Camilo e PereiraJunior. O Transtorno de Déficit de... 134 Rev. Simbio-Logias, V.7, n. 10, Dez/2014. O TRANSTORNO DE DÉFICIT DE ATENÇÃO E HIPERATIVIDADE E AUTO ORGANIZAÇÃO Lujani Aparecida Camilo1 Alfredo Pereira Junior2 Resumo O Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade é uma das principais causas de procura de ambulatório de saúde mental de crianças e adolescentes. Assim, o encaminhamento para os serviços de saúde em crianças com dificuldades de aprendizagem escolar ou com problemas de comportamento tem sido freqüente. Muitos desses encaminhamentos realizados por uma queixa escolar têm como objetivo de que seja identificado alguma doença, distúrbio ou deficiência que impede a criança de aprender. O objetivo desse artigo é fazer refletir sobre o conceito de TDAH, o qual pode ser totalmente resignificado quando tomado pelo modelo explicativo biospsicossocial, pois a doença não torna-se o único foco e os demais fatores (sociais, psicológicos, fisiológicos) apresentam e contribuem equitativamente para o aumento ou diminuição do transtorno. Assim como os estudos de Auto Organização podem contribuir para uma visão mais abrangente do processo saúde-doença. Palavras-chave: TDAH; Auto Organização; biopsicossocial Introdução Nos últimos anos tem-se observado considerável diminuição das taxas de mortalidade infantil, acompanhada de alterações do perfil da morbidade da faixa etária pediátrica. Essas mudanças devem-se, principalmente, ao impacto positivo das ações dirigidas ao controle das doenças infecto-contagiosas, com conseqüente redução da magnitude de doenças como diarréia e aquelas passíveis de prevenção pela vacinação. Desta forma, a atenção se dirigiu para as doenças crônicas, da violência, dos acidentes e das queixas relativas a transtornos psicossociais (LAURIDSEN e TANAKA, 2005). Dentre essas queixas no Brasil temos aquela referente ao diagnóstico do Transtorno de Déficit de Atenção com ou sem Hiperatividade (TDAH). Assim, o encaminhamento para os serviços de saúde de crianças com dificuldades de aprendizagem escolar ou com problemas de comportamento tem sido freqüente. Muitos desses encaminhamentos realizados por uma queixa escolar têm como objetivo de que seja identificado alguma doença, distúrbio ou deficiência que impede a criança de aprender. O 1 Mestranda em Saúde Pública – e-mail: lujaniapc@gmail.com 2 Professor Adjunto do Departamento de Educação do Instituto de Biociências – UNESP – Campus de Botucatu Camilo e PereiraJunior. O Transtorno de Déficit de... 135 Rev. Simbio-Logias, V.7, n. 10, Dez/2014. fracasso escolar, muitas vezes, é visto como um problema de saúde, que necessita de uma solução médica, ou de outros profissionais de saúde em que são desconsideradas as questões pedagógicas e o contexto escolar. O Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade é uma das principais causas de procura de ambulatório de saúde mental de crianças e adolescentes. A prevalência do TODA/H não é facilmente detectada, pois mesmo sendo considerado um transtorno muito comum na infância, há dificuldade quanto a sua delimitação e ao uso de critérios diagnósticos. Isso influencia diretamente os dados a respeito de sua prevalência (GOLFETO e BARBOSA, 2003). Ainda que alguns estudiosos possam insistir nas semelhanças, a maioria dos estudos revela variações nos diferentes países, e também dentro de um mesmo país (GOLFETO e BARBOSA, 2003). Para exemplificar esse fato, citemos a prevalência do transtorno apresentada pelos estudos brasileiros já conduzidos até o momento: ela varia consideravelmente entre 5 e 17% (SOUZA, 2008). Os percentuais de 3 a 5% de crianças em idade escolar são frequentemente generalizados como taxas médias (BARKLEY, 2002; BENCZIK, 2000ª; CYPEL, 2001; GOLDSTEIN & GOLDSTEIN, 1996; LIMA, 2005). Grande parte da literatura aponta os EUA como um pioneiro em detecção