UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” INSTITUTO DE BIOCIÊNCIAS - RIO CLARO SANÇÃO EXPIATÓRIA versus SANÇÃO POR RECIPROCIDADE: estudo exploratório em dez classes de Educação Infantil ROSEMEIRE MARQUES RIBEIRO ARCHANGELO Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação - Instituto de Biociências do Campus de Rio Claro, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como parte dos requisitos para a obtenção do título de mestre, sob a orientação da Profª Drª Áurea Maria de Oliveira. SETEMBRO - 2010 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO ROSEMEIRE MARQUES RIBEIRO ARCHANGELO SANÇÃO EXPIATÓRIA versus SANÇÃO POR RECIPROCIDADE: estudo exploratório em dez classes de educação infantil ORIENTADORA: Profª Drª Áurea Maria de Oliveira RIO CLARO 2010 Dissertação apresentada ao Instituto de Biociências do Câmpus de Rio Claro, Universidade Estadual Paulista, como parte das exigências para obtenção do título de Mestre. Archangelo, Rosemeire Marques Ribeiro Sanção expiatória versus sansão por reciprocidade: estudo exploratório em dez classes de Educação Infantil / Rosemeire Marques Ribeiro Archangelo. - Rio Claro : [s.n.], 2010 156 f. : il., gráfs. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista, Instituto de Biociências de Rio Claro Orientador: Áurea Maria de Oliveira 1.Educação pré-escolar. 2. Formação continuada - moralidade infantil. 3. Desenvolvimento moral. 4. Regras. 5. Castigo. 6. ECA. I. Título. 372.218 A669s Ficha Catalográfica elaborada pela STATI - Biblioteca da UNESP Campus de Rio Claro/SP iii CERTIFICADO DE APROVAÇÃO TÍTULO: SANÇÃO EXPIATÓRIA versus SANÇÃO POR RECIPROCIDADE: estudo exploratório em dez classes de educação infantil AUTORA: ROSEMEIRE MARQUES RIBEIRO ARCHANGELO ORIENTADORA: Profª Drª ÁUREA MARIA DE OLIVEIRA Aprovada como parte das exigências para a obtenção do Título de MESTRE em EDUCAÇÃO, pela Comissão Examinadora: Profª Drª ÁUREA MARIA DE OLIVEIRA Departamento de Educação/ Instituto de Biociências de Rio Claro Profª Drª ORLY ZUCATTO MANTOANI DE ASSIS Faculdade de Educação/ Universidade Estadual de Campinas Profª Drª TELMA PILEGGI VINHA Faculdade de Educação/ Universidade Estadual de Campinas Data da realização: 16 de agosto de 2010. iv Para Cristiano, Ana Beatriz, Isabelle e todas as crianças da escola pública que tem o direito de experenciar um ambiente pautado no respeito mútuo v AGRADECIMENTOS AGRADECER, originado do radical ‘grat’ (qualidade daquele que está debaixo da graça). Essa é a minha função nesse espaço e nesse momento. Colocar debaixo da graça as pessoas que trilharam comigo esse caminho e fizeram parte da minha história. Mas, como agradecer todas as pessoas que estiveram presentes nos momentos difíceis e nos mágicos? Afirmo uma única página não seria suficiente para colocar debaixo da graça todas as pessoas que, de certa forma, colaboraram para que eu conseguisse finalizar esse trabalho. AGRADEÇO, A solidariedade de meu companheiro e amigo, ANTONIO FLÁVIO, que possibilitou, por meio da assunção de vários papéis, a conclusão de meus estudos. Essa pessoa, durante dez anos, assumiu meu lugar de mãe para que eu pudesse ler, pesquisar, estudar, crescer. Muito obrigada meu AMOR. Ao apoio da minha família, principalmente, minha sogra NEUZA. Minha mãe MARIA DO CARMO, meu pai BENEDITO e minhas queridas irmãs: MARCIA por entender minhas ausências nas férias de julho e dezembro e a ROSELI por muitas vezes me substituir no fogão. As minhas noras, cunhadas, cunhados, sobrinhas, sobrinhos e todos que, de certa forma, contribuíram para e realização desse sonho. A compreensão de meus amados filhos, FLAVINHO e LUIS FERNANDO, sobre a importância, para nossas vidas, da continuidade de meus estudos e, dessa forma, colaboraram para que este se concretizasse. Aos docentes participantes dessa pesquisa. Aqueles que sem a generosidade e colaboração não seria possível concluí-la. Aos responsáveis pela Secretária de Educação dos três municípios estudados pela colaboração. As diretoras MONICA, VALCECI e CHRISTINA por compreender a difícil tarefa de conciliar o estudo com o trabalho e organizar meus horários com muita competência para não prejudicar um e detrimento ao outro. E, as companheiras de trabalho que entenderam minha ansiedade, minhas ausências, meu silêncio e muitas vezes meu tagarelar. vi As companheiras do GEPEM pela contribuição imprescindível, principalmente, ANA CAROLINA, CAROLINA, DAVID e FATIMA, especialmente a FÁTIMA, pois, os seus conhecimentos referentes à revisão do texto possibilitaram um melhor entendimento, concordância, coesão. Agradeço, ainda, as queridas amigas e companheiras de trabalho e estudo SILMARA BARROS, JULIANA POSSATO, VANESSA MAGRI pelo gesto de ouvir quando as angústias não cabiam mais em mim. E aos outros tantos amigos queridos, que entenderam a minha ausência durante esses anos de formação. Aos professores que encontrei pelo caminho e que, de certa forma, colocaram suas marcas nesse trabalho, na medida em que os conhecimentos adquiridos com suas contribuições foram determinantes em minha formação. A banca examinadora desse trabalho: PROFª DRª ORLY Z. MANTOVANI DE ASSIS e PROFª DRª TELMA PILEGGI VINHA, cujas contribuições foram preciosas na conclusão da pesquisa. A paciência e generosidade da minha querida amiga, mestre, exemplo e orientadora PROFª DRª AUREA. Sem as suas orientações, não teria sido possível realizar esse sonho. E quanta paciência! E finalmente AGRADEÇO a força superior que governa a minha vida com a proteção divina vii Encarem as crianças com mais seriedade Pois na escola é onde formamos nossa personalidade Vocês tratam a educação como um negócio onde a ganância, a exploração, e a indiferença são sócios Quem devia lucrar só é prejudicado Assim vocês vão criar uma geração de revoltados Tá tudo errado e eu já tou de saco cheio Agora me dá minha bola e deixa eu ir embora pro recreio... (Gabriel o Pensador) 8 SUMÁRIO SUMÁRIO ............................................................................................................................ 8 INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 13 1. A TEMÁTICA DA PESQUISA ....................................................................................... 13 1.1. Contextualizando o objeto de estudo ............................................................................. 13 1.1.1 Os documentos oficiais e os princípios educacionais ................................................... 23 1.2. O problema de pesquisa e os objetivos do estudo ........................................................... 35 O REFERENCIAL TEÓRICO ......................................................................................... 46 2.1 As regras e as sanções, segundo a perspectiva do desenvolvimento moral de Piaget. ...... 50 2.2. Os níveis evolutivos da noção de justiça e as sanções ................................................... 61 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS ..................................................................... 68 3.1. Os Instrumentos ............................................................................................................ 68 3.1.1. A Observação ............................................................................................................. 69 3.1.1.1 O roteiro de observação ............................................................................................ 71 3.2. Questionário .................................................................................................................. 72 3.3. A trajetória da pesquisa ................................................................................................. 73 3.3.1. O contato com a Secretaria Municipal de Educação, com as escolas e com os professores ........................................................................................................................... 73 3.3.2. Caracterização das escolas ......................................................................................... 74 3.3.3. Os sujeitos da pesquisa ............................................................................................... 78 3.3. Análise dos dados .......................................................................................................... 79 APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS DADOS ........................................................... 83 4.1. Apresentação dos dados da pesquisa .............................................................................. 83 4.1.1. Caracterização dos docentes: formação inicial, continuada e experiência docente na faixa etária....................................................................................................................... 83 4.1.2. Caracterização da sala de aula .................................................................................... 86 4.1.2.1. A organização do espaço físico da sala de aula ........................................................ 87 4.1.2.2. As relações sociais, que permeiam o ambiente pedagógico ...................................... 90 4.1.2.3. As regras de trabalho e de conduta ........................................................................... 94 4.1.2.4. Sanção expiatória e sanção por reciprocidade .......................................................... 96 4.2. Discussão dos dados coletados ...................................................................................... 99 9 CATEGORIA A: O uso da sanção expiatória como consequência da compreensão equivocada dos conceitos e/ou dos procedimentos morais .................................................. 101 CATEGORIA B: O uso da sanção expiatória como consequência da ausência de referencial teórico da moralidade infantil ........................................................................... 119 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................... 130 REFERÊNCIAS ............................................................................................................... 136 APÊNDICE A – Modelo de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ........................ 143 APÊNDICE B – Instrumento para coletas de dados questionário com questões fechadas e abertas ............................................................................................................................. 144 APÊNDICE C – Instrumento de coleta de dados: Roteiro pré-definido para observação direta.................................................................................................................................. 146 ANEXO A – Instrumento de coleta de dados: Município A ................................................ 147 ANEXO B – Instrumento de coleta de dados: Município B ................................................ 150 ANEXO C – Instrumento de coleta de dados: Município C ................................................ 