unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP MICHELE FERNANDA SABINO GUBBIOTTI VIVÊNCIAS COMPARTILHADAS, MEMÓRIAS QUE SE ENTRELAÇAM: histórias de negros na Terra da Saudade ARARAQUARA - S.P. 2024 MICHELE FERNANDA SABINO GUBBIOTTI VIVÊNCIAS COMPARTILHADAS, MEMÓRIAS QUE SE ENTRELAÇAM: histórias de negros na Terra da Saudade Dissertação de Mestrado apresentada ao Conselho, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Ciências e Letras - Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestra em Ciências Sociais. Linha de pesquisa: Diversidade, Identidades e Direitos Orientadora: Profa. Dra. Amanda Cristina Danaga ARARAQUARA - S.P. 2024 MICHELE FERNANDA SABINO GUBBIOTTI VIVÊNCIAS COMPARTILHADAS, MEMÓRIAS QUE SE ENTRELAÇAM: histórias de negros na Terra da Saudade Dissertação de Mestrado, apresentada ao Conselho, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Ciências e Letras - UNESP/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestra em Ciências Sociais. Linha de pesquisa: Diversidade, Identidades e Direitos Orientadora: Profa. Dra. Amanda Cristina Danaga Data da defesa: 19/01/2024. MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientadora: Profa. Dra. Amanda Cristina Danaga Universidade Estadual Paulista - UNESP Membro Titular: Prof. Dr. Dagoberto José Fonseca Universidade Estadual Paulista - UNESP Membro Titular: Prof. Dr. Paulo César Cedran Centro Universitário Moura Lacerda Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara Aos meus bisavós maternos e a minha querida tia: Octacílio, Francisca e Tutu. Aos meus avós Marlene e Benedito; Aparecida e Adelino. (in memoriam) Aos meus pais e irmãos: Antônio, Cleide, Márcio, Cleiton, Lucas e Naira. A comunidade negra (e não negra) matonense, dedico. Para Lucas, Sara, Gabriela e Samuel. AGRADECIMENTOS Agradeço a Deus pela minha vida, pela minha família e pela saúde. Sou grata por todas as oportunidades que Ele me dá, algumas bem aproveitadas e outras não, mas acredito que isso faz parte da experiência humana. Agradeço aos meus três filhos; foram muitos “nãos”, “agora eu não posso” e “espera mais um pouco”. Essas frases não são fáceis de serem ouvidas nesta etapa da vida, em que não existe preocupação com o tempo. Sem entender, e com razão, a minha necessidade de concentração e pressa, na medida do possível, me ajudaram nesse momento da maternidade que não é retratado nas pinturas de quadro. Antes de um estudo finalizado, tem muitas roupas lavadas, comida pronta e a tentativa de não se ausentar. Para isso, os estudos ganharam o tempo noturno, ou acordar mais cedo, para estar mais disponível quando as crianças estivessem despertadas. Quem é mãe talvez consiga compreender, mas toda a minha caminhada é para nós. Há quem critique esses afazeres das mulheres, considerando que representam a construção de uma narrativa sobre os gêneros que impregna a sociedade. Uma provocação: imagine se todas não quisessem mais ter filhos e cuidar do outro; a humanidade estava fadada a sucumbir. Sara, a mais velha, agradeço pelo companheirismo e compreensão (e as inúmeras massagens nas costas). Gabriela, a do meio, pela doçura do rostinho rodeado pelos cabelinhos dourados. Ao Samuel, pelo olhar que mostra o encantamento com o mundo e que me desperta o sentimento de que somos sempre crianças se o quisermos ser. Agradeço pela paciência nos dias fora de casa, esperando-me para cumprir as obrigações do Mestrado. Sei que não foi fácil. Ao meu esposo, Lucas Gubbiotti, como ele mesmo diz: pai, esposo, motorista, agradeço pelos esforços que fez para eu chegar aqui. No primeiro semestre da Pós-Graduação, eu tinha aula de manhã e à noite, e o nosso percurso era grande. As crianças eram deixadas nas escolas em Matão às 7h da manhã; depois íamos para Araraquara, destino campus; Samuel ia para a casa da minha sogra, que mora em Araraquara (do outro lado da Universidade). Que cidade imensa! Meu esposo já seguia para Matão, pois teria que pegar a Gabriela na escolinha de Educação Infantil (EMEI Profa. Clarice Mendonça) e logo depois a Sara na outra escola de Anos Iniciais (E. E. Padre Nelson Antônio Romão). Iam direto para o campus, onde eu já esperava cerca de uma hora. Depois disso, ficávamos na casa da minha sogra até às 18h40, quando eu retornava ao campus, às vezes de carro, às vezes de ônibus, e às 23h meu esposo ia me buscar para voltarmos para Matão, com as crianças que haviam jantado e tomado banho. Descrevi este percurso porque tudo era importante para mim, mas impactava a vida de outras pessoas. Meu esposo perdeu um dia de trabalho, ficou horas no trânsito... Enfim, uma trajetória que se iniciava às 7h da manhã e terminava quase à 1h. Para que isso acontecesse, é necessário muita empatia e companheirismo. Espero um dia poder retribuir. Descrevo também esse esforço porque as palavras permanecem quando são registradas; pelo menos é o que se espera. Quero que isso sirva de pequeno exemplo para os meus filhos: nada muda se não formos à luta. Para mover o mundo, pelo menos o nosso mundo, é preciso mover-se primeiro. E tudo aquilo que se fundamenta na educação tem o potencial de transformar a vida das pessoas. Realmente, a educação é um tesouro a ser descoberto. Agradeço à minha querida sogra, Maria Elisa Atelli, por nos ter recebido em sua casa quando estávamos em Araraquara, auxiliando nos cuidados com as crianças, para que eu pudesse seguir a minha jornada com tranquilidade. Agradeço à minha mãe, Cleide, que mesmo sem expressar por palavras, suas atitudes mostram que ela torce por mim. Gosto de ir até a sua casa, sentarmos e tomarmos um café, e sempre peço que isso dure por muito e muito tempo, já que para sempre não é possível. Lá, sento-me debaixo das árvores, aprecio o céu azul e límpido, às vezes carregado de nuvens bem branquinhas, inspiro e expiro ar puro com muita força, renovando a vida a partir da natureza e do ambiente da infância. Agradeço ao meu pai, que mesmo distante, quando nos encontramos, sei que estou sempre nas suas lembranças diárias. Também agradeço aos meus irmãos. Cada um tem um pedaço na minha história: Márcio, Cleiton, Lucas e Naira. Quantas mãos estendidas na jornada da vida. À minha orientadora, Profa. Dra. Amanda Cristina Danaga, ainda a vejo mais jovem, escuto sua voz no passado e tenho sua imagem pelos corredores da UNESP de 2003-2007. Quando a Seção de Pós-Graduação me enviou um e-mail informando sobre minha orientadora, o nome não me era estranho. Então, busquei o álbum de fotografias da graduação e lembrei-me de tempos atrás. Terminamos a graduação juntas. A Amanda do passado agora é minha orientadora, que me ensinou a fazer uma etnografia, o que para alguns pode parecer óbvio, mas retorno à universidade depois de quinze anos, envolvida por uma abordagem malinowskiana. Não tenho palavras para descrever sua importância nesta dissertação. Foi inspiradora. Todas as minhas dúvidas mais cruéis eram sanadas em meia hora de conversa e com a indicação das mais valiosas leituras para meu contexto. Obrigada pelas leituras atentas, pelos apontamentos maduros carregados de conhecimento. Agradeço por esta trajetória de dois anos. Agradeço pela oportunidade que a Universidade me deu para ser facilitadora no Curso de Especialização da UNIVESP “Processos Didático-Pedagógicos para Cursos na Modalidade a Distância”, como bolsista. Foi minha primeira experiência de orientação a alunos de graduação. Agradeço aos professores Dagoberto José Fonseca e Edmundo Antônio Peggion por terem aceitado participar da minha banca de qualificação. Eu estava ansiosa para ouvi-los e as contribuições foram significativas para que meu estudo tomasse a presente forma. Mas a história é antiga, aproveito para agradecê-los por tudo o que fizeram pela minha formação desde a graduação em Ciências Sociais. Agradeço ao Prof. Dr. Paulo César Cedran por ter aceitado participar da minha banca de defesa. Agradeço a todos os meus entrevistados pela sensibilidade de compartilhar comigo as suas histórias de vida: Alba, Luiz Cezar, João Bento, Márcio, Marco, Élio, Juliana, Arlene, Cleide, Sérgio, Paulo e Iraci. Meus agradecimentos se estendem ao Sérgio Gabriel, do Jornal A Comarca, por compartilhar a série especial “A história dos negros em Matão”. Obrigada, Prof. Júlio Ribeiro, por ter me auxiliado neste processo. Por fim, agradeço àqueles a quem dediquei este estudo e são responsáveis pelas experiências com a comunidade negra matonense: aos meus bisavós e à minha tia Aparecida David, a qual gostava muito do seu apelido, Tutu. Eles me fizeram o que sou hoje, deram um significado especial à minha infância. Volto ao passado e penso, que sorte! Quando os pais se separam, às vezes as consequências podem não ser as melhores. No entanto, tive a sorte de ser cuidada por velhos, meus queridos antepassados. Que experiências incríveis e lugares de memória maravilhosos. Tudo o que vivi e todas as experiências “vividas por tabela” foi muito significativo para mim. É como se eu tivesse muito mais passado do que todos os anos que tenho de vida. Gratidão. “Recordar é preciso”. Conceição Evaristo (2008, p. 9) RESUMO Esta dissertação versa sobre memórias e procura resgatar histórias que foram negligenciadas pelos registros oficiais. Busca escrever textualmente as experiências dos negros em Matão a partir das narrativas individuais e das lembranças da pesquisadora. A hipótese é que essas experiências foram omitidas ou estereotipadas, o que mostra a necessidade de outra abordagem para evitar a perda dessas histórias na efemeridade das lembranças. O estudo procura preencher lacunas, enfatizando a importância da memória do negro em Matão e da oralidade na preservação das vivências de classes marginalizadas e racializadas que foram apagadas dos registros oficiais. Por meio da autoetnografia e da etnografia de histórias de vida, objetiva-se construir histórias de negros em Matão, no interior de São Paulo, considerando a perspectiva das presenças múltiplas, ou seja, negros e não negros contribuindo para o tecimento de uma história não observada no material oficial. O povoado surgiu uma década após a Abolição da Escravatura, apresentando significativa presença de pessoas negras no primeiro bairro e na incipiente cidade. Mais tarde, o surgimento do Clube Henrique Dias pôde demonstrar as configurações sociais da época que excluíam o negro por inúmeras razões, possivelmente como consequência do escravismo e das características da sociedade que se formava. Por meio das memórias, considerando também aspectos históricos da sociedade brasileira, a pesquisa busca registrar e compreender as experiências de uma população que foi apagada da história da cidade. Os resultados do estudo proporcionam um conjunto de informações a partir da perspectiva do próprio campo, contribuindo para a desconstrução de imagens retratadas na historiografia oficial, bem como o preenchimento dos vazios neste registro. Oferece, ainda, à comunidade negra matonense um espaço na história da cidade, sendo uma de inúmeras outras versões de histórias de negros. A combinação da autoetnografia com a etnografia de histórias de vida, isto é, a (auto) etnografia, segundo a pesquisadora convencionou denominar, auxiliou na construção desta narrativa, por meio da escrita das próprias lembranças e dos encontros com pessoas, negras e não negras, para falar dos negros na história do município. Não foi delineado um recorte temporal, pois os eventos que vêm à tona por meio da memória não seguem uma ordem cronológica. No entanto, ao investigar uma história de negros na cidade, o campo trouxe alguns tempos em específico, como as décadas de 1940 a 1980, lugares como a Vila Santa Cruz, as Fazendas do Cambuhy e situações como a impossibilidade de entrar em Clubes no Centro, fundados por imigrantes europeus. Ao resgatar e documentar as histórias nesta região, a pesquisa contribuiu para uma narrativa mais inclusiva