A Poética Do Barro Um estudo sobre Ivone Shirahata, Kukuli Velarde e Alexandra Engelfriet Simone Cristina Garcia I.A. – UNESP São Paulo 2023 UNESP Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Instituto de Artes – IA – Campus de São Paulo Programa de Pós-Graduação em Artes Simone Cristina Garcia A Poética Do Barro Um estudo sobre Ivone Shirahata, Kukuli Velarde e Alexandra Engelfriet Tese de doutorado apresentada ao Instituto de Artes de São Paulo da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como exigência parcial para obtenção do grau de Doutor em Artes. Área de Concentração: Artes Linha de pesquisa: Abordagens Teóricas, Históricas e Culturais da Arte Orientador: José Leonardo do Nascimento Coorientadora: Profa. Dra. Geralda Mendes Ferreira Silva Dalglish (Lalada) São Paulo 2023 Ficha catalográfica desenvolvida pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da Unesp. Dados fornecidos pelo autor. G216p Garcia, Simone Cristina, 1981- A poética do barro : um estudo sobre Ivone Shirahata, Kukuli Velarde e Alexandra Engelfriet / Simone Cristina Garcia. - São Paulo, 2023. 226 f. : il. Orientador: Prof. Dr. José Leonardo do Nascimento. Coorientadora: Prof.ª Dr.ª Geralda Mendes Ferreira da Silva Dalglish (Lalada Dalglish). Tese (Doutorado em Artes) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes. 1. Trabalhos em cerâmica. 2. Argila. 3. Matérias-primas. 4. Artesanato. I. Nascimento, José Leonardo do. II. Dalglish, Geralda Mendes Ferreira da Silva (Lalada Dalglish). III. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. IV. Título. CDD 738 Bibliotecária responsável: Laura M. de Andrade - CRB/8 8666 Simone Cristina Garcia A Poética Do Barro Um estudo sobre Ivone Shirahata, Kukuli Velarde e Alexandra Engelfriet Tese de doutorado apresentada ao Instituto de Artes de São Paulo da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como exigência parcial para obtenção do grau de Doutor em Artes. Data da Aprovação da defesa 23 / 06 / 2023 Banca Examinadora ______________________________________________ Prof. Dr. José Leonardo do Nascimento Prof. Orientador - Presidente da Banca DAP - IA – UNESP – Universidade Estadual Paulista ______________________________________________ Prof. Dr. Cauê Alves FAFICLA – PUC - SP - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo ______________________________________________ Prof. Dra. Fabíola Cristina Alves DA - UFRN – RN – Universidade Federal do Rio Grande do Norte ______________________________________________ Prof. Dra. Lorena D'Arc Menezes de Oliveira Escola Guinard - UEMG – Universidade Estadual de Minas Gerais ______________________________________________ Prof. Dra. Rosangela da Silva Leote DAP – IA - UNESP - Universidade Estadual Paulista A Poética Do Barro Um estudo sobre Ivone Shirahata, Kukuli Velarde e Alexandra Engelfriet Agradecimentos À minha família, meus amigEs, companheirEs de pesquisa, pelas partilhas e colaborações. Em especial Diogo, meu companheiro de vida, pela sua alegria diária, paciência e incentivo. Principalmente nos anos de pandemia da Covid-19, que com amor, respeito e ajuda mútua, conseguimos vencer essa fase Ao meu orientador, o professor José Leonardo, pelas ricas trocas em todo o período. À professora Lalada Dalglish pelas partilhas do seu vasto repertório sobre a cerâmica. Às artistas Ivone Shirahata, Kukuli Velarde e Alexandra Engelfriet, pelo aceite em participar dessa pesquisa, das entrevistas e permissão para escrever sobre suas obras. Em especial a Ivone por me receber em seu ateliê e por toda atenção, pelas trocas e informações sobre seu trabalho, pelo aceite da minha participação em sua oficina, que sem dúvidas foi de grande colaboração para esse trabalho. A profª. Fabíola Alves e prof°. Cauê Alves pelas correções e orientações no exame de qualificação que sem dúvida, foram importantes para a conclusão desse trabalho. Resumo Esta tese tem como objetivo estudar o uso do barro como protagonista criativo e matéria-prima principal das poéticas de três artistas contemporâneas: Ivone Shirahata, Alexandra Engelfriet e Kukuli Velarde. O critério de seleção das artistas abordadas, se deu no reconhecimento da originalidade e autenticidade do trabalho, sendo fruto de pesquisa, envolvimento pessoal das artistas com o material e na transcendência dos limites técnicos conhecidos/aceitos numa produção tradicional de cerâmica: o destino mais comum do barro. Suas obras ofereceram uma abertura para um estudo mais complexo entre filosofia e arte a partir do pensamento de Merleau-Ponty. As artistas não referenciam o filósofo, mas isso não gerou um conflito nas reflexões porque os procedimentos, as pesquisas e o conjunto das obras resultam da relação profunda com o corpo sendo ele operante com o barro, porque toda técnica é uma técnica do corpo. Cada uma em seu lugar de fala, mas todas se debruçam numa memória particular. As vivências originaram a partir de um corpo sensível, consciente e primordial no ato da criação. Por isso, a fenomenologia ofereceu a fundamentação para uma análise mais íntima e complexa, porém, nada conclusiva. Palavras - chave: cerâmica; arte contemporânea; Merleau-Ponty; Alexandra Engelfriet; Ivone Shirahata; Kukuli Velarde. Abstract This research aims to study the use of clay as a creative protagonist and main raw material in the poetics of three contemporary artists: Ivone Shirahata, Alexandra Engelfriet and Kukuli Velarde. The selection criterion for the approached artists was based on the recognition of the originality and authenticity of the work, being the result of research, personal involvement of the artists with the material and the transcendence of known/accepted technical limits in a traditional ceramic production: the most common destination from clay. His works offered an opening for a more complex study of philosophy and art based on Merleau-Ponty's thinking. The artists do not reference the philosopher, but this did not generate a conflict in the reflections because the procedures, the research and the set of works result from the deep relationship with the body as it operates with clay, because every technique is a technique of the body. Each in its own place of speech but all focus on a particular memory. The experiences originated from a sensitive, conscious and primordial body in the act of creation. Therefore, phenomenology offered the foundation for a more intimate and complex analysis, however, nothing conclusive. Keywords: ceramics; contemporary art; Merleau-Ponty; Alexandra Engelfriet; Ivone Shirahata; Kukuli Velarde. Resumen Esta investigación tiene como objetivo estudiar el uso de la arcilla como protagonista creativa y principal materia prima en la poética de tres artistas contemporáneas: Ivone Shirahata, Alexandra Engelfriet y Kukuli Velarde. El criterio de selección de los artistas abordados se basó en el reconocimiento de la originalidad y autenticidad de la obra, siendo el resultado de la investigación, el involucramiento personal de los artistas con el material y la trascendencia de los límites técnicos conocidos/aceptados en una producción cerámica tradicional: el destino más común de la arcilla. Sus obras ofrecieron una apertura para un estudio más complejo de la filosofía y el arte basado en el pensamiento de Merleau-Ponty. Los artistas no hacen referencia al filósofo, pero esto no generó conflicto en las reflexiones porque los procedimientos, la investigación y el conjunto de obras resultan de la profunda relación con el cuerpo tal como opera con el barro, porque toda técnica es una técnica del cuerpo. Cada uno en su propio lugar de discurso, pero todos se centran en un recuerdo particular. Las experiencias se originaron a partir de un cuerpo sensible, consciente y primordial en el acto de creación. Por lo tanto, la fenomenología ofreció las bases para un análisis más íntimo y complejo, sin embargo, nada concluyente. Palabras llave: cerámica; arte Contemporáneo; Merleau- Ponty; Alexandra Engelfriet; Ivone Shirahata; Kukulí Velarde. Lista de Figuras 83 Figura 01 – Alexandra Engelfriet, sem nome, esculturas, cerâmica, 2007. 86 Figura 02 – Alexandra Engelfriet, processo, experiência e imersão para Clay, 1989 – 1991. 86 Figura 03 – Alexandra Engelfriet, Clay, 1989 – 1991, argila bruta, Amsterdã, Holanda. 88 Figura 04 – Processo da abertura da vala. 89 Figura 05 – Processo da modelagem da argila em Tranchée 90 Figura 05a – Detalhes do processo da modelagem da argila para Tranchée 92 Figura 06 – O processo da montagem do forno. 93 Figura 07 – O processo de queima 93 Figura 08 – Processo de desmontagem do forno 94 Figura 09 – Resultado final após a queima, Trincheira em Vents des Forêts, La Meuse, França, 2013 96 Figura 10 – Alexandra Engelfriet. processo de criação, Mixed Blood, 2017, Carolina do Norte, EUA. 96 Figura 10a – Alexandra Engelfrielt. Detalhe do resultado após a queima, Mixed Blood, 2017, Carolina do Norte, EUA. 97 Figura 11 – Alexandra Engelfriet, Mixed Blood, 2017, Carolina do Norte, EUA. 98 Figura 12 – Alexandra Engelfriet, processo de feitura da Skinned, 2018, Silkeborg, Dinamarca. 99 Figura 12a – Alexandra Engelfriet, processo de feitura da Skinned, 2018, Silkeborg, Dinamarca. 100 Figura 13 – Alexandra Engelfriet, pintura corporal em tecido, Skinned, 2018, a instalação e o detalhe do grafismo, Silkeborg, Dinamarca. 100 Figura 14 – Alexandra Engelfriet. Processo de feitura de Shedding Skin, 2021, França. 105 Figura 15 – Kukuli Velarde, detalhe da obra s/nome, série Plunder me Baby, terracota e engobe. 109 Figura 16 – Kukuli Velarde., a instalação, detalhe das obras e a artista em Plunder Me, Baby, 2007, Garth Clark Gallery, New York, EUA. 110 Figura 16a e 16b – Kukuli Velarde. A oferecida, a quem cabe! (Mas não faça personagem) e A La Cholitranca se le salió el indio! Vadia aborígine selvagem. Série Plunder Me, Baby, 2007. Cerâmica em terracota com engobes. Chuchumeca Autóctona Moche com desenhos de Viru Peru, 1- 800 DC. 112 Figura 17 – Kukuli Velarde. Isichapuitu, série, instalação. Clay studio, Nova Iorque, EUA, 1997- 2002. 113 Figura 18 – Kukuli Velarde, Santa Chingada, a mulherzinha perfeita I da série Isichapuitu, 56 x 40 x 33 cm, 1997-2002. Coleção de Michael John Kohler Arts Center. 113 Figura 19 – Kukuli Velarde, sem nome, série Isichapuitu, 56 x 40 x 33 cm, 1997-2002. 115 Figura 20 – Kukuli Velarde, bandeira de procissão, série Corpus, 63,5 x 92,4 cm, 2012 - 2013. Trabalho colaborativo com artistas peruanos: Baldomero Alejos, Ana De Orbegoso, Lorry Salcedo. 116 Figura 21 – Kukuli Velarde, Santa Ana, série Corpus, 2022. 117 Figura 22 – Kukuli Velarde, La Omagua, série Corpus, 2022. 122 Figura 23 – Ivone Shirahata, processo de modelagem com acordelado, 2021. 123 Figura 24 – Ivone Shirahata, cerâmica sem nome. Cotia, São Paulo, Brasil. 124 Figura 25 – Ivone Shirahata, cerâmica sem nome, Cotia, São Paulo, Brasil. 125 Figura 26 – Ivone Shirahata, cerâmica sem nome, Cotia, São Paulo, Brasil. 126 Figura 27 – Ivone Shirahata, cerâmica sem nome, Cotia, São Paulo, Brasil. 129 Figura 28 – Ivone Shirahata, cerâmica sem nome, Cotia, São Paulo, Brasil. 130 Figura 29 – Ivone Shirahata, detalhe das obras, cerâmica sem nome, Cotia, São Paulo, Brasil. 141 Figura 30 – Alexandra Engelfriet, Underground, 2016, De Oude Warande, Tilburg, Holanda. 144 Figura 31 – Ivone Shirahata, fotografias de seu acervo do banco de imagens, s/d. 145 Figura 32 – Ivone Shirahata, Pedra – Cerâmica - Pedra, cerâmica e fotografia, s/d. 151 Figura 33 – Ivone Shirahata, sem título, sem esmalte, 2023. 154 Figura 34 – Kukuli Velarde com uma de suas obras da série Plunder me baby. Detalhe da representação do seu rosto na cerâmica. 