154 10 RESUMO A legislação, nacional, foi palco da normatização da punição durante séculos e, as pesquisas demonstraram que a ausência de subsídios teóricos sobre a temática faz com que o docente, na atualidade, paute-se no senso comum e transfiram para a família e à legislação, a culpa pela lacuna em sua formação de base. Inúmeros casos de agressão dentro do ambiente escolar, publicados na mídia mostram que estamos vivendo um momento delicado o qual demanda mudanças radicais na concepção de educação e mesmo na organização da ação pedagógica. Nesse sentido, os cursos de formação continuada constituem-se enquanto um dos recursos para a melhoria da ação pedagógica trabalhando com os subsídios teóricos necessários à essa transformação. Iniciamos nossa pesquisa a partir da hipótese de que o docente, egresso de cursos de formação continuada sobre a temática da moralidade, no momento em que fosse necessário aplicar uma sanção esta seria por reciprocidade e não expiatória. Selecionamos três municípios, seis escolas e dez salas de aula, nas quais realizamos 200 horas de observação. Os dados demonstraram diferenças qualitativas nos ambientes estudados no que se refere a organização do espaço visando a operacionalização de uma ação pedagógica nos princípios da democracia, todavia, nos quesitos regras, cobrança das regras e sanção, os sujeitos dessa pesquisa recorreram ao uso da sanção expiatória em detrimento da sanção por reciprocidade. Esse estudo apontou para a necessidade de modificar dinâmica da formação continuada, que deve ser de alto nível, integrando teoria-prática no processo de ação, reflexão, inclusão de novos desafios, reflexão, ação. Com formações pontuais, locais, dentro do contexto das unidades escolares, envolvendo todos os profissionais. PALAVRAS CHAVE: desenvolvimento moral, regras, sanção, formação continuada. 11 ABSTRACT The legislation, national stage was the normalization of punishment for centuries, and research has shown that the absence of theoretical support on the issue makes the teacher, in actuality, is guided by common sense and transfer to the family and the law the blame for the gap in their basic training. Many cases of aggression within the school environment, published in the media show that we are living a delicate moment which demand radical changes in the conception of education and even the organization of pedagogical action. In this sense, continuing education courses constitute themselves as a resource for improving the pedagogical action working with the theoretical support needed for this transformation. We began our search from the assumption that the teacher and egress of continuing education courses on the topic of morality, when it was necessary to impose a penalty for this would be reciprocal and not scapegoated. Selected three districts, six schools and ten classrooms, in which we conducted 200 hours of observation. The data showed qualitative differences in the study regarding the organization of space aimed at the operationalization of a pedagogical action the principles of democracy, however, questions the rules, billing rules and penalties, the subjects of this study resorted to the use of expiatory instead of punishment by reciprocity. This study pointed to the need to change the dynamics of continuing education, which should be high level, integrating theory and practice in the process of action, reflection, adding new challenges, reflection, action. With ad hoc formations, locations, within the context of school units, involving all professionals. KEY WORDS: moral development, rules, punishment, continuing education. 12 Eu tô aqui Pra quê? Será que é pra aprender? Ou será que é pra sentar, me acomodar e obedecer? Tô tentando passar de ano pro meu pai não me bater Sem recreio de saco cheio porque eu não fiz o dever A professora já tá de marcação porque sempre me pega Disfarçando, espiando, colando toda prova dos colegas E ela esfrega na minha cara um zero bem redondo E quando chega o boletim lá em casa eu me escondo Eu quero jogar botão, vídeo-game, bola de gude Mas meus pais só querem que eu "vá pra aula!" e "estude!" (Gabriel o Pensador) 13 INTRODUÇÃO Não dê beliscões ou reguadas, puxe o cabelo porque não deixa marcas.1 1. A TEMÁTICA DA PESQUISA 1.1. Contextualizando o objeto de estudo Problemas relacionados à indisciplina dos alunos, aos conflitos de ordem interpessoais estão presentes nas conversas de professores entre uma aula e outra, nas reuniões de HTPC’s, nos cursos de capacitação continuada e/ou de extensão, nas salas de aula da universidade quando o discente atua enquanto docente, ou quando o futuro educador vai a campo realizar atividades de observação e regência, quesito necessário para as disciplinas de Estágio Supervisionado nos Cursos de Licenciatura. Relatos sobre ofensa ou desacato na relação aluno-professor ou aluno-aluno, assim como a não obediência às regras combinadas são constantes na fala de muitos educadores (e de futuros educadores). Agressões físicas ao docente por parte do aluno são mais raras, mas não deixam de ser citada, vez ou outra, provocando ,naqueles que ouvem, sentimentos que revelam revolta, indignação, inconformismo. 1 Instrução da diretora de uma escola pública a sua professora recém chegada, Apud in PEREIRA, 2000, p.10 14 Mesmo sendo um tema muito discutido em todo meio escolar, as soluções para o problema vêm, quase sempre, acompanhadas de um saudosismo da época “em que se podia expulsar o aluno da escola, dar suspensão, bater”! “Agora”, explicitam alguns, com certo desânimo, o que se faz é “chamar o pai/mãe para conversar, tirar o aluno da sala para conversar com a direção ou com a coordenação, encaminhar para profissionais especializados”, sendo possível perceber em suas falas um desconforto gerado pela situação não resolvida, ou até mesmo, um sentimento de impotência diante de uma atitude considerada indisciplinada. É como se o professor desconhecesse as orientações didáticas, propostas pelos documentos oficiais, sobre como agir diante de similar situação no cotidiano escolar. Podemos afirmar que o problema alcança dimensões maiores, pois desvela a ausência de um referencial teórico que subsidie a ação educativa no que tange às questões. Em 2003, realizei uma pesquisa com sujeitos que frequentaram a escola pública nas décadas de 60, 70, 90 e início do século XXI, com o objetivo de identificar os tipos de castigos escolares existentes nesses diferentes períodos e foi possível constatar como a lembrança das punições ainda estava viva na memória dos participantes desse estudo (ARCHANGELO, 2003). Entre os relatos, merece destaque a fala de alguns entrevistados: a) Um dos participantes do estudo ao relatar a punição de um colega de classe por ter desobedecido ao professor, afirmou que o ato do docente de “puxar a orelha” como forma de castigo causou “o descolamento parcial” da orelha do discente. Esse mesmo depoente afirmou ser comum em sua época de escola o aluno 15 receber “reguada” na cabeça quando emitiam respostas erradas às perguntas sobre o conteúdo transmitido pelo professor; b) Outro depoimento marcante foi o relato de um sujeito, que frequentou a escola rural no início da década de 70, sobre o castigo utilizado por uma docente cujos alunos eram filhos dos empregados da fazenda: a criança que desobedecia às regras existentes na sala de aula era obrigada a ajoelhar-se no milho! c) Um estudante, que cursou o Ensino Fundamental II no período de 90 a 2003, relatou que diante de dificuldades, ocorridas na relação professor-aluno e/ou no interior da sala de aula, os docentes atiravam, nos alunos, giz de lousa e apagador. Na fala desse sujeito ficou evidente que, além da dor provocada, o constrangimento causado por essa ação, era humilhante: “fico com vergonha”. Continua seu depoimento, ressaltando que a não identificação do elemento infrator implicava na aplicação de uma punição coletiva. d)Uma aluna do Ensino Fundamental I, quarta série, no ano da pesquisa, relatou o uso de castigos, tais como, colocar o aluno atrás da porta e/ou na frente da lousa. Interessante foi verificar explícito em sua fala que a reação do aluno punido era “fazer chacota pelas costas da professora”: mostrar a língua ou fazer careta, promovendo ainda mais o tumulto na sala. Na fala dessa aluna, essa ação não resolvia o problema, pois “os alunos gostam de ficar lá em pé, ficam fazendo gracinha”. 16 Os dados dessa pesquisa, realizada enquanto eu ainda estava no Curso de Licenciatura em Pedagogia, nos remete historicamente à defesa na utilização dos castigos corporais2, especialmente ao uso da palmatória, defesa essa pautada no argumento da maior eficácia para o disciplinamento que conduziria à “civilidade” (DALCIN, 2005). Esta autora investigou, em sua dissertação de mestrado, o uso dos castigos corporais no período de 1857 a 1882, nas escolas isoladas paranaenses e identificou a existência do castigo moral, além do corporal, assim como a prática de premiação dos alunos com melhor desempenho escolar. Essas três formas de educar (castigos físicos, castigos morais e as premiações) constituíram-se, segundo as palavras da pesquisadora, nos principais meios para disciplinar e punir e neste sentido, “o corpo dos alunos foi objeto de investimento e marcas que contribuíram para a sua formação e amoldamento” (idem, p. 119) durante o século XIX e boa parte do século XX. Os castigos escolares3, segundo a perspectiva de Sá & Siqueira (2006), constituem-se no reflexo de uma sociedade escravocrata. O fim da escravidão, a chegada dos imigrantes em nosso país e a adoção dos compêndios didáticos na instituição escolar foram os elementos precursores da abolição dos castigos físicos e contribuíram para o refinamento da introdução das práticas modernas de educar. Ou seja, com o advento da “modernidade percebeu-se que o castigo mais eficiente seria aquele que atingisse não mais o 2 O castigo corporal na escola foi introduzido no Brasil, no século XVI, pelos padres Jesuítas, com o objetivo de promover a obediência e o respeito à autoridade por meio de agressões física violentas tendo como uma das ferramentas de controle: a vara. (DEL PRIORE, apud ARCHANGELO, 2003). 3 Os autores nos informam em nota de rodapé, que os castigos físicos utilizados pelo sistema lancasteriano, método na época, eram muito mais violentos que os utilizados na segunda metade do século retrasado, os quais se restringiam à palmatória, aos genuflexos sobre milhos e o ficar virados para a parede. O sistema lancasteriano utilizava alto grau de violência, quer pelos instrumentos, ou pela simbologia e teatralização. 17 físico da criança, mas sim, sua alma”. (idem, p. 10). Dessa forma, os bolos das palmatórias foram substituídos pela sutil e silenciosa intimidação, quer por meio dos olhares ou pelas representações: orelhas de burro, rabos, ficar em pé ou fora do expediente da aula, entre outros. Era a introdução dos castigos morais no interior das escolas com o mesmo objetivo dos castigos físicos: garantir a ordem. Os pesquisadores supracitados realizaram um estudo sobre a abolição dos castigos corporais no interior das escolas de Mato Grosso, determinada pelo Regulamento da Instrução Pública do ano de 1872, o qual se consolidou com a aprovação da Emenda Constitucional de 15 de outubro de 1927, assinada por Francisco Campos, então Secretário do Interior em Minas Gerais. Os pais que não aceitaram a retirada do sofrimento físico escolar para educar seus filhos, os transferiram da escola pública para a particular, pois nestas, a família exigia que os docentes cumprissem com os rituais de punição. Afinal, estavam pagando para isso! Alguns mestres, por sua vez, comungavam com a idéia de que os castigos morais não eram suficientes para educar os alunos e organizaram um movimento em prol da manutenção dos castigos físicos, desde que autorizados pelos pais. À revelia dos Regulamentos, novos mecanismos foram utilizados. Os professores, proibidos de utilizar os castigos para controlar a classe, recorreram ao auxilio dos assessores4 (monitores de ensino), denominados como “decuriões”, que assumiam, entre outras atribuições, a incumbência de disciplinar os alunos utilizando-se das ferramentas necessárias, entre elas, a 4 A implantação da monitoria fazia parte do método lancasteriano implementado pela Lei de 15 de outubro de 1827 por D. Pedro I com o intuito de alfabetizar o maior número de pessoas em um mesmo espaço, que requeria um número significativo de regentes