do passado, ao reconhecer a relevância que cada voz desempenha na composição da identidade e da herança cultural de uma comunidade. Espera-se que o estudo seja uma inspiração para pesquisas futuras destinadas a reconhecer e preservar a diversidade e a riqueza de histórias de negros negligenciadas nos mais variados territórios. Palavras-chave: histórias de vida; história coletiva; identidade negra; negros em Matão. RESUMEN Esta disertación trata sobre memorias y busca rescatar historias que han sido descuidadas por los registros oficiales. Busca escribir textualmente las experiencias de los negros en Matão a partir de las narrativas individuales y los recuerdos de la investigadora. La hipótesis es que estas experiencias fueron omitidas o estereotipadas, lo que muestra la necesidad de otro enfoque para evitar la pérdida de estas historias en los recuerdos efímeros. El estudio busca llenar lagunas, enfatizando la importancia de la memoria del negro en Matão y de la oralidad en la preservación de las vivencias de clases marginadas y racializadas que fueron borradas de los registros oficiales. A través de la autoetnografía y la etnografía de historias de vida, se busca construir historias de negros en Matão, en el interior de São Paulo, considerando la perspectiva de las presencias múltiples, es decir, negros y no negros contribuyendo al tejido de una historia no observada en el material oficial. El pueblo surgió una década después de la Abolición de la Esclavitud, presentando una presencia significativa de personas negras en el primer barrio y en la incipiente ciudad. Más tarde, el surgimiento del Club Henrique Dias pudo demostrar las configuraciones sociales de la época que excluían al negro por innumerables razones, posiblemente como consecuencia del esclavismo y de las características de la sociedad que se formaba. A través de las memorias, considerando también aspectos históricos de la sociedad brasileña, la investigación busca registrar y comprender las experiencias de una población que fue borrada de la historia de la ciudad. Los resultados del estudio proporcionan un conjunto de informaciones desde la perspectiva del propio campo, contribuyendo a la desconstrucción de imágenes retratadas en la historiografía oficial, así como al llenado de los vacíos en este registro. Ofrece, además, a la comunidad negra de Matão un espacio en la historia de la ciudad, siendo una de las innumerables otras versiones de historias de negros. La combinación de la autoetnografía con la etnografía de historias de vida, es decir, la (auto) etnografía, según la investigadora ha convenido en llamar, ayudó en la construcción de esta narrativa, a través de la escritura de los propios recuerdos y los encuentros con personas, negras y no negras, para hablar de los negros en la historia del municipio. No se delineó un recorte temporal, pues los eventos que emergen a través de la memoria no siguen un orden cronológico. Sin embargo, al investigar una historia de negros en la ciudad, el campo trajo algunos tiempos en específico, como las décadas de 1940 a 1980, lugares como la Vila Santa Cruz, las Fazendas do Cambuhy y situaciones como la imposibilidad de entrar en Clubes en el Centro, fundados por inmigrantes europeos. Al rescatar y documentar las historias en esta región, la investigación contribuyó a una narrativa más inclusiva del pasado, al reconocer la relevancia que cada voz desempeña en la composición de la identidad y la herencia cultural de una comunidad. Se espera que el estudio sea una inspiración para investigaciones futuras destinadas a reconocer y preservar la diversidad y la riqueza de historias de negros descuidadas en los más variados territorios. Palabras clave: historias de vida; historia colectiva; identidad negra; negros en Matão. LISTA DE FOTOS Foto 1 - Construções onde foram o Bar (onde está escrito Tapeçaria), o salão de baile/pensão, a Escolinha de Educação Infantil para as crianças negras e de menos condições econômicas, depois a Escola de Datilografia (onde está escrito Princesa Isabel), atualmente a Tapeçaria Princesa Isabel. ......................................................................................................................... 57 Foto 2 - Batistério de Aparecida David (Tutu). ....................................................................... 61 Foto 3 - Octacílio David no carnaval de Matão. ...................................................................... 74 Foto 4 - Michele e Octacílio..................................................................................................... 81 Foto 5 - Capelinha construída na Vila Santa Cruz por Pedro Bernava na década de 1920. .... 88 Foto 6 - Michele e Francisca no quintal da casa na Vila. ........................................................ 92 Foto 7 - Fachada do Grêmio, atual Montreal Magazine. ....................................................... 105 Foto 8 - Parte da primeira página da ata da “Sociedade Matonense dos Homens de Côr”. .. 110 Foto 9 - Uso da expressão “colored”: massa colored (A) e Rainha Colored (B). .................. 124 Foto 10 - Concurso de Beleza Negra. .................................................................................... 130 Foto 11 - Visita de Erasmo Dias em Matão, no Clube Henrique Dias. ................................. 134 Foto 12 - Paulo Salim Maluf, em visita a Matão nas eleições de 1988. ................................ 136 Foto 13 - Desfile cívico na cidade de Matão na década de 1960. .......................................... 142 LISTA DE QUADROS Quadro 1 - Constituição da Diretoria Provisória da “Sociedade Matonense dos Homens de Côr” até que houvesse eleições conforme Estatutos. ............................................................. 112 Quadro 2 - Alteração de secretariado conforme o Artigo 18 do Estatuto. ............................ 120 Quadro 3 - Alteração de secretariado devido motivos diversos. ........................................... 121 Quadro 4 - Conselho Deliberativo elegido em 03 de abril de 1960 por meio de votação pública. ................................................................................................................................... 122 Quadro 5 - Demais membros elegidos em 03 de abril de 1960 por escolha do Conselho Deliberativo. ........................................................................................................................... 122 Quadro 6 - Nota de agradecimento àqueles que trabalharam na demolição e carregamento dos materiais adquiridos da Corinda S.A. para a futura construção do clube. .............................. 127 Quadro 7 - Constituição da Diretoria em 1967. .................................................................... 131 Quadro 8 - Constituição da Diretoria em 1970. .................................................................... 132 Quadro 9 - Substituição de conselheiro por motivo de falecimento, em 1973. .................... 133 Quadro 10 - Constituição da Diretoria em 1976 e 1978. ...................................................... 133 Quadro 11 - Referências sobre estereótipos e preconceitos na literatura didática brasileira na década de 1950. ...................................................................................................................... 144 Quadro 12 - Algumas características detectadas pelos estudos sobre representações das categorias étnico-raciais em livros didáticos brasileiros. ....................................................... 146 SUMÁRIO APRESENTAÇÃO ................................................................................................................. 15 1 O INÍCIO.............................................................................................................................. 19 1.1 Contextualizando a pesquisa .............................................................................................. 19 1.2 Considerações sobre o método ........................................................................................... 34 1.3 A respeito da escrita ........................................................................................................... 36 1.4 O “eu” no estudo................................................................................................................. 38 1.5 A jornada: buscas e encontros ............................................................................................ 40 1.6 A estrutura do texto ............................................................................................................ 49 2 ESCREVIVER ..................................................................................................................... 51 2.1 Lembranças partilhadas ...................................................................................................... 51 3 AS RELAÇÕES NA MATÃO DO PASSADO: OUTROS LUGARES .......................... 96 3.1 Entre o rural e o urbano ...................................................................................................... 96 4 “SOCIEDADE MATONENSE DOS HOMENS DE CÔR” .......................................... 109 4.1 Lugar de sociabilidade, solidariedade e política ............................................................... 109 5 IMAGINÁRIOS ................................................................................................................. 141 5.1 Retratos na educação: um olhar sobre o negro no contexto escolar ................................. 141 5.2 O negro nas narrativas oficiais ......................................................................................... 152 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................... 161 REFERÊNCIAS.................................................................................................................... 167 ANEXOS................................................................................................................................ 173 Anexo A - Lei n° 166, de 9 de dezembro de 1959 (Doação de propriedade do Município à Sociedade Matonense Henrique Dias) .................................................................................... 173 Anexo B - Lei n° 307, de 15 de dezembro de 1962 (Desapropriação e doação de terreno)... 174 Anexo C - Lei n° 418, de 5 de abril de 1965 (Doação de imóvel à Sociedade Matonense Henrique Dias) ........................................................................................................................ 175 Anexo D - História dos negros em Matão é contada .............................................................. 176 Anexo E - Dos caminhos do ouro ao café .............................................................................. 177 Anexo F - Cem anos de três ícones negros ............................................................................. 179 Anexo G - A liberdade de culto religioso ............................................................................... 181 Anexo H - O negro na galeria de prefeitos ............................................................................. 184 Anexo I - O esporte como fator de inclusão ........................................................................... 186 Anexo J - A trajetória da família Floriano .............................................................................. 187 Anexo K - O legado dos ingleses ........................................................................................... 190 Anexo L - Estrangeiros motivaram igualdade racial .............................................................. 193 Anexo M - Sociedade Matonense de Homens de Cor ............................................................ 195 Anexo N - A Mãe Gê e o Candomblé em Matão ................................................................... 