154 Figura 35 – Kukuli Velarde e a representação do seu corpo e rosto na obra Vênus?. Pintura a óleo e acrílico em placas de alumínio que discute sobre o padrão de beleza construído pelos clássicos. Série Cadáveres, 2005. Exposta em Complicit Eye, 2018 em Taller Puertorriqueño, Filadélfia, EUA. 158 Figura 36 – Kukuli Velarde, série Plunder me Baby. 173 Figura 37 – Kukuli Velarde, 2022, A Mi Vida, happening e esculturas em cerâmica. 174 Figura 37a – Kukuli Velarde, 2022, A Mi Vida, happening e esculturas em cerâmica. 177 Figura 38 – Alexandra Engelfriet, Sem título, registro fotográfico do processo de criação da obra, 2022, Paris, França. 177 Figura 39 – Alexandra Engelfriet, Sem título, detalhe da execução da obra, 2022, Paris, França. 178 Figura 40 – Alexandra Engelfriet, Sem título, obra finalizada, 2022, Paris, França. 180 Figura 41 – Ivone Shirahata, técnica exposta para modelar, observando uma pedra. Sumário APRESENTAÇÃO........................................................... 25 INTRODUÇÃO. Merleau-Ponty e a Arte, uma leitura mais que possível.......................................................... 29 Capítulo I. A Contemporaneidade, o Arcaico e os Mundos Abertos............................................................. 39 1.1 arte contemporânea ou arte atual? ....................... 41 1.2 A arte contemporânea e o arcaico......................... 51 1.3 Os mundos abertos pela arte................................ 55 Capítulo II. A fenomenologia de Merleau-Ponty para um entendimento sobre a Poética do Barro................61 2.1 O corpo, a corporeidade e a experiência do sensível................................................................... 71 Capítulo III. As artistas e o barro – diferentes formas de dar visibilidade ao invisível..................................... 77 3.1 Alexandra Engelfriet: corpo e mente integrados à natureza....................................................................83 3.2 Kukuli Velarde: o corpo e o feminino em suas (re) construções da ancestralidade andina................103 3.3 Ivone Shirahata: a serena harmonia de suas cerâmicas..................................................... 119 Capítulo IV. O Estudo das Artistas e os Diálogos com a Fenomenologia de Merleau-Ponty.................. 131 Parte 1. O corpo e a corporeidade.............................135 Parte 2. Forma, Matéria, Ação: o Ato Criativo em Discussão............................................................ 163 MODELANDO IDEIAS. Uma Consideração Final.......187 REFERÊNCIAS............................................................. 197 ANEXOS........................................................................ 207 25 Apresentação Apresento-me como aspirante à cerâmica que, tocada pelo barro no início da graduação, sempre desejou praticar e estudar essa arte. Agora, coloco-me na posição de escrever sobre as produções das artistas ora pesquisadas, mas sempre com o olhar atento às suas escutas, das quais transcrevo os prazeres e as aventuras de serem ceramistas. A escrita de qualquer trabalho acadêmico exige, para além da dedicação e estudo, certa dose de sacrifícios, sejam eles pessoais ou profissionais. Esta tese tem um valor especial; escrita na dura fase da pandemia mundial de Covid-19, precisou ser reformulada várias e várias vezes. Cabe esclarecer o imenso desafio que foi conciliar a pesquisa com a quarentena e todos os empecilhos por ela trazidos, tais como o fechamento de universidade e bibliotecas, e ainda, com o trabalho, que consistia em teletrabalho e revezamento presencial. Mas não para por aí: foi preciso lidar com os replanejamentos, os cancelamentos de visitas em ateliês, as desistências dos artistas em colaborar com a pesquisa, dentre outros desafios, o que me deixou em dúvida se eu conseguiria finalizar o doutoramento. As incertezas do futuro impostas pela pandemia mundial também me colocaram numa situação de autoconhecimento e valorização das pequenas vitórias do dia a dia que, antes, passavam despercebidas. Trouxe o reconhecimento da necessidade de se ter uma rotina, fazer caminhadas e exercícios físicos para o corpo e a mente, e claro, da importância dos relacionamentos afetivos. Seria fácil simplesmente planejar e executar; entretanto, se em um cenário anterior à pandemia isso já era bastante difícil, é possível imaginar, sem grande esforço de empatia, a frustração de planejar e não conseguir executar graças às diversidades externas, independentes da nossa vontade e que fogem completamente do nosso domínio. E lidar com as frustrações e a falta de controle da própria pesquisa foram os primeiros desafios que precisei encarar. Depois, foi preciso aceitar o que era possível fazer para concretizar o 26 processo e finalizar a tese. Por fim, aceitar a realidade, escrever o possível e fazer disso um produto qualificado e apto a ser consultado, inspirando futuros pesquisadores. Inicialmente, o projeto de pesquisa era um estudo comparado de produções cerâmicas de artistas brasileiras e argentinas, duas de cada país, fruto de uma cisma surgida com o encerramento do mestrado. Durante esse período, tive contato com as artistas que fariam parte da tese, despertando-me o desejo de escrever sobre elas. Seria, então, um trabalho de campo e vivências nos ateliês, que iniciariam em 2020: ano inicial da pandemia. Reformulado, passou a ser uma pesquisa bibliográfica sobre o barro como material potencialmente expressivo e artístico usado por algumas artistas. Por fim, o estudo realizado é regido pela fenomenologia de Merleau-Ponty, caminho surgido naturalmente a partir das poéticas das artistas estudadas. O presente texto é fruto de um período histórico que marcou a vida de todos que o viveram, e mudou o rumo da humanidade, porque hoje podemos identificar a sociedade com antes e pós pandemia. A falta de controle do homem sobre a própria vida durante as ondas de Covid-19 me fez refletir sobre o barro, a cerâmica e suas inerentes eventualidades. A técnica pode ser aprendida e dominada, mas o processo não. É normal escutar dos ceramistas que é necessário “escutar e sentir o barro”, “é a argila que avisa a hora de ser manipulada”; inclusive, a artista Ivone Shirahata, abordada nesta tese, falou muito em “respeitar o tempo do barro”. Saberes que vão além do entendimento dito racional, mas são tão reais quanto o ar que respiramos. Além do mais, o contato do barro com as mãos reconecta o ser humano com o seu Ser interior, com sua própria vida, o sensibiliza para viver externamente o dia a dia. A pandemia nos mostrou que, “no fundo”, sabemos que não temos o controle da vida em si mesma – menos ainda das nossas próprias vidas. De forma análoga, o barro e a cerâmica também são impossíveis de serem controlados, de modo que tais elementos se aproximam muito do mistério de viver. O barro é um material poético por natureza; regido pelos elementos fogo, ar, terra e água, constitui-se em material ritualístico, artístico, carregando consigo a simbologia da origem da vida no planeta Terra. Cada uma com sua poética e estética, as artistas selecionadas se interrelacionam porque, primeiro, usam a mesma matéria para se expressarem; segundo, elas discutem a relação do homem com a sociedade, com a política, com o meio ambiente e a natureza, e se colocam como críticas perante o sistema socioeconômico. 27 Diante de uma pandemia, sufocada em solidão e angústia diárias, escrevi e apresento este texto: uma narrativa em forma de pesquisa sobre a arte. Ante tantos ataques, ambas, ciência e arte, acabaram por ir na contramão da sua essência que é, em suma, compartilhamento, discussão e construção de ideias no coletivo. Em meio às incertezas sobre o futuro, com as universidades e bibliotecas fechadas, com aulas presenciais e os cafés “didáticos” suspensos, sem os encontros no ateliê de cerâmica do I.A1, mantive firme a vontade de escrever, como um ato de resistência aos discursos negacionistas sobre a ciência, a política e a vida. Desnudo-me. O que ora apresento foi escrito em meio às memórias dos encontros de amigos, familiares e abraços, em projeções futuristas tão incertas quanto a normalidade pós- pandemia; durante as divisões de tarefas, antes realizadas fora de casa, nos desdobramentos necessários, numa busca de entendimentos, interpretações e ressignificações. Mesmo quando minaram as esperanças de alguns pesquisadores, continuei, assim como muitos outros colegas da pós-graduação, porque ainda nos resta sonhar, imaginar, poetizar. A arte tem a potência de inventar e produzir sentidos, e antes de pesquisar eu me impregno de sentidos, os produzo e os propago através da educação. “Pense em nós como pessoas que abrem caminhos pra se perder, que constroem pontes não para chegar ao outro lado, mas para saltar e voar2”. Se hoje a “normalidade” está praticamente instaurada, não podemos esquecer o passado sob pena de repetir os mesmos erros no presente. Para que tenhamos um futuro, é necessário que as palavras não sejam jogadas ao vento, mas que se constituam em um veículo de presença: Para que a gente escreve, se não é para juntar nossos pedacinhos? Desde que entramos na escola ou na igreja, a educação nos esquarteja: nos ensina a divorciar a alma do corpo e a razão do coração. 3 1 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” do munícipio de São Paulo, SP. 2 CARDOSO, Diego. In: A arte da solidão: artistas-pesquisadories refletem sobre a pandemia (p. 13). Yanubiá Edições. Edição do Kindle, 2021, p. 13. 3 GALEANO, Eduardo. Celebração da razão com o coração. In: O livro dos Abraços. Porto Alegre: L&PM, 2019, p. 119. 28 29 Introdução. Merleau-Ponty e a Arte: uma leitura mais que possível O filósofo francês Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) desfez as amarras da tradição. Com o foco na percepção, corpo, sensibilidade, rompeu com os ideais empiristas da filosofia moderna. Em sua produção intelectual encontra-se a sua pesquisa e os diálogos com outras áreas do conhecimento: psicologia, psicanálise, antropologia, política, história, arte e educação. Merleau-Ponty centrou suas interrogações no corpo e nas experiências; nesse sentido, encontrou na arte o apoio e meio para a sua filosofia da fenomenologia. Desde o princípio, investigou o fenômeno da percepção, partindo do apelo de Husserl à volta às coisas mesmas, foi contra o olhar de sobrevoo, a concepção de a sensibilidade estar atribuída ao pensamento e o dualismo da metafísica. Para Merleau-Ponty, o primordial da percepção está na experiência que se tem das coisas, principalmente as vividas pelo corpo porque este, encarnado no mundo, é, por si, uma unidade perceptiva. Não somos apenas consciência, somos consciência encarnada num corpo. Pela primeira vez, o corpo ganhou um protagonismo e saiu do segundo plano. Para o filósofo, o corpo é um sistema sofisticado que interage com outros corpos; inclusive são vistos, visíveis e veem: vê-se um fenômeno desvelando-se e tem-se a consciência corpórea daquilo que se vê e que, ao mesmo tempo, é visto. É em sua obra A fenomenologia da percepção, de 1945, que Merleau-Ponty esforça-se para defender a primazia da percepção na experiência que se têm das coisas, principalmente o corpo e a corporeidade, sendo uma unidade perceptiva e privilegiada por estar encarnada no mundo. Já em sua obra inacabada, O visível e o invisível, iniciada no final de 1950, Merleau-Ponty reafirma uma ontologia da carne a 30 fim de superar os dualismos da metafísica tradicional. Nela, expressa a relação promíscua das coisas e dos sentidos, como dialogam entre si, sempre priorizando a experiência dos fenômenos. Do mesmo tecido originário do mundo, o homem e as coisas se originam, portanto, pertencem a ele e se tocam. Uma espécie de experiência reversível entre o visível e invisível, tocante e tangível, dizível e indizível, do pensável e do impensável: é o quiasma. Desse ponto é que se chega na