mirins capacitados - os decuriões. (SÁ & SIQUEIRA, 2006) 18 palmatória. Em outras palavras, o adulto não podia, por força da Lei, aplicar castigos físicos, mas essa proibição não era extensiva aos “seus auxiliares” de sala. Os educadores que se posicionaram favoráveis à utilização da sanção moral sofreram muitas críticas. Isso fica claro no depoimento de Egídio Ângelo Mamoré5 (apud. SÁ & SIQUEIRA, 2006, p. 06), ao afirmar que [...] abolido o castigo da palmatória, esforcei-me em estudar o meio de substituí-lo eficazmente pelos castigos morais, o que chegando a conseguir, tive a indiscrição de publicar um artigo alusivo no periódico Liberal (se bem me recordo, em um dos seus números do mês de maio de 1877), julgando que fosse acolhido com aplauso, mas qual não foi a minha surpresa vendo que assim havia eu erguido o patíbulo para meu suplício! Vime logo ultrajado pela imprensa, ridicularizado pelos apologistas da palmatória, e de esquina em esquina era eu objeto da mordaz censura, como bom bajulador do Inspetor Geral das Aulas, sem que nenhum dos meus gratuitos depressores se dignasse chegar ao menos às portas da minha escola para certificar-se da realidade. Tal era a incredulidade! Contudo, continuei por algum tempo a conservar-me brando e compassivo para com os meus alunos, e dando nesse mesmo ano três aprovados em exame final, fui elogiado pelo então Inspetor paroquial o Sr. Dormevil José dos Santos Malhado. O castigo físico na escola, enquanto algo necessário para a aprendizagem do conteúdo escolar foi abordado por Luckesi (1999), cuja justificativa pautava-se na relação que se estabeleceu entre a não aprendizagem do aluno e o não cumprimento da norma de estudar. Ou seja: se 5 Regente da 3ª escola pública de instrução primária, localizada na Paróquia da Sé, capital mato- grossense, o qual recebeu inúmeras críticas ao tentar cumprir com a normatização da abolição dos castigos físicos do ambiente escolar. 19 o aluno não aprendeu, foi porque não cumpriu com o seu dever de prestar atenção às aulas! Diante da falta cometida, tornava-se necessária a aplicação do castigo, visando à formação do moderno cidadão brasileiro. O pesquisador explicita que a gravidade do erro, segundo a óptica do professor, servia de medida para o tipo de castigo, o qual era legitimado pela família, que seria atribuído a fim de aprender a não errar mais. Para isso, recorriam à palmatória, aos grãos de milho ou feijão, a dor e a humilhação dos beliscões ou puxões de cabelo ou ainda ao martírio de permanecer em pé à frente da sala com os braços esticados e com o rosto virado para a lousa, ou as reguadas na cabeça, como apontado na pesquisa de Archangelo (2003). Atualmente, continua o autor, houve uma modificação no conteúdo das sanções, mas a estrutura permanece. A violência física existente no interior da relação educador-educando foi substituída pela “violência simbólica” de Bourdieu (1975), como uma nova estratégia do professor para conseguir a aprendizagem e o controle da sala. É o castigo de roupagem nova, que não atinge mais o corpo físico, mas a personalidade dos alunos. Com o intuito de esclarecer sua argumentação, Luckesi (1999) cita, entre tantas existentes, a chamada oral, enquanto um instrumento de poder criando um ambiente de medo, tensão e ansiedade entre os alunos. O fato é que, embora os castigos físicos estivessem proibidos, os professores, muitas vezes incentivados pelo próprio diretor, continuavam a aplicá-los (PEREIRA, 2000). As palmatórias e os beliscões foram substituídos por puxões de cabelos, com o intuito de continuar garantindo o silêncio e a imobilidade dos alunos. Isso fica claro na frase contida na dissertação de Pereira (2000, p.10) e dita pela diretora da escola ao orientar a professora 20 recém chegada: "Não dê beliscões ou reguadas, puxe o cabelo porque não deixa marcas”. A autora ao desenvolver seu estudo teve por objetivos: identificar a concepção de disciplina, segundo o professor; investigar a história de vida do educador com o intuito de verificar se havia uma relação entre a sua história de vida (habitus) e a sua prática pedagógica com relação ao disciplinamento em sala de aula. O estudo foi realizado com duas professoras: uma que atuou, em toda a sua carreira, apenas em duas escolas públicas de Ensino Fundamental I, a outra que exerceu o magistério nas diferentes etapas da Educação Básica, tanto na escola pública quanto na particular. Os critérios para a seleção destes sujeitos foram: estar exercendo o magistério na época em que os dados foram coletados, possuir praticamente o mesmo tempo de serviço no magistério, a utilização de diferentes estratégias de ensino e a boa avaliação de seu trabalho pelos pais e pela comunidade escolar. Os resultados do estudo apontam que, independente da história de vida dos sujeitos da pesquisa, o conceito de disciplina é definido como ordem, respeito, responsabilidade, organização e obediência. Um dado interessante que aparece na pesquisa supracitada é o fato dos sujeitos ficarem angustiados por não aplicarem os castigos que tanto os ajudavam até a década de 80. As professoras entrevistadas afirmaram que, com a chegada do ECA6 (Estatuto da 6 Art. 3º. A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade. Art. 17. O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, idéias e crenças, dos espaços e objetos pessoais. Art. 18. É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor. Art. 53. A criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho, assegurando-se-lhes: II - direito de ser respeitado por seus educadores 21 Criança e do Adolescente, Lei nº 8069/90) perdeu-se a autoridade do professor e consequentemente, o controle da sala pelos mesmos. Segundo o depoimento de um dos sujeitos do estudo, “sem ordem não há progresso, existem crianças que merecem castigos e precisam deles para cumprir o dever e aprender” (PERREIRA, 2000, p. 89). Chamou-nos a atenção o fato deste sujeito, em sua fala, fazer a apologia do castigo escolar e logo após admitir que, embora sentisse falta dos instrumentos de disciplinamento, tinha consciência de que os castigos resolviam os problemas por um curto espaço de tempo, argumentando que após a sanção a criança cometia novamente a mesma infração, sendo necessário castigá-la novamente, criando-se, dessa forma, um ciclo vicioso. Ainda nessa pesquisa, fica claro que no lugar dos castigos físicos surgiram novas estratégias para conseguir o controle da sala: cadeirinha do pensamento, dever extra, realização cópias sem um objetivo pedagógico específico, suspensão de atividades prazerosas aos alunos, tais como o recreio, a aula de artes, ou as aulas de educação física. Diante destes resultados, a grande questão é: se os castigos continuaram a existir com a adoção de novas estratégias, de que tipo de castigo o sujeito da pesquisa sentia falta? Em sua tese de doutorado, Pereira (2003) deu continuidade ao tema de pesquisa dedicando-se à análise dos registros de três escolas públicas de Ensino Fundamental e uma do curso Normal, no Estado de Minas Gerais, com o objetivo de buscar o entendimento para os problemas disciplinares no período de 1900 a 2000. A autora afirma que, na década de 60/70/80, os castigos físicos ainda estavam presentes na escola com os mesmos objetivos do final do século XIX, inclusive na Educação Infantil, onde surgiram com maquilagem e roupagem nova, mas de forma vexatória e constrangedora: as 22 crianças eram obrigadas a sentar na “cadeirinha do pensamento” para refletir sobre seu malfeito. A pesquisa de doutorado de Pappa (2004) teve como objeto de investigação a (in) disciplina e a violência escolar segundo a concepção de professores do Ensino Fundamental, em uma escola pública na cidade de Maringá, Estado do Paraná. Coletou os dados usando a pesquisa etnográfica com o recurso da observação, questionário semi-estruturado, entrevista e análise documental. Concluiu que a angústia de não conseguir controlar a classe e o não saber o que fazer diante dos problemas de indisciplina na sala de aula também assola a Educação no século XXI, mas com um diferencial: os professores anseiam pela compreensão de como agir diante dos conflitos nas classes. Deparamo-nos, aqui, com a mesma informação contida na pesquisa de Pereira (2003): o ECA surge como o responsável pela perda da autoridade docente diante dos alunos. Nas palavras de Pappa (idem, p. 06) Os resultados mostram que boa parte dos professores está sem saber o que fazer diante do atual quadro de indisciplina na sala de aula. Sentem-se subjugados, enfraquecidos, acuados por uma parte dos alunos, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e pelo Conselho Tutelar. Embora declarem que a indisciplina não esteja necessariamente relacionada com o desempenho escolar dos alunos indisciplinados, entendem que esses interferem negativamente, tanto no trabalho do professor, quanto no aprendizado dos demais. A maioria acredita que a escola está vivendo uma crise de autoridade e os professores sentem-se subjugados, tentam entender melhor o que está ocorrendo e questionam quais os comportamentos, ou atitudes, que devem adotar diante do atual quadro, querem refletir sobre como pensar o novo e redimensionar as relações de poder. 23 Diante das alegações dos sujeitos das pesquisas sobre a relação entre a perda de autoridade docente e a aprovação dos documentos oficiais, sentimos a necessidade de recuperar os princípios existentes na legislação nacional referente à educação e a sanção: a Carta Constitucional de 1988, o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº 8069/90), a LDBN (Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional, Lei nº 9394/96), os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), com o intuito de compreender as justificativas apresentadas. 1.1.1 Os documentos oficiais e os princípios educacionais A Carta Constitucional de 1988, que serve de parâmetro para as demais legislações, em seu artigo 205 prevê o pleno desenvolvimento da pessoa e o seu preparo para o exercício da cidadania, o que significa segundo Oliveira (2005), que a finalidade da Educação é a formação da pessoa. Elucida o seu raciocínio ao buscar em Contreras (2002) a definição para o conceito de pessoa humana. De acordo com o autor esse conceito deve ser entendido como [...] a tomada de consciência pelo sujeito de que ele está inserido em um conjunto maior de relações que vai além das organizações sociais, políticas ou religiosas e cujas ações devem estar de acordo com a prática da justiça,7 da solidariedade, da fraternidade8 e da generosidade9 (CONTRERAS, 2002, apud OLIVEIRA, 2005, p. 266). 7 “A justiça beneficia tanto quem é justo como quem é objeto de justiça [...]. Dito de outra forma, na justiça não é a particularidade de outrem que está em jogo, não é o desprendimento, mas sim a reciprocidade, vale dizer, o contrato. Assim, faz sentido alguém ao mesmo tempo sentir-se no dever de ser justo e no direito de exigir que o tratem justamente [...]. A justiça pertence a uma definição contratual de moral” (LA TAILLE, 2000, p.115-116). 8 Fraternidade aqui entendida como a tomada de consciência de que pertencemos a uma única e mesma família, ou melhor, a um único e mesmo gênero, como afirma Comparato (2004, p.66). 9 “[...] A pessoa generosa pode ser movida por um sentimento de dever: para ela é obrigatório conduzir-se com generosidade. Mas tal dever não é derivado de um direito alheio [...]