197 Anexo O - Desafios da história local e cotidiana ................................................................... 199 Anexo P - Reportagem sobre a Vila Santa Cruz, Jornal “A Comarca” .................................. 201 Anexo Q - Membros da comunidade negra querem reerguer a Sociedade Matonense Henrique Dias ......................................................................................................................................... 202 Anexo R - Lei nº 5.619, de 07 de julho de 2022. Projeto de Lei nº 086/2022 ....................... 204 Anexo S - Portaria n° 29, de 01 de janeiro de 1949 ............................................................... 205 CADERNO DE IMAGENS ................................................................................................. 210 15 APRESENTAÇÃO Escrever esta dissertação representou a concretização de um projeto de vida, uma meta que havia surgido desde os tempos da graduação em Ciências Sociais, por volta de 2006. Embora tenha tomado inicialmente alguma forma na monografia, o projeto permaneceu no silêncio por aproximadamente quinze anos devido a inúmeras questões da vida cotidiana, até que no tempo oportuno o retomei. Caso as coincidências existem, foram muitas nesta trajetória, como ser orientada por uma companheira de turma na graduação ou examinar um assunto num momento em que outras pessoas também buscavam desvendar algumas partes dele para resgatar o Clube Henrique Dias, do qual tratei nesta pesquisa. Em vias de concluir o Mestrado participei do 3° Festival de Artes de Matão (FESTA) 1 , que aconteceu entre os dias 19 e 27/08 de 2022, em comemoração ao aniversário de 125 anos do município. Neste evento, na modalidade literatura, falei sobre a minha pesquisa na Pós- Graduação, a qual havia sido escolhida a partir de um Edital da Cultura 2 , por julgarem ser o tema interessante para a nossa cidade. Para discutir a temática, uma classe de ensino médio de um Instituto Federal do município foi convidada. Chegaram à Biblioteca Municipal acompanhados de dois professores: um deles foi professor de História do meu esposo em um curso técnico integrado e a outra professora era uma pesquisadora que o meu orientador na graduação, Prof. Dr. Dagoberto José Fonseca, havia me dado uma cópia da sua dissertação, para que eu tivesse algumas ideias de como poderia conduzir a minha proposta (Profa. Dra. Valquíria Pereira Tenório). Inclusive fiz algumas citações do seu trabalho. Neste dia falamos sobre estudos que estão sendo feitos na região e como o interior tem explorado a (re) construção das histórias que foram apagadas dos registros oficiais. Ao concluir a minha exposição, envolvida por diálogos, trocas, filmagens e fotografias, perguntei ao meu esposo sobre as suas impressões da apresentação. Ele compartilhou que em alguns momentos percebeu a minha voz embargada. Respondi-lhe que a entonação resultava da extensão do discurso. Naquele instante, omiti a profundidade do vínculo pessoal entre mim e a pesquisa, de forma que tratar sobre o tema desperta algumas 1 Documentário do evento disponível em https://www.facebook.com/watch/live/?extid=CL-UNK-UNK-UNK- AN_GK0T-GK1C&mibextid=FggW5e&ref=watch_permalink&v=5249965928461455. 2 Edital Cultura nº 01/2023 - Processos Criativos, disponível em https://www.matao.sp.gov.br/wp- content/uploads/2023/03/edital-01-2023.pdf. Fiz a apresentação do meu projeto na Biblioteca Municipal no dia 23/08 e depois no dia 14/11 em comemoração ao mês da Consciência Negra. 16 emoções e a subjetividade aflora. Talvez essa reserva fosse uma resposta a algum receio, semelhante ao vivenciado por Zora Neale Hurston, criticada por transitar entre a academia e a cultura. E quem sabe pelos argumentos de alguns críticos da autoetnografia, dizendo que o método é cercado pelas angústias do pesquisador. Por meio deste estudo se fala sobre um grupo que não é citado nos registros oficiais. Por esta razão, as histórias de vida são um meio para dar voz a essas pessoas que não são retratadas no material oficial. Quantas vezes nos encontros surgiu a pergunta: então, você se lembra? Ou aquela conhecida frase: “aí está alguém que não me deixa mentir” (BOSI, 2004, p. 406). São nestas questões que Bosi (2004) reforça que somos somente uma testemunha de nossas próprias recordações, as quais às vezes nós não cremos e apoiamo-nos no outro para que a nossa visão seja confirmada. Ainda, o encontro com velhos parentes faz o passado reviver de forma mais acentuada, o que não aconteceria na evocação solitária. Deste modo, a pesquisa foi conduzida por meio de encontros entre pessoas, seja de forma virtual ou presencial. São muitas histórias individuais que se cruzam para a escrita de uma história coletiva. Não busquei, obviamente, realizar generalizações que poderiam se caracterizar como verdades universais para o contexto, mas são trajetórias individuais que integram uma complexidade de relações sociais, revelando perspectivas significativas sobre determinados fenômenos. Mencionei a 3ª Edição do FESTA porque resultou na visibilidade do meu projeto e das nossas narrativas no município. Ainda, se dermos continuidade, os resultados podem ultrapassar as fronteiras das projeções que foram inicialmente estabelecidas. Os estudiosos de Benjamin (1987), ao analisarem a sua obra O Contador de Histórias, afirmam que a narração parece desempenhar um papel terapêutico. Segundo essa perspectiva, o processo de cura tem início quando alguém se dirige a um médico e começa a relatar para ele os sintomas. Da mesma forma, na infância, a criança que experimenta o medo inicia seu processo de cura por meio das histórias que os pais lhe contam antes de dormir. Assim a narração, ou seja, o ato de contar ou relatar alguma coisa seria como o início de um processo de cura, mesmo que Benjamin (1987) não tenha expressado essa ideia de maneira direta. Aqui estendo um pouco as reflexões sobre este autor dizendo, a partir da minha percepção, que a escrita inicia um processo de cura. Escrever as nossas histórias é a cura para o apagamento de um povo nos materiais oficiais. 17 O que sabem sobre nós, por vezes, chega impregnado de distorções. Para ilustrar: no dia do evento comentado, chegamos à biblioteca meu esposo, nossos três filhos e eu. Alguns dos responsáveis pela organização dirigiram-se a ele: o senhor quem escreveu o livro? Naquele momento o que percebi é que no imaginário das pessoas, certamente por alguma razão, aqueles capazes de produzir algo são os homens brancos. O que poderia produzir, no contexto acadêmico, uma mulher com três filhos, esposo, cuidadora da família e do lar? Neste evento em específico não abordo sobre a questão étnica, apesar de que o padrão “homem branco” já traria implícita a questão. Mas o contexto me fez entender que seria pelo fato de ser mulher. Nossas histórias estão na coletividade, dentro de cada pessoa que viveu ou ouviu as narrações dos antepassados. Faço, aqui, referência a Pollak (1992), sobre pessoas, acontecimentos e lugares. Quando o autor fala dos enquadramentos da memória, ou seja, como ela é constituída, aponta que existem pessoas, acontecimentos e lugares que estão em nossa memória porque tivemos uma experiência direta: visitamos os espaços, conhecemos pessoalmente os sujeitos ou estávamos presentes no acontecimento vivido. Mas também existem em nossa memória pessoas, lugares e acontecimentos “vividos por tabela”, ou seja, é uma experiência indireta, pois nos contaram sobre os lugares, sobre as pessoas e sobre os fatos. Bosi (2004) explora esta questão e diz que existem memórias que são tão nossas pelo fato de termos nos apropriado delas. Porém, na verdade, se trata de uma memória herdada e que está tão impregnada em nosso imaginário que não temos a certeza se experienciamos ou não tal fato. Estas são as memórias e lembranças que recolhi, as quais não são únicas, mas sofrem influências e nem por isso perdem a sua validade. Assim como Thompson (1992) reforça ao fazermos uso da entrevista para a coleta de dados: deixamos que o sujeito exprima livremente as suas narrativas, desenvolva as suas teorias sem sentido, use os seus argumentos, sem qualquer objeção ou expressão de discordância de nossa parte. Portanto, considerar e registrar as recordações das pessoas fez com que as histórias não desaparecessem na efemeridade das lembranças. Esta etapa finaliza uma meta e dá início às outras. Assim é a vida, como um ciclo, movimentada por objetivos. Quando um termina, logo outro toma o seu lugar. No percurso da pesquisa foi possível observar algum movimento da comunidade negra, termo que gostamos de utilizar desde o passado, para resgatar o espaço do Clube 18 Henrique Dias como lugar de conhecimento e memória. Trata-se de um objetivo que poderá colher os frutos desta pesquisa, pois ela evidencia histórias da sociedade. 3 Como diz Soares (2022), este estudo é de autoria coletiva. Documentos primários foram analisados, conversaram com as lembranças e a narração ganhou forma de escrita. Pela primeira vez, algumas de nossas memórias, que revelam muito da história de uma coletividade, podem tomar um lugar junto aos registros oficiais. 3 Reportagem sobre a reunião realizada pela comunidade negra no Anexo Q. Também disponível em http://www.acomarcanet.com.br/materia.php?id_materia=10876. Esta reunião aconteceu no dia 20 de janeiro de 2024, um dia após o exame de defesa. Os dados foram inseridos no tempo oportuno para revisão da dissertação antes de entregá-la à Biblioteca. 19 1 O INÍCIO Cada palavra uma folha no lugar certo. Cecília Meireles (2018, p. 17) 1.1 Contextualizando a pesquisa Esta é uma dissertação sobre memórias. Trata-se de uma (auto) etnografia. É a construção de um relato (escrita), sobre um grupo do qual faço parte (um povo), a partir de nós mesmos. É a elaboração de uma história por nós e por quem pode contribuir para falar para, por, de, com e/ou sobre nós. Falar “para, por, de, com e/ou sobre” se justificou nas vidas entrelaçadas entre pessoas (negras e não negras). Na cotidianidade compartilhada. Não é possível separar os sujeitos: é preciso compreender o discurso das presenças múltiplas, como diria Ribeiro (2006), o caldo que forma o povo brasileiro. Existe uma complexidade no uso das preposições citadas. Todas elas foram utilizadas na construção desta história. Somos todos afrodescendentes 4 falando a partir da diversidade 5 na tentativa de construir histórias de negros. 6 A escrita evidencia as minhas experiências individuais e as histórias contadas por aqueles que, em algum momento, foram moradores de Matão. Ao ouvir diversas vozes e aprofundar-me em suas narrativas, a escrita representa uma entre muitas versões, razão pela qual faço uso da palavra histórias. Caso utilizasse a sua versão no singular, poderia equivocadamente desconsiderar tantas outras que não foram aqui relatadas. Segundo Geertz (1973), a exploração de histórias individuais e narrativas locais pode auxiliar na compreensão profunda da riqueza e complexidade da cultura, contribuindo para uma análise mais completa e contextualizada da história coletiva. Assim, a pesquisa examina as experiências pessoais e as narrativas específicas da comunidade, servindo como base para uma interpretação abrangente da cultura e da história compartilhada por esse grupo. Considero também a perspectiva de Foucault (1971), em sua obra A Ordem do Discurso. Não trato aqui da relevância da voz sem nome, ou seja, a força que impulsiona o 4 Afrodescendente indica uma origem em comum, a ancestralidade africana de todos nós. 5 Faço referência às características observáveis, ou seja, ao fenótipo, conceito científico adotado em Genética. 6 Irei utilizar a expressão de negros para a fluidez da leitura e, no caso, ela irá carregar o sentido da complexidade de relações e formas de contar que atravessam o discurso: para, por, de, com e/ou sobre. 