JULIANA BEVILACQUA MAIOLI O EMBATE CRÍTICO ENTRE MARIO VARGAS LLOSA E ANTONIO CORNEJO POLAR: leituras de José María Arguedas e do indigenismo peruano ASSIS 2014 1 JULIANA BEVILACQUA MAIOLI O EMBATE CRÍTICO ENTRE MARIO VARGAS LLOSA E ANTONIO CORNEJO POLAR: leituras de José María Arguedas e do indigenismo peruano Tese apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista para a obtenção do título de Doutora em Letras (Área de Conhecimento: Literatura e Vida Social). Orientador: Prof. Dr. Antônio Roberto Esteves ASSIS 2014 2 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca da F.C.L. – Assis – UNESP Maioli, Juliana Bevilacqua M227e O embate crítico entre Mario Vargas Llosa e Antonio Cornejo Polar: leituras de José María Arguedas e do indi- genismo peruano / Juliana Bevilacqua Maioli.- Assis, 2014 179 f. Tese de Doutorado – Faculdade de Ciências e Letras de Assis - Universidade Estadual Paulista. Orientador: Prof. Dr. Antônio Roberto Esteves 1. Crítica. 2. Literatura latino-americana - História e crítica. 3. Identidade. 4. Cornejo Polar, Antonio, 1936 - 1997. 5.Vargas Llosa, Mario, 1936- 6. Arguedas, José María, 1911-1969. I. Ti- tulo. CDD 860.9 pe863 2 JULIANA BEVILACQUA MAIOLI O EMBATE CRÍTICO ENTRE MARIO VARGAS LLOSA E ANTONIO CORNEJO POLAR: leituras de José María Arguedas e do indigenismo peruano Tese apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista para a obtenção do título de Doutora em Letras (Área de Conhecimento: Literatura e Vida Social). BANCA EXAMINADORA Orientador: _________________________________________________ Prof. Dr. Antônio Roberto Esteves Faculdade de Ciências e Letras de Assis/UNESP 2º Examinador: ______________________________________________ 3º Examinador: ______________________________________________ 4º Examinador: ______________________________________________ 5º Examinador: ______________________________________________ Assis, ___ de __________ de 2014. 3 AGRADECIMENTOS Ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP – campus de Assis-SP. Ao Professor Dr. Antonio Roberto Esteves, meu orientador, que, com paciência e disposição, concedeu-me todo o amparo necessário ao longo dessa pesquisa. Às Professoras Dra. Heloisa Costa Milton e Dra. Maria de Fátima Alves de Oliveira Marcari que, participando da banca do exame de qualificação, realizaram uma criteriosa leitura do meu trabalho, contribuindo de forma precisa para o amadurecimento de minhas reflexões teóricas. Aos colegas do Departamento de Línguas Estrangeiras da Universidade Federal de Rondônia (UNIR) pela torcida, pela compreensão e pelo apoio. Aos meus pais, Gerson e Maria das Dores, que, mesmo nos momentos mais difíceis, lutaram para que eu chegasse a esse momento. A todos os meus familiares (minha irmã Raquel, meus avós, tios, tias e primos), pelo estímulo e pela confiança em mim depositada, ajudando-me a suportar com mais serenidade os altos e baixos desse processo. Aos amigos Junior Lopes, Rosemira Mendes de Souza, Marcela Verônica da Silva, Maria Júlia Bertoluci e Carina Maschio de Oliveira Talon por compartilharem as minhas angústias e as alegrias, pelas conversas e, também, pelas críticas construtivas. Ao meu namorado Islândio que, aceitando pacientemente minha ausência, nunca deixou de me motivar e de me apoiar nessa empreitada. 4 MAIOLI, Juliana Bevilacqua. O embate crítico entre Mario Vargas Llosa e Antonio Cornejo Polar: leituras de José María Arguedas e do indigenismo peruano. 2014. 179 f. Tese (Doutorado em Letras) – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Assis, 2014. RESUMO O presente trabalho busca observar como dois intelectuais contemporâneos, Mario Vargas Llosa (1936- ) e Antonio Cornejo Polar (1936-1997), leem a identidade cultural do homem peruano e, por extensão, latino-americano, baseados nas narrativas de José María Arguedas (1911-1969). Ao cotejar os fundamentos teóricos que condicionam as leituras por eles desenvolvidas, percebe-se uma notável divergência entre o discurso de ambos, fato que tem servido de base para justificar o suposto antagonismo de suas ideias. De um lado, o escritor Vargas Llosa considera que o romance arguediano nega a realidade a que faz referência, uma vez que a imagem do homem andino por ele representada parece plasmar mais os fantasmas e as obsessões do próprio Arguedas do que a identidade cultural conformada no Peru em fins do século XX. Por outro lado, Cornejo Polar, ao investigar a obra arguediana em função das relações que esta estabelece com o contexto heterogêneo e conflituoso em que foi produzida, reitera que o sujeito nela retratado expressa plasticamente, tanto em sua subjetividade quanto em seu discurso, as mesmas oscilações, ambiguidades e contradições do meio em que está inserido. Assim, valendo-se do confronto entre as duas abordagens teóricas, esse trabalho defende que, por detrás das discrepâncias ideológicas que determinam a análise de cada um dos críticos, há uma correspondência que os aproxima. É, pois, com base nos pontos de contato verificados entre ambas as leituras críticas que objetiva-se descontruir a ideia da suposta oposição entre Cornejo Polar e Vargas Llosa, a fim de confirmar a complementaridade de seus estudos, os quais contribuem de maneira contundente para iluminar os diferentes níveis do multifacetado universo fictício de Arguedas. Palavras-chave: Crítica literária latino-americana; Antonio Cornejo Polar; Mario Vargas Llosa; José María Arguedas; Indigenismo. 5 MAIOLI, Juliana Bevilacqua. El embate crítico entre Mario Vargas Llosa y Antonio Cornejo Polar: lecturas de José María Arguedas y del indigenismo peruano. 2014. 179 f. Tesis (Doctorado en Letras) – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Assis, 2014. RESUMEN El presente trabajo busca observar como dos intelectuales contemporáneos, Mario Vargas Llosa (1936- ) y Antonio Cornejo Polar (1936-1997), leen la identidad cultural del hombre peruano, y por extensión, latinoamericano, a partir de las narrativas de José María Arguedas (1911-1969). Si nos fijamos en los fundamentos teóricos que condicionan las lecturas desarrolladas por los críticos, es posible advertir una notable divergencia entre ambos, hecho que ha servido de base para justificar el supuesto antagonismo de sus ideas. De un lado, Vargas Llosa considera que la novela arguediana niega la realidad a que se refiere, por lo que la imagen del hombre andino en ella representada semeja plasmar más los fantasmas y las obsesiones del mismo Arguedas que la identidad cultural conformada en el Perú en fines del siglo XX. Por otro lado, Cornejo Polar, al investigar la obra arguediana en función de las relaciones que la esa establece con el contexto heterogéneo y conflictivo en que ha sido producida, reitera que el sujeto en ella retratado, expresa plásticamente, tanto en su subjetividad como en su discurso, las mismas oscilaciones, ambigüedades y contradicciones de su entorno. Así, partiendo del confronto entre los dos abordajes teóricos, ese trabajo defiende que, por detrás de las discrepancias ideológicas que determinan el análisis de cada uno de los críticos, hay una correspondencia que les acerca. Es, pues, basándonos en los puntos de contacto verificados entre ambas las lecturas críticas que objetivamos desconstruir la supuesta oposición entre Cornejo Polar y Vargas Llosa, para confirmar la complementariedad de sus estudios, los cuales, contribuyen de manera contundente para iluminar los diferentes niveles del multifacético universo ficticio de Arguedas. Palabras-clave: Crítica literaria latinoamericana; Antonio Cornejo Polar; Mario Vargas Llosa; José María Arguedas; Indigenismo. 