. Vale dizer que a generosidade 24 A partir das explicações da autora, é possível deduzir que, preparar para a cidadania está muito além do simples ato de trabalhar com a informação sobre o conceito de direito ao sufrágio e a vida política. Significa [...] informar e despertar a consciência sobre o valor da pessoa humana, suas características essenciais, sua necessidade de convivência e a obrigação de respeitar a dignidade de todos os seres humanos independentemente de sua condição social ou de atributos pessoais (DALLARI, 2004, p. 42). Alguns autores (COVRE, 1993; DALLARI, 2004; SOARES BENEVIDES, 2004) afirmam que a Carta Constitucional, ao prever o preparo para o exercício da cidadania, nos remete ao princípio da igualdade, da democracia e da liberdade. Esses princípios estão contidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos e permeiam a elaboração do texto constitucional na maioria dos países. Mas, não é suficiente para que se organize a estrutura de uma sociedade democrática. Isso fica claro quando Covre (1993) afirma que Não devemos ser ingênuos e acreditar que a luta pela cidadania se restringe às leis, embora elas lhe sejam essenciais. As leis são instrumentos importantes para fazer valer nossos direitos, ainda que por meio de inúmeras pressões sociais. (p. 29) Complementando os princípios constitucionais e a Convenção Internacional dos Direitos das Crianças de 198910, o Estatuto da Criança e do traduz um respeito pelo próximo, mas este não é, no caso, um sujeito de direitos. Que a generosidade seja altruísta, não há dúvida: com ela age-se exclusivamente por amor ao próximo e o individuo generoso em nada beneficia-se materialmente de seu ato”. (LA TAILLE, 2000, p.115-116) 10 Tratado internacional, necessário depois de 41 anos da declaração dos Direitos Humanos de 1948 porque quando foi afirmada a declaração de 1948, os direitos humanos passaram a ser percebidos, 25 Adolescente (ECA), tão temida pelos educadores a partir do entendimento de que lhes retira a autoridade, substituiu o Código de Menores11. Foi promulgado a partir dos princípios contidos na Declaração dos Direitos Humanos12 e também pelos princípios nascidos das discussões ocorridas em 1924 na Declaração de Genebra13, que apontava para a necessidade de proporcionar à criança uma proteção especial. Segundo Souza (2002), havia uma grande preocupação internacional para a defesa dos direitos da criança desde o início do século XX, quando a extinta Liga das Nações e a Organização Internacional do Trabalho promoveram as primeiras discussões a respeito dos direitos da criança. A organização Internacional do Trabalho, em 1919 e 1920, adotou três Convenções que tinham por objetivo abolir ou regular o trabalho infantil. Em 1921, a Liga das Nações estabeleceu um comitê especial com a finalidade de proteger a criança e de proibir o tráfico de crianças e mulheres. Toda a discussão suscitada na Declaração de Genebra dos Direitos das crianças culminou na Declaração dos Direitos da Criança adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 20 de novembro de 1959. concebidos e aplicados somente para os maiores de dezoito anos. (SÊDA, Convenção sobre os direitos das crianças. Disponível em: www.redeandibrasil.org.br) 11 De acordo com os dados obtidos no Projeto ECA – 18 anos, divulgado no site da RED Andi do Brasil, em 1924 no Brasil, um Tribunal de menores é criado com o intuito de estruturar juridicamente a base para o primeiro Código de Menores, que fora promulgado, primeiramente em 1927, conhecida como Código Mello Matos, e posteriormente em 1979. Um retrocesso se considerarmos a Declaração de Genebra de 1924 em que há a preocupação de proporcionar a criança uma proteção especial e por se apresentar com um caráter discriminatório, associando a pobreza à “delinqüência” mascarando as reais causas, entre outras, advindas da desigualdade social. 12 A Declaração Universal dos Direitos Humanos é, em grande parte, resposta da comunidade internacional à intolerância étnica e racial verificada no final dos anos 30 e ao longo dos anos 40, na Europa. O holocausto, os campos de concentração, a morte de milhares de seres humanos, a maior parte judeus – além de comunistas, homossexuais e todos aqueles que se opunham à marcha dos regimes autoritários europeus. (ADORNO, 2009) 13 Essa Declaração não teve o impacto necessário ao pleno reconhecimento internacional dos direitos das crianças, por decorrência do próprio panorama histórico que se desenhava e do previsível insucesso das Ligas das Nações. (SOUZA, 2002) 26 A Declaração Universal dos Direitos da Criança é considerado o primeiro instrumento específico, surgido com real importância dentro da nova ordem internacional e formada por dez princípios básicos, onde se afirma, em síntese, o direito da criança: à proteção especial; às oportunidades e facilidades necessárias ao pleno desenvolvimento saudável e harmonioso; à utilização dos benefícios relativos à seguridade social, incluindo-se adequada nutrição, moradia, recreação e serviços médicos, educação e proteção contra todas as formas de negligência, crueldade e exploração. (SOUZA. 2002). Embora seja possível evidenciar a existência de uma preocupação internacional em assegurar os direitos de crianças e adolescentes, foi somente depois da Segunda Guerra Mundial, a partir da década de 50, que os países passaram, mais detidamente, a debruçar-se sobre a situação dos menores. Graças à criação da ONU (Organização das Nações Unidas) e de sua subsidiária específica para a criança – UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura). A Declaração dos Direitos da Criança14, promulgada em 1959, foi um marco histórico. Inaugurou uma nova forma de pensar a criança e o adolescente, dando-lhes um tratamento diferenciado e prioritário, considerando-os como seres humanos em desenvolvimento (ALMEIDA, 2005). Este documento reza em seu preâmbulo que, por meio da educação a criança estará: 14 Vale ressaltar que muitos dos direitos e liberdades contidos na Declaração dos Direitos da Criança já faziam parte da Declaração Universal dos Direitos humanos, aprovada pela Assembléia Geral em 1948. 27 [...] plenamente preparada para uma vida independente na sociedade e deve ser educada de acordo com os ideais proclamados na Carta das Nações Unidas, especialmente com espírito de paz, dignidade, tolerância, liberdade, igualdade e solidariedade. (Preâmbulo da convenção sobre os direitos da criança)15. A Convenção é um instrumento de direito que estabelece normas, deveres e obrigações aos países que a ela aderirem e cujo teor sugere princípios pelos quais o povo deve guiar-se. Partindo desse princípio, o governo da Polônia, por ocasião do Ano Internacional da Criança e das comemorações pelos vinte anos da Declaração dos direitos humanos, em 1979 apresenta à comunidade Internacional uma proposta de Convenção Internacional sobre os direitos da criança e isto porque as deliberações oriundas de uma Convenção16 conferem força de Lei Internacional, embora não admita o caráter de soberania aos direitos nacionais. De acordo com Souza (2002, p. 3), a [...] amplitude de participação no tocante à sua elaboração, permitiu que o projeto de convenção resultante acabasse por ser o fruto de intenso trabalho internacional, envolvendo as mais diversas disciplinas científicas e, principalmente, compatibilizando sistemas jurídicos e culturais diversos, criando um texto normativo cujos parâmetros são flexíveis, adaptáveis às diferentes realidades dos Estados Partes e, por isso mesmo, sendo referência para as políticas legislativas desses últimos. 15 Embora a Declaração de 1959 tivesse garantido a proteção das crianças e dos adolescentes, foi somente em 1988 com a promulgação da Constituição, que essa proteção vem se consagrar na legislação brasileira em seu art. 227 que vem embasar a promulgação do ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente –Lei 8069/90. 16 É importante destacar pautados em Souza (2002) que a Convenção surge como instrumento complementador da Declaração, não substituto, tomando os princípios de jus cogens, ou seja, normas decisivas gerais do direito Internacional, inalteráveis pela vontade das partes, dessa última como referência para o estabelecimento de compromissos e obrigações específicas que adquirem caráter coercitivo em relação aos Países que a ratificam. 28 Assim, dez anos depois, em 1989, as Nações Unidas constituíram um grupo de estudos com membros de uma organização não governamental para elaborar propostas para a Convenção. Esse grupo encaminha um texto para a Convenção Internacional dos Direitos da Criança, que depois de apreciado pelos membros do conselho foi aprovado por unanimidade17. Esse texto é considerado um tratado dos mais importantes na defesa dos direitos humanos e teve adesão de todos os países membros da ONU, com exceção dos Estados Unidos e da Somália. Nesse contexto de busca em defesa aos direitos infantis associado à grande participação popular, advinda dos movimentos sociais que representavam a sociedade civil, e ainda, com a participação de vários segmentos sociais envolvidos com a causa da infância, no Brasil ocorreram mudanças significativas na legislação de amparo à proteção infantil com a promulgação da Lei 8069/90 – ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente. Essas mudanças foram pautadas nos princípios dos Direitos das Crianças que estão contidos no artigo 22718 da Carta Constitucional19 e na Proteção Integral prevista na Declaração de 1959. O ECA, em seu artigo 18 normatiza a proibição da humilhação, da agressão verbal ou psíquica, e principalmente dos atos que culminam em agressão física ao 17 Em 02 de setembro de 1990, como demonstração do alto interesse e apoio suscitado em todo o mundo, a Convenção sobre os Direitos da Criança entrou em vigor, relativamente aos primeiros vinte Estados, assumindo um caráter de lei internacional, com força vinculante entre os Estados que a ratificaram. (SOUZA, 2002) 18 O artigo 227 da Constituição Federal foi fruto de uma emenda popular denominada "CRIANÇA, PRIORIDADE NACIONAL". Organizada pelas entidades: Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), Federação Nacional das sociedades Pestalozzi (FENASP), Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, Frente Nacional de Defesa dos Direitos da Criança (FNDDC) e Serviço Nacional Justiça e Não-Violência a emenda pretendia alertar para as grave situação da infância e da juventude brasileira além de criar condições de que a Constituição tivesse dispositivos que promovessem e defendessem os direitos das crianças e dos adolescentes. (SEGUNDO, 2003) 19 A Assembléia Nacional Constituinte, composta por 559 congressistas, foi instalada, em 1º de fevereiro de 1987, presidida pelo deputado Ulysses Guimarães. Um grupo se reuniu para concretizar os direitos da 29 afirmar que “É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor”. Para Soares (2004, p. 58-59), o princípio da dignidade do ser humano, contido nos documentos nacionais e internacionais dos direitos das crianças, não repousa apenas na racionalidade. Para explicitar sua argumentação, a autora traz como exemplo os objetivos do processo educativo, os quais buscam atingir não só a razão, mas também a emoção, isto é, parte do princípio de que o homem é um ser dotado de razão e sentimentos e exatamente por isso, é capaz de indignar-se! A dignidade enquanto princípio constitucional geral consiste na vedação à coisificação e instrumentalização do ser humano, o qual jamais deve ser tratado como objeto, mas sim, como sujeito de direitos (BRANDÃO, 2008). Em outras palavras, todos possuem o direito de estar em um ambiente escolar que respeite a sua integridade enquanto pessoa e durante seu processo de formação, a instituição deve propiciar diferentes oportunidades para que o educando possa vivenciar formas diferentes de resoluções de conflitos, contribuindo, assim, para uma educação que prima pela construção de princípios éticos, visando à organização de uma sociedade democrática, justa e igualitária. Dessa forma, a Lei de Diretrizes e Bases para a Educação Nacional vem confirmando a Constituição e em seu texto reza ser finalidade na Educação Básica o desenvolvimento dos aspectos físicos, sociais, psicológicos e intelectuais do educando, objetivando a aquisição de conhecimentos e habilidades e a formação de atitudes e valores. Os princípios que regem a criança e dos adolescentes contidos na Declaração dos Direitos das Crianças originado na Convenção Internacional dos Direitos da Criança. 