20 sujeito a falar, de forma que o discurso não é controlado exclusivamente por aquele que o profere, já que o contexto influencia. Não são todos os sujeitos falantes que têm igual acesso ao discurso e algumas regiões apresentam discursos mais bem controlados e definidos do que outras. A partir de sua teoria, Foucault (1971) também diz que a diferenciação no acesso e controle cria hierarquias de poder e, deste modo, sujeitos e instituições possuem mais autoridade e influência sobre o que é dito e aceito como válido no discurso do que outros que podem ser marginalizados ou excluídos. Essa reflexão da obra foucaultiana me fez considerar algo um tanto óbvio: na construção de histórias de negros o próprio campo teve autoridade para construí-la. Combinou a autoetnografia, assim como fez Soares (2022), ao escrever sobre o povo Karipuna do Amapá, sendo uma jovem Karipuna, com a etnografia de histórias de vida, pois partes do texto se concentra nas minhas próprias experiências e outras buscam narrar as experiências de outras pessoas. Ouvi tanto as vozes negras quanto às perspectivas de pessoas não negras ao tratar de nós. Essa escolha se justifica ao considerar que, se fizesse uma abordagem diferente, correria o risco de reproduzir o que muitas vezes foi feito pela história oficial: apagar grupos e pessoas dos discursos. Estaria assim permanecendo com aquilo que se busca desconstruir, ou seja, uma narrativa na qual a presença do outro não é reconhecida, e quando o é, acontece de forma estereotipada. A representação do branco como personagem ausente faria cometer as injustiças que foram e ainda são cometidas. Dessa forma, somos uma única raça escrevendo histórias de negros. A expressão de negros também pode ser entendida a partir de uma inclusão implícita: negros e não negros compartilham e entrelaçam histórias. Neste estudo busco escrever histórias de negros porque ela é negligenciada nos registros oficiais. As narrativas minhas e de outras pessoas auxiliam nesta construção. Segundo Munanga (2022), toda a diversidade, como a cor da pele, deveria ser entendida como a riqueza da humanidade, porém foi base, por exemplo, para o racismo. E assim alguns grupos foram apagados da história. Portanto, uma versão de muitas outras histórias de negros é escrita por meio de várias contribuições, principalmente a partir da oralidade. Minha intenção é elaborar uma história que possa ser fundamento para pensarmos numa história coletiva a partir das experiências compartilhadas entre pessoas. Essas 21 experiências passaram pelas gerações 7 e é fonte para os contadores de histórias (BENJAMIN, 1987). “Você tem que ir à tradição oral. Para as pessoas que foram dominadas, não há história, não há passado. Estas pessoas não têm voz. Portanto, você tem que ir ao contador de histórias” (CHAMOISEAU, 2018, p. 33). A escrita atravessa gerações e conecta experiências sobre um determinado tempo. Procurei saber de nós, mas o recorte temporal não tem medida, assim como as lembranças não possuem uma lógica temporal: a linearidade não lhe é característica. É válido reforçar que procurei vasculhar o tempo mais distante possível, o que justifica a construção de uma história por meio de lembranças. Fundamentando-se na memória coletiva proposta por Halbwachs (1968), que destaca a influência do contexto social na construção das lembranças, esta pesquisa busca compreender como as narrativas se cruzam com a trajetória histórica e social. E assim, como se procurou “ver imagens, ouvir vozes de um passado distante” conforme aponta Cunha (2004, p. 8), existindo, portanto, uma distância temporal entre o vivido e algumas lembranças compartilhadas por meio da oralidade, aproveito para fazer uma consideração sobre a memória. Conforme os pressupostos de Halbwachs (1968), a memória não é única, pois sofre influências. Uma memória não é somente uma lembrança individual e objetiva sobre os eventos, mas ela se molda de forma contínua, sendo influenciada pelas interações e estruturas sociais do lugar onde o sujeito está inserido. Portanto, as lembranças podem receber percepções e significâncias distintas no decorrer da vida. Na obra de Proust (1909-1922) Em busca do tempo perdido 8 , observamos a perspectiva do autor sobre como nossas memórias são influenciadas pelas emoções, circunstâncias presentes e perspectivas pessoais, o que dificultaria a transmissão exata das nossas experiências para os outros. Dizia ainda que nunca poderemos narrar o vivido. Para reforçar, Benjamin (1987), na mesma medida, afirmava que a narração não procura transmitir o acontecido em si, mas tece até encontrar uma forma adequada. Considerando por outro lado a História, também foram observados os registros oficiais pertinentes ao tema do estudo, pois a teoria se entrelaça na cotidianidade e está presente nos dados que recebem um tratamento analítico. Peirano (2014) afirma que muitas vezes a vida é 7 Não trato aqui das experiências que se transformam nos ditos populares, como faz Benjamin quando analisa os contos de Nikolai Leskov, mas das vivências que os mais velhos contam aos mais jovens a partir das lembranças do tempo passado (BENJAMIN, 1987). 8 Esta referência à obra de Proust (1908-1922) considera uma percepção sobre a memória e a narração do vivido a partir do conjunto de sete obras, cujas reflexões foram apresentadas III Seminário do Grupo de Pesquisa Literatura e Tempos Sombrios - Literatura: gestos de resistência de 08 a 11 de agosto de 2023. 22 uma repetição da teoria, a qual não envolve apenas o trabalho da escrita. No entanto, o pesquisador vai ao campo de espírito aberto. 9 O pesquisador se fundamenta em teorias, mas elas não devem produzir de forma predeterminada conceitos a partir dos quais os eventos serão analisados, pois é preciso que se considere o que o campo tem a dizer, já que o processo etnográfico implica numa recusa de orientações previamente definidas, pois elas podem levar a equívocos. Esta reflexão é tão concreta, uma vez que, ao retornar do campo, precisava reestruturar meu texto com base nas novas informações colhidas. Esta pesquisa, portanto, é um encontro com pessoas. Um encontro com as próprias lembranças. Constituiu-se num trabalho de campo realizado a partir do diálogo vivido, apresentado por meio da escrita (PEIRANO, 2014). Com as nossas lembranças, tentou-se, portanto, escrever histórias de negros. Inicialmente, o meu ponto de partida era a Vila Santa Cruz, chamada de “boca do mattão” em fins do século XIX. Vindo de Araraquara, passando por Silvânia, depois de cruzar várias fazendas, no Bairro do Retiro iniciava-se a Vila Santa Cruz que foi primeiro a Vila Raposo. Talvez eu estivesse atravessada pela subjetividade tão discutida dentro das Ciências Sociais, já que a Vila é território dominante na minha trajetória. Este bairro foi local onde os negros estavam em sua maioria, conforme a história oficial. Também foi o ponto de partida de Matão, pois bairro e cidade nasceram juntos e cresceram juntos. Em geral, pode-se dizer que o recorte espacial é a cidade de Matão, apesar de a Vila ter se mostrado protagonista em muitas questões que foram aqui exploradas, não porque se tenha dado enfoque ao território, mas pelas informações que o campo trouxe. Conforme Peirano (2014), os etnógrafos são ávidos pelo conhecimento do mundo, não se satisfazendo com verdades estabelecidas e estão dispostos a abrir-se ao imprevisível, questionar evidências e permitir que as descobertas os surpreendam. Assim, menos certezas são compartilhadas e as dúvidas permitem mais liberdade intelectual para explorar e compreender o mundo de novas maneiras. Por meio das informações que o campo traz, o trabalho da escrita fica numa intersecção entre o dito, o observado e a tradução desses elementos. Os aspectos da História podem auxiliar neste processo, já que para compreender o presente muitas vezes é preciso conhecer o processo histórico que o constituiu. Mas não se trata aqui de um processo rígido, 9 A expressão “ir ao campo de espírito aberto” é uma paráfrase da professora Maria Aparecida Chaves Jardim, que sempre frisou este aspecto em nossas aulas de Teoria e Metodologia em Ciências Sociais. 23 pois o campo surpreende. Além disso, a pesquisa também precisa dar a sua contribuição teórica, na medida em que a teoria se aprimora com a introdução de novos dados e novas experiências oportunizadas pelo trabalho em campo (PEIRANO, 2014). Este estudo foi realizado a partir destas considerações. Esta dissertação também se fundamenta em questionamentos. Talvez as inquietações não fossem apenas minhas, pois há uma lacuna na história em Matão na qual não se percebe o negro. Vou dar um exemplo: uma escola estadual localizada na cidade, ao construir na própria instituição um “museu” da história do município, compôs o local com cópias de literatura oficial, fotos, mapas, objetos e outros elementos. No entanto, no espaço destinado a uma história para os negros, as principais informações são as escritas de próprio punho por pessoas que elaboraram um texto sobre os seus antepassados. No ano de 2016, algumas pessoas também se ocuparam em escrever artigos no jornal “A Comarca”. Eram matérias para uma série de reportagens intituladas “História dos Negros em Matão”, porque seria uma forma de trazer ao público as histórias que não estão registradas nos materiais oficiais. Para isso, contou com os relatos das famílias; inclusive na reportagem inicial que informava a previsão de publicação de doze reportagens, o professor Julio Ribeiro reforçou: “precisaremos da contribuição de todos, com sugestões e informações pertinentes ao tema” 10 , ou seja, para a construção dessa história, se fazia necessário relatos das pessoas, pois os acontecimentos não foram registrados. A minha família sempre foi procurada 11 quando se quer conhecer a história dos negros na cidade, pois meu bisavô, negro e filho de ex-escravizado, chegou a Matão, vindo da Bahia, em 1942, vindo de Tabatinga, de trem. No caso, também fomos procurados para fornecer informações para o referido museu no ano de 2021. Portanto, na cidade se conhecem referências que poderiam contribuir para falar da presença negra na história da cidade. Aqui justifico a autoetnografia. Os meus bisavós viveram a constituição de Matão enquanto município e a convivência na infância 12 com as histórias, livros, discursos, documentações e 10 Reportagem completa sobre os artigos publicados no Anexo D. 11 Reportagem de Tutu sobre a Vila e os negros no Anexo P 12 O contato com os bisavós não se deu de forma esparsa. Aos cinco anos de idade, a pesquisadora foi morar com eles, que na ocasião já tinham setenta e três anos. Vale ressaltar que na mesma casa também havia uma filha do casal, que foi a pessoa que mais narrou muitas histórias. Assim, conviveu toda a infância, adolescência e juventude sob os cuidados destes familiares. Certamente, conviver com os velhos trouxeram experiências distintas daquelas que seriam oportunizadas em outros contextos. Segundo Bosi (2004), a criança não tem do passado apenas dados escritos da história, mas mergulha em histórias vividas, aliás, sobrevividas, que as pessoas de mais idade tomaram e acabam socializando com a criança. Há a possibilidade de a criança ficar mais tempo com os mais velhos do que com os pais, os quais podem estar ocupados, em grande parte, com as atividades inerentes à vida madura. Para a autora, neste momento de socialização, os mais velhos não se preocupam em 24 vivências no Clube Henrique Dias, fizeram formar no meu imaginário lembranças que também foram narradas na pesquisa. Realizando uma reflexão sobre isso, o epistemicídio mencionado por Carneiro (2005) fez sentido para mim de uma forma prática, na medida em que não se observou na literatura oficial o registro dos saberes e realizações locais da população negra. E ainda, quando o fez, a história local pareceu dar continuidade àquela história nacional, cuja racionalidade