arte. Nessa obra inacabada, o filósofo debruça-se sobre a arte e desvela sua importância em sua fenomenologia. Já explanada em outros textos do autor, como A dúvida de Cézanne (2014), Linguagem indireta e as vozes do Silêncio (2014) e Olho e o Espírito (2014), a arte tem o poder de conduzir à experiência e dar visibilidade ao invisível. É através do corpo do pintor, oferecido ao mundo, que ele o transforma em pintura. É um corpo operante e consciente que traduz o mundo e o fenômeno em obra de arte. Nesse sentido, esta tese de doutorado foi instigada pelo legado filosófico de Merleau-Ponty e reconhece a sua importância para o campo das artes. Apesar de ele não abordar a cerâmica, a performance e a escultura em sua totalidade, seu pensamento conduz à essas operações artísticas em diferentes conceitos, num exercício dialógico do ser com o outro e com o meio. Também proporciona questionamentos diversos, uma abertura para novas perspectivas, o que se aproxima dos impensados. E por promover novas formas de entendimentos, sua fenomenologia é plausível para as questões levantadas nesta pesquisa. A arte é uma linguagem falante e operante e, como expressão artística, as obras são matrizes de ideias. As obras das artistas escolhidas, Alexandra Engelfriet, Kukuli Velarde e Ivone Shirahata, configuram-se como arte de acordo com Merleau- Ponty, porque promovem o encontro com o sensível e o repertório de significações daquele que vê, que sente, com os impensados conservados latentes na obra de arte. São matrizes porque também são potências do instituinte: nada está consumado ou instituído –, ou seja, elas promovem a abertura. Uma abertura a um mundo, ou vários mundos, a compreensões sensíveis e subjetivas sobre a vida e si mesmo e ao entendimento do mundo em que se vive. Esses mundos serão discutidos de forma mais aprofundada adiante. Deste modo, houve a concentração nas contribuições da fenomenologia de Maurice Merleau-Ponty para o campo das Artes devido ao desejo de realizar a 31 apresentação e um estudo dessas artistas partindo de sua relação com o primordial da criação, originado pelo contato com o material: o barro. Trata-se, portanto, de uma celebração a esse material facilmente encontrado, dificilmente manipulado, carregado por simbologia e signos que remetem ao arcaico, extremamente exigente e senhor de suas peculiaridades. A abordagem se deu a partir de suas obras e não a partir de suas biografias. Uma narrativa de uma história escrita com foco no processo criativo: é a Vida que exige a obra e não o contrário. Porém, “é certo que a vida não explica a obra, mas é certo também que elas se comunicam. A verdade é que essa obra por fazer exigia essa vida.” (2014, s/p) Portanto, optou-se em escrever sobre as produções artísticas a partir de alguns pressupostos filosóficos de Merleau-Ponty: o advento, o corpo sensível, o corpo próprio, o campo de presença, o elemento carne e a linguagem falante – o que permitiu fazer um estudo das artistas pelo quiasma. Regidas pelo próprio barro, as três artistas selecionadas, possuem processos criativos e estilos diferentes umas das outras, porém, o foco não é o produto, e sim o processo e o diálogo com o barro, já que a obra é vista como inacabada. Sendo o barro celebrado como um material plástico expressivo, simbólico, poético e ritualístico, ele permite a exploração dos procedimentos de uso. A experiência, a surpresa e a descoberta são inerentes ao material, uma massa que modelada traduz o mundo das ideias no mundo das formas. Por vezes, surge como planejado, mas nem sempre; o barro toma a forma das mãos, seguindo um curso que pode ser, ou não, desejado, porém nunca se esgotando na cerâmica, como é entendido pelo senso comum. As produções das artistas, sendo performances, esculturas e cerâmicas, são feitas num diálogo silencioso, num devir e porvir, numa conversão sensorial que impregna de sentidos o barro, o criador e o observador. Que conduz a meditar, observar, ver, sentir e transmutar, não somente com as mãos, mas com o corpo inteiro. As mãos veem, o corpo escuta e o objeto fala. Um devaneio com a matéria que permite o sentir / pensar. A poética do artista é a responsável em dar identidade ao seu trabalho; constituída por vários fatores, é também expressividade. A arte não é “mera questão de habilidade” (OSTROWER, 1998) se não, como identificar um artista? Pensar na 32 obra é pensar na razão de sua existência. Isto posto, questionou-se: por que escolheram o barro como material principal para as produções? Por que elegeram a cerâmica como meio de expressão? Desses questionamentos foram criadas hipóteses e delas as reflexões sobre a cerâmica, a artista, a arte e, principalmente, sobre o barro. Como já apresentado, houve reformulações e replanejamentos até a efetivação do rumo da pesquisa. Portanto, a metodologia partiu de uma pesquisa bibliográfica seguida de observações das aulas, telefonemas e uma visita ao ateliê de Ivone Shirahata guiada pelo método de Daniel Bertaux (1997), o Réctis de Vie (Relatos de Vida) constituída por entrevistas qualitativas, semi-diretivas, analisadas segundo uma perspectiva etnossociológica, a qual assume a subjetividade do relato de modo a compreendê-lo como um fenômeno social. Kukuli Velarde e Alexandra Engelfriet foram contactadas por e-mail com um pedido de uma entrevista online ou por escrito. Velarde respondeu que faria a conversa pelo Zoom, mas infelizmente não foi adiante. Já Engelfriet, aceitou responder as perguntas por e-mail, através de um texto escrito por ela, e para auxiliar a pesquisa, anexou diversos materiais inéditos de entrevistas e uma tese de antropologia sobre o seu trabalho. Portanto, tendo como objeto principal o barro, as especificidades da pesquisa trataram de refletir sobre como é a relação corpo-artista com o corpo-matéria durante a utilização dessa matéria para as criações das artistas; nisso deu-se a compreensão do processo criativo. No Capítulo 1, “A Contemporaneidade, o Arcaico e os Mundos Abertos” em “Arte Contemporânea ou Arte Atual?”, foi tomada emprestada essa questão feita por Anne Cauquelin e questionada por Paula Braga para discutir a produção artística do presente. Com intuito de contextualizar as artistas da pesquisa, foi necessário estudar e escrever sobre a arte moderna e seus frutos – arte contemporânea e arte atual – e como se relacionam com a sociedade. Um debate reflexivo que se desenvolve para a relação íntima do contemporâneo com o arcaico, como esse diálogo reflete na arte e na história da arte. Compreendendo que toda obra de arte é supostamente contemporânea, levando em conta o tempo e a sociedade em que foi produzida, a história deve ser anacrônica, tendo como base os estudos articulados pelos autores Giorgio Agamben e Georges Didi-Huberman. 33 Vale ressaltar que não foi objetivo dessa pesquisa abordar uma história da arte feminista, porém, por fim, não deixa de ser, já que priorizou as mulheres artistas pelo desejo de dar-lhes visibilidade, bem como aos trabalhos considerados relevantes e potentes esteticamente. Essa tomada de decisão veio ao encontro da questão levantada por Linda Nochlin (1988): “Por que não existiram grandes mulheres artistas?” – ela levantou em seu artigo a lógica dominante nos circuitos de arte, os curadores e historiadores que priorizaram as produções masculinas, desmerecendo o trabalho das artistas mulheres, achando-o menos relevante. Destaca-se o fato de as mulheres terem acesso à educação, à cultura e a uma vida pública tardiamente, por estarem destinadas à vida doméstica e familiar. Não foi apenas a condição social imposta por uma sociedade patriarcal que dificultou a inclusão das mulheres no meio artístico. Há um processo de desconstrução no qual, por muito tempo, o artista foi considerado gênio, sendo esse artista sempre um homem, de modo que, consequentemente, as próprias mulheres, mesmo capazes, reconheciam na figura masculina a genialidade: [...] mulheres vivem em contextos sociais e imersas em discursos imagéticos e verbais que não as encorajam a ser grandes artistas. Mesmo em épocas em que se considerou adequado à formação de uma moça estudar arte, a expectativa era de que se refinaria culturalmente, e não de que ela adentraria o cânone da história da arte. (BRAGA, 2021, p. 52). O presente texto não só revela as artistas mulheres pela sua importância no meio artístico atual, mas analisa suas obras e suas histórias a partir do discurso dos momentos de recepção de suas obras. História da arte e filosofia unidas para ir além da revelação de artistas mulheres, porque, para Merleau-Ponty, a história não é, de maneira alguma, formada pelos fatos e pelos tempos definidos, recontada sem uma análise. Pelo contrário, a sua expressividade e o seu sentido estão fundados na percepção e deve ser a história da vida, porque uma poesia do mundo pede ao presente que ele se engate novamente na fecundidade de outros presentes, nos quais a criação sempre antecede o criado, ou então não há, e não houve, um presente, nada de fecundo e criador, não houve e não haverá história, ligação inventiva entre as gerações 4 . 4 TASSINARI, Alberto no Posfácio do livro de Merleau-Ponty, O Olho e o Espírito, 2014, s/p. 34 Em “Os mundos abertos pela arte”, deu-se início à abordagem fenomenológica através da questão, que chega a ser até clichê: “o mundo aberto pela arte”. Mas que mundo? Quais são os mundos existentes? Por que a arte abre um mundo? Justamente para a questão não ser mais um estereótipo no universo da arte, optou-se por explicar sobre esse conceito. Desde a Antiguidade a questão sobre a existência de outros mundos era abordada, e o fato é que a arte os explicita. Frequentemente solicitada pela fenomenologia, a arte opera a ação de abertura de um mundo. No capítulo serão discutidas algumas questões para entender esse lugar da arte e esse espaço que ela ocupa e abre. Para tal entendimento, a fenomenologia, os estudos de Merleau-Ponty foram complementados pela abordagem filosófica de Anne Cauquelin em seu livro No Ângulo dos mundos possíveis (2011) e pela teoria sobre essa questão de Umberto Eco que trata ser uma concepção extensionista de mundo, escrita em seu livro A obra aberta (1991). O Capítulo 2, “A fenomenologia de Merleau-Ponty para um entendimento sobre a Poética do Barro”, concentrou-se nos estudos da fenomenologia de Merleau-Ponty escritos a partir da sua própria experiência como um fruidor de obras de arte, mais especificamente da arte moderna. Logo, as suas reflexões não são direcionadas ao Belo, mas ao entendimento: da percepção, da experiência sensível do corpo, do Ser, do visível, do invisível, da linguagem, da história, da representação e da intersubjetividade, que são destacadas neste capítulo. As artistas trabalham com o corpo do barro, que por si é expressivo, relacionando- o com o próprio corpo, entendido como sensível e operante, para materializar suas ideias. O corpo é também visto como habitação do espírito, um espaço que ocupa e é ocupado, lugar do Ser Bruto que se entrelaça com o Espírito Selvagem, mas que antes de tudo é um organismo inteligente. Para tanto, compreender e debruçar-se sobre a fenomenologia de Merleau-Ponty foi mais que necessário para a abordagem teórica que as obras exigiam. No Capítulo 3, “As artistas e o barro – diferentes formas em dar visibilidade ao invisível”, as artistas são apresentadas, acompanhadas por algumas de suas produções, diferentes, mas conectadas pelo barro. Portanto, o foco 35 é compreender como esse material é trabalhado por elas. Suas estéticas são femininas, e no caso de Kukuli Velarde também é feminista, nas quais o corpo se tornou um campo de experimentação. Há a descrição da relação do corpo de cada uma com a matéria, resultando num diálogo criativo e intelectual. A Alexandra