30 Carta Constitucional e a Lei de Diretrizes e Bases para a Educação Nacional apontam para um ideal de educação a formação de pessoas éticas capazes de tomar decisões conscientes, críticas e transformadoras, assim como discernir as diferenças qualitativas entre os seus valores individuais e os sociais, desenvolvendo, dessa forma, sua autonomia (OLIVEIRA, apud VINHA, 2006, p. 98). Infere-se, a partir da literatura mencionada, que o conceito de autonomia não se reduz a simples independência para executar as coisas por si mesmo (o que seria auto-suficiência), mas sim, no sentido da construção da capacidade de compreender a interdependência oriunda, por sua vez, da construção do conceito de cooperação, de inserção no coletivo. Essa concepção é clarificada nos artigos e incisos contidos na LDB, mais precisamente no artigo 3º inciso IV, o qual prevê o apreço à tolerância e o respeito à liberdade, no sentido de ter o direito à sua vida, à sua pessoa, ao seu corpo. Dessa forma, o respeito à liberdade está diretamente atrelado no princípio do apreço à tolerância, entendida aqui como “aceitar o diferente sem abandonar sua própria identidade, seja ela cultural ou pessoal” (FREIRE, 2004, p. 02), utilizando atitudes não violentas na defesa dos princípios entre os pares20, o que significa ter a sua liberdade, sem excluir o direito à liberdade do outro. A busca pelo entendimento na História da Educação, para desvelar como os professores agiam em situações de indisciplina, ou conflitos nas relações interpessoais existentes nos ambientes escolares nos fez deparar com fatos, nos primórdios de nossa história escolar, de norte a sul de nosso país, sobre como os professores utilizavam-se dos castigos, fossem eles 20 Freire (2004) utiliza o conceito tolerância positiva, ou seja, a posição das pessoas frente as injustiças, ou a violação dos princípios éticos, se colocando em “não,aceitar, não compactuar com idéias inadequadas, tomar atitude contra elas, mesmo que muitas pessoas chamem a isso de intolerância [...]” (p. 15). Diferente da ideia errada de que tolerância representa a passividade ou a permissividade. 31 físicos e/ou morais, como forma de controlar a classe e educá-los. O que pretendemos nesse momento é situar essas práticas a partir do contexto histórico vigente como ferramenta nos ambientes escolares para resolver os conflitos existentes nas salas de aula. No método Lancaster, início do século XIX, as punições físicas eram severas, evoluindo para as menos agressivas, mas também, recheadas de violência: palmatória, genuflexos sobre milhos e feijões, puxões de cabelo e orelha, reguada entre tantas outras práticas expiatórias. No final do século XIX e início do XX, houve, conforme os apontamentos contidos em parágrafos anteriores, a extinção das agressões físicas e a normatização dos castigos morais. A substituição do castigo físico pelo castigo moral não significou ausência de violência e de autoritarismo na relação educador-educando porque o castigo moral possui como objetivo a humilhação pública do aluno (cadeirinha feia, orelha de burro, até as mais recentes, tais como, cadeirinha do pensamento, tapetinho da super Nany, entre outras). Acostumados a utilizar, como recurso para a manutenção da ordem, os castigos físicos e morais, com a aprovação do ECA, da nova LDB e da implantação das novas diretrizes curriculares, os educadores, segundo dados de pesquisa (PEREIRA, 2000; 2003; PAPPA, 2004), viram-se destituídos de autoridade no interior da sala de aula e atribuíram ao ECA e à progressão continuada o título de grandes vilões do final do século XX e início do XXI, na medida em que acreditam que a promulgação desses documentos os engessam frente aos problemas disciplinares que se apresentam no interior da escola e da sala de aula. Mas, nos perguntamos: o que de fato fez o ECA; o que realmente ele retirou da escola? Ao ler o documento, constatamos que a 32 grande contribuição do ECA foi a retirada dos castigos físicos e morais da sala de aula, os quais eram utilizados em grande escala com o objetivo de conseguir a observância de preceitos e normas através do medo, ou pela humilhação. Será que seriam nessas ferramentas, utilizadas pelos professores para punir os alunos, que originava a autoridade aos professores? Os princípios das legislações citadas nortearam a elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs, 1998), elaborados por uma equipe pedagógica do Ministério da Educação e do Desporto (MEC), organizando as diretrizes que perpassam os conteúdos escolares, afirmando que o objetivo da Educação Básica é formar para a cidadania, elegendo como princípios orientadores para a ação educativa21: a dignidade da pessoa humana, a igualdade de direitos, a participação e a co-responsabilidade pela vida social. A Educação, segundo esse parâmetro, é entendida enquanto uma “fonte efetiva de autonomia para o sujeito, condição para a participação social responsável” (PCN, vol. 2. p. 59). Assim, os pressupostos elaborados por especialistas da Educação têm como objetivo, dentre outros, contribuir para que os educadores desenvolvam uma intervenção pedagógica articulada com os ideais de democracia e do efetivo exercício da cidadania. Entendendo democracia no sentido amplo, ou seja, a democracia enquanto a “sociabilidade que penetra em todos os espaços sociais”. E a concepção de cidadania entendida, segundo os PCNs, como produto de histórias vividas pelos grupos sociais, sendo, nesse processo, constituída por diferentes tipos de direitos e instituições. “[...] compreendendo a cidadania como participação social e política, assim como 21 A inserção desses conceitos como princípios orientadores para a ação educativa objetivava uma sociedade mais justa e estável. Segundo Lima (2003) a proposta dos Parâmetros Curriculares salienta que a reforma curricular não é suficiente para se resolverem todos os problemas que afetam a qualidade 33 exercício de direitos e deveres políticos, civis e sociais, adotando, no dia-a-dia, atitudes de solidariedade, cooperação e repúdio às injustiças, respeitando o outro e exigindo para si o mesmo respeito”. (PCN, vol. 8, p. 9; 19 - 20). Assim, o princípio da cidadania propicia o despertar da consciência sobre o valor da pessoa humana, no sentido de respeitar a dignidade do outro na convivência entre todas as pessoas, não somente nos direitos adquiridos. (DALLARI, 2004, p. 42). Na leitura dos Parâmetros Curriculares Nacionais, mais especificamente nos Temas Transversais, há clareza de que o papel da escola é a organização de um ambiente no qual ocorra, além da educação intelectual, a educação moral. Essa afirmação pode ser encontrada na LDB quando normatiza que a educação básica tem a finalidade da Educação integral. Infere- se, a partir da leitura, que o educador, em sala de aula, deverá ocupar-se com a organização de um ambiente pedagógico que propicie a construção da autonomia cognitiva, social e moral do sujeito, por meio do planejamento de situações didáticas. Situações nas quais o educando possa construir um raciocínio mais elaborado, mais estruturado, ao mesmo tempo em que vivencia um ambiente cooperativo, onde as relações interpessoais devem estar pautadas no respeito, na justiça e na igualdade, ou seja, se valer dos procedimentos para a educação moral. De acordo com os Temas Transversais (PCN, vol 8, p. 25), a “reflexão ética22 traz à luz a discussão sobre a liberdade de escolha. A ética interroga sobre a legitimidade de práticas e valores consagrados pela tradição de ensino e da aprendizagem na escola; é necessária, ainda, a melhoria das condições de trabalho, da formação docente e dos recursos pedagógicos. (p. 73) 22 Vale apena ressaltar que nesse documento ética é utilizada como sinônimo de moral. 34 e pelo costume.” E continua o raciocínio, explicitando que o trabalho educacional com a dimensão ética “abrange tanto a crítica das relações entre os grupos, dos grupos nas instituições e perante elas, quanto à dimensão das ações pessoais”. Com base nos argumentos dos princípios contidos nos documentos oficiais, acreditamos que um modelo educacional voltado para a formação do cidadão crítico e autônomo não pode ser aquele que prioriza somente a ciência clássica em detrimento das necessidades sociais, pois assim sendo, estaria perpetuando uma sociedade pautada na desigualdade e nas injustiças sociais. (MORENO, 1997). Várias pesquisas, Piaget (1994), Devrie &Zan (1998), Vinha (1997), Tognetta (2009), La Taille (1998), Araújo (2011), Oliveira, (2006), Puig (2004), evidenciam que é possível organizar, no espaço de sala de aula, um ambiente propício às vivências reais de interação social enquanto fator de desenvolvimento cognitivo, social e moral. Nesse sentido, ao abordarmos o conceito de moral estamos afirmando que o mundo social é organizado por meio da elaboração e do respeito às regras existentes na sociedade, as quais são transmitidas, e/ou construídas pelos membros na interação entre pares, pautadas nos princípios éticos universais. Partimos, portanto, do pressuposto de que o educando “[...] tem que se adaptar às normas, leis, regras, hábitos, costumes e valores que a regem” (OLIVEIRA, 2006, p. 141). E nesse contexto, o ambiente escolar pode e deve organizar uma ação pedagógica com o objetivo de que o aluno participe da construção das regras sociais e morais entre pares, o que significa estar construindo a capacidade de raciocinar moralmente, ou seja, a capacidade de 35 distinguir entre seus valores individuais e os do grupo social ao qual pertence, coordenando a sua interação social por meio das noções de igualdade, responsabilidade, direitos, deveres, equidade e justiça. Esse pressuposto, por sua vez, está fundamentado nos trabalhos de Devrie &Zan (1998), Vinha (1997), Tognetta (2009), La Taille (1998), Araújo (2011), Oliveira, (2006), Puig (2004). Esclarecemos, também, que a Educação Moral é abordada nesses estudos mencionados anteriormente enquanto objeto do conhecimento a ser trabalhado dentro das unidades escolares, ou seja, o trabalho com as regras nas intervenções mediadas pelo docente, visando a construção de personalidades éticas, e exatamente por essa razão, consiste em procedimentos de Educação Moral. 