6 SUMÁRIO INTRODUÇÃO 07 1 O INGRESSO DE CORNEJO POLAR NOS UNIVERSOS NARRATIVOS DE ARGUEDAS 23 1.1 Um Possível Sentido às Contradições da Obra Arguediana 23 1.2 De Arguedas ao Conceito Heterogeneidade: “reescrevendo” a imagem do homem andino 43 2 A INVENÇÃO DE UMA REALIDADE: JOSÉ MARÍA ARGUEDAS SOB O PRISMA DE MARIO VARGAS LLOSA 72 2.1 Vargas Llosa e Arguedas: elementos para a teoria de um deicida 72 2.2 Utopia Arcaica e Homem Peruano: as verdades das mentiras da ficção arguediana 95 3 DIVERGÊNCIAS E CONVERGÊNCIAS: AS LEITURAS CRÍTICAS DE CORNEJO POLAR E VARGAS LLOSA SOBRE ARGUEDAS 118 3.1 Entre a Tradição e a Tradução Cultural: a literatura arguediana na abordagem crítica de Cornejo Polar e Vargas Llosa 118 3.2 Rumo às Convergências: o local do (des)encontro entre as leituras críticas de Cornejo Polar e Vargas Llosa 137 CONSIDERAÇÕES FINAIS 169 REFERÊNCIAS 173 7 INTRODUÇÃO No artigo Literatura de fundação, Octavio Paz (1972) afirma que a literatura latino- americana é uma “empresa da imaginação”, por meio da qual os escritores se propõem a inventar a própria realidade. Filha da contrarreforma e da monarquia universal, a América Latina é fruto de uma criação europeia premeditada: “na Europa a realidade precedeu o nome. América, pelo contrário, começou por ser uma ideia” (PAZ, 1972, p. 127). O nome que lhe foi imposto condena o continente americano a ser um mundo novo, “terra de eleição do futuro: antes de ser, a América já sabia como iria ser” (PAZ, 1972, p. 127). Essas considerações de Paz aludem a uma empresa que tem acompanhado a trajetória do intelectual latino-americano, desde a era colonial, isto é, a procura da sua identidade. Para o filósofo mexicano Leopoldo Zea (1982), a questão identitária é o fator que possibilita a América Latina viajar constantemente “em busca de si mesma”. Segundo Irlemar Chiampi (1980), essa sondagem pode ser lida como o “motor do pensamento americanista”. No caso específico do Peru, a problemática indígena sempre balizou as discussões sobre a identidade nacional, além de associar a essa investigação temas políticos, econômicos, não restringindo-a somente ao campo cultural. A esse respeito, vale salientar a importância do pensamento de Gonzalez Prada que, em 1888, enuncia seu discurso intitulado Politeama, incitando questionamentos acerca dos motivos que teriam levado o Peru a ser derrotado pelo Chile na Guerra do Pacífico (1879-1883). Enfrentando os hispanistas, membros da chamada geração de 900, entre eles José de la Riva Agüero (1885-1944), Víctor Andrés Belaúnde (1883-1966) e Ventura García Calderón (1886-1959), Gonzalez Prada, em fins do século XIX, promulga a formulação de um projeto nacional que, centrado na revalorização da tradição andina, visava à construção de uma nova realidade peruana. Sendo o Peru composto, em sua maioria, por povos de ascendência indígena, Gonzalez Prada não concebia a ideia de mudança social sem a incorporação dos aspectos culturais autóctones à identidade do país. As críticas de Gonzalez Prada dirigidas às posturas novecentistas, sobretudo em relação ao problema da fragmentação do país e a, consequente, necessidade de “integração” nacional, servem de base para a posterior emergência das agendas político-econômicas e socioculturais que, ao longo das três primeiras décadas do século XX, são fundamentais para sustentar os debates em torno da articulação entre a temática andina e o problema da identidade peruana. É, pois, em meio a “crise” social vivenciada pelo Peru nesse momento 8 histórico1 que surgem as principais vozes de uma modalidade do indigenismo, cujas ideias convencionadas nos anos 20 e 30, alcançam ressonância até nas diferentes esferas do pensamento contemporâneo. Debatido também como prática política, o movimento indigenista se instaura como um “programa a desenvolver, requisitório a favor dos direitos humanos, estética da denúncia e como questão étnica e identitária” (CARRIZO, 2010, p. 207), seja da nação em sua totalidade seja de um grupo, étnico ou social. No que tange ao indigenismo dos anos 20 e 30, Silvina Carrizo assinala que esse: Tem sido sempre uma demanda levantada a partir de vozes não indígenas, vozes brancas, crioulas ou mestiças, vozes dos setores de dominação (coloniais ou nacionais) ou das classes médias emergentes, o que por outro lado, faz ressaltar na sua enunciação, a distância perante os mundos étnicos e culturais. Essa forma de indigenismo, também compartilha a vontade de revelar o desconhecido para leitores distantes, e a sua posição conflitiva na inserção de dois universos diferentes. (CARRIZO, 2010, p. 209) O distanciamento que marca o lugar da enunciação do discurso indigenista em relação ao seu referente é um dos pontos que caracteriza o seu aspecto heteróclito, segundo observa Cornejo Polar (1982), e, logo, a sua dimensão intercultural. Limitada à sua “exterioridade”, cabe ao indigenismo assumir o interesse do “outro” socialmente marginalizado, o índio, para, a partir disso, divulgar sua cultura, ao mesmo tempo que reclama os seus interesses. Conforme indica Silvina Carrizo (2010), essa vertente indigenista emerge paralelamente ao surgimento da Revista Amauta (1926-1930), “revista mensal de doutrina, literatura, arte, polêmica”, fundada e dirigida por José Carlos Mariátegui (1895-1930), um dos maiores expoentes dessa geração. Nos artigos nela publicados, é possível observar que, pela primeira vez, a problemática indígena é vinculada à questão da propriedade de terra, de modo que o latifúndio passa a ser encarado como a raiz dos males que propiciam o estado de servidão do campesinato e a subsequente exclusão da maioria da população indígena. A revista, portanto, contribui, no intuito de assentar as bases “tanto das reivindicações econômicas e políticas da sociedade quanto dos caminhos culturais e artísticos das forças progressistas” (CARRIZO, 2010, p. 209). Logo, Amauta inscreve-se na realidade do país como ponto de interseção, no qual se processa o encontro de distintas orientações ideológicas 1 Como afirma Cornejo Polar (1982, p. 94), trata-se de um momento histórico bastante conflituoso, marcado por alguns acontecimentos importantes, tal como a crise da hegemonia civilista (1919), o governo de Leguía (1919-1930) e a substituição por ditaduras fascitoides (1930-1939), os quais constituem a superfície política de um complexo processo econômico e social, caraterizado pela rápida modernização capitalista sob o império dos Estados Unidos e pelo consequente aguçamento de classes. Acredita-se, portanto, que aquele período se configura como uma autêntica “situação revolucionária”. 