Engelfriet utiliza o próprio corpo como instrumento de modelagem e nas toneladas de argila eterniza o gesto. Conecta-se à terra através dos movimentos que, seguidos e coordenados num ritmo, a conduzem para a integração com o próprio material e a natureza. Seu corpo integra o barro e é por ele integrado: um só corpo e uma só mente. Já Kukuli Velarde modela suas esculturas e empresta seu rosto e corpo como moldes. Ela se projeta para representar a repressão que seu povo sofreu e ainda sofre, as violências diversas sofridas pelas mulheres e os cânones da representação do corpo feminino na arte. Questiona os novos padrões de beleza, de corporeidade, propondo como um ato de resistência outros modos de representação. Por fim, Ivone Shirahata cultiva o silêncio, a observação, e sua produção artística é resultado de uma meditação. A cerâmica tem um valor filosófico atrelado a um estilo de vida e praticá-la significa uma eterna busca de autoconhecimento. Como discípula da mestra Shoko Suzuki, seu trabalho carrega a tradição japonesa. O ato de criar surge da escuta do barro pelas mãos, a observação e contemplação da natureza, da meditação e de muita pesquisa dos procedimentos cerâmicos. Aqui, foi abordada a forma com que o barro é trabalhado pela artista e como seu corpo se relaciona com o corpo erguido por suas mãos. É através dessa eterna busca em satisfazer os desejos que essas artistas transcendem as tradicionais técnicas, os limites esperados e conhecidos. A expressão ultrapassa a forma tradicional de fazer e o domínio de uma técnica e linguagem; “[...] nas obras de arte, as técnicas acabam se tornando „invisíveis‟, sendo absorvidas inteiramente pelas formas expressivas [...]” (OSTROWER, 1998, p. 18). Assim, o produto de arte existe na sua verdade construída pelo seu conteúdo simbólico e este se sobressai sobre os meios técnicos utilizados. No Capítulo 4, “O Estudo das Artistas e os Diálogos com a fenomenologia de Merleau-Ponty”, são apresentados os dados coletados na pesquisa bibliográfica e de campo em um estudo específico e aprofundado das três artistas. Aqui são retomadas as abordagens dos teóricos que fundamentaram a pesquisa a fim de explanar sobre as produções das artistas. A partir da 36 fenomenologia de Merleau-Ponty, houve a preocupação em não comparar a fim de evitar reduzir o conhecimento construído pelo estudo. Preocupou-se em estudar de forma detalhada a motivação, o percurso de criação e execução da obra e sua relação com o barro. Cada artista foi analisada individualmente, tendo como ponto de partida a sua prática artística. A Parte 1. O corpo e a Corporeidade, dedicou-se às abordagens das artistas através do entendimento do corpo consciente, operante e sensível de Merleau-Ponty. Considerou-se as vivências relatadas sobre o processo das concepções das obras e como o corpo relaciona-se com esse processo. Considerado um lugar habitado, o corpo também é um mediador entre o mundo externo e esse mundo interno; é consciência perceptiva e o primeiro instrumento de modelagem, usado para relacionar-se com o barro: oferecido ao mundo, as artistas criam e o transformam em arte. Na Parte 2. Forma, Matéria, Ação: O ato criativo em discussão, houve a preocupação em compreender como se dá o percurso da concepção da obra, desde a ideia até a exposição. Foram fundamentais as contribuições de Fayga Ostrower, Cecília Salles e Henri Focillon no âmbito de buscar a compreensão do processo criativo de cada artista, da relação que cada uma criou com a matéria, com o próprio corpo no instante do ato criativo. O texto, escrito com base na história da arte e filosofia da fenomenologia, tem consciência de que quem conta a história também é um inventor do passado, como George Didi-Huberman (2013) argumenta. Ter plena consciência das armadilhas das certezas é essencial, principalmente quando o objeto de arte é o objeto de estudo. Temos ainda alguns monumentos, mas não sabemos mais o mundo que os exigia; temos ainda algumas palavras, mas não sabemos mais a enunciação que as sustentava; temos ainda algumas imagens, mas não sabemos mais os olhares que lhes davam carne; [...] O que isso quer dizer? Que todo passado é definitivamente anacrônico: só existe, ou só consiste, através das figuras que dele nós fazemos. (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 50) Há um recorte, e ele é excludente, organizado de acordo com a proposta da pesquisa. Entretanto, a imagem é fruto de montagens de tempos divergentes, é atemporal, descontínua, pode ser configurada e reconfigurada de acordo com a 37 metodologia escolhida. A materialidade da obra é quem conduz aos questionamentos aqui presentes e apresentados que podem e devem ser revisitados. Faz sentido a ideia de Didi-Huberman (2015), de que, quando o pesquisador de arte se apropria de “fontes pertinentes” do passado, estará produzindo uma interpretação “eucrônica”, idealizada do passado. Não há acervo ideal e muito menos a idealização ou reprodução da legitimidade dos discursos sobre as obras já consolidadas. Considera que a materialidade da obra conduzirá a novas possibilidades discursivas, para além daquelas utilizadas para contextualizá-la. Portanto, a presente pesquisa não definiu conceitos, fechou um ciclo ou matou o conhecimento; [...] O filósofo espera que Sócrates morra para somente então dizer qual é a verdade do "é" de Sócrates. Muitos filósofos têm essa atitude, inclusive filósofos contemporâneos. Eles começam constatando que alguma coisa está morta para então dizer: "eis o que essa coisa é". É fácil esperar que uma coisa esteja morta para dizer o que é. Isso se chama metafísica. Não é o meu negócio, eu prefiro que Sócrates continue vivo, que a borboleta continue voando, mesmo que eu não possa pregá-la em um pedaço de cortiça para dizer que a borboleta "é" - decididamente - azul. Prefiro não ver completamente a borboleta, prefiro que ela continue viva: essa é a minha atitude quanto ao saber. Eu a vejo aparecer e tento pôr meu olhar em palavras, em frases. Mas esse é um olhar tão frágil e furtivo quanto são as minhas frases; se elas forem impressas, elas durarão, para o bem ou para o mal. Seja como for, é inevitável que a borboleta desapareça, já que é livre para ir aonde bem quiser, e não precisa de mim para viver sua liberdade. Ao menos eu terei apanhado em pleno voo, sem guardar apenas para mim, um pouco de sua beleza. (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 62) Antes, foi regida pela abertura: abrir-se a algo novo, um porvir. Que o conhecimento se multiplique e não acabe numa estante empoeirada e que esse trabalho seja revisto, porque está inacabado, assim como o ser humano e a própria obra de arte. Como Lacan explica, estamos fadados a sermos incompletos, e isso nos obriga a caminhar. 38 39 Capítulo I. A Contemporaneidade, o Arcaico e os Mundos Abertos 40 41 1.1 Arte Contemporânea ou Arte Atual? Arte Contemporânea ou Arte Atual? Esse dilema foi levantado primeiro pela filósofa francesa Anne Cauquelin e questionado pela brasileira Paula Braga (2021)5, o que faz sentido uma vez que se define o que seria o tempo contemporâneo. Segundo Giorgio Agamben (2009), é a própria contemporaneidade do ser, é o intempestivo: termo escrito numa anotação do jovem Nietzsche6 (apud BRAGA, 2021, p. 83) e exposto pelo autor em seu ensaio. Ser contemporâneo em seu próprio tempo é estar na rachadura de uma vértebra no dorso do tempo, ou seja, é não coincidir plenamente com a época. É ter uma relação com o tempo aderindo a este e, “ao mesmo tempo, dele tomar distâncias; mais precisamente, essa é a relação com o tempo em que a este adere através de uma dissociação e um anacronismo”. (AGAMBEN, 2009, p. 59). O ser contemporâneo estabelece uma relação com os contemporâneos do passado, sem se tornar nostálgico e nem avançar para o futuro inexistente, porque não há uma linha cronológica da vida. Não há também uma obra que não seja contemporânea em sua época de criação; por isso, ela se faz ponte para o passado, fazendo-o coexistir com o presente; isso é o presente intempestivo. Portanto, para compreender as diferenças da arte contemporânea e da arte atual, são trazidas algumas definições da filósofa Anne Calquelin (2005) nesse primeiro momento. Ela admitiu dois regimes de organização para o sistema de arte: o de consumo (arte moderna) e o de comunicação (arte contemporânea). A arte moderna vincula-se à noção de produto, porque há uma urgência no consumismo 5 Comunicação apresentada na II Jornada Filosofia, Arte e Estética da UNICAMP em 2019 “O tempo e a crítica de arte contemporânea” e presente em seu livro Arte Contemporânea: Modos de Usar. São Paulo, Elefante, 2021, p. 77-95. 6 In Considerações extemporâneas: “entender como um mal, um inconveniente e um defeito algo do qual a época justamente se sente orgulhosa”. 42 das obras. Já a arte contemporânea está centrada na lógica da informação e em sua circulação; de acordo com a autora (2005, p. 60-61), “há uma rede e você está nela” – rede que é tautológica e fechada, sobrevivendo de si mesma. Os valores artísticos se definem nessas redes, que são feitas de relações e estabelecem não só os valores, mas também as significações. O sistema de arte ainda está repleto de várias crenças o que prejudica a real percepção das obras dos artistas. Ainda de acordo com Cauquelin (2005), persiste a concepção do artista gênio criador, da imanência da obra de arte e da universalidade atemporal dos valores artísticos. Isso prejudica a compreensão da produção contemporânea, que é inominável, imprevisível e nada simples de ser catalogada. O campo atual da arte é bem mais amplo, fruto da modernidade7 e de seu propósito de acabar com a tradição pictórica. Hoje, há a existência de elementos da arte moderna entrelaçados com os da arte contemporânea, numa convivência harmoniosa, conectados e em constante transformação, fazendo surgir novas formas de expressão e estética, cada vez mais complexas. Há a importância em definir os conceitos de modernidade, modernismo e arte moderna, sem partir do princípio do conteúdo das obras. Modernismo é o comportamento diante do novo, do moderno e das inovações sociais e culturais. Já o modernista é aquele que compra a ideia do modernismo, ou seja, adota o comportamento, as inovações e o produto de acordo com a moda. Por fim, modernidade é um termo que pode ser usado em qualquer época, até na atual, considerada contemporânea: “[...] designa o conjunto dos traços da sociedade e da cultura, que podem ser detectados em um momento determinado, em uma determinada sociedade. [...] Assim, há uma modernidade de 1920, de 1950 ou de 1960 etc.” (CAUQUELIN, 2005, p. 25). Com esses conceitos, de acordo com a autora, a arte moderna é uma forma de expressão artística que surgiu por volta de 1860 e existiu até o momento contemporâneo, sendo qualificada a partir dos seguintes critérios: o gosto pela novidade, a recusa do padrão acadêmico das Belas Artes, um produto do período 7 Não se trata aqui de pensar a arte a partir da ideia de progresso ao longo de uma cadeia temporal marcada pela inovação. Ao contrário, a noção de modernidade é analisada pela autora de modo que “a arte contemporânea pode ser entendida como continuidade ou ruptura em relação ao que convencionou chamar arte moderna” (CAUQUELIN, 2005, p.16). 