1.2. O problema de pesquisa e os objetivos do estudo As angústias apresentadas pelos docentes, nos parágrafos anteriores, diante da indisciplina escolar e a crença de que o ECA retira de suas mãos a autoridade dos alunos, nos remete a analogia do mesmo comportamento de professores e pais do final do século XIX, quando questionaram os Regulamentos que aboliram a ferramenta de controle na escola: os castigos físicos. Se os educadores do século XIX, em sua maioria, perguntavam-se “como educar sem fazer uso do castigo físico?”, hoje as questões propostas são: como manter a disciplina na sala? Como manter a autoridade e o respeito se agora o ECA proíbe punir? E diante da “promoção automática” (esse é o entendimento de alguns educadores, em relação ao 36 conceito de progressão continuada), como os alunos podem aprender se não correm mais os riscos de serem punidos com a reprovação? Estudos realizados nos últimos anos confirmam as angústias desses professores relatados no parágrafo acima. Entre eles, o estudo de Malta Campos (2003) constatou que 83% dos docentes que atuam na Educação Básica consideram que, para a resolução dos problemas referentes à disciplina dos discentes deveria ser inserida no ambiente escolar a utilização de medidas mais severas com punições mais rigorosas aos alunos indisciplinados. Defendendo inclusive o uso de expulsões, caso necessário. Outro estudo relevante é a pesquisa realizada pela UDEMO – (Sindicato de Especialistas de Educação do Magistério Oficial do Estado de São Paulo), mapeando a violência escolar nas escolas do Estado de São Paulo. Na pesquisa realizada em 2001, ficou constatado que, entre as violências ocorridas com o maior índice, 90% dizem respeito às brigas internas envolvendo apenas alunos e 88% estão relacionadas ao desacato ou agressão verbal direcionados a professores por alunos ou responsáveis. Para minimizar o índice de violência, 69% das escolas pesquisadas inferiram que há a necessidade de contratar maior número de funcionários e inspetores, 66% optaram para maior participação da família, 63% preferem a contratação de psicólogos, 56% indicaram a implantação de projetos de conscientização e valorização da escola envolvendo pais/alunos/comunidade, 44% sugeriram a alteração do ECA – (Estatuto da Criança e do adolescente) e 22% defenderam o policiamento intensivo e permanente no ambiente escolar. Considerando que o maior índice de violência refere-se às agressões entre os próprios alunos, inferimos que, diante dos conflitos interpessoais, os profissionais da educação 37 acreditam que a sanção expiatória, a vigilância acirrada e as atitudes improvisadas pautam-se no senso comum e são necessárias para o “controle” do comportamento dos alunos. Em nenhum momento as escolas pesquisadas pela UDEMO propuseram o trabalho com as regras, as reflexões dos princípios que as regem, a organização do ambiente escolar visando à participação ativa do aluno, ou a discussão para a resolução dos problemas de agressões entre os alunos. Ficaram presos em eliminar o problema punindo de modo que expiem suas faltas para aprender. Os estudos de Fante (2003) e Leme (2006) sobre o cotidiano escolar, realizados em escolas públicas e particulares, apontam que o professor passa a maior parte do tempo em que está na Instituição Educacional em situações de conflitos interpessoais23, ou seja, 47% dos professores dedicam entre 21% a 40% do seu dia escolar aos problemas de indisciplina e de conflitos entre os alunos; o conflito entre os alunos é apontado pó 85,5% dos diretores como um aspecto muito importante para garantir o bom funcionamento da escola e do convívio escolar; os alunos concordam com a afirmação de que os conflitos aumentaram nos últimos anos. (52,0% dos alunos da 6ª série e 46,9% da 8ª série confirmam esse aumento). Além das pesquisas que apontam o crescimento da violência e dos conflitos entre os alunos nas instituições escolares, a desmotivação dos docentes com a profissão e a convicção dos professores que acreditam que a punição mais severa resolveria esses problemas, (UDEMO, 2001; TARDELI, 2003; MALTA CAMPOS; LEME, 2006). Os trabalhos de Vinha (2003), Vinha & 23 De acordo com os slides de palestra ocorrida no dia 25 de junho de 2008 pela Profª Drª Telma Vinha com o tema: A Educação e a construção de personalidades morais. 38 Tognetta (2007) e Kamii & Devrie (1991) apontam que os professores estão inseguros e despreparados para intervir de forma mais construtiva diante do quadro de agressões entre alunos e da quebra das regras, seja de forma intencional ou não nas unidades escolares. Quando estão diante de ações didáticas exitosas, trazem para si o sucesso dos ensinamentos, mas quando há fracasso diante da intervenção pedagógica, culpam a criança como sendo imatura, ou mesmo terceirizam para a família o seu insucesso. Nessa busca por estudos sobre a temática, deparamos com três pesquisas que nos chamaram a atenção: Vinha (1997), Shimizu (1998) e Assis (2007). Vinha (1997) teve como objeto de pesquisa a investigação sobre a relação entre capacitação teórica do educador e a transformação do fazer pedagógico docente na perspectiva do desenvolvimento moral de Piaget. A autora organizou um programa de formação continuada com duração de um ano, fundamentado na teoria construtivista piagetiana, dividido em módulos, num total de sessenta horas, abordando os seguintes tópicos: teoria psicológica do desenvolvimento da moralidade infantil, a relação professor- educando, os procedimentos para a educação moral. A participação do docente no curso de formação continuada (Fundamentos Teóricos e Prática Pedagógica para a Educação Infantil e Ensino Fundamental) ministrados pelo PROEPRE24 foi o critério estabelecido para a seleção dos participantes da pesquisa. Definido o critério, houve a seleção dos colaboradores em três grandes frentes: grupo experimental (alunos do curso de capacitação sobre a 24 Esse critério foi estabelecido por conta do tempo necessário para a pesquisa ser realizada e o PROEPRE escolhido porque em seu conteúdo trabalha com a fundamentação teórica pré-requisito para o aprofundamento nos estudos dos professores. 39 temática da moralidade, ministrado pela pesquisadora, os quais participaram, enquanto sujeitos de pesquisa, de um processo de intervenção por meio de reuniões pedagógicas e observações em sala de aula); 02 grupos de controle, sendo que o primeiro grupo continha docentes participantes do curso de capacitação, mas que não foram sujeitos do processo de intervenção e o segundo grupo foi composto por educadores que participaram do processo de formação continuada do PROEPRE, mas que não eram participantes desse curso de capacitação sobre a teoria do desenvolvimento moral, em específico. A coleta de dados ocorreu por meio da aplicação de pré e pós-teste, de um questionário e do processo de intervenção-formação. Tanto no pré quanto no pós-teste foram elaboradas histórias que continham situações do cotidiano pedagógico envolvendo conflitos interpessoais, com os quais os professores se deparam constantemente no seu dia-a-dia e construídas a partir das observações realizadas, anteriormente, pela pesquisadora. O questionário foi elaborado com o intuito de verificar o conhecimento do educador sobre o processo do desenvolvimento moral, visando estabelecer uma relação entre o nível de informação teórica e a sua relação com a práxis pedagógica. Esse instrumento foi aplicado antes do início do curso e do processo de intervenção. O resultado desse estudo, sistematizado na forma de gráfico, comprovou que os participantes do grupo experimental e do primeiro grupo de controle apresentaram mudanças, consideradas pela pesquisadora, fundamentais na maneira de relacionar-se com seus alunos e, também, progrediram no desenvolvimento da autonomia moral, o que não ocorreu com os sujeitos do segundo grupo de controle. 40 O estudo de Shimizu (1998) caracterizou-se pela investigação sobre as teorias psicológicas que poderiam embasar algum tipo de educação moral no ambiente escolar e constatou que os docentes da rede pública de ensino não conheciam em profundidade as teorias psicológicas que os auxiliariam nas tomadas de decisões referentes à educação moral. Evidencia que grande parte dos professores acredita que a moralidade de seus alunos é oriunda de exemplos familiares e/ou de influências religiosas, ou seja, pouca importância foi dada à escola nessa formação: é como se houvesse a crença de que o trabalho com o processo de construção de valores morais é responsabilidade única da família e a escola não pode interferir nesse processo. A ausência de um referencial teórico que subsidie a ação educativa no que se refere aos conflitos interpessoais é um fato. É possível inferir, a partir dos dados dessa pesquisa, a ocorrência do excesso de preocupação com os conteúdos curriculares em sala de aula, em detrimento da formação ética e moral do educando. Na pesquisa de Assis (2007), a autora a partir do problema de pesquisa: Qual a influência que o curso de extensão universitária PROEPRE – fundamentos teóricos e prática pedagógica para a educação Infantil (Edu 015) tem sobre a formação continuada dos professores? E entre os objetivos propostos verificou a influência da participação nos cursos do PROEPRE a partir dos resultados obtidos no teste situacional. Os sujeitos da pesquisa foram 141 docentes que atuavam nas redes municipais de educação de Campinas, Americana e Itapira, os quais participaram, em 2006, do Curso de Extensão Universitária “PROEPRE - FUNDAMENTOS TEÓRICOS E PRÁTICA PEDAGÓGICA PARA A EDUCAÇÃO INFANTIL”. Além desses colaboradores, 41 também foram sujeitos do estudo os professores que participaram da pesquisa de Cicone (1995), do qual participaram também da pesquisa de Vinha (1997). A coleta de dados ocorreu via aplicação de dois instrumentos: um questionário sobre dados demográficos25 e o teste situacional26, aplicado como pré e pós-teste. Após a coleta e análise dos dados, junto a esses colaboradores, Assis (2007) efetuou uma análise comparativa entre os resultados obtidos junto aos sujeitos participantes do processo de formação continuada em 2006. Depois, cruzou os dados com os resultados obtidos junto aos docentes do município que foram sujeitos da pesquisa de Cicone, que ocorreu em 1995, afirmando que, tanto no pré quanto no pós-teste, os participantes da pesquisa citada obtiveram um resultado significantemente melhor do que todos os participantes dos outros cursos. Assis (2007) justifica essa diferença qualitativa superior entre esses participantes devido ao trabalho supervisionado, às orientações da equipe da Secretaria da Educação, às trocas e às discussões que esses participantes realizam e pelo fato de ter sido implantado o Programa e não apenas realizados os cursos de formação continuada. 25Questionário contendo dados pessoais como: faixa etária do participante, tempo de experiência na Educação Infantil e formação profissional. (ASSIS, 2007, p. 166) 26 O teste situacional continha perguntas referentes a situações e problemas cotidianos comumente vivenciados pelos educadores. Faziam parte do referido instrumento 30 questões envolvendo situações relacionadas a aspectos cognitivos, afetivos e sociais. Ao ler a questão, o participante deveria responder a três proposições diferentes, que expunha como um professor agiu diante daquela situação. Em cada uma delas se apresentavam quatro alternativas: concordo muito (CM), concordo (C), discordo muito (DM), e discordo (D). O objetivo era analisar as ideias desses educadores diante das formulações propostas. Cada questão compreendia um valor que iria de 0 a 3 pontos de forma que a nota máxima atingiria 90 pontos. Em cada alternativa assinalada corretamente, o sujeito recebia 1 ponto. Porém, caso a resposta tivesse caminhado na direção correta, ele receberia 0,5 ponto. Exemplo: se a resposta correta fosse concordo muito (CM) e a resposta assinalada fosse concordo (C), o participante obtinha 0,5 ponto. Mas, se diante da mesma situação, ele respondesse discordo muito (DM) ou discordo (D), não obtinha pontuação. (idem, p. 166-167) 42 O que nos causou um desassossego no trabalho de Vinha (1997) foram os resultados do pré e do pós-teste, na categoria referente às sanções, onde, no gráfico apresentado, é possível perceber que não houve uma diferença significativa entre o grupo experimental e o grupo de controle. Ao tabular os dados sobre a sanção por reciprocidade, tanto no pré quanto no pós- teste, não houve nenhuma resposta considerada certa, embora tenha ocorrido um aumento considerável nas respostas consideradas como meio certa, o que significou uma diminuição, também considerável, das respostas avaliadas como erradas, no grupo experimental. Diante desses dados, a pesquisadora evidencia que os sujeitos do grupo experimental sabem responder que a sanção a ser utilizada para favorecer a construção da autonomia moral é a por reciprocidade, mas no momento de aplicá-la, no plano do julgamento tem dificuldade em reconhecê-la. Nas palavras da autora A sanção por reciprocidade era compreendida como uma forma de “vingança regulamentada”, isto é, “o pagar na mesma moeda” (corresponder àquilo que é feito da mesma maneira; retribuir o bem com o bem e o mal com o mal. Apesar de dar a entender que sabiam do que se tratavam, os professores apresentavam dificuldades em definir os conceitos de moral autônoma e heterônoma, e o de reciprocidade (relacionavam- na apenas com a coordenação de pontos de vista, esquecendo que a reciprocidade se refere à mútua coordenação das diferentes perspectivas e das ações). (VINHA, 1997, p. 941) Assis (2007), ao submeter o mesmo instrumento, teste situacional, utilizado por Vinha27 (idem) aos docentes que foram sujeitos de um curso de 27 Na pesquisa de Vinha o teste situacional focou nas questões do desenvolvimento moral, enquanto que na de Assis, houve a abordagem nos vários aspectos do desenvolvimento infantil, mas em nossa análise focamos, nas duas pesquisas, o desenvolvimento da categoria sanção, que em ambas as pesquisas tiveram resultados muito próximos com relação a comparação do pré e pós teste. 