9 e artísticas, bem como de diferentes interesses advindos de vários campos do saber a respeito das novas propostas. É válido ressaltar que as operações políticas e estéticas envolvidas na base dos pressupostos indigenistas, ao exprimirem o desejo de conhecer o “Peru real”, de entender o fracasso político-econômico experimentado pelo país, e de repensar o conceito de nação, promovem também a inserção do indigenismo nos debates sobre a modernização. Sobre esse aspecto, Carrizo constata que: Entre os alvos e as metas desse movimento, interessa observar que, além do significado histórico, enquanto movimento político e social de massas, conformou- se uma proposta e luta no campo simbólico dos discursos, em que se propunham a combater os estereótipos hispanistas. O debate se desdobraria em intrincadas discussões em torno do positivismo, do pensamento racial e da tradição colonial para gerar, a partir dali, uma autoconsciência nacional em que postulavam figuras mestiços-indígenas, como sintoma dos novos grupos sociais em ascensão, em luta contra o poder dominante e a cultura hegemônica. (CARRIZO, 2010, p. 210) Embora se constitua como um movimento heterogêneo, o aspecto antioligárquico e a sua disposição em combater os estereótipos hispanistas constituem uma base comum compartilhada pelos distintos desdobramentos do indigenismo. Assim, pode-se observar que Mariátegui e o grupo Amauta debatem o problema da realidade peruana desde a perspectiva do marxismo, por meio do qual tecem uma crítica dirigida ao sistema econômico do país, atacando incisivamente a sua estrutura latifundiária. Já Luis E. Valcárcel, seguindo princípios distintos de Mariátegui, transfere o centro da problemática do Peru do âmbito das questões econômicas para a esfera da cultura. No ensaio Tempestad en los Andes, de 1927, assumindo uma inclinação mítica, Valcárcel propõe a reivindicação e o renascimento da cultura incaica, a qual estaria prestes a despertar do profundo letargo a que estava submetida por mais de três séculos, para enfim reestabelecer, no espaço peruano, a ordem cultural indígena. Distanciando-se de ambos os ensaístas, Uriel García introduz uma teoria sobre o novo índio que parece instaurar uma etapa inédita ao movimento, isto é o neo-indigenismo. Em El nuevo índio, publicado em 1930, García formula a concepção de mestiçagem2 integradora como origem da capacidade universalizante da experiência americana e, ao mesmo tempo, 2 Vale lembrar que a noção de mestiçagem é fundamentalmente histórica, pois, seu sentido é estabelecido e atualizado sempre de acordo com determinadas circunstâncias socioculturais e em função do local de enunciação de cada sujeito que o elabora. Como aponta Silvina Carrizo (2010, p. 261), “trata-se de um conceito que emerge do choque com o diferente e se estabelece a partir da biologia, alargando-se na sociedade através de artimanhas discursivas e práticas políticas e, por sua vez, atinge seu clímax ao ser proclamado como categoria identitária de uma nação ou de um continente”. Ao longo do trabalho, verificaremos como Cornejo Polar e Vargas Llosa, ao refletirem sobre a identidade cultural peruana tal como é representada pela obra de Arguedas, interpretam e dialogam com essa concepção. 10 como rejeição à tentadora volta ao passado. Ao explicar a persistência da cultura indígena na contemporaneidade, García prescinde dos argumentos de ordem revolucionária, social e cultural. Seus princípios são sustentados desde uma perspectiva estritamente moral ou espiritualista, a qual é entendida por Vargas Llosa (1996, p. 74) em termos do “andinismo”. Valendo-se dessa concepção, García desenvolve uma ideia telúrica sobre a identidade do índio, afirmando assim que, sua cultura não é transmitida por laços consanguíneos e nem imposta pelo passado histórico, mas é determinada pela paisagem dos Andes que, por sua beleza e, também, hostilidades, exerceu influência central na vida americana. De acordo com essa linha de pensamento, o “ser indígena” não deve ser reconhecido como um grupo étnico, mas sim como uma “entidade moral”, de modo que o conjunto de práticas sociais e culturais andinas pode ser assimilado por qualquer indivíduo que se sinta atraído pelas particularidades do ambiente serrano. Como enfatiza Carrizo (2010, p. 221), as ideias postuladas por García constituem o terreno fértil da literatura transculturadora a que faria referência Ángel Rama (2008) décadas depois, e na qual José María Arguedas se revela como um dos principais representantes. Constata-se, assim, que o indigenismo é um dos componentes essenciais da produção artística, ideológica e científica que reflete e estimula as turbulências sociais de um momento histórico bastante conflituoso, em que se chegou a vislumbrar a eminência da revolução transformadora da sociedade peruana. Entretanto, será a partir dos anos 50 que a modernização irá instaurar mudanças drásticas na base sociocultural do país, marcando o início da ruptura de uma ordem tradicional paternalista e oligárquica. Segundo Nelson Manrique (1995), em Historia de la República, esse é o período da história do Peru em que se teve início uma violenta onda de levantes camponeses que deveria prosseguir até meados de 60. É interessante notar que o desenvolvimento do mercado interno, a crescente incorporação do campesinato nos circuitos monetários, o desenvolvimento dos meios de comunicação e as redefinições da relação entre o campo e a cidade são fatores que, segundo o sociólogo (MANRIQUE, 1995, p. 252), favoreceram a extensão das rebeliões organizadas pelos trabalhadores rurais que lutavam por reformas no sistema agrário peruano. A decadência dos latifúndios da zona andina e, em contrapartida, a execução de políticas de benefícios às camadas urbanas durante o governo de Odría (1948-1956), são motivos fulcrais que condicionam os fluxos migratórios no Peru. Para Cornejo Polar (2000h, p. 299), a migração é um dos principais fenômenos que caracterizou o processo de modernização do país. Isso porque constata que o deslocamento de um grande contingente indígena das serras para a costa levou, em cinco décadas, a população urbana no país a subir de 35,4% para 69,9%. Assim, 11 durante a gestão de Odría, estabeleceram-se 30 “barriadas” (assentamentos humanos) em Lima, com uma população de mais de 200.000 novos migrantes. A repentina explosão demográfica na região costeira, resultando no surgimento de novos conglomerados humanos às margens de Lima, somada à incapacidade das medidas adotadas por Odría para assimilar economicamente a população migrante, a qual tendeu a envolver-se em atividades informais de sobrevivência (VARGAS LLOSA, 1996, p. 332), contribuiu para a configuração de um novo cenário sociocultural limenho que passa a ser dominado por aspectos da cultura andina. Como aponta Alberto Escobar (1984, p. 34), a “tempestade” anunciada anos antes por Valcárcel parecia ter se concretizado. As transformações operadas pela dinâmica da modernização processadas no Peru, a partir dos anos 50, sobretudo aquelas engendradas pelo fenômeno migratório, interno e externo, empreenderam o redimensionamento das fronteiras que distinguiam os universos culturais antagônicos existentes no território peruano, ou seja, o hispânico e o indígena, promovendo assim a própria reconfiguração identitária da cultura peruana. Tais mudanças, somadas aos efeitos da globalização e aos eventos internacionais ocorridos naquele período, seguindo as proposições de Stuart Hall (2001), condicionam o deslocamento das paisagens de classe, gênero, etnia e nacionalidade, fragmentando ainda mais os processos centrais de significação da cultura peruana. Logo, trata-se de uma mobilidade que, além impor reajustes no plano social, econômico e político, desestabiliza o próprio conceito de identidade cultural, não apenas do país, mas do próprio “homem peruano”. Em razão dos impasses levantados pelas novas circunstâncias socioculturais e político- econômicas peruanas, e latino-americanas, as diferentes áreas do conhecimento também serão obrigadas a revisar e a redefinir seus estatutos epistemológico e teórico, com o fim de conferir legitimidade às suas práxis discursivas (MARTÍNEZ, 1995, p. 660). Assim, nota-se que a modernização das sociedades latino-americanas interferiu diretamente na esfera do pensamento intelectual do continente. Em relação à literatura propriamente dita, é importante mencionar a eclosão do boom literário, na década de 60, o que vem para reforçar a necessidade de uma revisão dos conceitos e instrumentos hermenêuticos até então norteadores do trabalho artístico e do exercício crítico. Nesse momento, é possível