43 industrial, um resultado da sociedade de consumo. Além de possuir “a posição ambivalente de uma arte ao mesmo tempo „da moda‟ (efêmera) e substancial (a eternidade).” (Idem, p. 27) Da ruptura do modelo de arte moderna, regido pelo consumo até a consolidação da arte contemporânea que pertence à comunicação, segundo Cauquelin, houve um processo de transição no qual alguns artistas modernos intervieram no sistema e preparam o cenário para a chegada do novo estado. Foram os embreantes8: Marcel Dunchamp (1887-1968), Andy Warhol (1928-1987) e o marchand-galerista-colecionador Leo Castelli (1907-1999). De acordo com Cauquelin, esses embreantes introduziram uma nova forma de fazer, comercializar e encarar a arte, lançaram direções, mas não determinaram o curso do que hoje se entende por arte contemporânea. Como já apresentado, há uma mistura de diversos elementos, e valores que compõem os variados dispositivos complexos: tudo em uma eterna e instável transformação. Para a autora, é necessário considerar que há um sistema de arte desde o modernismo, composto por críticos, comerciantes, colecionadores, marchands e curadores. Entender o funcionamento desses mecanismos, o papel da instituição, do Estado, da política, etc é necessário para uma compreensão da produção artística atual. Fato é que existem três lados – produtores, intermediadores e consumidores – que influenciam, analisam e selecionam obras consideradas arte a serem consumidas através da compra ou fruição9 nas grandes exposições. As obras descartadas sobrevivem à margem, num circuito não oficial, e os critérios levantados por aqueles que selecionam são embasados pelo mercado: é arte o objeto que possuir elementos e critérios para possível venda, ou seja, ao ser inserido no circuito artístico, alimentará a compra e venda aquilo que se mostra vendável. São dois mundos confrontados: moderno versus contemporâneo – além do sistema, a compreensão da arte contemporânea é prejudicada graças ao 8 Termo que designa unidades com dupla função e duplo regime. Aqui, trata-se da conexão de uma mensagem do passado, o enunciador com o receptor no presente, o que fez surgir elementos do passado com novas concepções. São embreantes do novo regime e são causas na arte contemporânea. 9 É certo compreender que o público é influenciado por outros dispositivos, portanto, não se trata somente da fruição instantânea, mas, a conduzida por todo mecanismo que inclusive obriga o sujeito a: frequentar e entender tal obra, tal artista, tal conceito – em busca do aculturamento e educação. 44 entendimento do que seria arte, construído a partir da arte moderna. É preciso “ver de que forma a arte do passado nos impede de captar a arte de nosso tempo.” (Idem, p. 18). Com o impedimento de ver a arte contemporânea, próxima demais e ao mesmo tempo afastada e desconectada do público, que muitas vezes insiste em atribuir-lhe os ideais das manifestações do passado numa tentativa de melhor entendê-la. A autora explica também, que o conceito e a própria arte contemporânea são incompreendidos pelo público em geral, devido às diferentes abordagens e às diversas linguagens, práticas e fusões. A sociedade se tornou líquida, tudo é passageiro e efêmero (BHAUMAN 2000), inclusive seus valores, e nesse cenário, as manifestações artísticas ocupam diversos lugares, formas e áreas antes não pertencentes à arte, gerando uma certa confusão e desentendimento nas pessoas que buscam apreendê-la. O próprio termo arte contemporânea, não deve ser analisado de forma literal. A produção feita no mesmo momento em que é observada é arte moderna, se levado em consideração o tempo do período moderno. Porém, a arte contemporânea “não dispõe de um tempo de constituição, de uma formulação estabilizada e, portanto, de reconhecimento” (CAUQUELIN, 2005, p. 11). Para apreender essa concepção de arte contemporânea é preciso estabelecer os critérios de avaliação para identificar quais produções são contemporâneas entre o grande número de manifestações artísticas. Os critérios para tal não podem ser definidos somente pelo conteúdo e estética da obra, sendo necessário levar em consideração a dispersão e a pluralidade do que há de mais recente no campo da arte. (CAUQUELIN, 2005). Nesse sentido, há um sistema da arte em seu estado contemporâneo, fora do antigo sistema, que possibilita a compreensão do conteúdo, a comunicação e o reconhecimento das obras desses artistas. Estado contemporâneo significa que esse sistema não é mais o sistema que prevaleceu até recentemente; ele é o produto de uma alteração de estrutura de tal ordem que não se podem mais julgar nem as obras nem a produção delas de acordo com o antigo sistema. (CAUQUELIN, 2005, p.15) 45 Desde o rompimento com a tradição pictórica acadêmica, o motivo criado pelos artistas em suas obras reside na exploração de suas ideias através do uso de diversos materiais, espaços e na liberdade dos temas. E, nesse estado contemporâneo, há uma valorização da expressão, no estilo e na individualidade do artista. A arte deixou de ser uma imitação da realidade e muitas vezes não deixa clara a mensagem nem o objetivo, o que gera uma desorientação do olhar, de acordo com Didi-Huberman (2010). Para o autor, mesmo quando a experiência se torna inominável e incompreendida para quem a observa, sendo impossível identificar o que está diante de si e o que não está, não existe um valor negativo, porque essa desorientação provoca uma reação, seja qual for, no sujeito, que o faz sair de sua estagnação certa, imposta pela sociedade atual e alienante. Além do mais, o conteúdo da obra artística perdeu a importância e não é mais necessário. Porém, de acordo com Cauquelin, isso é válido desde que a rede esteja em movimento. Significa dizer que a arte contemporânea possui uma relação com a imagem criada pelo sistema da arte que circula na rede. Para a autora, essa circulação é vazia e "coincide com a sensação de imobilidade que nos invade hoje, sensação de um presente estancado, sem o próximo instante.” (BRAGA, 2021, p.81). Para analisar as ideias de Cauquelin, são válidas as proposições de Braga (2021), já que a autora analisa o momento atual. As redes de comunicação que inicialmente eram as do início da internet, e outros meios de comercialização, para Braga, são as da tecnologia composta por: internet, redes sociais, logaritmo e fake news. O atual período é o de refluxo, o que significa que as redes universalizam o conhecimento e, paradoxalmente, a ignorância: podem construir conhecimento e destruí-lo. Também há padronização da imagem que substitui o sujeito, propagando o narcisismo. É nesse cenário que se deve compreender a arte contemporânea. A circularidade vazia identificada por Cauquelin vai ao encontro à sensação de imobilidade que atinge a todos, causada por esse sistema de redes10: “[...] O tempo, que deságua de um instante a outro, encontrou uma barragem, e a água volta, nojenta. O futuro apresenta-se como impedido pelo refluxo, pela partícula 10 As redes abordadas por Braga são as redes sociais e as conexões virtuais presentes na internet que ultrapassam os limites geográficos e físicos. 46 reflexiva própria do narcisismo, um „future-se‟ de água parada malsã.” (BRAGA, 2021, p.81). Entretanto, para Braga, uma mudança na terminologia é necessária para uma melhor compreensão do regime e da produção artística atual. À produção que existe apenas por pertencer a rede vazia, a autora nomeou de arte atual. O termo arte contemporânea tem outro destino; é exatamente o oposto: são todas as obras que impactam a história da humanidade. Toda obra é considerada contemporânea em sua época de produção, a diferença está no impacto causado na sociedade. As obras de arte que impactaram em seu período de criação não foram reconhecidas em seu próprio tempo por causa do senso comum; portanto, essas produções foram contemporâneas. O senso comum é justamente o que define e seleciona o que é e não é arte, tendo como critério o padrão imposto a partir da familiaridade. A arte que destoa das definições impostas por essa subjetividade moldada não é apreciada e, portanto, deve ser descartada. Essa produção é a arte contemporânea, porque cria um desconforto com o seu tempo. Já a arte atual é aquela apreciada pelo senso comum, faz parte das redes e é por elas anunciada. A definição de Braga para arte contemporânea concilia com a proposta de contemporâneo de Agamben (2009, p. 62-63): [...] contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro. Todos os tempos são, para quem deles experimenta contemporaneidade, obscuros. Contemporâneo é, justamente, aquele que sabe ver essa obscuridade, que é capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas do presente. Mas o que significa "ver as trevas", "perceber o escuro"? Ver o escuro da contemporaneidade não é um ato passivo, mas uma habilidade que equivale “a neutralizar as luzes que provêm da época para descobrir as suas trevas, o seu escuro especial [...]” (Idem). O contemporâneo enxerga além das luzes do século e entrevê a intimidade da obscuridade, “é aquele que percebe o escuro do seu tempo como algo que lhe concerne e não cessa de interpelá-lo, algo que, mais do que toda luz, dirige-se direta e singularmente a ele” (Idem, p. 64). Ou 47 seja, tem a habilidade de ver no escuro11, de interpelá-lo e isso é o que o intriga: as trevas são penetradas pela visão do homem contemporâneo – que está à margem da massa, do senso comum e de suas convicções, desviando-se da conformação de sua subjetividade. Assim, a história deve ser encarada pelo testemunho nietzschiano sobre o tempo contemporâneo: é intempestivo. À vista disso, é possível encarar o próprio século com uma postura ativa de recusa em ser ofuscado por suas luzes para descobrir o que elas escondem. É Georges Didi-Huberman, no seu livro Sobrevivência dos vaga-lumes (2011), que mostra como isso é possível através da metáfora sobre a pulsação intermitente do vaga-lume: suas luzes resistem e sobrevivem, mesmo sob ameaça de extinção com o avanço das cidades com sua iluminação artificial. Trata-se de como se deve articular as experiências e temporalidades do passado e presente, do arcaico e contemporâneo, pois desses entrelaçamentos é possível, inclusive, pensar e projetar um futuro. A imagem reluzente dos vaga-lumes representa a permanência de tudo que já aconteceu na história e jamais será apagado. Vive e jaz na memória coletiva e sempre poderá ressurgir sob um novo brilho inconstante, como um espectro, que novamente será apagado para voltar a brilhar em um novo momento com intensidade renovada. Esse diálogo existe no contemporâneo e a arte contemporânea é uma produção dele; portanto, está incorporada à imagem de uma tradição vista da contemporaneidade. Só é possível enxergá-la quem se distancia e consegue divisar a noite escura – como os lampejos dos vaga-lumes, os clarões da tradição são vistos por aqueles que se permitem ser contemporâneos. É um espaço de abertura aos possíveis, dos “apesares de tudo” descritos por Didi-Huberman e que faz toda a diferença no entendimento da arte e da história da arte. E ainda, segundo Agamben (2019), como visto, percebe-se que sempre existem os pontos luminosos, como as estrelas que já deixaram de existir, mas cujo brilho permanece por algum tempo, por exemplo. Mesmo não vistos, os pontos 11 Uma metáfora com licença poética em Agamben. Ele expõe o escuro comparando-o com o escuro do céu a noite, mesmo escondidas, há as luzes das estrelas. O brilho visto é aquele emitido no passado e que chega a nós pela velocidade da luz. O autor supõe que algumas estrelas que se encontram em galáxias longínquas, não chegam a nós porque elas se afastam numa velocidade maior do que a da luz. 48 luminosos existem e avançam sem nunca chegar. São com eles que o contemporâneo marca um compromisso: vive num tempo anacrônico e subjetivo; ao mesmo tempo, é “cedo demais”, “muito tarde” e “ainda não”, o que provoca o desconforto e o estranhamento com as luzes do seu tempo. Nesse sentido, pensar na obra de arte como produção de um ser contemporâneo é compreender todo o contexto exposto. Cabe aqui a apropriação da frase do brasileiro Mário Pedrosa (1900-1981), escrita para identificar a produção artística brasileira dos anos 