43 formação teórica obteve os mesmos resultados, ou seja, há um aprimoramento na forma de julgar as ações dos professores hipoteticamente no pós-teste. E, ainda, ao comparar os resultados obtidos no quesito sanção, entre os sujeitos participantes do curso de extensão, realizado em 2006 e os docentes sujeitos de uma ação continuada de formação do educador, em um município que passou pela implantação de um Programa de Educação Infantil, por meio de um Projeto de Formação Continuada28, evidencia a não existência de uma diferença significativa nos dados referente à forma como o educador emite sua resposta a respeito de como agiria diante das questões relacionadas à indisciplina, brigas, etc. Salientamos que na análise realizada por nós na comparação dos dados dos gráficos da categoria sanção, obtidos no estudo de Vinha e de Assis, por meio de situações hipotéticas, evidenciam que a capacitação teórica do docente é necessária, mas não suficiente para que o docente estruture, no seu cotidiano, as sanções por reciprocidade, visando à evolução da heteronomia para a autonomia. Assis (2007, p. 211) afirma nas considerações finais de sua pesquisa que somente a verificação no plano do julgamento não é suficiente e que é preciso coletar informações sobre a prática pedagógica utilizada por esses professores em suas salas de aula. Concordamos com as inferências pedagógicas das autoras supracitadas e a partir de suas contribuições, formulamos a nossa questão de pesquisa: no momento em que a sanção se torna necessária, existe uma diferença qualitativa na ação do docente que participou de um curso de formação continuada sobre o desenvolvimento moral da criança? 28 No Projeto de implantação de um Programa de Formação aos professores, além das aulas do curso, os educadores têm um acompanhamento sistemático da Secretaria Municipal de Educação na hora de transpor para suas classes os conteúdos estudados. (ASSIS, 2007. p. 212) 44 Os objetivos que nortearam o desenrolar desse estudo foram: a) Verificar, a partir da observação do trabalho pedagógico, junto aos docentes dos municípios que participaram e que não participaram de um programa de formação especifica sobre o processo do desenvolvimento moral: I.Como as regras de trabalho e de conduta são abordadas no ambiente de sala de aula; II.Quando a sanção se torna necessária qual é o tipo de sanção que o docente faz uso, com frequência. b) Discutir se a variável participação de um grupo de formação especifica sobre o desenvolvimento moral implica em uma evolução qualitativa na forma de trabalhar com as regras e de utilizar a sanção, em sala de aula. 45 Quase tudo que aprendi, amanhã eu já esqueci Decorei, copiei, memorizei, mas não entendi Quase tudo que aprendi, amanhã eu já esqueci Decorei, copiei, memorizei, mas não entendi Decoreba: esse é o método de ensino Eles me tratam como ameba e assim eu não raciocino Não aprendo as causas e consequências só decoro os fatos Desse jeito até história fica chato (Gabriel o Pensador) 46 O REFERENCIAL TEÓRICO No momento em que as crianças começam a se submeter verdadeiramente às regras e a praticá-las segundo uma cooperação real, formam uma concepção nova da regra: pode- se mudá-las, com condição de haver entendimento, porque a verdade da regra não está na tradição, mas no acordo mútuo e na reciprocidade. (PIAGET, 1994, p. 82) As pesquisas mencionadas, no capítulo anterior, demonstram a necessidade e a importância de um referencial teórico que subsidie o trabalho pedagógico com a questão das regras, normas e limites visando à formação de um sujeito autônomo moral e intelectualmente. Os estudos recentes sobre a moralidade infantil, os inúmeros desabafos dos professores e dos pais nos apontam indícios de que no espaço escolar é necessário pensar a organização do ensino e do ambiente educacional enquanto um local propício à formação intelectual e ética do educando. Isso porque o ambiente escolar é riquíssimo em situações rotineiras que possibilitam, ao educador, operacionalizar a ação pedagógica objetivando a construção da autonomia moral, social, intelectual. Torna-se necessário esclarecer que ao enfatizarmos a importância do ambiente escolar no processo de construção da autonomia moral do educando, não significa que defendemos e/ou compactuamos com a ideia da destituição da responsabilidade familiar no trabalho com o processo de formação moral. Afirmamos, sim, que a instituição escolar, mais precisamente, o espaço de sala de aula, se constitui em um recinto no qual a diversidade, a 47 pluralidade, assim como a singularidade e as histórias de vida de cada ator constituem-se em meios para a elaboração, a compreensão e a vivência da regra moral enquanto algo que regulamenta as interações interpessoais. Naturalmente que estamos cientes que, ao organizar a ação pedagógica com o processo de construção da regra, o educador deverá estar preparado para o momento em que se deparar com o não cumprimento das normas e regras que regem as interações sociais. No cotidiano escolar, esse comportamento ocorre, principalmente, por conta das características do desenvolvimento infantil, e saber como proceder diante do ato infracionário implica na tomada de consciência, pelo profissional da educação, de que ele deve conhecer como ocorre o processo de construção da moralidade infantil. Os Parâmetros Curriculares Nacionais, em seu volume dedicado à ética e aos Temas Transversais, “sugere” o trabalho com a sanção por reciprocidade como procedimento para o restabelecimento do equilíbrio diante da quebra das regras. De acordo com esse documento, as “[...] sanções mais justas, que mais promovem aprendizagem e desenvolvimento moral, são as chamadas sanções por reciprocidade”: elas guardam alguma relação com a ação repreensível do aluno (PCN, vol. 8, p, 84). E com o intuito de clarificar esse conceito questiona “[...] como punir as pessoas que picham paredes e monumentos? Colocando-as na prisão ou obrigando-as a limpar o que fizeram e até outras pichações?”. E continua sua argumentação, esclarecendo que a “[...] segunda solução é a melhor: assim as pessoas tomam consciência das dimensões e consequências de seus atos. E reparam o que fizeram, restabelecendo o equilíbrio”. (idem). De acordo com os documentos oficiais do MEC, a sanção deve ser 48 [...] justa, punindo os culpados e não os inocentes (como não optar por castigar uma classe toda simplesmente porque não se conhece o autor de algum delito); devem ser proporcionais aos delitos (como não optar por sanções severas demais apenas para que sirvam de exemplo). (PCN, vol. 8, p, 84). Nesse sentido, as pesquisas de Piaget (1932/1994) muito contribuíram para essa reflexão e nos parágrafos seguintes poderemos conferir como as crianças constroem as regras e a noção de justiça, ambas necessárias para o desenvolvimento moral infantil. Após a 1ª. Guerra Mundial (1914-1918) inicia-se um grande movimento pedagógico em torno de uma Educação para a Paz, voltada para a valorização do indivíduo, para as relações sociais e para a construção de um novo paradigma teórico. É o movimento da renovação pedagógica proposta no I Congresso Internacional de Educação, realizado em 1921, em Calais, França e que culminou com a constituição da Liga Internacional da Educação Nova em colaboração com 20 países, reunindo os pedagogos de maior prestígio do campo internacional em prol de uma Educação que visasse o respeito à pessoa humana, a construção da solidariedade e da fraternidade, sentimentos opostos à guerra e a violência (JARES, 2002). De acordo com o autor, o intuito de promover uma educação voltada para a paz possibilitou a inclusão no currículo dos chamados temas transversais, no qual se inseriu o trabalho com a Ética, com a finalidade de inserir “[...] atividades que levem o aluno a pensar sobre a sua conduta e a de outros a partir de princípios éticos” (PCN, vol. 8, p. 49), visando à formação de personalidades éticas. Diante dessa nova possibilidade, a grande questão que propomos é: o fazer pedagógico garante a formação de pessoas que contemplem esse 49 ideal? Durante palestras ministradas por nós, quando perguntamos aos professores que tipo de pessoas querem formar, é unânime o desejo de contribuírem na formação de pessoas justas, que respeitem o outro, fraternas, solidárias, cidadãs, ou seja, todos os educadores anseiam pela formação dessas personalidades éticas contempladas nos documentos oficiais. Entretanto, ao refletir sobre as falas dos educadores e os resultados das pesquisas acadêmicas evidenciando situações escolares nas quais os conflitos entre pares e entre educando – educador são constantes, torna-se necessário ponderar sobre qual o conceito de moral que deve subsidiar a prática pedagógica visando à formação do sujeito ético. La Taille (2002), apoiado em Taylor, defende a tese de que “as noções de Eu, de identidade, de personalidade são indissociáveis da moral” (p. 38), ou seja, nos constituímos enquanto pessoa nas relações com o outro e nesse sentido, o trabalho com a Educação Moral no ambiente escolar torna-se positivo, na medida em que possibilita a construção de sua própria identidade pautada nos valores éticos universais. Desse modo, os problemas existentes no cotidiano da sala de aula passam a ser resolvidos por meio das discussões em grupo, colocando o aluno na perspectiva do outro e verificando outros modos de pensar de agir, de raciocinar. Construindo e exercitando o diálogo e consequentemente diminuindo a indisciplina tão apontada ultimamente. (TOGNETTA & LA TAILLE, 2008). 