legitimada se ligou ao processo de eurocentrização: a fala sobre a população negra sugere um apagamento simbólico das referências identitárias e dos modos de ser e viver, tendo por consequência a marginalização não só das formas de conhecimento, saberes e práticas desse povo, mas também a sua marginalização em relação à memória histórica brasileira. Carneiro (2005) em diálogo com Boaventura de Sousa Santos conceituam o epistemicídio como um apagamento subjetivo e sistêmico das pessoas racialmente inferiorizadas, negando a elas que se torne possível a realização de suas capacidades intelectuais. Além disso, Reis (2022) menciona que o epistemicídio é uma dimensão que complementa o genocídio colonial/racial, com a eliminação das formas de conhecimento locais e a busca por uma imposição da racionalidade exclusiva e excludente associada ao processo de eurocentrismo na modernidade/colonialidade. Nota-se a partir daí uma eliminação de referências, vozes e bibliotecas não ocidentais que se sustentam no racismo epistêmico, fundamentando a colonialidade do saber, com suas hierarquias e critérios valorativos monoculturais. Quando pensei em escrever sobre nós, para mim eu já tinha tudo o que era necessário: nomes presentes na ata do Clube Henrique Dias, cuja descendência já me era conhecida. Inclusive uma parte das pessoas que eu inicialmente imaginava procurar para as minhas entrevistas eram aquelas sempre lembradas quando se quer saber mais sobre o negro na história da cidade. No entanto, quando nos dispusemos a empreender uma etnografia, a percepção que tenho é de que de repente se abriu um mundo de possibilidades e que a etnografia, bem como disse Cunha (2004), não tem hora para acontecer. Em vias de concluir a escrita deste estudo, fui convidada para falar sobre o Dia da Consciência Negra, no Centro de Referência da Assistência Social (CRAS) em Matão, com um grupo de idosos. Ao tratar sobre o tema, também comentei sobre o meu estudo. falar com a criança o que é próprio de sua idade, mas refletem sobre eventos políticos e históricos que chegam às crianças por meio de deformações do imaginário popular. 25 Fui preparada para uma fala de mais ou menos quarenta minutos, a pedido da educadora social. Mas confesso, ela não durou mais que dez. Bosi (2004) já dizia que o trabalho do velho é lembrar. E a cada frase que eu expunha, era interrompida pelas lembranças. Os velhos 13 estavam mais preocupados em falar do que em me ouvir. Deste modo, fui surpreendida pelo campo e novamente me vi como uma nativa etnógrafa (CUNHA, 2004). Quando mencionei sobre a possível segregação racial que acontecia na informalidade em Matão, uma senhora levantou a mão e contou que um dia foi com sua amiga para um baile no Grêmio, nome mais recente da Sociedade Ítalo-Brasileira Matonense (Stella D' Italia), isto é, Estrela da Itália, e que chegando à portaria, foi barrada. Você não pode entrar aqui, você é preta, demonstrando um movimento da mão pelo braço para mostrar a cor da pele. Quem mandou você ser preta? [risos], disse a amiga, que então entrou no evento e ela voltou para a casa 14 . Isso reafirma que existem histórias de pessoas que nunca são procuradas para falar sobre o negro e, portanto, dentro de um apagamento histórico, há ainda aquelas histórias que estão em maior risco de esquecimento e que poderiam auxiliar na composição de nossa história coletiva. Para escrever histórias de negros, inicialmente procurei identificar a nossa trajetória. Gostaria de enfatizar que não se pretendeu questionar o trabalho realizado pelo professor e historiador Azor Silveira Leite (1992; 1993; 1995), o qual deixou para Matão uma contribuição relevante, contando a história da cidade por sua perspectiva. As suas obras se tornaram referência para pesquisas sobre a história do município e este material foi, inclusive, importante para a realização desta proposta. Para elaborar seus livros, o autor utilizou uma abordagem que unia tradição oral e fontes documentais. Dessa maneira, por meio de relatos de pessoas que testemunharam o início da cidade e documentos como escrituras de compra e venda, mapas, fotografias, atas, reportagens do jornal “A Comarca” e materiais oficiais da história da região, reuniram-se informações que deram origem a uma história oficial de Matão. As obras fizeram parte de um projeto intitulado “Matão 100 anos”. 13 Muitas vezes utilizo o vocábulo “velho”, mas nesta etapa em que trato de um evento na Assistência Social, que usualmente utiliza o termo “idoso”, quero aproveitar para reforçar que não faço uso de forma pejorativa, mas reafirmo a relevância dessa fase da vida, especialmente para estudos com as características desta dissertação. A expressão “velhos” faz parte do título do livro de Bosi (2004), amplamente citado nesse estudo, cuja palavra para mim recebe inúmeras significâncias. 14 Dona Benedita comenta que certa vez foi barrada no referido clube e que nesse momento ficou sabendo que negro não poderia frequentar o estabelecimento. 26 Ao procurar a presença do negro nesta história oficial, observaram-se lacunas. Tanto esses vazios quanto as informações encontradas foram, justamente, o ponto de reflexão para este estudo. Quando o negro é mencionado na obra, observaram-se informações que parecem traduzir um imaginário popular: “[...] num tempo que não vai muito longe, algumas facetas da sua atividade social, na maior parte ligada a comunidade negra, com seus batuques, umbigadas 15 e outros tipos de dança que lembravam os tempos da velha África [...]” (LEITE, p. 163). A umbigada é importante, o maculelê é importante, a capoeira é importante, qual o outro também? Mas eu acho a umbigada a mais interessante. Porque ele [escravo] jamais, dentro daquele contexto histórico, daquela situação, nós três não poderia estar sentado reunido 16 , porque nós era muito vigiado [...] por causa da demanda eles trouxeram negro de toda a banda e ai o que dá pra perceber, como que era essa comunicação, tendo os mais velhos como referência e os mais novos sempre queriam a rebeldia. Então, o que acontece, a umbigada foi a melhor maneira de nós entrelaçarmos e transferirmos conhecimento, e eles deixavam nós fazermos isso porque nós dávamos rendimento na segunda-feira, no trabalho. Então esse festejo era uma desculpa para ganhar lá e nós ganhamos aqui. 17 O trecho faz referência a Vila Santa Cruz e a atividade social da comunidade negra presente em grande parte neste espaço. É possível que tais atividades pudessem ter ocorrido da maneira descrita, mas a expressão “velha África” já nos sugere uma África pitoresca 18 como vemos na literatura. Como se ao falar em África, estivéssemos sempre falando de uma mesma coisa, desconsiderando a variedade de etnias que compõem os países do grande continente africano e as especificidades de cada uma. Afinal, talvez a história da África nunca seja totalmente conhecida, são mais de cinquenta e tantos países, mais de dois mil dialetos 19 , ou seja, uma complexidade talvez difícil de ser apreendida. 15 Umbigada ou choque de ventres trata-se de um gesto coreográfico de origem africana, segundo uma descrição clássica (CARNEIRO, 1961). 16 No momento do comentário estávamos reunidos os entrevistados João Bento, Cleide e eu, na Vila Santa Cruz. 17 Umbigada a partir da visão do participante da pesquisa João Bento. 18 Comentário de parte do meu estudo de professora aposentada de Teoria Literária da UNESP/FCLAr, durante o evento FESTA em agosto de 2023. 19 Considerações sobre a África a partir do entrevistado João Bento, ao mencionar a complexidade do continente que apresenta um total de cinquenta e quatro países. 27 Isto demonstra um imaginário criado em torno dos negros, um epistemicídio por meio do qual a identidade de um povo é reduzida a uma coisa só, a um olhar eurocentrado que parece, inclusive, mencionar os traços identitários com certa inferioridade. Portanto, embora o material oficial seja um meio importante para se procurar informações sobre a população negra, em geral, o que se observa são registros escassos e fragmentados (TENÓRIO, 2004). Desta forma, este estudo passou por desafios semelhantes aos enfrentados por Tenório (2004) em sua pesquisa sobre a presença dos negros em Araraquara. É importante salientar que a ausência de registros formais não significa a ausência dos negros na cidade, assim como a ausência dos índios na história de Araraquara, não significou a sua inexistência nos primórdios do município. De fato, seria fundamental buscar outras fontes e abordagens que pudessem trazer esclarecimentos sobre uma história negra em Matão. Conforme ressalta Tenório (2004, p. treze), ao realizar um estudo sobre o Baile do Carmo em Araraquara, “[...] algumas dificuldades foram vencidas, porque trabalhamos primordialmente com o recolhimento de depoimentos orais dos antigos participantes do evento”, referindo-se a uma reconstrução da história em Araraquara utilizando como recurso metodológico a história oral. Ao realizar uma análise dos materiais que eu dispunha com a pesquisa de Tenório (2004), notei que o Clube Henrique Dias era uma manifestação negra diante da sociedade de classes firmada após a Abolição da Escravatura. Embora as expressões tivessem as suas diferenças, havia um motivo em comum: a exclusão dos negros de espaços de lazer frequentados pelos brancos, devido questões que o desenvolvimento deste estudo pode em parte responder. O estado de São Paulo é espaço relevante para pesquisas das questões raciais, já que a economia da cafeicultura, alicerçada no trabalho de homens e mulheres escravizados, perpassou toda esta nossa região. Em um estudo sobre territórios negros na Pós-Abolição, recentemente Oliveira e Bortolucci (2018) mencionaram que na condição de homem livre, o que o negro encontrou foi à marginalização. No caso específico de São Carlos as estratégias segregacionistas vivenciadas no estado resultaram na formação de bairros para este contingente, como o caso da Vila Isabel. São histórias carregadas por suas especificidades locais que por vezes trazem a expressão de um contexto histórico e social mais abrangente. No caso deste estudo, a autoetnografia, junto com a etnografia, considera histórias narradas, informações partilhadas entre pessoas para vencer, na mesma medida, a ausência de 28 informações nos documentos oficiais, uma vez que a história das classes marginalizadas e racializadas não interessam para o discurso oficial. Este estudo é uma extensão da monografia realizada na Graduação em Ciências Sociais no ano de 2007, intitulada “Vivências, memória e identidade negra em Matão”. Na época, a pesquisa se concentrou na parte teórica, realizando uma análise histórica da formação do Estado de São Paulo e da nossa região, a fim de compreender e quem sabe interpretar a presença e as vivências do negro na cidade. Entretanto, a proposta inicial não avançou para a etapa de pesquisa de campo, na qual seria utilizada a história oral como recurso metodológico. Isto me fez lembrar as palavras de Fernando Henrique Cardoso, em sua obra intitulada A Arte da Política: A História que Vivi 20 , em que ele afirma que “o tempo não perdoa”, referindo-se ao tempo decorrido para decidir finalizar um projeto antigo, pois quando se deu conta, já estava com setenta e quatros anos e havia escrito somente a introdução do livro que almejava desenvolver (CARDOSO, 2006, p. 1). Certamente, ao utilizar a tradição oral como ferramenta para reconstruir a história, o tempo pode não perdoar. Durante a elaboração da monografia, meus possíveis entrevistados já estavam com certa idade e agora, ao retomar esse projeto, percebi que alguns deles já partiram. E assim, “[...] na canção que vai ficando já não vai ficando nada” (MEIRELES, 2018, p. 17), apesar de, ainda, haver muito que ser explorado. Mas, como dizia Benjamin (1987), este foi o tempo que me coube e, por que não, o tempo propício, ou o Tempo do Agora, conforme sugere em suas teses sobre a História. Este foi o tempo em que me dediquei na finalização de uma proposta antiga. Por isso os versos da poesia de Cecília Meireles iniciam a minha introdução: “Cada palavra uma folha no lugar certo” (MEIRELES, 2018, p. 17). Podem existir outras maneiras de narrar esta história, mas acredito que de alguma forma a pesquisa traga a sua contribuição, pois assim que foram colhidas (e escritas), posso dizer que as narrações possuem um lugar na história matonense, sendo uma versão de inúmeras outras. E assim, quando a distância infinita da morte faz de seu desperdício um gozo, às vezes se pode negligenciar algo valioso, que é o tempo. Porém, esta sensação se trata de um consolo para rupturas e a mais trágica de todas é, sem dúvida, a ruptura da vida. Displicente é quem não se dá conta disso (CARDOSO, 2006). A passagem do tempo pode, portanto, afetar o registro e a preservação das vivências e memórias das pessoas quando elas são o nosso objeto 20 Esta citação não tem nenhum viés político. Adquiri o livro logo que foi lançado e ao escrever esta dissertação prontamente me lembrei da introdução de Fernando Henrique Cardoso à obra, em que ele conta que sempre teve a intenção de escrever este livro, mas de repente viu-se na situação de ter iniciado com setenta e dois anos e aos setenta em quatro apenas a introdução havia ficado pronta. Isto o fez parafrasear Ulysses Guimarães, que sempre repetia que o tempo não perdoa quem não sabe trabalhar com ele (CARDOSO, 2006, p. 2). 