1960, a partir da concepção marxista: “o entendimento da arte e de vida como um exercício experimental da liberdade12”. Para ele, a arte era transformadora e tinha o poder de libertar o trabalhador da opressão capitalista. A arte contemporânea se instala numa produção vinda de um sujeito/ser contemporâneo que olha para a escuridão do seu tempo e, percebendo o que há nela, enxerga para além dela. O seu tempo é anacrônico, porque se faz urgente ser intempestivo: dar visibilidade e luz ao que não é visto pelo senso comum. Essa vivência anacrônica tem a ver com a relação com o passado, com a origem arcaica, que é contemporânea do presente do devir histórico, como a criança que opera no psíquico de um adulto. (AGAMBEN, 2009, p. 69). A arte contemporânea não é um refluxo de imagens, numa rede vazia; sendo atemporal, existe por ser necessária e essencial para o ser humano. Portanto, a partir do que foi exposto sobre a arte contemporânea, de acordo com Cauquelin, entende-se que ela está inserida numa rede vazia de comunicação; para Braga, ao contrário, é a obra que causa desconforto para o senso comum e impacta a sociedade e sua história, o que vai ao encontro da concepção do ser contemporâneo de Agamben. A arte contemporânea é essa feita para reluzir tanto o brilho das estrelas longínquas, como dos vaga-lumes. Tira da mobilidade o sujeito inserido nos dispositivos do sistema das redes. É toda produção que atua como contra-dispositivos ao refluxo da circulação vazia (BRAGA, 2021, p. 93), das seguintes formas: produzir de forma crítica e significativa, a história para registrar a memória do passado; produzir numa linguagem que traduz e expressa o mal-estar contemporâneo; produzir de forma não 12 AMARAL, Aracy. O homem sem preço. In: Mario Pedrosa atual [E-book] / organização: Izabela Pucu, Glaucia Villas Bôas, Quito Pedrosa. – Rio de Janeiro: Instituto Odeon, 2019, p. 45 49 fotogênica para não serem circuláveis como imagem nas redes sociais. Para a autora, essas são as três formas de produzir uma arte restauradora, um caminho possível para gerar um processo de subjetivação contra a autoimagem narcisista. 50 51 1.2 O contemporâneo e o arcaico A etimologia da palavra arcaico significa origem (arké), mas não tem relação com o passado cronológico. Pelo contrário: “Ela é contemporânea ao devir histórico e não cessa de nele operar, como o embrião continua a agir nos tecidos do organismo maduro [...]” (AGAMBEN, 2009, p. 69). A própria contemporaneidade tem seu fundamento na origem que “em nenhum ponto pulsa com mais força do que no presente” (Idem). Para a História, ter ciência dessa relação é ter um compromisso com os fatos e saber que na verdade, a essência do moderno está nesse passado do arké. Vê-se o eterno retorno nas artes desde o mundo antigo até as vanguardas na Europa, que buscaram no primitivo e arcaico a base de seus movimentos. O mundo sempre retorna às suas origens para criar o novo e na contemporaneidade há um retorno para um presente que não será vivido. Sendo o presente “a parte de não-vivido em todo vivido” (Idem, p.70), o contemporâneo é aquele que transforma e acessa os outros tempos, visando apreender o mundo primordial da história humana para expressá-la de forma incomum e que foge às próprias expectativas. Também pode ser vista como tradição na contemporaneidade e ser um contemporâneo nela; é o que implica o entendimento da história da arte. A história deve ser concebida como uma rede de temporalidades, e não uma linha cronológica que define o início e o fim como períodos fixos. Dessa forma, as noções de arcaico / tradicional e contemporâneo são assimiladas pelo cruzamento do temporal com o atemporal, o que significa que se deve enxergar os reflexos do presente no passado e vice-versa. Em outras palavras, é saber distinguir, no presente, as marcas do arcaico. Assim, é sempre possível revisar e reatualizar o passado, como bem reforça Agamben, e ainda, projetar um futuro a partir da 52 transformação do presente. É uma experiência particular, uma relação criada entre os tempos, possibilitando esses entrelaçamentos. A sobreposição e a permanência do arcaico na contemporaneidade existe graças ao ato de ver, mais do que nos desdobramentos da história. A sensibilidade em olhar e perceber a sua luminosidade, mesmo intermitente, como o brilho dos vaga-lumes, é torná-la eternamente contemporânea. É a possibilidade, é a abertura, a escuta e a visão para essa herança sempre ressoar no presente. No entrelaçamento de diversas manifestações artísticas há uma história da cultura e uma rede de temporalidades. A capacidade de inserir o arcaico ao lado do moderno e refletir sobre todas essas questões e as variadas formas artísticas expressas é a abertura para a fecundidade necessária. É um debate fundamental, percebido em muitos ceramistas contemporâneos, que podem ser vistos como vaga- lumes. Vale ressaltar que muitos modernistas do início do século XX na Europa, desejosos em romper com os cânones artísticos, foram multifacetados e produziram em diversas linguagens. Relacionaram-se com o arcaico e se apropriaram de muitos de seus signos, suas imagens, suas culturas, que vão desde desenhos até artefatos religiosos. A pintura deixou de ser a única técnica usada; alguns se voltaram à cerâmica como em busca de um retorno ao passado arcaico para criar o moderno. Há o conhecimento de que são Paul Gauguin, Pablo Picasso, Joan Miró e Marc Chagall os artistas que começam uma nova etapa em que o suporte cerâmico passa a ser trabalhado de uma nova perspectiva, transgredindo seu funcionamento e expandindo seus limites. Esse retorno ao barro renovou os procedimentos e abriu possibilidades criativas, de modo que sua plasticidade começou a ser explorada, não mais para a representação mimética, mas a partir da sua fisicalidade, sua presença e sua simbologia: a ancestralidade. Após o esgotamento dos questionamentos e renovação dos códigos, os modernistas, passada a Segunda Guerra Mundial, buscaram retornar às tradições artísticas, e assim, houve uma valorização de diversos tipos e linguagem de arte ocidental e oriental. Eles se abriram a novas experiências e formas de expressão, o que levou à cerâmica – entendida por eles 53 como a permanência do arcaico e da tradição, mas um universo amplo para inovações quanto aos procedimentos13. Desse momento em diante, verifica-se uma independência conquistada pela matéria, porque esta passa a ser autônoma e deixa de estar em função da representação: A arte contemporânea descobriu o valor e a fecundidade da matéria. [...] A cultura contemporânea não podia deixar de regressar a uma tomada de consciência positiva dos direitos da matéria; para compreender que não há valor cultural que não nasça de uma vicissitude histórica, terrestre, que não há espiritualidade que não se manifeste através de situações corporais, concretas. Não pensamos apesar do corpo, mas com o corpo. A beleza não é um pálido reflexo de um universo celeste que entrevemos com esforço e realizamos imperfeitamente nas nossas obras: a Beleza é esse quê de organização formal que sabemos extrair das realidades que nos tocam dia a dia. (ECO, 1972, p.199) De acordo com Umberto Eco, a matéria ganhou importância tanto quanto o abandono da figuração. Ela é corpo/presença imponente e independente e, ao citar Luigi Paryson, complementa: O artista estuda a sua matéria com amor, perscruta-a até ao fundo, observa o seu comportamento e as suas reações; interroga-a para poder dirigi-la [...] aprofunda-a para que ela revele possibilidades latentes e adaptadas às suas intenções; escava-a para que ela própria sugira possibilidades novas e inéditas [...] não se trata de dizer que a humanidade e a espiritualidade do artista se configuram numa matéria [...] porque a arte não é figuração e formação da vida da pessoa. A arte não é figuração e formação de uma matéria, mas a matéria é formada segundo um modo de formar irrepetível que é a própria espiritualidade do artista feita totalmente estilo. (PAREYSON apud ECO, 1972, p. 201). O artista dá visibilidade à própria espiritualidade e é a matéria o seu guia. Numa relação recíproca entre corpo / matéria / espírito, o artista revela o invisível, de acordo com suas intenções e as possibilidades inerentes, apresentadas a ele no ato produtor. E ainda, há a constatação da permanência do passado na contemporaneidade. Os artistas não focam seus olhares apenas para o presente ou 13 A cerâmica é por si uma linguagem ancestral. Os modernistas em questão, voltados ao retorno do clássico, criaram procedimentos de modelagem, de queima, de pintura, transgredindo os procedimentos. Porque o esperado para a produção cerâmica era voltar-se para a porcelana, ao esmalte, aos moldes, aos artefatos, ou seja, um procedimento e produção tradicionais. O arcaico aqui remete à tradição e o simbolismo da ancestralidade da cerâmica e do barro. 54 para o futuro. A relação com o arcaico está mais presente do que nunca na arte contemporânea, e esta não possui e nem define regras. Através da sua autonomia, apreende o invisível existente no mundo para torná-lo visível. “O contemporâneo percebe, no presente, os traços do arcaico.” (AGAMBEN, 2009, p. 69). Pensar na arte contemporânea é compreender as transformações sociais e também a forma que o artista lida com elas e com a visibilidade das coisas. Fazer arte é materializar um pensamento (concepção): “materializar sua arte é como dar vida a um material.” (TAGUSAGAWA, 2015, p.22). E sobre a natureza da arte: “Não há nenhuma limitação a priori de como as obras de arte devem parecer – elas podem assumir a aparência de qualquer coisa.” (COLI, 1995, p. 107). 55 1.3 Os mundos abertos pela Arte Da pluralidade de mundos, a arte os acessa, os invoca: o mundo próprio da arte, o mundo em que ela e todos residem e o mundo aberto pela obra, sendo que não é apenas um que se abre. O fato é que os artistas produzem a partir de suas experiências de estarem no mundo, enquanto os filósofos interrogam sobre o mundo. Portanto, por caminhos diferentes, mas como o mesmo propósito, arte e filosofia se entrelaçam na busca sobre o entendimento da experiência humana no mundo. Exatamente esse mundo que permite a existência da experiência humana é o da terra primeira: o ponto de partida de todo ser humano. É a Terra sendo o ponto onde o ser humano se afirma como ser vivo no mundo e também o ponto de partida para se lançar a outros territórios. Portanto, é a “Terra que não se move” de Edmund Husserl14, entendida como Arca – de arché, origem e começo. É através de movimento (afastamento) e repouso, enquanto forma de movimento, que o sujeito é formado e se entende como tal. Ao afastar-se, tal qual Ismália15, se divide: metade de si é o apego ao solo enquanto a outra se volta ao sobrevoo acima. Assim, ele se relaciona com um ponto de referência fixo, a “Terra em seu conjunto / lugar de onde eu a vejo – ou, se preferirmos, na cesura ativa eu / mundo.” (CAUQUELIN, 2011, p. 88). Os olhares entrecruzados e os pontos de vista na linguagem fenomenológica levam a um olhar solitário. O caminho de um ponto de vista solitário ao entendimento da existência de um mundo, e da permanência nele, não é simples. Porém, o mundo em que se vive é único; ele é real, sendo os outros imaginários que 14 Frase presente no manuscrito D 17, escrito por Husserl entre 7 e 9 de maio de 1934, e publicado por M. Farber em 1940, no volume Philosophical Essays in Memory of E. Husserl. Trata das investigações fundamentais sobre a origem fenomenológica da corporeidade da espacialidade da natureza no sentido primeiro da ciência natural. 