50 2.1 As regras e as sanções, segundo a perspectiva do desenvolvimento moral de Piaget. A moral para Piaget (1994) é concebida como um sistema de regras que normatiza a vida em sociedade e torna-se necessário, segundo o pesquisador, compreender como o sujeito constrói o respeito por essas regras. O autor, ao elaborar sua teoria sobre o desenvolvimento moral, parte das ideias defendidas por Durkheim, que embora tenha se destacado enquanto um grande adversário dos castigos corporais, aplicados naturalmente em sua época, considerava-os necessários e, por essa razão, apesar de repudiar o castigo físico defendia a idéia de que a dor provocada pelos castigos deveria ser moral. O tipo de Educação defendido por Durkheim está voltado para a obtenção de uma silenciosa obediência por parte das crianças ou dos alunos, perpetuando a heteronomia, o conformismo. Piaget diverge de Durkheim, pois compreende a dor moral como sanção expiatória e afirma que na visão das crianças “a sanção que parece mais justa no estágio da cooperação é a que deriva da ideia de reciprocidade” (PIAGET, 1994, p. 274), continua seu raciocínio esclarecendo que, nas sanções por reciprocidade, a “autoridade não emana da revelação adulta, mas bem e unicamente do respeito mútuo autônomo” (idem). De acordo com a teoria piagetiana, o objetivo amplo da Educação é o de “desenvolver a autonomia da criança, que é, indissociavelmente, social, moral e intelectual”. (PIAGET, 1948, apud KAMII, 2006, p. 33). Em sua concepção de Educação, formar para a Liberdade exige como condição necessária a organização de uma ação pedagógica que priorize o desenvolvimento do “pensamento, da razão e da própria lógica” (PIAGET, 2002, p. 241). Ressalta, ainda, que o conceito de liberdade que surge por meio 51 da “cooperação não é anomia ou anarquia: ela é autonomia; isto é a submissão do indivíduo a uma disciplina que ele próprio escolhe e à constituição da qual ele colabora com sua personalidade” e com o desenvolvimento humano. (idem, 240). No que se refere ao desenvolvimento humano, Piaget (2007, p. 29) enfatiza que este está subordinado a dois grupos de fatores: Os fatores da hereditariedade e adaptação biológicas, dos quais depende a evolução do sistema nervoso e dos mecanismos psíquicos elementares, e os fatores de transmissão ou de interação sociais, que intervêm desde o berço e desempenham um papel de progressiva importância, durante todo o crescimento na constituição dos comportamentos e da vida mental. (grifo nosso) Com o intuito de desvelar os fatores de transmissão ou de interações sociais, o pesquisador investigou como a criança apreende a as regras morais que lhe são transmitidas pela maioria dos adultos, as quais recebem já elaboradas e antecipadas, sem considerar suas necessidades e seu interesse, impostas de uma só vez pela sucessão ininterrupta das gerações adultas anteriores. Dentro desse contexto, o autor genebrino realiza uma pesquisa recorrendo ao jogo de bolinhas de gude, a partir do qual faz uma analogia com as instituições sociais e identificando três tipos de regras: motora, coercitiva e racional. O primeiro estágio está relacionado com a regra motora, oriunda da inteligência motora, pré-verbal e pode ser confundida com o hábito por causa de sua regularidade e ritualização, cujas características estão presentes, teoricamente, no desenvolvimento da criança pertencente à faixa etária de 0 a 4 anos, aproximadamente. Apresenta como característica principal a presença de ações puramente pautadas no aspecto motor e individual, isto é, há a 52 ausência de regras propriamente ditas e a função da manipulação dos objetos é a satisfação de seus próprios desejos e de seus “hábitos motores”. A sucção pode ser compreendida no âmbito do hábito motor nos primeiros meses de vida e a ritualização desse hábito vai estabelecendo esquemas cada vez mais aprimorados, prevalecendo o jogo individual. O autor ressalta que nesse estágio não se pode afirmar que há a presença de regras coletivas e sim a presença das ações motoras, onde a criança, a partir dessas ações, procura entendê-las em sua natureza e acomodá-las a essa realidade a seus esquemas motores. (PIAGET, 1994, p. 36). Ao observar a ação da criança na posse de bolinhas de gude, constatou que antes de entender as regras de como se joga, ela manipula e se satisfaz com os desejos de descoberta, como por exemplo, o que a bolinha faz: rola? Pula? Brilha? Se atirar, qual a reação? É mole, dura? Tem cheiro? É fria ou quente? Passados esses primeiros momentos de descobertas e exploração, a criança utiliza esse objeto para satisfação dos desejos do ato de brincar, pois inicia o processo de simbolização (rituais que a criança explora e representa, por exemplo, fingir que dorme, ou a transformação simbólica das bolinhas em ovinhos). Superadas as descobertas da experimentação e a manipulação do objeto, o que permanece são as regularidades percebidas nas ações que se repetem com a brincadeira e é essa regularidade que propicia a criança experimentar as ritualizações e com isso as esquematizações. Piaget (1994) indica que a diversão causada pela exploração do objeto e a ritualização que advém desses momentos são praticamente o indício do aparecimento dos mesmos rituais existentes nas regras dos jogos. Ele acredita que esses rituais, conjuntamente com o símbolo individual, são condições necessárias para o desenvolvimento 53 das regras, apesar de não ser condição suficiente. O fato é que a regularidade apresentada nesses momentos de jogos simbólicos pelas crianças na fase motora, quando da manipulação do objeto, é o que há de comum com as regras coletivas. Ou seja, no início, a regra ainda não é coercitiva, mas desde muito cedo, “tudo exerce pressão sobre a criança para lhe impor a noção da regularidade” (PIAGET, 1994, p. 51). E é essa regularidade a característica principal do desenvolvimento infantil. Nessa faixa etária, todas as ações denotam a observação da presença da regularidade. Para o autor, até mesmo a visualização dos acontecimentos físicos rotineiros, como a alternância do dia e a noite, faz com elas percebam as regularidades no ambiente em que vivem. Outras fontes também os conduzem para a percepção da existência da regularidade, como a pressão de certas regras sociais que visam à segurança (não atravessar a rua sozinha, não colocar a mão no fogão quente, etc) ou regras de certas obrigações essenciais como os rituais existentes no dia-a-dia, referentes à hora de se alimentar, do banho, de dormir. Essa pressão do círculo social faz surgir o sentimento de obrigação a partir da aceitação, por parte da criança, das imposições de pessoas pelas quais sente respeito, demonstrando uma obediência passiva à ordem ou a regra estabelecida por parte de uma autoridade, sem que haja qualquer tipo de questionamento, de reflexão ou posicionamento do sujeito frente ao seu interlocutor. Em outras palavras, é da obediência às regras impostas pelos adultos e da imitação dessas que ocorre a superação da regra motora rumo à regra coercitiva, ou seja, a superação da anomia rumo a heteronomia, pois a criança entra no mundo da moralidade pela heteronomia e não pela autonomia. 54 O segundo estágio da prática da regra é evidenciado pelo egocentrismo, característica que, segundo o autor, é pré-social na medida em que marca uma transição entre o individual e o social, ou seja, é o marco no processo de socialização, junto com o aparecimento da linguagem, da coação adulta e da imitação, iniciado quando a criança percebe a existência das regras vindas do exterior, isto é, quando as recebe e as imita. O egocentrismo para Piaget (1994) é caracterizado pelo fato de a criança estar centrada em si mesma, não possuir a reversibilidade de pensamento, ou seja, não consegue colocar-se no ponto de vista do outro, por isso, cada criança joga por si mesma, embora esteja jogando com outra e acreditando que todas podem ganhar, pois não percebe que existem normas que estão acima de suas vontades e devem ser cumpridas no jogo social. Nesse sentido, o egocentrismo precisa ser superado para que a criança construa a sua autonomia, por meio da cooperação e consequentemente, a superação do respeito unilateral para o respeito mútuo. A superação do egocentrismo por si só não garante a construção da autonomia, mas pode ser o primeiro passo em direção a ela. Por isso, é necessário propiciar a descentração do pensamento, olhar na perspectiva do outro, vivenciando a reciprocidade e favorecendo o desenvolvimento moral, pois: No momento em que as crianças começam a se submeter verdadeiramente às regras e a praticá-las segundo uma cooperação real, formam uma concepção nova da regra: pode- se mudá-las, com condição de haver entendimento, porque a verdade da regra não está na tradição, mas no acordo mútuo e na reciprocidade. (PIAGET, 1994, p. 82) Esclarece que, por mais estritamente combinado que esteja o egocentrismo com o respeito unilateral, essa mistura da coação e 55 subjetividade, que caracteriza o estágio de dois a sete anos, é menos social que a cooperação. Observando a criança brincar durante o jogo de bolinhas, o autor descobre que, embora haja a imitação, a criança não se preocupa em jogar de acordo com a regra imitada. Sabe que existe, mas não a compreende e apenas imita o mais velho ou o mais informado, mas, “mesmo imitando o que observa e acreditando de boa-fé jogar como cada um, a criança inicialmente só pensa utilizar para si própria suas novas aquisições. Joga individualmente com uma matéria social: isso é egocentrismo” (idem, p. 40). Nesse estágio, também a comunicação entre as crianças pauta-se pelas pseudoconversas, com raros momentos de conversas reais e diálogo propriamente dito. Esse “monólogo coletivo” tem como características falar para si próprio e mesmo assim se sentir em comunicação com o outro. Durante o estágio da regra coercitiva, identificou a consciência da obrigação/obediência (final estágio egocêntrico e da metade inicial da cooperação). A regra aqui é entendida enquanto sagrada, inatingível e originada dos adultos. Os pequenos não aceitam suas modificações e caso isso aconteça, a criança considera que ocorreu uma transgressão, mesmo com o consentimento dos demais. O início desse estágio da consciência é caracterizado a partir da presença da imitação e do contato verbal com os parceiros jogadores, que despertam a vontade de seguir as regras exteriores. A postura de não querer modificar as regras é decorrente da imitação e do egocentrismo infantil, cuja característica é a deformação do entendimento do raciocínio, impedindo que o indivíduo reflita a partir da perspectiva do pensamento do outro. Mas, ao se deparar com uma regra nova, a criança acredita que ela já existia e essa é a razão pela qual não apresenta um 56 comportamento de resistência ao novo. “No seu íntimo”, a criança mantém “um respeito místico pela regra: as regras são eternas, devidas à autoridade paterna, aos administradores da cidade e mesmo ao Deus Todo-poderoso.” (PIAGET, 1994, p. 57). O respeito místico às regras é o indício de um pensamento gerido pela coação adulta ou das crianças mais velhas e a imitação dos maiores na prática das regras proporciona à criança a impressão de obediência a uma lei imutável, semelhante à obediência aos adultos. Embora as crianças sigam as regras dos maiores, não há a cooperação na ação e sim o respeito místico às normas, à participação coletiva. Para Piaget (idem) a cooperação só existe entre os iguais e o respeito a essas regras surge da coação do mais velho com os mais novos, permitido por causa do pensamento egocêntrico em que a criança se encontra. Para o autor, o nascimento da percepção na criança da existência de regras e o respeito a elas ocorrendo de forma unilateral, ainda são necessários para o desenvolvimento da moralidade infantil, mas o procedimento da intervenção do adulto e da forma de educar necessita possibilitar a superação do respeito unilateral, isto é, da moral da obediência para o respeito mútuo, pois caso contrário “conduziria ao mais rigoroso conformismo social”. (PIAGET, 2002, p. 242) O terceiro estágio da prática das regras, chamado por Piaget de cooperação nascente, tem como critério para identificação do seu surgimento o momento em que a criança modifica a compreensão do conceito de ganhar. Nesse estágio, ganhar não significa jogar para si próprio, mas conseguir mais bolinhas que seus colegas, seus adversários, o