observar o auge do romance hispano-americano, o qual, além de ser submetido a um processo de renovação formal, também ganha projeção no panorama internacional. Para Emir Rodriguez Monegal (1971, p. 502-503), o boom deve ser compreendido não apenas como um mero fenômeno editorial, pois esse também constitui um evento que conduz à maturidade da literatura latino-americana. Assim, Rodríguez Monegal, 12 enfatiza a contribuição do boom para o fim da marginalização das narrativas produzidas na América Latina, uma vez que permite que essas se instalem, paulatinamente, no “centro” das letras daquele período3. O experimentalismo e o caráter revolucionário da linguagem dos romances publicados na época do boom refletem as constatações de Saúl Sosnowski (1995, p. 395), para quem “diante de práticas e utopias revolucionárias, foi inevitável uma alta e explícita ideologização do campo literário”. Configurou-se, portanto um cenário propício que conduziu muitos escritores a reiterarem a crença no poder transformador da literatura. É, pois, em meio a esse contexto literário que, cronologicamente, se inscrevem as narrativas de José María Arguedas (1911-1969), as quais não deixam de incorporar em sua estrutura tanto o diálogo com as tendências indigenistas das três primeiras décadas do século XX, no qual começou a escrever, quanto as demandas literárias que resultaram no boom. Situando-se de maneira incômoda entre os limites das ciências sociais e da literatura, a obra de Arguedas se desenvolve a partir de tensões que deixam transparecer a própria crise do campo intelectual dos anos 50 e 60 (PORTUGAL, 2011, p. 35), e, além disso, solicita às vertentes críticas dos anos posteriores, a formulação de estratégias de leituras alternativas que, distanciando-se das propostas estético-literárias importadas dos Estados Unidos ou da Europa, busquem captar o sentido expresso em sua linguagem artística com base na relação que essa estabelece com as particularidades do contexto sociocultural em que é produzida. É provável que esta consideração explique as razões pelas quais o romance arguediano Todas las sangres, de 1964, mostrando-se insubordinado às noções do estruturalismo, em voga nos anos 60, tenha sido excluído do cânon literário latino-americano definido nas “primeiras horas do boom” (PORTUGAL, 2011, p. 117). Contudo, nas três últimas décadas do século XX, a obra de Arguedas converte-se em alvo de diversas e controvertidas interpretações sobre os elementos políticos, sociais, culturais e artísticos por ela transfigurados. Apesar das divergências que suscita no meio acadêmico, há 3 A propósito, Adriane Vidal Costa assinala alguns dados que expressam tal proposição. Em 1961, Borges recebeu o Prêmio Formentor, outorgado pelo Congresso Internacional de Editores. Na Espanha, ao longo da década de 1960, o êxito do romance hispano-americano foi grande. O Prêmio Biblioteca Breve, concedido pela Seix-Barral, foi outorgado a vários romancistas: em 1962, como já mencionado, foi concedido a Vargas Llosa por La ciudad y los perros; em 1963, ao mexicano Vicente Leñero por Los albañiles; em 1964, ao cubano Guillermo Cabrera Infante por Tres tristes tigres; em 1967, ao mexicano Carlos Fuentes por Cambio de piel; em 1968, ao venezuelano Adriano González Leon, por País portátil; em 1969, ao chileno José Donoso por El obsceno pájaro de la noche. Além disso, em 1967, o Prêmio Nobel de Literatura foi outorgado ao guatemalteco Miguel Ángel Asturias. Na Itália, Sobre héroes y tumbas, de Ernesto Sábato, tornou-se best- seller e, nos Estados Unidos, viu-se o êxito de Cien años de soledad. O êxito de vendas desse livro se deve, em grande medida, à existência dessa rede de escritores que queriam tornar a literatura latino-americana (re)conhecida dentro e fora do subcontinente (COSTA, 2001, p. 13). 13 um consenso entre os críticos desse período no que diz respeito à sua capacidade de contribuir para a compreensão da sociedade peruana contemporânea (VALLIÉRES, 1996, p. 365). Assim, ainda que seja lida como uma negação, ou reflexo, da realidade a que faz referência, a narrativa arguediana apresenta aspectos que conduziram a novas formulações teóricas fundamentais para o entendimento não somente da constituição do sistema sociocultural do Peru, mas também de toda a América Latina. Como afirma Gladys Valliéres (1996, p. 365), a obra arguediana significa, em grande parte, a culminação dos esforços iniciados por compatriotas como Inca Garcilaso de la Vega, Guamán Poma de Ayala, e, já no século XX, Cesár Vallejo e José Carlos Mariátegui. Todos esses escritores compartilharam um mesmo ideal, ou seja, resgatar e valorizar a tradição quéchua como parte integrante da cultura nacional. Mais especificamente, no caso de Arguedas, é possível notar como sua produção literária busca representar o caráter de “resistência” de um universo cultural autóctone, descendente do Império Inca, dentro do percurso histórico peruano. Nesse sentido, o narrador arguediano concentra um grande poder simbólico, pois, ao expressar as vozes dissonantes, individuais ou coletivas, a fim de representar os distintos universos culturais coexistentes em um mesmo território geográfico, cria uma linguagem literária capaz de diluir as fronteiras que, secularmente, caracterizaram as diferenças entre os povos que habitavam aquele país. Reivindicando o valor da cultura andina, Arguedas coloca em prática um projeto literário cujo fim é produzir uma obra que anulasse a distância entre ambos os mundos – o hispânico e o andino – existentes no Peru, integrando-os como elementos constituintes da identidade peruana, caracterizada por sua natureza heterogênea e contraditória. Autodefinindo-se como “elo” (ARGUEDAS, 2005, p. 99) entre os universos culturais díspares, Arguedas demonstra seu interesse em edificar narrativas que não retratassem apenas as questões indígenas, mas que também abarcassem toda a complexidade da sociedade e da cultura peruana. Logo, o elemento andino deveria ser compreendido somente como um traço significativo de um quadro representativo mais amplo. Essa orientação da estética arguediana, declarada no artigo La novela peruana y el problema de la expresión literaria em el Perú, de 1950, constitui o fundamento que leva os críticos, entre eles Tomás Escajadillo (1971) e Cornejo Polar (1973), por exemplo, a constatarem como a produção literária de Arguedas, em seu conjunto, representa a própria superação, ou reformulação, dos limites do romance indigenista, movimento ao qual o escritor peruano é frequentemente associado. A empresa literária colocada em prática por Arguedas configurou-se, portanto, como a chave motivadora das leituras que levam tanto Antonio Cornejo Polar quanto Mario Vargas 14 Llosa a buscarem, por intermédio de seus textos, uma interpretação da identidade cultural do Peru contemporâneo. Em termos sucintos, suas análises parecem responder às seguintes perguntas: Como Arguedas retrata o “peruano” do século XX? Que aspectos identitários o particularizariam? Trata-se de uma imagem que nega ou reproduz as circunstâncias socioculturais do Peru no momento histórico em que se insere? Se nega ou se corresponde, por que e, em função de que procedimentos, o faz? Assim, o presente trabalho se propõe a examinar como dois críticos literários contemporâneos, Mario Vargas Llosa e Antonio Cornejo Polar, leem a identidade cultural do homem peruano, e, consequentemente, latino-americano, valendo-se das narrativas de José María Arguedas (1911-1969). Com base no embate entre as duas abordagens críticas, defende-se a tese de que, por detrás das discrepâncias ideológicas que