da incidência, prevalência e tratamento do TODA/H. De acordo com a estimativa do DSM-IV, a prevalência nos EUA do TODA/H encontra-se entre 5 e 13% nas crianças em idade escolar. Esses resultados são maiores do que os das versões anteriores - DSM-IIITR e DSM-III (GOLFETO e BARBOSA, 2003). Diagnóstico O Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM-IV) da Associação Americana de Psiquiatria, quarta edição (APA, 1994) e o DSM-IV-TR (APA, 2003) indicam uma série de critérios para diagnóstico do TODA/H, diferenciando em critérios de desatenção, hiperatividade, impulsividade e critérios gerais tal como descritos nos quadros abaixo. Tais critérios foram baseados principalmente em manifestações infantis de TODA/H. 1. Critérios de Desatenção: a) Frequentemente não presta atenção em detalhes e comete erros por omissão em atividades escolares, de trabalho ou outras; b) Com freqüência mostra dificuldade para sustentar a atenção em tarefas; Camilo e PereiraJunior. O Transtorno de Déficit de... 136 Rev. Simbio-Logias, V.7, n. 10, Dez/2014. c) Com freqüência parece não escutar qual do lhe dirigem a palavra; d) Frequentemente não segue instruções e não termina seus deveres escolares, tarefas domésticas ou deveres profissionais (não por causa de um comportamento de oposição ou por uma incapacidade de compreender as instruções; e) Com freqüência tem dificuldade para organizar tarefas e atividades; f) Frequentemente evita, ojeriza ou reluta se envolver em tarefas que exijam um esforço mental constante (deveres de casa, escolares); g) Frequentemente perde coisas necessárias para suas tarefas e atividades (brinquedos, tarefas escolares, lápis, livros e outros materiais); h) Facilmente é distraído por estímulos alheios à sua tarefa e i) Com freqüência mostra esquecimento nas atividades diárias. 2. Critérios de Hiperatividade: a) Frequentemente agita as mãos e os pés e fica se remexendo na cadeira; b) Frequentemente abandona sua cadeira em sala de aula ou em outras situações em que se espera que permaneça sentado; c) Frequentemente corre ou escala em demasia, em situações impróprias (em adolescentes e adultos, pode se limitar a sensações subjetivas de inquietação); d) Com freqüência tem dificuldade de brincar ou se envolver silenciosamente em atividades de lazer; e) Está frequentemente “a mil”, ou como se estivesse “a todo vapor” e f) Frequentemente fala em demasia. 3. Critérios de Impulsividade: a) Frequentemente dá respostas precipitadas antes que tenham sido reformuladas completamente as perguntas; b) Com freqüência tem dificuldade de aguardar a sua vez e c) Frequentemente interrompe ou se intromete em assuntos alheios (por exemplo, em conversas ou brincadeiras). 4. Critérios Gerais: Camilo e PereiraJunior. O Transtorno de Déficit de... 137 Rev. Simbio-Logias, V.7, n. 10, Dez/2014. a) Alguns dos sintomas de desatenção ou hiperatividade-impulsividade estavam presentes antes dos seta nos de idade; b) Presença de seis (ou mais) sintomas de desatenção e/ou seis (ou mais) sintomas de hiperatividade/impulsividade, que persistiram por pelo menos seis meses, em grau mal adaptativo, e inconsistente com seu nível de desenvolvimento; c) Algum comprometimento causado pelos sintomas está presente em dois ou mais contextos (por exemplo, na escola, no trabalho e em casa); d) Deve haver clara evidência de prejuízos clinicamente significativo no funcionamento social, acadêmico ou ocupacional e e) Os sintomas não ocorrem exclusivamente durante o transcurso de outros transtornos: Transtorno Global do Desenvolvimento, Esquizofrenia ou outro Transtorno Psicótico, Transtorno do Humor, Transtorno Diassociativo, Transtorno de Ansiedade, nem são mais bem explicados por esses outros transtornos mentais. Etiologia Os estudos sobre etiologia referem-se ao TDAH como um resultado de anormalidades no desenvolvimento cerebral. Entretanto, as