15 Referência ao célebre poema homônimo de Alphonsus de Guimaraens, poeta do Simbolismo brasileiro, no qual Ismália busca alcançar, ao mesmo tempo, a lua que via no céu e aquela que via refletida no mar. 56 sobrevivem a partir dele. “Os outros mundos possíveis são variantes ideais deste aqui.” (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 2010). O que torna esse mundo de fato o único e os outros possíveis é a sua realidade disposta a ser percebida. Portanto é a percepção que torna possível a existência da realidade do mundo. Formada pelo visível (aquilo que está aparente nessa realidade) e pelo invisível (outra realidade possível), seria a arte um caminho para acessar esses mundos. Ela apresenta um mundo visível através das obras, pelas quais o mundo é visto. Tendo a percepção como eixo para o entendimento, é fato que a obra se relaciona com a recepção (espectador), consigo mesma (concepção / construção), com o mundo presente e com as percepções de que naturalmente será alvo. Assim, será estabelecida uma relação entre um eu-vidente e um mundo-visível, e “entre outros eus-vidente e um mundo que se torna, assim, objetivamente visível para todos”. (CAUQUELIN, 2011, p. 91). Nesse entrelaçamento de olhares, se faz entender que a obra de arte é responsável pelo reconhecimento da Terra como o mundo primordial. É uma trama rica em diversidades criadas ou concebidas de acordo com as especificidades da obra de arte, através das operações vidente / visível e percebido / concebido: a materialidade da obra torna um interior invisível num exterior visível. Os sentidos do ser humano e o do mundo estão trançados num tecido profundo e irreversível conhecido por carne16. É ela que, parcialmente, é visibilidade numa obra; portanto, nesse caso, não se trata da abertura de um outro mundo, mas do atual, que se abre dentro de um complexo dentro / fora. Dessa maneira, a obra não representa uma realidade ou um objeto reconhecido, e nem eles são seus motivos de existência. Ela tem o mundo real como um suporte interno da “própria exposição enquanto obra.” (Idem, p. 93). A carne17 “é um elemento do Ser” (MERLEAU-PONTY, 2003, p.136), uma espécie de princípio que constitui as coisas e o mundo, porque “permite a abertura para que o corpo e as coisas sejam visíveis na mesma medida em que são tangíveis e videntes.” (FALABRETTI, 2013 p. 336). Merleau-Ponty (2000, p.439) afirma: “sentir é sentir-se”, e é nesse entrelaçamento do ativo e do passivo, dos falantes ouvintes, 16 Termo presente da fenomenologia de Husserl, entendido como a materialização da intenção, é físico e material “carne e osso”. 17 Merleau-Ponty retomou o termo carne da fenomenologia de Husserl. 57 sencientes sensíveis, videntes visíveis, que se forma entre um e outro (não um ou o outro) o quiasma. O contato com o mundo revelado pela percepção, principalmente pela visão, é irreversível. Por serem sensíveis, os sentidos abrem dimensões para o corpo, também sensível; é carne inaugurando o espaço e tempo (onde e quando) ou as dimensões de ser que irão dialogar umas com as outras. Por isso, “em vez de rivalizar com a espessura do mundo, a de meu corpo é ao contrário, o único meio que possuo para fazer chegar ao âmago das coisas, fazendo-me mundo e fazendo-as carne” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 132). O mundo se torna visível parcialmente porque, na medida em que se aprofunda em sua abertura, se inviabiliza. Merleau-Ponty entende a abertura de forma vertical sobre um abismo, que é o do Ser, e sobre uma ereção, que é a obra. A questão é a da espiritualidade (profundidade), mas não se relaciona com questões religiosas. Portanto, para o filósofo, o mundo aberto trata dessa profundidade: uma dobra na passividade, verticalidade no visível, um vazio, um invisível. A visão destinada ao entendimento da obra de arte deve levar em consideração sua essência e origem: ela própria causa a abertura na qual se instala. É um olhar que se inicia na superfície e vai até o fundo, a fim de trazê-lo, porque são interligados: mundo e obra, abertura e fundo. Aqui, a origem da obra trata de ser a prática da verdade que, por fim, está sempre fechada em si mesma: o que se abre, também fecha; por ser original, também é inatingível. Nessa abertura, há a noção do evento instalado, algo que advém e está sempre por advir. Há uma transcendência da arte e uma ordenação de um mundo por ela afetado. A profundidade é o meio que têm as coisas de permanecerem nítidas, ficarem coisas, embora não sendo aquilo que olho atualmente. É a dimensão por excelência do simultâneo. Sem ela não existiria um mundo, ou Ser, mas só uma zona móvel de nitidez que não poderia apresentar-se sem abandonar todo o resto, - e uma “síntese” destes pontos de vista”. Ao passo que, através da profundidade, as coisas coexistem cada vez mais intimamente, deslizam umas nas outras e se integram. É então ela quem faz com que as coisas tenham carne: isto é, que oponham obstáculo à minha inspeção, uma resistência que é precisamente a sua realidade, sua “abertura”, o seu totum simul. (MERLEAU-PONTY, 2000, nota de trabalho, p. 203) O espaço é coesão do tempo – este entendido a partir daquele; é também uma deflagração do Ser. Faz parte da visibilidade do mundo, está presente em obras que devem ser analisadas com esse entendimento. Cada objeto e coisa 58 visível é uma dimensão porque resulta de uma deiscência do Ser. “Quer isto finalmente dizer que é próprio do visível ter um forro no invisível no sentido próprio, que ele torna presente como uma certa ausência”. (MERLEAU-PONTY, 2014, s/p). E o mundo, instaurado e instalado pela obra, aberto e mantido por ela, não conduz aos mundos plurais. A arte abre “seu próprio aprofundamento em forma de mundo.” (CAUQUELIN, 2011, p. 96). Esse mundo aberto é visto como “em extensão” por Umberto Eco. O autor traz uma outra abordagem para a compreensão do conceito ora analisado, em uma concepção extensionista escrita no livro A Obra Aberta (1991), que não se resume a métodos de interpretação de uma obra, mas demonstra uma maneira de compreensão da abertura em infinitas interpretações por parte de quem a contempla. A abertura, para Eco (1991), seria uma qualidade essencial da obra, porque a arte não comunica todas as mensagens de forma clara e conclusiva, nem informa sobre qual mundo ela abriria. Porém, são inúmeros e até infinitos pontos de partida para interpretações: quanto maior for, mais complexa e interessante a obra será. Percebe-se que a abertura se dá para outras obras e se desdobra para a possibilidade de o intérprete ser coautor. A interpretação e o ponto de vista recriam a obra original, enriquecida a cada nova fruição. É uma abertura que pode ser considerada infinita, tornando a obra fluida, que nunca será a mesma porque “vive pela vida daqueles que a contemplam.” (CAUQUELIN, 2011, p. 100). Pode-se sugerir que, da obra original, a cada interpretação um mundo novo e diferente é criado, por isso a teoria de Eco é considerada extensionista. Assim como a fenomenologia, ela não contempla a pluralidade dos mundos, porque a abertura da obra é destinada para a exposição e a publicação. Ao mesmo tempo, é considerada sempre alográfica18, aplicando-se às obras que possuem a condição da existência as diversas ocorrências, cópias e reproduções, cada uma delas, uma produtora de novas obras. As duas versões de abertura e mundos possuem diferenças e semelhanças. Focando nos pontos de concordância, o invisível e o silêncio estão no cerne das 18 Do grego: "outro escrito"; o termo tem vários significados, todos relacionando-se com a forma de representar as palavras e os sons por meio da escrita. Pode indicar ainda uma perturbação da linguagem escrita, caracterizada pela colocação desordenada das palavras. https://pt.wikipedia.org/wiki/Palavra https://pt.wikipedia.org/wiki/Som 59 obras. Concordam que o indizível, o invisível, o que a interpretação traz à tona, a interpenetração da leitura por parte do intérprete e do autor no fazer, estão entrelaçados, embaralhados no que Merleau-Ponty afirmou, na carne, em sua estrutura cruzada, já apresentada anteriormente. É nas ausências, nas fissuras, que a obra acontece, surge e abre um espaço de liberdade. É certo que Merleau-Ponty e Eco não possuem a mesma linha ideológica, mas existe uma complementação entre ambos os autores. A fenomenologia fala sobre a abertura de um mundo que é um abismo (o do Ser) e sobre uma elevação da obra que está aquém de algo concreto. A teoria extensionista já delibera perspectivas para uma abertura, não de mundo, mas de interpretações, tendo um ponto concreto que é a obra. Há, portanto, uma análise que pode levar a uma teoria sobre os mundos paralelos. De forma simbólica e sensível, ambas as abordagens enxergam os problemas do horizonte e da perspectiva. Ligados à ideia de transcendência, do além, são passagens para um outro mundo, principalmente o horizonte com sua linha dividindo o mundo, do mundo da arte para outros lugares não identificados. O último mundo aqui descrito será esse, o do horizonte que incita para uma viagem para esse além desconhecido, para outro mundo. A linha do horizonte é compreendida na representação de um fora; além dela há um mundo oculto, ou outros mundos: “[...] a estrutura do campo visual, seus próximos, distantes, seu horizonte é indispensável para que haja transcendência. O modelo de toda transcendência” (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 108). Toda obra tem em si o pertencimento do horizonte, sendo este o centro da sua reflexão. É nele que o invisível e o visível se encontram e se afastam, por isso, o horizonte também é um paradoxo reversível porque revela o que esconde. O horizonte é ambivalente, sendo um dos principais pontos para o conceito da abertura do mundo. Seja um elemento técnico de composição, seja uma noção de uma crença (além) ou do desejo, ações que seguem ao desconhecido e contingente, ele compõem dois lados, duas vertentes. Cada uma leva para um tipo de pesquisa, basta definir qual o propósito e escolher a mais conveniente. 60 61 Capítulo II. A Fenomenologia de Merleau-Ponty. Para um entendimento sobre a Poética do Barro. 62 63 Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) refutou a tradição racionalista, os dualismos do idealismo cartesiano de Descartes, porque o seu estudo principal foi a percepção. Enxergou na arte o caminho para expor a sua teoria por ela instituir os fenômenos sensíveis e invisíveis. Está longe da ideia de Estética instituída no século XVIII, porque o filósofo se interessou na experiência artística e na visão, não na concepção de Belo. O seu pensamento se fundamenta, portanto, na primazia da percepção enquanto experiência originária do conhecimento. Recupera a união da visão, movimento e pensamento que a metafísica separou, sendo corpo e mente uma só coisa: o gesto foi restituído ao corpo consciente e a visão tem sua origem no ser sensível. Reconhece a experiência do olhar que é ao mesmo tempo entrecruzado com o movimento do fazer e com o pensamento, ou seja, há reversibilidade: um olhar pode ser pensamento e ao mesmo tempo, o pensamento ser o olhar. A percepção é o que é visto, percebido e sentido, para o filósofo faz parte da construção do conhecimento. Procurou demonstrar que a percepção não é princípio do saber, mas parte constituinte do conhecimento, pois defende que o conhecimento não é apenas um conjunto de conteúdos de nossa consciência, mas também fruto da vivência humana, e 64 essa se dá corporalmente. O corpo e suas experiências no mundo são exteriores, mas também partes integrantes do interior, o que, para Merleau- Ponty, significa que são correspondentes, não sendo possível separar corpo e espírito ou sujeito e objeto, como sustenta a tese de Descartes. (ALVES, 2013, p.12) Sendo a fenomenologia o estudo das essências, da experiência humana, do modo de ver as coisas e como elas se apresentam na consciência de forma cognitiva, Merleau-Ponty