determinam as análises de cada um dos intelectuais, há uma correspondência que os aproxima. Nesse sentido, o estudo visa levantar os pontos de contato entre ambas as leituras para, assim, desconstruir o suposto antagonismo que tende a marcar a oposição do pensamento de Cornejo Polar e de Vargas Llosa e, além disso, indicar a complementaridade entre seus estudos. A proposta apresentada parte da constatação de que, em inúmeros ensaios acadêmicos, especialmente os relativos a Arguedas e ao indigenismo, Cornejo Polar e Vargas Llosa figuram, na maioria das vezes, como intelectuais de ideias divergentes. O distanciamento entre suas postulações teóricas é verificado, a princípio, nos próprios textos por eles publicados. Vargas Llosa (1996), por exemplo, em La utopia arcaica, numa discreta nota de rodapé, alude ao “soporífero esfuerzo del profesor Antonio Cornejo Polar [em Los universos narrativos de Arguedas (1973)] por presentar la obra de Arguedas como un dechado de compromiso político-social”4 (VARGAS LLOSA, 1996, p. 23). Na ocasião, Vargas Llosa defendia a sua tese sobre o poder retificador da literatura, à qual não lhe cabe reproduzir mimeticamente a realidade exterior, mas negá-la, distorcê-la. Em torno dessas considerações, Vargas Llosa destaca o equívoco cometido por muitos críticos que tendem a “desnaturalizar” a obra literária ao tomá-la como “símbolos o alegorías que, bajo la apariencia de magia, fantasía o locura cumplem también con la misión bienhechora de denunciar el mal y proponer la buena idea”5 (VARGAS LLOSA, 1996, p. 22). Além da explícita advertência dirigida a Cornejo Polar, a ironia predominante no discurso vargasllosiano contribui para 4 “[…] soporífero esforço do professor Antonio Cornejo Polar [em Los universos narrativos de Arguedas (1973)] para apresentar a obra de Arguedas como um exemplo de compromisso político-social” (VARGAS LLOSA, 1996, p. 23, tradução nossa). 5 “[...] símbolos ou alegorias que, sob a aparência de magia, fantasia ou loucura cumprem também a missão benfeitora de denunciar o mal e propor a boa ideia” (VARGAS LLOSA, 1996, p. 22, tradução nossa). 15 ratificar as suas reservas em relação às proposições do autor de Los universos narrativos de Arguedas. Embora não faça nenhuma outra citação explícita, Vargas Llosa, à medida que constrói a sua análise da obra arguediana, reitera pontos em sua teoria do romance que vão de encontro às concepções de Cornejo Polar, conforme será demonstrado ao longo do trabalho. Cornejo Polar, por sua vez, parece responder a essa apreciação de modo um pouco mais incisivo. Em vários artigos, é possível observar suas críticas a Vargas Llosa. No ensaio El indigenismo y las literaturas heterogéneas: su doble estatuto socio-cultural, de 1978, Cornejo Polar remete ao problema da “exterioridade” da literatura indigenista que, muitas vezes, é concebida pela crítica como uma artificialidade capaz de expropriar o universo indígena da mesma forma que os colonizadores espanhóis. Nesse ponto, enfatiza que Vargas Llosa “extremó su condenación hasta el punto de afirmar que ‘los escritores peruanos descubrieron al indio cuatro siglos después que españoles y su comportamiento con él no fue menos criminal que el de Pizarro’”6 (CORNEJO POLAR, 1982, p. 81). Na sequência, Cornejo Polar ressalta: Aunque Vargas Llosa proyecta los nombres de José Santos Chocano, Ventura García Calderón y Enrique López Albújar, su línea de reflexión lo conduce a condenar, igualmente, al naturalismo posterior, sintetizado en la obra poética de Alejandro Peralta, que tendría “una visión […] tan extranjera como la de cualquier otro modernista”. Es claro que planteos de esta índole no contribuyen a esclarecer el sentido del indigenismo: consideran como defecto lo que es la identidad más profunda del movimiento7. (CORNEJO POLAR, 1982, p. 81, grifos nossos). Nota-se que Cornejo Polar, ao examinar a identidade do indigenismo, introduz seus argumentos com base na invalidação do discurso crítico de Vargas Llosa, o qual, naquele caso, não serviria para a explanação das peculiaridades desse tipo de literatura. Outra tentativa de romper com a leitura vargasllosiana pode ser encontrada no artigo El indigenismo andino, de 1995, em que Cornejo Polar, discutindo acerca da autenticidade da linguagem indigenista, faz questão de lembrar: 6 “[...] extremou sua condenação, a ponto de afirmar que ‘os escritores peruanos descobriram o índio quatro séculos depois dos conquistadores espanhóis e seus comportamentos para com ele não foi menos criminoso que o de Pizarro’” (CORNEJO POLAR, 2000d, p. 170). Doravante, sempre que for citado um texto de Cornejo Polar constante na obra O condor voa (2000), remeter-se-á à tradução de Ilka Valle Carvalho. Consultar as referências. 7 “Embora Vargas Llosa projete seu julgamento sobre o indigenismo modernista, citando os nomes de José Santos Chocano, Ventura García Calderón e Enrique López Albújar, sua linha de reflexão o conduz a condenar igualmente o nativismo posterior, sintetizado na obra poética de Alejandro Peralta, que teria uma ‘visão [...] tão estrangeira como a de qualquer outro modernista’. É claro que colocações desta índole não contribuem para esclarecer o sentido do indigenismo: consideram defeito o que é a identidade mais profunda do movimento” (CORNEJO POLAR, 2000d, p. 170). 16 […] el desliz de Vargas Llosa cuando cuestionó las novelas de Alegría porque en ellas no se percibía el habla quéchua de los personajes (y Alegría contestó que los indios de la sierra del norte en realidad no son quechuahablantes) y cuando alabó la ‘autenticidad’ de las representaciones arguedianas […] bastante tempo después que el propio Arguedas hubiera explicado que ese lenguaje es una pura invención artística8. (CORNEJO POLAR, 1995, p. 725). Novamente, Cornejo Polar busca dar mostras de que o postulado de Vargas Llosa era insuficiente para dar conta da complexidade discursiva das literaturas heterogêneas, ou seja, aquelas produzidas em meio à intersecção de dois universos socioculturais distintos. Além disso, com uma pontinha de sarcasmo, trata de acusar um lapso (deslize) na erudição do autor de La utopia arcaica. Vale citar, ainda, uma nota de rodapé em Un ensayo sobre los zorros, de 1996, no qual Cornejo Polar, examinando o sentido “mítico” da morte de Arguedas, alega que “es absolutamente injustificable afirmar, como lo hace Mario Vargas Llosa, que el suicídio de Arguedas inflige un ‘chantaje’ al lector”9 (CORNEJO POLAR, 1996b, p. 304). O embate entre essas leituras será realizado no momento oportuno deste estudo, por ora menciona-se o fragmento para ilustrar como Cornejo Polar, assim como Vargas Llosa (de modo mais circunspecto), estabelecem um diálogo em suas produções críticas, mediante o qual visam demarcar seus diferentes posicionamentos teóricos. A separação entre o pensamento de Cornejo Polar e Vargas Llosa é também delimitada pelos trabalhos de outros investigadores do romance de Arguedas, embora esses nem sempre apontem as diferenças entre ambos os críticos peruanos, a partir de uma perspectiva tendenciosa. Antes disso, visam incluir as abordagens críticas de Cornejo Polar e Vargas Llosa dentro das discussões literárias que procuram desenvolver, para assim promoverem uma abertura mais dialógica de seus textos. É o que se pode constatar, por exemplo, em Arguedas o la utopia de la lengua (1984), de Alberto Escobar. No primeiro capítulo de seu ensaio, com vistas à contextualização histórica e social da obra arguediana, Escobar (1984, p. 19) menciona, em nota de rodapé, a fortuna crítica especializada na narrativa de Arguedas, composta de intelectuais que, até o momento, haviam contribuído para destacar a relevância do referido autor peruano dentro do panorama da literatura latino- americana. 