origens neurobiológicas do TDA/H não se encontram completamente elucidadas. Os mecanismos neurobiológicos que participam do TDAH são de natureza complexa e não estão na dependência de um único neurotransmissor. Segundo esses estudos, a variação clínica dos casos de TDAH já reflete a intensa complexidade dos processos neuroquímicos inibitórios e excitatórios implicados na origem dos seus sintomas (COELHO et. al, 2010). Várias teorias foram formuladas para explicar a fisiopatologia do TDAH. Há relatos de que, em testes neuropsicológicos de crianças portadoras de TDAH, estas apresentavam desempenho prejudicado, nas tarefas que exigiam funções cognitivas, como atenção, percepção, organização e planejamento, pois tais processos se encontram relacionados com o lobo frontal e áreas subcorticais (SWANSON, 1998). Evidências farmacológicas favoreceram, a princípio, a teoria dopaminérgica do TDAH, segundo a qual déficits de dopamina no córtex frontal e núcleo estriado seriam responsáveis pelas manifestações dos sintomas. Nos últimos anos têm sido atribuídos papéis, de forma interacional, a outros neurotransmissores bioquímicos menos estudados, como a serotonina, glutamina e Camilo e PereiraJunior. O Transtorno de Déficit de... 138 Rev. Simbio-Logias, V.7, n. 10, Dez/2014. acetilcolina. Mesmo não existindo resultados definitivos, uma série de estudos de neuroimagem, neuropsciologia, genética e bioquímica estão sendo realizados para confirmar essas hipóteses. (ARNSTEN, 2005; DOYLE, 2005). No entanto, apesar de todos os avanços alcançados pelas tecnologias de imagem cerebral, na prática, elas ainda não são ferramentas auto evidentes. Com relação às causas do transtorno, é explicitado pelo Consensus Development Statement on Diagnosis and Treatment of Attention Deficit Hyperactivity, publicado pelo Instituto Nacional de Saúde Americano NIH (1998), que elas ainda permanecem especulativas e a hipótese do mau-funcionamento cerebral continua sendo apenas uma hipótese (CALIMAN, 2010) As causas desse transtorno, embora muito pesquisadas e atribuídas a uma combinação de fatores genéticos, biológicos e ambientais, ainda não foram completamente definidas, até mesmo pela frequência das comorbidades, o que dificulta a adoção de estratégias preventivas e curativas (GUARDIOLA, 2000) Escola e Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade A maioria das crianças aprende a ler com determinada idade; aquela que não começa a ler juntamente com as demais pode ser facilmente considerada desviante. Geralmente é na escola que se notam as características do TDAH, e é de lá que saem os encaminhamentos das crianças aos profissionais de saúde. A fala de uma professora sobre uma “aluna problemática”, extraída do livro de Collares e Moyses (1996, p.250), ilustra esse ponto: “Ela é muito parada. Acho que deve ser encaminhada para a Saúde ou psicóloga, por que ela tem alguma coisa, ela é muito parada. Pelo tamanho dela, pela idade, acho que ela já devia ter aprendido. Ela está ainda na fase pré-silábica.” Uma condição necessária para que se tenha uma vida social é que todos compartilhem das mesmas normas, previamente estabelecidas. Quando uma regra é quebrada, como não aprender a ler dentro do “prazo normal”, são tomadas medidas restauradoras: “o fracasso ou o sucesso em manter tais normas têm um efeito muito direto sobre a integridade psicológica do indivíduo” (GOFFMAN, 1988, p.138). De acordo com Collares e Moysés (1996), a escola é um local que abriga preconceitos sobre os alunos, suas famílias e sobre o fracasso escolar; o fracasso em manter as normas institucionais recai sempre no aluno e nos seus pais (BRZOZOWSKI, 2010). Camilo e PereiraJunior. O Transtorno de Déficit de... 139 Rev. Simbio-Logias, V.7, n. 10, Dez/2014. A doença possivelmente é usada como fator explicativo para desvios de indivíduos dentro da