada, segundo Doubrovsky, em fatos inspirados da realidade que se tornariam autoficcionais segundo a maneira de contar a história. Celle qu’on propose toujours, depuis Fils, c’est « une fiction d’événements et de faits strictement réels ». Une des formulations à laquelle je me tiens aujourd’hui, c’est « une récit dont la matière est entièrement autobiographique, la manière entièrement fictionnelle ». Il ne s’agit pas de raconter ma vie telle qu’elle s’est déroulé, mais selon la façon dont les idées me viennent (DOUBROVKSY, 2014)8. 8 O que sempre se propõe, desde Fils, é uma “ficção de eventos e de fatos estritamente reais”. Uma das formulações na qual me atenho hoje é uma “narrativa cuja matéria é inteiramente ficcional”. Não se trata de contar minha vida tal como ela aconteceu, mas da maneira que as ideias me vêm. 41 Apesar de se contrapor (e dar um claro exemplo) à afirmação feita por Lejeune sobre haver a possibilidade de existir um romance no qual autor e narrador tenham o mesmo nome, as discussões sobre a autoficção só aumentaram e nem sempre os teóricos estão de acordo nas definições do termo. Há uma divergência de opiniões no que tange, por exemplo, à obrigatoriedade de nomeação do narrador remetendo ao próprio autor da obra. Outras divergências sobre o próprio material formulador da autoficção são também discutidas. Doubrovsky, apud Klinger (2007), entende ainda que a autoficção é uma espécie de desdobramento pós-moderno da autobiografia, sendo que, nesse cenário cultural, é impossível se escrever um livro de memórias que conte com exatidão tudo o que foi vivido e o que se vive, fazendo com que as experiências sejam, então, recriadas, reinventadas a partir da percepção do escritor. O autor francês passou boa parte da vida falando sobre o tema, uma vez que, além de escritor, ele também era professor de literatura e pesquisador, o que lhe dava propriedade para falar tanto do pensamento teórico quanto da prática autoficcional. Resumidamente, na visão de Doubrovsky, a autoficção estaria mais próxima da autobiografia do que da ficção. Vincent Colonna é outro estudioso importante acerca do tema. Em tese defendida em 1989, mas publicada somente em 2004, o teórico francês compreende a autoficção de uma maneira um pouco diferente. Para ele, essa técnica de “uma narrativa cuja matéria é inteiramente autobiográfica e a maneira inteiramente ficcional” defendida por Doubrovsky apud Klinger (2007) já existe e não é nova na literatura. Romances com características ou elementos biográficos já usam essa estrutura há muito tempo. Para ele, então, a autoficção seria uma projeção de um autor real em situações inventadas, imaginárias. A matéria seria autobiográfica e a maneira também, acompanhada dessa figura onomástica, ou seja, a presença de um ser na ficção que tenha o mesmo nome do autor – ou a ele se assemelhe por outras maneiras. Assim, entendemos que para Colonna (2004) a autoficção estaria mais próxima da ficção. Ao descartar o modelo doubrovskyano, que ele considerava como uma simples variante do “romance autobiográfico”, Colonna escolheu aplicar o termo “autoficção” ao conjunto de procedimentos de ficcionalização de si. De modo que a autenticidade dos fatos deixou de ser vista como condição de possibilidade: foi, ao contrário, a exploração do imaginário literário que passou a ser valorizada, sendo que o único critério de identificação aceito é o fato de que o escritor tome a si próprio como personagem de sua história e recorra à primeira pessoa ou até mesmo se designe de maneira mais indireta – com a condição, é claro, de que a identificação permaneça sempre óbvia aos olhos do leitor. Com Colonna, a fabulação deixa de se limitar a um período 42 situado sob o signo da “crise do sujeito”, mas se aplica a um conjunto exponencial de textos, sem limite histórico ou geográfico (JEANELLE In: NORONHA, 2014, p.133). Apesar de termos, como vimos, alguns temas e situações recorrentes na obra de Lísias, e que remetem demais às ações do autor real (enxadrista, escritor, entre outros), também há um distanciamento de si quando ele aposta nesse exponente de textos sem determinado limite, tal qual sua morte, sua prisão (Inquérito policial: família Tobias, 2016), ou mesmo sua gloriosa carreira como pintor e sua mudança para a Suíça para não pagar impostos (conto Autoficção, presente