8 “[...] o deslize de Vargas Llosa quando questionou os romances de Alegría porque neles não se percibia a fala quéchua dos personagens (e Alegría contestou que os índios da serra do norte na realidade não falam quéchua) e quando aclamou a ‘autenticidade’ das representações arguedianas […] muito tempo depois que o próprio Arguedas tinha explicado que essa linguagem era pura invenção artística” (CORNEJO POLAR, 1995, p. 725, tradução nossa). 9 “[…] é absolutamente injustificável afirmar, como o faz Mario Vargas Llosa, que o suicídio de Arguedas inflige uma ‘chantagem’ ao leitor” (CORNEJO POLAR, 2000g, p. 153). 17 Entretanto, a referência a esses estudos é dividida em duas linhas: a primeira, consta de nomes como Cornejo Polar (1970; 1973), Tómas Escajadillo (1970), George Robert Coulthard (1976) e Yerko Moretic (1976), cujos trabalhos podem ser “cotejados” com os distintos pontos de vista, até contraditórios, das produções que integram o segundo segmento de autores, entre os quais se destacam as figuras de Vargas Llosa (1978a), Angel Rama (1975; 1976), Sara Castro-Klarén (1977) e Willian Rowe (1973;1979), entre outros. Essa bipartição entre os estudos que integram o “cânone” autorizado em Arguedas, não deixa de revelar o afastamento entre os postulados de Cornejo Polar e Vargas Llosa. José Alberto Portugal, em Las novelas de José María Arguedas: una incursión en lo inarticulado, de 2011, também chama a atenção para as diferentes interpretações enunciadas por ambos os críticos peruanos a propósito da “contiguidade modal” entre a linguagem de Arguedas e os discursos político-intelectuais vigentes nos anos 60. Segundo verifica Portugal, para Vargas Llosa, o peso ideológico exercido pelos postulados dos partidos políticos daquele momento configuram-se como “los fantasmas del reaccionarismo”10 (PORTUGAL, 2011, p. 346) que induzem o resgate do elemento arcaico nas narrativas arguedianas. Em contrapartida, Portugal observa que, de acordo com Cornejo Polar, a contraditória adesão de Arguedas a distintos programas ideológicos revela a organicidade de um projeto literário que tem, por finalidade, impor-se como um “testimonio de la gestación, dolorosa y heroica, de un nuevo mundo”11 (PORTUGAL, 2011, p. 347). Em outras passagens do seu estudo, Portugal se ampara na oposição dos discursos Cornejo Polar e Vargas Llosa para cotejá-los com os de outros críticos, ou mesmo, para emitir o seu próprio juízo de valor sobre a obra de Arguedas, sem, contudo, chegar a estabelecer um paralelismo crítico entre as opiniões dos dois autores. Ainda em 2011, no Brasil, publica-se o interessante livro de Rômulo Monte Alto, intitulado Descaminhos do moderno em José María Arguedas, no qual o professor brasileiro realiza uma minuciosa análise do romance El zorro de arriba y el zorro de abajo, buscando sondar a melhor estratégia de leitura para “ouvir” a mensagem transmita pelos “zorros”, signos da “razão andina” que, como sugere Arguedas, é fundamental para iluminar o labirinto forjado pelas próprias redes discursivas da racionalidade ocidental em sua demanda modernizadora. Ao tratar da recepção de tal obra, Monte Alto expõe um breve panorama salientando os principais estudos críticos já realizados sobre El zorro de arriba y el zorro de abajo, nos quais as opiniões de Cornejo Polar e Vargas Llosa aparecem situadas em polos 10 “[...] os fantasmas do reacionarismo” (PORTUGAL, 2011, p. 346, tradução nossa). 11 “[…] testemunho da gestação, dolorosa e heroica, de um novo mundo” (PORTUGAL, 2011, p. 347, tradução nossa). 18 contrários: o primeiro, notabiliza-se por apresentar uma menção favorável à narrativa (MONTE ALTO, 2011, p. 14); já o segundo, figura como o escritor que dirige “a crítica mais dura” ao relato de Arguedas (MONTE ALTO, 2011, p. 21). Não se questiona, aqui, a evidência das diferenças do discurso de cada um deles. Em se tratando da leitura de El zorro de arriba y el zorro de abajo, de fato as discrepâncias são bem nítidas. O que se pretende, nesse trabalho, não é negar essas particularidades que caracterizam as produções de Cornejo Polar e de Vargas Llosa. Interessa, antes, observar como, com base nessas divergências, é possível encontrar pontos de contato por meio das quais se possa aproximá-las. Na sequência de seu estudo, Monte Alto (2011, p. 23) faz menção a um importante debate registrado na revista Quehacer, em 1997, em que Rocio Santisteban reúne as apreciações de críticos pertencentes a diferentes gerações, com o fim de avaliar como se deu, no meio acadêmico, a recepção de La utopia arcaica, de Vargas Llosa. Nessa discussão, circulam os julgamentos de professores ou escritores que tanto negam a validade dos argumentos vargasllosianos, como o fazem Willian Rowe, Miguel Ángel Huamán, José Guillermo Nugent, Carmen Ollé, Patricia Oliart e Daniel del Castillo; quanto concordam, parcial ou totalmente, com as ideias do ensaio vargasllosiano, como é o caso de Alonso Cueto e de Iván Thays. Sobre esse último, é interessante transcrever uma de suas colocações fundamentais para elucidar a questão do distanciamento entre Cornejo Polar e Vargas Llosa. Logo, após enfatizar os pontos positivos das leituras de Vargas Llosa sobre Arguedas, concordando com o autor de La utopia arcaica a respeito da concepção de literatura defendida em tal ensaio e, ainda, em relação à imagem da identidade peruana nele proposta, Iván Thays declara: Para mí Vargas Llosa no es un científico, sino un escritor que opina sobre literatura y que tiene ideas literarias muy arraigadas que ha querido comprobar en la obra de Arguedas; por eso utiliza la biografía. En ese sentido la obra cumple con su objetivo: demuestra lo que un escritor puede pensar sobre otro escritor. Cómo análisis de la obra arguediana, como crítico literario, hay que tener más cautela. […] No se puede poner al nivel de Cornejo Polar u otros críticos12. (THAYS, 1997, p. 78). O comentário acima implica o estabelecimento de uma hierarquia entre o discurso de Cornejo Polar e Vargas Llosa. Para Thays (1997), essa distinção está bem clara: não se pode comparar a leitura de um ficcionista com a de um crítico literário, cujo modelo teórico-crítico 12 “Para mim, Vargas Llosa não é um cientista, mas um escritor que opina sobre literatura e que tem ideias literárias muito arraigadas, as quais quis comprovar na obra de Arguedas; por isso utiliza a biografia. Nesse sentido, a obra cumpre o seu objetivo: demonstra o que um escritor pode pensar sobre outro escritor. Como análise da obra arguediana, como crítico literário, é necessário ter mais cautela. […] Não podemos colocá-lo ao nível de Cornejo Polar ou outros críticos” (THAYS, 1997, p. 78, tradução nossa). 