29 de análise. Às vezes eu quero saber alguma coisa, quero alguma informação e aí eu penso, vou perguntar para quem? 21 Fiquei por um tempo pensando em colocar parte de um texto poético nesta etapa, pois ele ilustra claramente o que sinto em dar continuidade ao estudo. No entanto, existem controvérsias sobre a sua autoria 22 . Mas acredito que ele faria compreender de uma forma direta o que vivi: “Sinto-me como aquele menino que ganhou uma bacia de jabuticabas. As primeiras, ele chupou displicente, mas percebendo que faltam poucas, rói o caroço [...]”. Grande parte da minha vida, especialmente na graduação, a minha bacia ainda estava cheia. Assim, na correria do dia a dia, algumas memórias não foram exploradas. Nos encontros a partir do percurso da pesquisa, pude apreciar histórias de outras pessoas, de várias idades, que me mostraram cada vez mais que muitas histórias importam. E que a escrita cura. 23 Quando falamos em memória observamos também outro problema justificado por Bosi (2004), certamente parafraseando Walter Benjamin, que já se perguntava por que havia decaído a arte de contar histórias. Para a autora, isto é uma consequência do empobrecimento da arte de trocar experiências. Ainda, a Guerra, a Burocracia e, por fim, a Tecnologia a cada dia tende a desmentir o bom senso do cidadão. Assim, a narração exemplar foi substituída pela informação de imprensa, onde “o receptor da comunicação de massa é um ser desmemoriado” (BOSI, 2004, p. 87). A autora também menciona que, ao se deparar com a finitude da vida, os sujeitos tendem a se esquivar de atividades que demandam tempo e trabalho árduo, como aquele empreendido na escuta de histórias e lembranças. Por ter convivido com velhos, e como diz Bosi (2004), o trabalho do velho é lembrar, posso dizer que sempre ouvi histórias, num contexto em que esta ação parecia ter diminuído. Ouvir histórias de velhos, ou compartilhar experiências pode ser um exercício importante no mundo contemporâneo, no qual passamos por muitos acontecimentos, mas poucos se transformam em experiência e, ainda, a arte de contar histórias é algo que está em declínio e se tem um vazio trazido pela sensação de progresso. E porque não o 21 Reflexão de Iraci ao comentar que no decorrer da vida, nunca tinha pensando em saber sobre os seus antepassados e agora algumas inquietações surgem na mente e não tem para quem perguntar. 22 Não há consenso sobre a autoria deste poema. 23 Walter Benjamin não diz exatamente que a narração cura, mas estudiosos de sua obra argumentam que o ato de compartilhar experiências e sentimentos pode ter um benefício terapêutico, segundo a maneira como expõe o tema da narrativa na obra O Narrador ou O Contador de Histórias, que é outra possibilidade de tradução que vem sendo utilizada. Neste sentido, faço uma extensão das interpretações de Benjamin (1987), a qual evidencia a minha experiência, pois escrever este estudo é uma cura pela negligência ao não aprofundamento de muitas narrativas do passado. A escrita é o registro da narração e uma “cura” para o apagamento da história de determinados grupos, conforme as minhas próprias reflexões. 30 desvanecimento das experiências coletivas a partir da ascensão e o desenvolvimento do capitalismo. Desta forma, a modernidade distancia as gerações e cada vez mais impede o ato de rememorar (BENJAMIN, 1987). Para Fabian (2006) a linguagem, o tempo compartilhado (coetaneidade) e a escrita na prática etnográfica são elementos relevantes. O autor evidencia a influência de pensadores como Herder e Wilhelm von Humboldt e a visão materialista da linguagem. Para eles, a linguagem não era apenas um sistema de símbolos, mas uma forma de trabalho e transformação da matéria, enfatizando o som como uma realidade material. A comunicação linguística é fundamental na pesquisa etnográfica e a compreensão mútua entre sujeitos na comunicação é possível por meio do compartilhamento do tempo, quando se compartilha entendimentos e significados uns com os outros. A introdução do conceito de coetaneidade como uma condição necessária para a prática etnográfica mostra que a pesquisa de campo não é apenas uma questão de estar no mesmo tempo e lugar que os membros da comunidade estudada, mas envolve a partilha de experiências temporais e a presença física de corpos. A escrita desempenha um papel importante nesse contexto e é uma parte integral da pesquisa etnográfica desde o início, e não algo separado da coleta de dados ou da teoria. A compreensão da coetaneidade, da escrita e da comunicação linguística é essencial para a etnografia, pois ajuda a superar distorções temporais e culturais que podem surgir na representação das comunidades estudadas (FABIAN, 2006). Portanto, a ideia de coetâneo vai além da observação, mas é o compartilhamento e a compreensão de experiências temporais. De acordo com Nora (1993) memória e história são palavras longe de serem sinônimas, há uma oposição em tudo o que as envolve. Por um lado, tem-se a memória, a qual é considerada sempre viva, carregada por sujeitos e grupos vivos. Por esta razão a memória está sempre em evolução, num cruzamento constante entre o “lembrar-se de” e o esquecer, inconsciente de que há neste movimento deformações que lhes são sucessivas, permeadas por vulnerabilidades, usos e influências. Por outro lado, há a história, a qual Nora (1993) diz ser a sua reconstrução sempre contestável e incompleta daquilo que não existe mais. A história requer um tratamento analítico e crítico, no seu operar fundamentalmente intelectual e laicizante, ocupando-se da representação do passado. A memória pode ser considerada um fenômeno sempre atual, a qual surge de um grupo que ela une. Por natureza, Maurice Halbwachs diz que a memória é sempre “múltipla e desacelerada, coletiva, plural e individualizada” (NORA, 1993, p. 9). Contrariamente, a 31 história pertence, de forma simultânea, a todos e a ninguém, o que dá a ela um caráter universal, ligando-se, sobretudo, às continuidades temporais, evolução e relações entre as coisas. A memória é em si absoluta, é alimentada por lembranças vagas, particulares e simbólicas. A memória arraiga-se naquilo que é concreto, nos objetos, nos gestos e nas imagens. A história somente conhece o relativo. Ainda, há na história um criticismo que tende a destruir a memória, de forma que esta é, para ela, sempre suspeita (NORA, 1993). Conforme Le Goff (1996) a história, na sua essência, é equívoca, é o reino da imperfeição. Considerá-la de tal maneira não é inútil, mas pode ser uma explicação para o seu método inexato, pois a história quer ser objetiva e não pode sê-lo. A história busca reviver o passado, mas pode apenas reconstruí-lo. De acordo com Pollak (1989), a oralidade seria uma estratégia para reconstruir a história das classes subalternas e resgatar a voz daqueles que muitas vezes são ignorados pelos registros oficiais. Desta forma, por meio da tradição oral poderíamos registrar outros fatos que dariam para o negro um lugar na história da cidade, na medida em que estas histórias estão no interior dos grupos e só não foram escritas, mas são histórias relevantes assim como aquelas que foram registradas. Ademais, considerar apenas os registros escritos nos remeteria a historiografia positivista, quando apenas se considerava os registros oficiais, o que dava para a história um sentido nacionalista, escrevendo somente eventos que envolviam figuras importantes para a nação. A história que aqui se supõe já começa a nascer no início do século XX 24 , onde tudo é história e os depoimentos orais ganham, neste contexto, determinado valor na forma de se escrever sobre os acontecimentos passados, caso observemos um viés da História a partir das correntes historiográficas. As lembranças podem permanecer no silêncio e podem ser transmitidas para gerações por meio da oralidade 25 e, mesmo que não seja por meio de publicações, permanecem vivas: “[...] o longo silêncio sobre o passado, longe de conduzir ao esquecimento, é resistência que 24 Referência a Escola dos Annales, movimento historiográfico do século XX. 25 De acordo com Pollak (1992) em Memória e identidade social, existem elementos que constituem a memória, tanto individual quanto coletiva. Os principais elementos são os acontecimentos vividos pessoalmente, os acontecimentos vividos indiretamente por meio de um grupo ou coletividade, e eventos que transcendem o tempo e espaço da pessoa ou grupo. Além disso, a memória é formada por personagens, incluindo aqueles encontrados pessoalmente, personagens indiretamente conhecidos e figuras históricas. Lugares também têm um papel relevante na memória, com alguns ligados a lembranças pessoais e outros a eventos públicos, como monumentos comemorativos. Deste modo, as lembranças transmitidas podem se dar considerando este conjunto, os quais, Pollak (1992) denomina como elementos constitutivos da memória. 