sociedade, fenômeno este que pode ser chamado de biologização. A biologização da não-aprendizagem é muito comum no meio escolar, fazendo com que a responsabilidade pelas reprovações e pela evasão escolar recaia sobre as doenças. Ao biologizar questões sociais, todo o sistema social se torna isento de responsabilidades. Na escola, desloca-se o eixo de uma discussão político-pedagógica para causas e soluções médicas, inacessíveis à educação (COLLARES, MOYSÉS, 1996). Assim, para alguns professores, médicos e pais, além das próprias crianças, os indivíduos muito ativos, e que não prestam atenção como deveriam, possuem algum problema de saúde (CONRAD, SCHNEIDER, 1992). Tratar esses comportamentos indesejáveis como um problema médico foi, e continua sendo, bem aceito na sociedade, e os motivos são diversos. Para os médicos, por exemplo, a terapêutica é relativamente simples (prescrição de um medicamento) e os resultados podem ser excelentes, do ponto de vista clínico. Por sua vez, o diagnóstico do TDA/H indica uma doença possível de ser tratada, o que diminui a culpabilização dos pais e faz com que estes possam ver o diagnóstico com bons olhos. Além disso, o medicamento, frequentemente, torna a criança menos agitada na sala de aula e, muitas vezes, facilita a aprendizagem, “resolvendo” o problema também na escola (CONRAD, SCHNEIDER, 1992). Assim, nos últimos anos, muito se tem ouvido falar em TDA/H, mas poucos profissionais da área da Educação conhecem as dificuldades relacionadas ao diagnóstico, possuem entendimento do transtorno ou sabem lidar adequadamente com a criança acometida pelo transtorno (SENO, 2010). Abordar esse assunto tem sido uma atividade desafiadora, seja por desconhecimento do problema pelas pessoas, pela descrença de que ele realmente exista, ou pela tendência de a literatura culpabilizar alguém (REIS e CAMARGO, 2008). Conceito de Doença Nessa perspectiva, observa-se que o paradigma, ainda hegemônico, como modelo de saúde é o biomédico, o qual, ainda, concentra suas intervenções na doença e não do sujeito social. Sendo o modelo biomédico um referencial reducionista, reforçando explicações que reduzem o processo saúde-doença à sua dimensão estritamente biológica; já o modelo biopsicossocial, permite que a doença seja vista como um resultado da interação de mecanismos celulares, teciduais, orgânicos, interpessoais e ambientais, em que o estudo de Camilo e PereiraJunior. O Transtorno de Déficit de... 140 Rev. Simbio-Logias, V.7, n. 10, Dez/2014. qualquer doença deva incluir o indivíduo, seu corpo e seu ambiente circundante como componentes essenciais de um sistema total (único ou particular) (ENGEL, 1977). De acordo com Engel (1977) ao considerar o individuo como um ser biopsicossocial pela sociedade e comunidade médica reduz-se o estigma e retira-se o rótulo de sua doença( pela inclusão de aspectos culturais, psicológicos, comportamentais e sociais, ao lado dos biológicos no processo de adoecimento), instaurando a possibilidade de enfrentamento por aquele que apresenta alguma fragilidade mental ou física. No caso do TDAH, ao encará-lo pelo paradigma biopsicossocial, a doença não se torna mais o único foco, tendo importância igual as condições que o cerca (família, escola, amigos, economia, etc), que podem contribuir para o aumento ou diminuição da sua vulnerabilidade. Conceito de Transtorno e Auto - Organização A questão saúde-doença, de modo geral, pode ser entendida sob o prisma de que todo individuo está em um processo de Auto-Organização, o que possibilita sua existência. Esse processo se constitui na interação de diversos fatores (Família, Corpo, Trabalho, Lazer, Sociabilidade e Transcendência), podendo surgir um novo padrão de auto-organização (LUSSI, 2006). Eventualmente, pode ocorrer uma perturbação desse processo, que o conduz à emergência de uma crise e, a dificuldade de