desejou definir as essências: “a essência da percepção, a essência da consciência, por exemplo. [...]” (1999, p. 1). Mas, “é também uma filosofia que repõe as essências na existência, e não pensa que se possa compreender o homem e o mundo de outra maneira senão a partir de sua „facticidade‟ [...]” (Idem). É transcendental por colocar as afirmações em suspenso para compreendê-las e entender que o mundo já existe, antes mesmo da primeira reflexão sobre ele: “como uma presença inalienável, e cujo esforço todo consiste em reencontrar este contato ingênuo com o mundo, para dar-lhe enfim um estatuto filosófico” (Idem). Nesse sentido para compreender as essências do ser humano em estar no mundo, propõe o retorno ao mundo de origem para ver as coisas como se fosse a primeira vez, tendo a arte o subsídio da sua fenomenologia. Por isso, Cézanne é seu exemplo de pintor, porque, para o filósofo, sua pintura expõe a imagem-sensação que apreende verdadeira visão das coisas, do mundo pré-reflexivo: “O pintor, qualquer um que seja, enquanto pinta, pratica uma teoria mágica da visão (MERLEAU-PONTY, 2014, s/p). O seu interesse estava na consciência encarnada no sujeito, ou seja, de um corpo interligado no espírito, indiviso e atuante no mundo através das experiências. O corpo é entendido como próprio e operante na totalidade composta pela natureza e cultura, “está no mundo assim como o coração no organismo” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 273). A arte moderna era resultado dessa percepção e considerada como um advento, diferente da arte clássica, com suas regras e a ilusão da representação. É advento por suscitar novas produções de artes, novas ideias e formas novas de expressão. Estava integrada com as transformações sociais de sua época, encarnou o espírito moderno, assim como no passado a pintura renascentista encarnou o seu. Em cada período, a obra de arte torna-se um objeto sensível de seu tempo que aspira os olhares dos observadores, seja qual for a material bruto, vai 65 tornar visível o espírito: “É como se a arte pretendesse mostrar muitas faces, revelando-as no tempo que julgar adequado.” (ALVES, 2013, p. 84). Entende-se que para Merleau-Ponty, a expressão artística é evidenciada na indivisibilidade incorporada no homem (o pintor) e a natureza (o mundo percebido e vivido). Portanto, a arte moderna era resultado dessa indivisibilidade, o retorno do artista ao mundo vivido, tendo a percepção como forma de conhecimento. A arte clássica criava a ilusão da realidade principalmente, através da perspectiva e, para ele, quando os modernistas debateram e romperam com esse cânone, a representação passou a ser a perspectiva do artista sobre o que era visto e sentido. Os trabalhos de Giacometti, os desenhos de Matisse, as esculturas de Rodin, as cores de Cézanne e as formas de Klee – todos esses artistas e suas produções influenciaram o filósofo sobre a sua interrogação do mundo. Ele aproximou a forma desses artistas de criar arte, ou seja, o fazer artístico, aos seus questionamentos quanto filósofo. Assim sendo, estabeleceu os fundamentos de sua obra a partir das análises da arte moderna. Merleau-Ponty se debruçou sobre essa nova forma de arte para estudá-la e gerou uma nova maneira de escrever sobre ela – uma ação necessária para a arte ser analisada para além dos pressupostos já existentes: a psicologização, a biografia, a ideia do artista gênio e a ideia do domínio de técnicas e regras. A arte não seria mais vista como algo acabado e bem-feito: a obra de arte será sempre inacabada e o oposto do senso comum. A arte fala por si só e vivencia os impasses da sociedade moderna. Nela encontra-se em ação um sentido problemático do mundo, e não diz respeito apenas às convenções acadêmicas, mas a toda a cultura instituída. O estudioso, porém, não criou um método de análise da obra de arte, ou seja, não quis partir da sua filosofia para entender a arte, e sim o contrário: interrogá-la para compreender a possibilidade da filosofia – e concluiu que ambas se complementam. A arte serve para entender o mundo, por isso ele a estudou: sua exploração, seu desenvolvimento e sua nova forma de estar e expressar o mundo. Cézanne foi o exemplo do artista moderno para Merleau-Ponty porque suas composições foram no caminho oposto dos ideais clássicos, por ter pintado sem modelar as formas da natureza, separando-as. De acordo com o filósofo, pintou o invisível, emprestou seu corpo para dar visibilidade às coisas enraizadas na existência humana. Cézanne colocou em suspensão o mundo da cultura produzido 66 pelo ser humano na natureza. Pintou as vibrações tonais das sensações, revelou o não-humano, o invisível, e isso foi possível porque chegou às origens do mundo, em um lugar pré-espacial constituído pela cultura, para obter a visão verdadeira do mundo por meio da criação artística (CHAUÍ, 2002). O pintor não encarava a pintura como um retrato do imaginário ou das paisagens exteriores. O artista estudava a natureza e pintava além do que era visto pelos olhos carnais: era a “matéria em via de se formar”. Ele pintou o mundo primordial, o seu contato com a natureza, a sua experiência vivida a partir dele. Sua obra é libertária, inacabada, porque há uma autonomia do sentido nela mesma. Por fim, o “motivo” de Cézanne era a totalidade da paisagem, seu gesto se comunicava com ela no processo pictórico e não com os elementos individuais: a obra é a sua própria consciência. Dessa maneira, a obra de arte não se esgota; se comunica de forma interrupta e os sentidos não estão fechados. A fenomenologia não instaurou um sistema por não ser este seu objetivo, pode-se dizer que é laboriosa como as obras de Balzac, de Proust, de Valéry, Leonardo da Vinci, Cézanne ou Mallarmé. Nelas há “um pensamento a exprimir”, “um sistema a construir”, eles interrogam o mundo, e o que nele veem, e dão a visibilidade a todos que as olham. O artista segundo Balzac ou segundo Cézanne, não se contenta em ser um animal cultivado, ele assume a cultura desde seu começo e funda-a novamente, fala como o primeiro homem falou e pinta como se jamais houvessem pintado. Com isso a expressão não pode ser a tradução de um pensamento já claro, pois os pensamentos claros são os que já foram ditos dentro de nós ou pelos outros. (MERLEAU-PONTY, 2014 s/p) A arte se reinventa e não é estudada pelo filósofo de forma isolada; ele dialoga com a ciência, com a história e a psicanálise. Ela é sensível e portadora de idealidade, o que permite compreender o que a metafísica separou: as relações do visível-invisível, dizível-indizível e pensável-impensável. Assim como a boa arte, a boa filosofia também não se define pois o discurso não se esgota: há uma profusão de conceitos infinitos que não conduzem a um fechamento definitivo: “a expressão daquilo que existe é uma tarefa infinita” (MERLEAU-PONTY, 2014, s/p). Em nota no seu livro póstumo e inacabado, O visível e o invisível (2003), Merleau-Ponty defende o trabalho conjunto entre a arte e filosofia: “filosofia e arte, 67 juntas, não são fabricações arbitrárias no universo da cultura, mas contato com o ser justamente enquanto criações”. Apesar disso, o autor reconheceu algumas diferenças, afinal, cada uma possui especificidades; a filosofia não pode ser arte e vice-versa. A arte possui sua autonomia porque há um pensamento explícito nela mesma e, no processo de criação, vê-se a manifestação do ser, aquele que exige a criação: “O ser é aquilo que exige de nós criação para que dela tenhamos experiência” (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 187). Ao criar, abre-se a possibilidade para o “Ser falar pelo criador”, é a expressão da experiência muda de si e, ao mesmo tempo, é a reintegração do ser (Idem). Trata-se, pois, do reencontro da origem e uma adequação. É quando o Ser vem a ser: “para que o ser do visível venha à visibilidade, solicita o trabalho do pintor; para que a linguagem venha à expressão, pede o trabalho do escritor; para que o pensamento venha à inteligibilidade, exige o trabalho do filósofo.” (CHAUÍ, 2002 p. 467). Portanto, a criação seja na arte ou em outra área do conhecimento, vem do contato com o Ser primeiro para se manifestar no universo espiritual da cultura. A criação na abordagem merleau-pontiana é aquela radical que sustentará o momento instituinte numa realidade instituída. Essa noção da instituição é o que Merleau-Ponty trás para entender a obra de arte como uma experiência entre as variadas experiências conectadas entre si, em diversos campos do conhecimento e dotadas de sentido. E são consideradas criações na medida em que “tateiam ao redor de uma intenção de exprimir alguma coisa para a qual não possuem um modelo que lhes garanta acesso ao Ser, pois é sua ação que se abre e abre a via de acesso para o contato pelo qual pode haver experiência do Ser.” (Idem) Portanto, há o contato com o Ser, reintegração no Ser, inscrição no Ser, experiência do originário, em um ato de criação: O Espírito Selvagem e o Ser Bruto todos incorporados num mesmo tecido, a carne. Ela é o que é visível por si mesmo, possui interior e significações, porém, não é completa, maciça; há um vazio a ser preenchido. Não é, pois uma presença plena, mas presença habitada por uma ausência que não cessa de aspirar pelo preenchimento, sem o qual não poderia vir a ser. É o quiasma do visível e do invisível, do dizível e do indizível, do pensável e do impensável, cuja reversibilidade e diferenciação se fazem por si mesmas.” (CHAUÍ, 2002, p. 469-470). 68 O Espírito Selvagem, o da práxis, é o que move o ato de criar, escrever, pensar: deseja preencher o vazio – é a própria experiência movida num desejo de significar “o próprio caminho para preencher seu vazio e determinar sua indeterminação, levando à expressão o que ainda e nunca havia sido expresso”. (Idem, p. 469). O Ser Bruto é o da indivisão, o invisível que sustenta o visível. Entrelaçados, instituem a visão, a fala, o pensamento, empregando o instituído (a cultura), com o objetivo de “fazer surgir o jamais visto, jamais dito, jamais pensado – a obra.” (Idem, p. 470). A carne permeada pela reversibilidade promove a comunicação de todas as coisas, e nela Merleau-Ponty buscou desvendar a primazia do sensível. Por isso, se fala do sujeito vidente e das coisas que habitam a mesma carne do mundo: “abertura pela carne: os dois lados da folha do meu corpo e os dois lados da folha do mundo visível [...] É entre esse avesso e esse direito intercalados que há visibilidade.” (2003, p. 128). A obra será considerada matriz se ela promover as sequências de experiências, ou seja, promover uma fecundidade da ação, gerar aberturas para novas experiências. Por isso, a ontologia de Merleau-Ponty é aquela da fecundidade, diferenciando-se de outras teorias da fenomenologia, porque ela está sempre propondo um porvir, um novo caminho. E a obra de arte significante é aquela que impregna de sentido os sentidos, não somente de quem cria, mas daquele que observa: essa é a ação que importa a Merleau-Ponty. É “a ideia de que a arte suscita mais arte e significações ainda não pensadas.” (ALVES, 2010, p. 43). No entrelaçamento entre os sentidos, na tangibilidade do olhar, é que a experiência do visível acontece no contexto dos movimentos dos olhos, das mãos e do corpo como um todo. É a imbricação entre o tocar e ver, ver e ser visto, pelo outro, pelas coisas reversíveis, com um trânsito entre uma experiência e outra, sem se fechar numa consciência, num sujeito e numa visão de sobrevoo (aquele que vê de fora, a experiência do outro). Cada experiência gerada vai promover outras e todas dotadas de sentido darão sequência a uma história, sendo a ação do artista a matriz. Assim, o filósofo também pensa na historicidade da arte indo contra a história hegeliana,