32 uma sociedade civil impotente opõe ao excesso de discursos oficiais” (POLLAK, 1989, p. 5). As lembranças transmitidas pelos antepassados podem, portanto, ajudar com informações para a (re) construção da história. Como a memória é socialmente construída, pode-se considerar que toda a documentação também é. Não é perceptível que haja uma diferença fundamental entre fonte escrita e fonte oral (POLLAK, 1992). Para o autor, a crítica da fonte, da maneira que o historiador aprende, deve ser aplicada a fontes de tudo quanto é tipo. Desta forma, vamos considerar, e não ficaremos justificando, que toda a memória narrada tem a sua importância para a história, assim como os fatos que foram escritos oficialmente. A perspectiva de reconstituir textualmente uma história de negros, portanto, não foi descartada. A sensação que tenho é que isto se trata de um projeto de vida que me persegue desde a graduação. Entretanto, a primeira proposta passou por algumas alterações: a passagem do tempo também me fez evoluir enquanto pesquisadora. Acredito que seria óbvio reforçar que o Mestrado oportuniza um novo olhar sobre o mesmo problema. Poderia, assim, parafrasear Luís Vaz de Camões (2000), pois quando ofereço aquilo que tenho e tudo o que posso quanto mais pago, mais pareço dever. O que me ocupei em registrar, como já mencionei, foi somente uma contribuição entre outras possibilidades. Tudo começou com arquivos etnográficos que, segundo Cunha (2004), são equivalentes aos arquivos pessoais. Não sei ao certo quando, ao examinar materiais antigos de família, deparei-me com uma ata de reuniões. Em vias de concluir a graduação e da necessidade de escrever a monografia, lembrei-me desta ata. Num primeiro momento, levei-a até uma encadernadora para refazer a capa que estava se desfazendo e restaurar a colagem das folhas do livro de cento e noventa e seis páginas, com a numeração marcada no canto superior direito, indicando a sua função de registrar os eventos. Nas anotações observa-se a necessidade de criação de um lugar onde os negros pudessem se reunir, o que fez surgir a “Sociedade Matonense dos Homens de Côr” 26 , que mais tarde recebeu o nome de Sociedade Matonense Henrique Dias ou Clube Henrique Dias, como era comumente chamado. Cunha (2004) aponta que os arquivos devem ser vistos como produtores de conhecimento, bem como construções culturais que possibilitam a compreensão de certas narrativas. Os antropólogos têm se voltado a estes arquivos que não abrigam, simplesmente, eventos passados ou segredos, mas são marcas a partir das quais elas próprias devem ser interpretadas. Inicialmente, minha intenção era restituir esses registros documentais à 26 Grafia da época, extraído da ata de reuniões do Clube Henrique Dias. 33 sociedade matonense, como objeto a partir do qual o conhecimento se classifica e o “Estado”, acredito que aqui também caberia o termo “discurso oficial”, necessita, tornando-o acessível às gerações futuras sob a forma cultural de um repositório do passado (CUNHA, 2004). Mas notei que isso não poderia ser feito de qualquer maneira. Não seria justo, visto que essa documentação pertencia a uma Cientista Social e deveria receber um tratamento analítico. Partindo das lembranças e documentos primários, razões pela qual é possível não sucumbir ao esquecimento lembra-me Hurston (BASQUES, 2019), que apesar da formação acadêmica, iniciou a carreira num ambiente familiar, a partir das pesquisas com Olualê Kossola, na qual a oralidade demonstrava um jeito negro de falar, sendo também a pesquisadora, negra. Este estudo, portanto, se tratou de uma autoetnografia. Desde a infância sempre ouvi lembranças de velhos 27 . Na conclusão da graduação, a ideia de trabalhar com rigor científico e de trazer para dentro da academia um debate tão importante como uma história de negros se tornou uma possibilidade tangível, especialmente porque se dispunha de alguns documentos que requeriam análise minuciosa. A (auto) etnografia se justificou nos encontros promovidos para colher memórias. Encontros com pessoas. Encontro com as próprias lembranças. Cada história importou, inclusive a minha. E assim se tentou escrever histórias de negros, falando por mim mesma e registrando o que outros disseram por meio de condições criadas para a prática de falar e do diálogo (ALCOFF, 2020). Portanto, conforme os pressupostos de Bosi (2004) por muito que se deva à memória coletiva, o sujeito é quem recorda. Assim, esperou-se reconstruir partes omitidas ou negligenciadas pela história oficial, subsidiando-se em lembranças compartilhadas. A presente dissertação está inserida na linha de pesquisa "Diversidade, Identidades e Direitos" do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e teve como objetivo (re) construir histórias de negros em Matão. Na verdade, é mais uma construção do que uma reconstrução. O prefixo (re) envolve, num universo de aproximadamente seiscentas páginas de história oficial, talvez uma que fale sobre o negro. 27 A memória dos velhos e a lembrança que eles evocam são distintas daquela empreendida pelo adulto. Maurice Halbwachs aponta que o adulto, entretido com as suas atividades do presente, quando se põe a lembrar, esta ação é um relaxamento da alma, um momento de repouso, uma situação marcada pela brevidade, apesar de intensa. O adulto ativo, quando provocado a lembrar, não se ocupa longamente do passado, mas este lhe sobrevém como um sonho. Porém, o velho se trata do homem que já viveu a vida e quando se lembra do passado ele não está simplesmente, por algum momento, escapando do labor cotidiano, quanto menos se entregando de forma fugitiva às delícias do sonho. O velho se ocupa de uma forma atenta e consciente do passado (BOSI, 2004). 34 O ponto de partida foram as narrativas e os documentos, por meio dos quais foi possível identificar vivências da população negra na constituição da cidade. Partindo-se da hipótese de que a história oficial 28 não apresenta informações relevantes sobre a vivência dos excluídos, minorias e classes marginalizadas, não é viável reconstruir a história dos negros apoiando-se em materiais oficialmente produzidos, já que não há informações suficientes para interpretações mais abrangentes. Diante desse cenário, a (auto) etnografia foi escolhida para a reconstrução desta história, permitindo uma abordagem mais ampla, pois há a possibilidade de destacar o que está no interior dos grupos a partir das lembranças, dos discursos e das memórias narradas. 1.2 Considerações sobre o método Este estudo foi desenvolvido a partir de duas formas de se fazer pesquisa: a autoetnografia e a etnografia de histórias de vida. Por esta razão, quando abordo a questão metodológica, cito no texto (auto) etnografia, me referindo à combinação destas duas propostas. Em outros momentos refiro-me a elas separadamente, apontando como cada uma deu a sua contribuição. Assim como o termo “escrevivência” adotado por Conceição Evaristo é a junção das palavras “escrever” e “vivência”, as quais carregam a escrita da coletividade 29 , a (auto) etnografia 30 também é a junção de duas palavras que revelam duas formas de pesquisar que não se esgotam nos sujeitos. 28 Conforme Pollak (1992) a história oficial, escrita sob o olhar da classe dominante, não se ocupa em descrever a história das minorias, das classes marginalizadas e excluídas. O negro se enquadra neste contexto, quando se busca informações para a reconstrução de uma história. O que se tem de informação, em geral, foi escrito sob o olhar do colonizador, da classe dominante. Halbwachs (1968) enfatiza que a memória nacional, ou oficial, se trata da forma mais completa de uma memória coletiva, a qual se dá por meio de negociações, ou seja, a memória individual se concilia com a coletiva quando há uma concordância entre a memória dos outros e a nossa para que se possa, portanto, reconstruir as memórias numa base comum. Numa perspectiva construtivista, em que se observam novas perspectivas sobre a memória coletiva, tem-se uma contrariedade àquela assumida por Halbwachs (1968), na medida em que o caráter uniformizador e opressor da memória coletiva nacional se opõe às memórias subterrâneas que seguem o seu trabalho de subversão silenciosamente, aflorando-se, mesmo que de forma imperceptível, em momentos de crise. 29 Conceitos extraídos da notícia sobre o termo escrevivência de Conceição Evaristo, por Beatriz Hermínio, no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo. Disponível em http://www.iea.usp.br/noticias/a- escrevivencia-carrega-a-escrita-da-coletividade-afirma-conceicao-evaristo. Acessado em 07 dez. 2023. 30 Termo que utilizei na pesquisa para tratar da combinação dos dois métodos citados, inspirando-me em Conceição Evaristo. 35 O uso do termo autoetnografia remonta ao ano de 1966, quando foi mencionada em um seminário por Raymond Firth 31 , porém, no contexto das Ciências Sociais, a palavra “auto- etnografia” foi utilizada pela primeira vez pelo antropólogo David M. Hayano 32 em 1979. A partir de 1980 essa abordagem metodológica começou a se desenvolver e foi definida como um método à medida que outras compreensões do campo de pesquisa surgiram (MOTTA; BARROS, 2015). Não vamos nos reter aqui à historicidade do termo, mas considerar que até então, enquanto a maioria das pesquisas nas Ciências Sociais buscava a impessoalidade, a autoetnografia surgiu para examinar a experiência pessoal. Deste modo, de acordo com Motta e Barros (2015), o método nasce com o objetivo de evidenciar como a experiência é fundamental no estudo da vida cultural, sem se propor como método mais válido do que outros. Em vez disso, configurava-se numa abordagem alternativa nos estudos socioculturais, representando a experiência pessoal dentro do contexto de relações, categorias sociais e práticas culturais. Dessa forma, o método procurava revelar o conhecimento interno do fenômeno, destacando aspectos da vida cultural, os quais poderiam escapar à pesquisa convencional. Por meio da autoetnografia se reconhece e se inclui a experiência do pesquisador tanto na definição do tema quanto no desenrolar do estudo. Elementos como memória, autobiografia, histórias de vida e proximidade com o assunto são alguns recursos do método. Há certa ênfase na narrativa pessoal e nas experiências, tanto dos sujeitos envolvidos quanto do pesquisador. Destaca-se, portanto, pelo fato de dar voz aos que participam do estudo (SANTOS, 2017). Conforme sugere Soares (2022), a autoetnografia certamente pode ser entendida como uma teoria da escrita que se adequou à pesquisa. A etnografia esteve presente nos encontros com pessoas para colher, a partir de entrevistas, as narrativas que poderiam auxiliar na construção de uma história apagada dos registros oficiais. Mas além dos encontros previamente marcados, seja de forma presencial ou virtual, depois de explicar sobre o estudo e de como os dados seriam utilizados para fins acadêmicos, pode-se dizer que a pesquisa de campo não teve um momento exato para iniciar, nem para acabar. Segundo Peirano (2014) o momento depende da potencialidade do estranhamento, do não habitual da experiência, da necessidade de analisar alguma situação 31 Foi um etnólogo neozelandês (1901-2002). 32 Professor emérito de antropologia da California State University Northridge (CSUN). 36 vivida ou observada que surpreende, razão pela qual na própria cotidianidade é possível fazer etnografia. Como diz Peirano (2014), não existe antropologia sem pesquisa empírica. No caso, a etnografia é base para o antropólogo. A boa etnografia se revela na comunicação com outras pessoas no contexto da situação, transforma a experiência viva e de campo em linguagem escrita e, por fim, analisa a eficácia social das ações observadas. A coleta de dados a partir dos encontros e também aqueles que aconteceram no cotidiano, como já mencionado, aconteceu entre os meses de agosto e dezembro de 2023. Deste modo, a linguagem do texto escrito não deve ser entendida como referencial, ou seja, que “diz” e “descreve” a partir da relação entre palavra e coisa. As palavras, no entanto, são produtoras de ação, trazendo consequências, realizando tarefas, comunicando e produzindo resultados. As palavras também não são a única forma de comunicar, o silêncio também realiza essa tarefa, assim como os outros sentidos, os quais têm as suas implicações que também devem ser analisadas (PEIRANO, 2014, p. 386). Quantas vezes, ao encontrar novamente o entrevistado, perguntei a respeito de um mesmo evento e ao investigar, algumas informações não tinham sido ditas anteriormente. Num primeiro momento, omitiu-se algum detalhe ou algo mais específico. Não se trata de uma tarefa fácil, é preciso compreender tanto o dito quanto o não dito. 1.3 A respeito da escrita Considerando os métodos utilizados, desta maneira, o texto apresentado é elaborado em primeira pessoa do singular já que trata das “nossas biografias, vivências, diálogos e coletividades”. E o “nós” utilizado no texto representa um “mosaico de vozes”, na medida em que as histórias individuais e/ou coletivas e as lembranças pessoais relacionam-se à história de um povo (SOARES, 2012, p. 12). Assim como Soares (2022) elaborou o seu estudo a partir da autoetnografia e da autoria coletiva, esta dissertação foi construída a partir de mim e de outras vozes. Em partes do texto uso a primeira e a terceira pessoa do singular e em outras a primeira pessoa do plural. Há uma variedade de personagens: autores, documentos, negros, não negros e a própria pesquisadora. Posso dizer que é uma construção coletiva. Revela a multiplicidade de perspectivas que contribuem cada uma a seu modo para o desenvolvimento da narrativa. 