superá-la, pode levar o indivíduo a desenvolver um transtorno. Os estudos a respeito da auto-organização e da complexidade dos organismos vivos estenderam a compreensão das interações e da interdependência biopsicossocial do ser humano. Para isso, se faz necessário elucidar que a auto-organização concebe o conceito de sujeito como incoporado (em referência ao corpo) e situado (em referência ao ambiente) (VARELA, 1991), isto é, o fato de a criança apresentar o TDAH não seria resultante somente de sua cognição, mas da relação mente- corpo-ambiente. Assim, poderíamos conjecturar que quando uma criança apresenta uma vulnerabilidade latente e inicia o contato com a escola (ambiente) pode acabar manifestando fenômenos de emergência (emergência é o termo utilizado face a características de comportamento do sistema que não podem ser observada simplesmente a partir das características de comportamento individual dos elementos do sistema, mas sim do coletivo[DEBRUN, 1996]), tais como: somatizações, comportamentos socialmente inadequados, transtornos etc. Ou seja, a emergência do TDAH nos indivíduos Camilo e PereiraJunior. O Transtorno de Déficit de... 141 Rev. Simbio-Logias, V.7, n. 10, Dez/2014. humanos, seria caracterizada pela dinâmica presente no embate entre diferentes elementos, nesse caso, as interações que a criança tem com o seu corpo e com o ambiente (a escola). Explicitando Auto - organização: Na segunda metade do Século XX, o fenômeno da Auto-Organização passou a ser utilizado em diversas áreas do conhecimento. A teoria da auto-organização (TAO) proposta por Debrun (1996) é fundamentada por estudos advindos da filosofia, ciência e do senso comum (DEBRUN, 1996). Segundo Pereira Jr (2002) a “Teoria da Auto-Organização é parte da Teoria de Sistemas, segundo a qual os sistemas são recortados pelo observador, conforme seus interesses, e analisados a partir das interações entre seus componentes e com o ambiente externo. Qualquer agrupamento, delimitado em termos espaciais e temporais, pode constituir um sistema a ser estudado”. (PEREIRA JR, 2002). A teoria dos Sistemas Auto-Organizados tem caráter transdisciplinar, tendo por função a descrição e o entendimento de sistemas abertos cuja dinâmica organizacional é resultado fundamentalmente da interação de seus subsistemas, permitindo a possibilidade de papel construtivo para as relações com o ambiente (PEREIRA JR & PEREIRA, 2010). É importante ressaltar que em todos os sistemas há fatores endógenos e exógenos que determinam a sua dinâmica. Assim, a Auto-Organização e a Hetero-Organização são dois tipos compatíveis de dinâmica, em que há respectivamente predominância ora de fatores endógenos ora de fatores exógenos. Teoria da Auto-organização de Michel Debrun Segundo Debrun (1996), existe Auto-Organização quando há um encontro entre elementos distintos e desenvolve-se em sequência uma interação sem supervisor (ou sem supervisor onipotente), levando a constituição de uma forma ou à reestruturação (por “complexificação”) de uma forma pré-existente. É necessário sublinhar que os componentes são realmente (e não analiticamente) distintos. Debrun, então, define dois tipos de Auto-Organização, a saber: a) Auto-Organização primária – há esse tipo de Auto-Organização quando a interação seguida de eventual integração se realiza entre elementos totalmente distintos, em um processo sem sujeito, sem elemento central e nem finalidade imanente. Camilo e PereiraJunior. O Transtorno de Déficit de... 142 Rev. Simbio-Logias, V.7, n. 10, Dez/2014. b) Auto-Organização secundária – há esse tipo de Auto-Organização quando a interação se desenvolve entre as partes (mentais e/ou corporais) de um organismo. A distinção entre as partes sendo então “semi-real” e sob a direção hegemônica, mas não dominante do sujeito (entendido como “face-sujeito”, ou seja, subjetividade que