no livro Concentração e outros contos, 2015), fatos que existem somente no plano da ficção. Além de Doubrovsky e Colonna, outros autores se pronunciaram sobre o tema, concordando em alguns pontos entre eles e discordando de outros. Leyla Perrone-Moysés resume bem o panorama divergente de opiniões sobre o gênero autoficcional: A autoficção é um gênero novo? A definição fornecida pela Encyclopaedia Universalis é sucinta: “Autoficção: gênero literário reunindo o romance e as memórias, biografia romanesca”. Nem todos os autores e teóricos aceitam essa definição. Para uns, a autoficção não é necessariamente memorialística, pois ela pode ser um registro imediato da experiência. Para outros, a biografia é um gênero reservado às pessoas ilustres, narrando uma vida inteira, o que não é o caso da autoficção. Também há os que reivindicam o caráter absolutamente verdadeiro dos fatos narrados, e os que, pelo contrário, consideram que a autoficção é a invenção de um eu totalmente fantasioso (PERRONE-MOYSÉS, 2016, p. 207). Podemos ver que, apesar de quatro décadas depois do termo ser cunhado pela primeira vez, ainda há muita divergência e o termo ainda “flutua” e não está sedimentado. Entretanto, há quem acredite que essa variedade de leituras em relação ao gênero seja saudável. É o caso de Jean-Louis Jeanelle. Segundo ele, não haveria nada mais perigoso que o consenso em matéria de teoria. Afirma ainda que é o que parece estar acontecendo mais recentemente, pois “a autoficção é apresentada como um gênero ‘estabelecido’, correspondendo a uma classe bem determinada do campo das narrativas de si” (JEANELLE, In: NORONHA, 2014, p. 141). Do meu ponto de vista, concordo com Jeanelle. Nessa esteira de acordo/desacordo em relação ao gênero, Gasparini também entra na discussão. Em linhas gerais, ele dialoga com Colonna, acreditando que a autoficção baseia-se na homonímia do autor em relação ao protagonista, mas que ele a partir desse ponto em comum, daria “asas” à ficção. O gênero seria, então, um tipo específico de romance. 43 O pensamento de Lejeune (2008), em sua versão revista após os questionamentos iniciados por Doubrovsky, pega um outro caminho. Ele afirma que a autoficção é um tipo de obra que não pode ser caracterizada nem como biografia nem como ficção, pois reside justamente na ambiguidade entre esses dois polos. Logo, esse tipo de escrita de si consegue transitar entre esses dois lados, sem nenhum compromisso com a realidade e a verdade histórica. É o que pensa também a pesquisadora argentina Florência Garramuño. É claro que realidade e ficção não são indistintas; veja-se bem: são os textos que, ao se instalarem na tensão de uma indefinição entre realidade e ficção, perfazem uma sorte de intercâmbio entre as potências de uma e outra ordem, fazendo com que o texto apareça como a sombra de uma realidade que não consegue iluminar-se por si mesma (GARRAMUÑO, 2014, p. 21-22). Um leitor, ávido pela curiosidade em relação à vida privada, que procura desesperadamente a figura exata do autor em meio a uma obra de autoficção, não conseguirá atender aos seus anseios, justamente porque, como também pensa Klinger (2002), o autor dramatiza sua imagem, e seu personagem nada mais é do que uma construção, uma nova categoria entre o real e o fictício, sem nenhuma obrigação com a verdade absoluta. O que me parece, apesar dos grandes debates e desacordo, ser o grande ponto em comum entre os teóricos é a presença dessa tal entidade onomástica, ou seja, a existência de um protagonista que se assemelhe ao autor portando o mesmo nome que ele. Entretanto, a forma de aparecimento dessa entidade não é uníssona. A estudiosa brasileira Anna Faedrich (2014) diz que “nem sempre o nome da personagem estará explícito na autoficção”, mas que o pacto de autoficção continua porque “a identidade onomástica está ali por meio do não-dito”, mantendo seu jogo de “máscaras ficcionais” (FAEDRICH, 2014, p. 44). Segundo ela, há várias maneiras de se dar o pacto autoficcional. O nome do autor pode vir explícito dentro da narrativa, como faz Ricardo Lísias (2012, 2013) em O céu dos suicidas e Divórcio; o nome do autor pode aparecer apenas com as iniciais, como faz Gustavo Bernardo (2010) em O gosto do apfelstrudel; o livro pode estar escrito na terceira pessoa do discurso, como a “falsa terceira pessoa” empregada por Cris