37 As palavras que aparecem entre aspas, principalmente no Capítulo 4, demonstram termos utilizados na época, bem como o modo de escrever, conforme o acordo ortográfico naquele tempo histórico. A escrita em itálico demonstra as falas dos participantes. Essa escolha é inspirada na abordagem de Hurston (2021), pois em sua obra Olualê Kossola: as palavras do último homem negro escravizado a autora fez um esforço para manter a linguagem autêntica de seu protagonista, Cudjo Lewis (Kossola), o último homem conhecido por ter sido trazido ilegalmente da África para os Estados Unidos como escravizado. Fez uso, deste modo, da linguagem do participante e dos padrões linguísticos característicos do dialeto iorubá que ele falava. Optou na preservação da autenticidade de sua voz, mantendo as especificidades linguísticas e expressões específicas das quais ele fazia uso. Essa escolha foi feita para dar aos leitores maior aproximação à sua história, evidenciando a sua voz, com preservação da riqueza cultural de suas narrativas, além de ter sido para ela uma escolha política. Essa abordagem, no entanto, também gerou alguma controvérsia, uma vez que a autora, ao priorizar a autenticidade linguística, abriu espaço para discussões sobre representação e interpretação na escrita etnográfica. Deste modo, este estudo faz uso de uma intersecção das falas: teorias, entrevistados e a minha. Cada uma delas carrega o que lhe é próprio, por vezes o estilo da academia e em outras o jeito de falar. E assim se registrou algumas histórias de negros, as quais poderiam se perder na efemeridade das memórias, dando para a população uma história não observada na literatura oficial. Como também já mencionado utilizo a expressão histórias de negros. Histórias porque representa uma possibilidade de escrita dentre outras e de negros carrega o uso de outras preposições que dão sentido à construção da escrita (para, por, de, com e/ou sobre), porém escolheu-se uma forma simplificada para a fluidez da leitura. E, ainda, de negros carrega uma inclusão implícita, como já me referi, destacando as presenças múltiplas que compartilham as suas experiências. Ao longo da pesquisa faço uso de “escravizado” para fazer uma justiça semântica ao termo (FONSECA, 2024). Trata-se de uma escolha de palavras e expressões para evitar termos prejudiciais e/ou que perpetuam estereótipos. No contexto da história, utilizar termos como “escravizado” em vez de “escravo” é um exemplo de se fazer justiça semântica. Isso não apenas reconhece a humanidade daqueles que foram subjugados, mas também contribui para uma narrativa mais precisa. “Escravo” é um termo historicamente usado para descrever 38 uma condição imutável e “escravizado” é outra abordagem que enfatiza uma condição imposta ao sujeito. Isto significa o uso de termos que mudam o sentido daqueles que carregam implicações históricas e sociais. Hurston (2021) já havia mencionado em sua obra sobre Kossola que substituiu o termo “escravo” por “escravizado”, apesar de não haver um consenso acerca desta substituição. Porém a autora entende que os sentidos que se atribui ao passado são decisões tomadas no presente e, além disso, as terminologias das quais fazemos uso evidenciam qual é a compreensão que nós atribuímos ao passado. Não se trata, assim, de uma diferença semântica apenas. Escravo carrega a noção de condição primordial de objeto, que pertencia a um sujeito. Escravizado mostra que a pessoa sofreu um processo de escravização, no entanto, a sua condição não se resumia a isso, na verdade lhe foi imposta. Kossola nasceu em 1841 e com catorze anos havia feito treinamento para ser soldado, desenvolveu habilidades de caça, perseguição e acampamento. Todos os treinamentos pelos quais passou eram para inseri-lo numa sociedade secreta de homens que se chamavam oro. Aos dezenove anos ele passava por um processo de iniciação para o casamento. Porém, tudo foi interrompido em decorrência do comércio transatlântico de pessoas escravizadas. Portanto Kossola, como muitos outros africanos, foram colocados na condição de escravizados. A minha conversa com um entrevistado e a experiência por ele vivida deixou claro para mim a importância da justiça semântica. Escravizado se trata de uma condição imposta e foi deste modo que nativos africanos saíram de seu país via rota transatlântica. No entanto, em nossa sociedade, certamente impregnada pelo sentido do termo escravo, faz perpetuar situações, como a descrita por João Bento, observada no Capítulo 5, que aborda sobre a necessidade de desconstruir imaginários. 1.4 O “eu” no estudo Subjetividade e objetividade são duas questões discutidas há muito tempo nas Ciências Sociais. De acordo com Weber (1991), a tarefa do conhecimento científico consiste numa ordenação racional da realidade empírica. Ou seja, não se trata de reproduzir em ideias uma ordem objetiva já dada, mas de atribuir uma ordem a aspectos selecionados daquilo que se apresenta à experiência como uma multiplicidade infinita de fenômenos. Nesse sentido, a objetividade não é uma característica do objeto em si, mas sim uma qualidade do 39 conhecimento produzido pelo pesquisador, o qual deve seguir critérios de análise e interpretação. Weber (1991) reconhece que a subjetividade desempenha um papel importante na produção do conhecimento científico. Para ele, o pesquisador não é um mero observador passivo, mas sim um sujeito ativo que seleciona, interpreta e organiza os dados empíricos de acordo com suas próprias perspectivas e valores. Além disso, critica a ideia de uma ciência social isenta de pressupostos, enfatizando que os valores e as perspectivas subjetivas do pesquisador influenciam a escolha dos temas de pesquisa, a seleção dos dados empíricos e a interpretação dos resultados. Diante disso, observamos a proposição de uma abordagem científica que reconhece a influência dos valores e das perspectivas subjetivas, mas que também busca a objetividade por meio de métodos e critérios. A objetividade não significa neutralidade axiológica, ou seja, a ausência de valores e juízos de valor na pesquisa científica. Pelo contrário, a objetividade deve ser entendida como um ideal regulativo que orienta a pesquisa científica, mas que não pode ser alcançada de forma plena e definitiva (WEBER, 1991). Deste modo, a partir da perspectiva weberiana podemos notar que objetividade e subjetividade não são opostas, mas se complementam. A subjetividade é uma condição necessária para a produção do conhecimento científico, pois permite ao pesquisador selecionar e interpretar os dados empíricos de acordo com suas próprias perspectivas e valores. No entanto, a subjetividade não pode ser vista como um obstáculo à objetividade, mas sim como um elemento que deve ser controlado e regulado pelos métodos e critérios universais da pesquisa científica. Trata-se de duas terminologias complexas e controversas, que envolvem a relação entre o sujeito e o objeto do conhecimento, a influência dos valores e das perspectivas subjetivas na pesquisa científica, bem como a busca por métodos e critérios que possibilitem produzir um conhecimento objetivo aceitável. Velho (1986) revisita os conceitos de Simmel acerca da cultura objetiva e subjetiva, e evidencia que a subjetividade, ou seja, o aspecto interno se molda numa relação com o externo. A subjetividade, deste modo, não é algo predefinido, mas se manifesta no contato e nas trocas, mostrando as posições e referências culturais dos envolvidos. No contexto da antropologia, existe o desafio da proximidade, o que envolve o estranhamento do familiar. Em Subjetividade e sociedade: uma experiência de geração, Velho (1986) trata do processo de autoconhecimento e amplia o seu entendimento sobre sua própria sociedade por meio da prática antropológica. Reconhece, sobretudo, que este 40 conhecimento é situado teórica e metodologicamente, destacando a importância de incorporar a subjetividade ao processo de pesquisa. Conforme as suas reflexões, há uma experiência subjetiva na relação com a pesquisa, que vai desde as interações em campo até a construção da etnografia. A subjetividade é considerada inerente à pesquisa, tornando-se parte da reflexão sobre uma diversidade de temas. Segundo Motta e Barros (2015) a autoetnografia se trata de uma pesquisa social considerada até mesmo menos alienadora, já que o pesquisador não tem a necessidade de suprimir a sua subjetividade, na medida em que faz uma reflexão do seu trabalho não só para os outros, mas também para si e todos os elementos (emocional espiritual, intelectual, corporal e moral) que possuem voz e se integram. Deste modo, representa uma experiência pessoal num contexto de relações. Os próprios sentimentos e experiências do pesquisador são incorporados à história e são considerados como parte integral do processo, pois o pesquisador é um ator social marcadamente visível no texto escrito. Esta é uma importante característica da autoetnografia. Deste modo, a partir da escolha dos métodos para a condução do estudo, posso dizer que tanto a objetividade quanto a subjetividade são elementos presentes na pesquisa. Por meio da etnografia, por exemplo, certamente é necessário fazer perguntas para descobrir respostas que deem significado ao fato estudado e não para os preconceitos do pesquisador. Deste modo, as entrevistas informais, exploratórias e que evitem as perguntas fechadas são características da etnografia, por meio das quais a descrição do outro, ou do fato, se dá pela perspectiva dos próprios sujeitos. São as pessoas, os objetos e as suas relações que possuem significado próprio, ou seja, os autores dão significado às suas práticas e cabe ao pesquisador captar os significados que a pesquisa no campo faz emergir. A subjetividade está envolvida neste processo (MOTTA; BARROS, 2015). O “eu” do estudo, portanto, transita entre a subjetividade e a objetividade, cabendo a cada uma o seu espaço na construção da pesquisa. 1.5 A jornada: buscas e encontros Nesta parte, falarei das pessoas que contribuíram para o desenvolvimento da pesquisa por meio da partilha de suas lembranças. Comento sobre como foi o nosso encontro e apresento algumas informações, as quais foram fornecidas por eles mesmos. O texto em itálico são partes das conversas que revelam explanações sobre os entrevistados ou 41 lembranças de um tempo antigo, quando pedi a cada um que me falasse quem são. Construí desta maneira, pois se trata de um estudo feito por pessoas, e notei que seria uma forma de dar mais humanidade à narrativa. É uma pesquisa com pessoas que compartilharam memórias para tecer histórias de negros, razão pela qual me dediquei a um pequeno espaço para retratar cada um desses sujeitos importantes no estudo, que se dispuseram a compartilhar as suas vivências. Num determinado dia 33 , eu estava em uma rede social e vi que uma senhora havia comentado uma fotografia de 1951 do Santa Cruz Futebol Clube. Existe uma página nesta rede que uma pessoa sempre publica fotos muito antigas. Na referida foto havia brancos e negros. Neste momento, ou seja, década de 1950, falava-se na criação de um clube para a comunidade negra, pois não poderiam frequentar aqueles que existiam na cidade. À primeira vista, estariam juntos no futebol, mas não em outros lugares de lazer. Eram algumas questões que possivelmente seriam respondidas ao longo do estudo. A senhora que comentou a foto era, conforme a manifestação fenotípica, branca. A partir disso chamei-a para falar de minha pesquisa, pois me parecia conhecer fatos mais antigos da cidade. Alba Baldan tem oitenta anos, nasceu em 1944 e pas