frente a um desafio externo ou interno, orienta e impulsiona a autotransformação do organismo rumo a um nível de complexidade superior). Assim, baseados nessa teoria Pereira Jr. et al. (2002) e Lussi et al. (2006a) identificam seis categorias (Família, Corpo, Trabalho, Lazer, Sociabilidade e Transcendência) que descrevem a organização geral da vida mental no contexto da sociedade contemporânea. Essas categorias foram identificadas a partir de três critérios. O primeiro é que as categorias deveriam abranger todas as atividades possíveis com as quais a maioria dos indivíduos se ocupa; o segundo critério parte da suposição de que todo indivíduo tem uma necessidade de prazer/satisfação, como proposto por Freud, e portanto, as categorias devem representar uma possível fonte de obtenção de satisfação; e o terceiro critério é de cada um dos aspectos relacionados a tais categorias pudesse ser um meio no qual se manifestariam sintomas de uma crise ou colapso no sistema da vida mental do indivíduo, assim, como um possível objeto da intervenção terapêutica. Segundo Pereira Jr. et al. (2002) diferentes enfoques da mente humana têm sidos propostos ao longo da história da filosofia e das ciências humanas, muitos deles sendo reciprocamente excludentes. Isso se deve principalmente ao caráter reducionista de suas abordagens, tentando explicar a multiplicidade de fenômenos próprios da mente humana em termos de um aspecto privilegiado (por exemplo, a capacidade de conhecer – abordagem da filosofia clássica) ou de uma teoria restritiva (por exemplo, a teoria de que o universo mental do indivíduo seria determinado exclusivamente por sua posição nas relações sociais de produção – abordagem marxista). De acordo com os mesmos autores, uma alternativa viável ao reducionismo se tornou possível com o surgimento da teoria de sistemas. Assim, “a estratégia consiste em se conceber a mente como um sistema não hierárquico, constituído por vários componentes que interagem entre si formando uma rede de relações no espaço-tempo da vida individual. Configurações mentais são geradas pelos componentes em interação, o que caracteriza um processo de auto-organização. A dinâmica temporal destas configurações traça uma história de vida, que pode ser analisada em função de determinados parâmetros de interesse do pesquisador.” Camilo e PereiraJunior. O Transtorno de Déficit de... 143 Rev. Simbio-Logias, V.7, n. 10, Dez/2014. Conclusão O objetivo desse artigo é fazer refletir sobre o conceito de TDAH, o qual pode ser totalmente resignificado quando tomado pelo modelo explicativo biopsicossocial, pois a doença não torna-se o único foco e os demais fatores (sociais, psicológicos, fisiológicos ) apresentam e contribuem equitativamente para o aumento ou diminuição do transtorno. Com isso, é possível, dentro desse modelo, reduzir o estigma e a culpabilização da criança. Os estudos de AO e da complexidade dos organismos vivos permitem uma compreensão das interações e da interdependência biopsicossocial do ser humano, possibilitando compreender o transtorno como uma vulnerabilidade latente que inicia com o período educacional emergindo da interação da criança (corpo) com o ambiente (escola). Dessa forma, tomado como modelo de saúde o biopsicossocial, proposto por Engel; o conceito de transtorno que os profissionais (sejam estes os educadores ou de saúde) pode ser amplificado e entendido não como sinônimo de doença, mas sim como uma perturbação no processo de vida da pessoa como entende diversos teóricos da Auto-Organização. Neste sentido, a teoria não tem a pretensão de substituir ou corrigir os conhecimentos específicos de cada área e disciplina científica, mas contribuir para uma visão integral do ser humano que perpasse as diversas disciplinas que estudam os diversos aspectos deste ser. 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