19 seja dotado de legitimidade científica. É justamente essa proposição que objetiva-se problematizar no presente trabalho. Que elementos permitem desautorizar um exame crítico em detrimento de outro: as bases epistemológicas por eles empregadas? A ideologia assumida por cada um deles? O lugar de onde enunciam a sua fala? Valendo-se desses questionamentos, suscitados com base na demarcação das divergências entre Cornejo Polar e Vargas Llosa, pretende-se sondar em que medida ambos os intelectuais peruanos, enquanto sujeitos sociais contemporâneos, compartilham, ainda que implicitamente, algumas concepções teórico- críticas que permitem validar ambos os pensamentos, e até sugerir sua complementaridade no tocante às análises da obra de Arguedas e, por extensão, acerca da identidade cultural peruana de meados do século XX. Sustenta-se a proposta desse estudo partindo do pressuposto de que a “crítica literária” não está alheia às variações de sentido que lhe impõe a história. A propósito, Barthes questiona: Como acreditar, com efeito, que a obra é um objeto exterior à psique e à história daquele que a interroga e em face do qual o crítico teria uma espécie de direito de extraterritorialidade? Que por milagre a comunicação profunda que a maioria dos críticos postulam entre obra e autor que eles estudam cessaria quando se trata de sua própria obra e de seu próprio tempo? (BARTHES, 1999b, p. 160). Para Barthes, toda crítica deve incluir em seu enunciado um discurso implícito sobre ela mesma, o qual diz respeito aos fatores que levam o intelectual a eleger determinados códigos para expressar seu pensamento. Enquanto atividade formal profundamente engajada na existência histórica e subjetiva, a crítica não se configura como uma homenagem à “verdade” do passado ou ao ponto de vista alheio, antes disso, ela deve ser entendida como uma construção da inteligência do nosso tempo (BARTHES, 1999b, p. 163). Em torno dessas colocações, para Barthes, toda crítica é ideológica, de modo que para o crítico francês o pecado maior em crítica não é a ideologia em si, já que como afirma Todorov (1991, p. 153) “las formas mismas son portadoras de ideología”13, mas o silêncio com que ela é recoberta. A atual coexistência de diferentes ideologias e pontos de vista na sociedade contemporânea leva Barthes a renunciar à busca da “verdade”, para em seu lugar desenvolver um discurso fundado no relativismo crítico. Na linha dessas proposições, Barthes salienta que a tarefa da crítica não seria descobrir “verdades”, mas somente “validades” de um discurso literário. Configurando-se como uma metalinguagem, ou seja, uma linguagem segunda que tece referências a uma primeira (objeto), cabe à crítica não o deciframento do sentido da obra 13 “[…] as próprias formas são portadoras de ideologia” (TODOROV, 1991, p. 153, tradução nossa). 20 examinada, mas sim a reconstituição das regras e dos elementos envolvidos na elaboração da mensagem. Isso porque, concebendo a literatura como um sistema semântico muito particular, aberto a infinitas leituras e significações, o seu próprio ser não se encontra no “conteúdo”, mas no modo pelo qual os signos se organizam dentro de sua estrutura. Logo, para Barthes, compete ao crítico elaborar uma segunda linguagem que, independentemente do enfoque ideológico adotado, seja dotada da consistência necessária para dar conta de reestabelecer os mecanismos formais de um texto, por meio dos quais se é possível transmitir os seus vários sentidos. Embora o presente estudo se oriente pelas postulações de Barthes sobre a questão da ideologia no discurso crítico, considerando também relevante a necessidade da persuasão interna como um dos recursos que conferem validade a um enunciado crítico, discorda-se do crítico francês no tocante ao papel que ele atribui à atividade crítica: ou seja, descobrir validades e não verdades. Nesse ponto, passa-se a compartilhar das ideias de Todorov (1991, p. 148), para quem “se puede ser consciente de que no se posee la verdad y sin embargo no renunciar a buscarla”14. De acordo com Todorov (1991, p. 149), a noção de verdade adquire um novo estatuto, ou seja, não designa mais o “conteúdo” de determinado ponto de vista, mas é concebida como o “princípio regulador do intercâmbio com o outro”. Em outras palavras, Todorov acredita ser possível se chegar a uma “verdade”, caso haja um desejo de entendimento entre representantes de culturas diferentes, uma vez que é próprio do homem ser capaz de superar sua parcialidade e seu determinismo local. Reivindicando um equilíbrio entre o “imanentismo” e o “dogmatismo”15, Todorov (1991, p. 149) formula o seu conceito de crítica dialógica, por meio do qual propõe pensar o exercício crítico como espaço de encontro entre duas vozes – a do autor (do objeto de estudo) e a do intelectual – no qual nenhuma tem o privilégio sobre a outra. Nesse aspecto, a crítica já não deve ser concebida como metalinguagem, mas como diálogo em que, cabe ao crítico escutar a voz de seu interlocutor e, a partir daí, discutir seus posicionamentos e pontos de vista. Para evitar que a investigação do sentido de um texto esteja submetida a uma razão estabelecida de antemão, Todorov destaca que, cabe ao crítico não apenas perguntar “¿Qué 14 “[…] é possível ser consciente de que não se possui a verdade e, contudo, não renunciar à sua busca” (TODOROV, 1991, p. 148, tradução nossa). 15 Todorov (1991, p. 149) se refere ao crítico imanentista como aquele que renuncia à busca da verdade (sempre no sentido da sabedoria e não de adequação aos fatos), negando a si próprio a possibilidade de atribuir sentido a uma obra. O objetivo do crítico imanentista seria o de descrever o sistema de signos que, compondo o texto literário, viabiliza a produção de seus significados. Por outro lado, Todorov denomina como crítico dogmático aquele que, ao contrário, julga-se o detentor da verdade, de modo que termina projetando em suas leituras somente as suas convicções já formuladas de antemão, e não reelaboradas com base no diálogo com o objeto analisado. 21 dijo?”, mas também: “¿Tiene razón? (lo que, esperamos, no quiere simplemente decir: ‘Tengo razón?’)”16 (TODOROV, 1991, p. 151). Trata-se de um procedimento de busca comum da verdade. Nesse trabalho, ao visar a aproximação do discurso crítico de Cornejo Polar e de Vargas Llosa, pretende-se realizá-la em função da perspectiva dialógica estabelecida por Todorov. Após “escutar” e refletir sobre as propostas estético-literárias e teórico-críticas de cada um dos autores, tratar-se-á de enfatizar o lugar em que se dá o cruzamento de suas ideais, o local do encontro, bem como o da dispersão. Como indica Todorov, seguindo uma linha de reflexão mais existencialista: El mundo contemporáneo, en particular, admite la pluralidad de las opciones, y las concepciones cristiana o marxista (“dogmáticas”) colindan hoy en día con las críticas de obediencia histórica o estructural (“inmanentes”). El ser humano no está jamás totalmente determinado por su medio, su libertad es su definición propia17. (TODOROV, 1991, p. 154). Superando os dogmas que, por vezes, tendem a acentuar o suposto antagonismo entre Cornejo Polar e Vargas Llosa, objetiva-se apontar em que sentido a crítica de ambos os intelectuais contribuem para elucidar os distintos aspectos da multifacetada obra de Arguedas e, por extensão, da heteróclita e fluída cultura peruana de fins do século XX. Para atender a esse objetivo, o trabalho encontra-se organizado em três capítulos, os quais se subdividem em dois tópicos. O primeiro capítulo ocupa-se de uma apresentação da trajetória crítica de Cornejo Polar, a partir do seu contato com a obra de Arguedas. Na primeira parte, busca-se ressaltar o empenho do crítico peruano em resgatar e valorizar a produção literária arguediana por meio da aplicação de instrumentos teóricos-metodológicos capazes de captar o sentido dos paradoxos recorrentes em seus textos. No segundo momento, verifica-se como Cornejo Polar elabora, valendo-se do exame das narrativas de Arguedas, os conceitos de “heterogeneidade” e “totalidade contraditória”, com os quais passa a explicar as peculiaridades da literatura indigenista. Em uma etapa posterior de seu percurso acadêmico, passa-se a analisar os processos de expansão e radicalização do dispositivo teórico de Cornejo Polar, os quais o conduzem a formular as categorias de “sujeito heterogêneo”, “sujeito 16 “O que disse?”, [...] “Tem razão? (o que esperamos que não queira simplesmente dizer: ‘Tenho razão?’)” (TODOROV, 1991, p. 151, tradução nossa). 17 “O mundo contemporâneo, em particular, admite a pluralidade das opções, e as concepções cristã ou marxista (‘dogmáticas’) coexistem hoje em dia com as críticas de obediência histórica ou estrutural (‘imanentes’). O ser humano não está jamais totalmente determinado pelo seu meio, sua liberdade é a sua própria definição”. (TODOROV, 1991, p. 154, tradução nossa). 22 migrante” e “heterogeneidade não dialética”, por meio das quais trata de reescrever a identidade cultural do homem andino. O segundo capítulo é dedicado ao exame do discurso crítico de Vargas Llosa. O primeiro tópico aborda a figura de Vargas Llosa enquanto romancista. Pretende-se, assim, observar como se dá o diálogo entre a narrativa de Arguedas e as ficções de Vargas Llosa. Com base nesse contraponto, são esboçadas as semelhanças e as diferenças entre ambos os escritores latino-americanos. Partindo dessa “relação passional”, depreende-se e sistematiza- se um plausível modelo teórico-crítico de Vargas Llosa o qual é aplicado na sua leitura da obra arguediana. No subitem seguinte, a análise se detém no discurso crítico de Vargas Llosa, sobretudo, nas propostas do ensaio La utopia arcaica. Interessa, por fim, verificar como Vargas Llosa interpreta a imagem do homem peruano do século XX, tal qual é representada por Arguedas em seus universos ficcionais. Finalmente, no terceiro capítulo, é realizado o embate entre as análises críticas de Cornejo Polar e Vargas Llosa. Numa primeira instância, após a retomada de alguns aspectos gerais da narrativa de Arguedas e, tomando como paradigma as imagens do homem peruano dela abstraídas pelo exame de ambos os críticos peruanos, demonstra-se em que pontos suas leituras se chocam e se distanciam. Entretanto, no apartado conclusivo do trabalho, após situar Cornejo Polar e Vargas Llosa no contexto histórico e sociocultural em que estão inseridos, e, com base na relação que eles estabelecem com a tradição e a tradução cultural, de acordo com os postulados de Homi Bhabha (1998) e Stuart Hall (2001), são traçadas as correspondências entre os seus discursos críticos, sondando, assim, o local do (des)encontro do pensamento dos referidos intelectuais da América Latina. Dessa maneira, é possível constatar como cada um deles contribui para iluminar tanto os aspectos da obra arguediana quanto os mecanismos de identificação cultural do Peru contemporâneo. 23 1 O INGRESSO DE CORNEJO POLAR NOS UNIVERSOS NARRATIVOS DE ARGUEDAS 1.1 Um Possível Sentido às Contradições da Obra Arguediana As leituras críticas de Cornejo Polar partem de um princípio básico, isto é, da compreensão do caráter heterogêneo da cultura e da sociedade peruana. Essa visão se configura como ponto fulcral que permite, logo de início, entrever a filiação do seu pensamento crítico às ideias de José Carlos Mariátegui18. Nos Siete ensayos de interpretación de la realidad peruana19, de 1928, Mariátegui salienta que: En el Perú el problema de la unidad es mucho más hondo, porque no hay aquí que resolver una pluralidad de tradiciones locales o regionales sino una dualidad de raza, de lengua y de sentimiento, nacida de la invasión y conquista del Perú autóctono por una raza extranjera que no ha conseguido fusionarse con la raza indígena ni eliminarla ni absorberla20. (MARIÁTEGUI, 2007, p. 171). Ao considerar a traumática experiência da Conquista como o acontecimento histórico que promove a ruptura do desenvolvimento autônomo da cultura pré-hispânica, Cornejo Polar, seguindo a tese dualista de Mariátegui, verifica que é a partir desse momento que a composição sociocultural peruana se fragmenta. Desde então, afirma ser possível observar no Peru, mais especificamente no espaço andino, a coexistência, envolta por conflitos e contradições de duas formas distintas de organização e tradições culturais: de um lado a cultura oral indígena/quéchua21 e, de outro, a ocidental letrada, de raiz hispânica. Segundo observa Cornejo Polar (1982, p. 74), tal heterogeneidade cultural e linguística, persistente no Peru ainda século no XX, é plasmada esteticamente por uma parte considerável da literatura produzida no país, a qual reproduz e representa em sua estrutura a 18 Sobre o processo de resgate e atualização do pensamento de Mariátegui na crítica de Cornejo Polar ler os artigos de Antonio Melis (2002), Mariátegui en el itinerário crítico de Antonio Cornejo Polar, e de Silvina Carrizo (2011), Diálogos en la historia cultural: Mariátegui y Arguedas en el pensamiento de Antonio Cornejo Polar. Consultar referências bibliográficas. 19 Neste trabalho, consultou-se a edição de Siete ensayos de interpretación de la realidad peruana, publicada em 2007, pela biblioteca Ayacucho. Ver referências. 20 No Peru, o problema da unidade é muito mais profundo, porque aqui não se trata de resolver uma pluralidade de tradições locais ou regionais, mas uma dualidade de raça, língua e de sentimento, nascida da invasão e da conquista do Peru autóctone por uma raça estrangeira que não conseguiu se fundir com a raça indígena, nem eliminá-la, nem absorvê-la (MARIÁTEGUI, 2007, p. 171, tradução nossa). 21 Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2009), o verbete quéchua tem o mesmo significado que quíchua. No presente trabalho, optou-se por empregar a primeira forma de escrita, tal como aparece na tradução dos artigos reunidos em O condor voa: literatura e cultura latino-americanas (VALDÉS, 2000), feita por Ilka Valle de Carvalho. 24 própria desagregação do mundo a que se refere. Entendendo, pois, o espaço peruano como heteróclito e permeado por conflitos, Cornejo Polar desenvolve todo o seu trabalho crítico com base no reconhecimento epistemológico dessa condição, convertendo a noção de heterogeneidade em categoria de análise, tal como verifica Bueno Chávez (2004, p. 29). Dessa maneira, busca elaborar um discurso crítico que evidencie o aspecto múltiplo e contraditório de um campo literário que vinha sendo escamoteado por critérios homogeneizantes. Essa iniciativa novamente aparece em consonância com outro postulado de Mariátegui: El dualismo quechua-español del Perú, no resuelto aún, hace de la literatura nacional un caso de excepción que no es posible estudiar con el método válido para las literaturas orgánicamente nacionales, nacidas y crecidas sin la intervención de una conquista22. (MARIÁTEGUI, 2007, p. 197). A urgência de se construir um aparato crítico capaz de informar sobre as literaturas produzidas em espaços permeados por antagonismos culturais, tal como é verificado por Mariátegui, também é reiterada por Cornejo Polar que, a partir de meados dos anos 60, propõe-se a desenvolver uma metodologia teórico-crítica mais adequada para esclarecer os sistemas literários do Peru. É interessante assinalar que a perspectiva teórica aberta por Cornejo Polar não desdenhava os aportes da estilística e tampouco menosprezava o estruturalismo em voga. Contudo, o autor entendia que o exercício crítico praticado em contextos conflituosos e heterogêneos como o Peru exigia um código e uma proposta hermenêutica que permitisse explicar os fenômenos que desejava esclarecer. Assim, nota-se que Cornejo Polar constrói um discurso crítico que, mediante a instrumentalização das categorias formais descritas pela crítica imanentista, contempla, de modo mais atento, as distintas instâncias do processo literário: a de produção, a referencial, a do texto resultante e, ainda, a relacionada à distribuição e recepção do mesmo. Nesse sentido, Cornejo Polar defende que a obra literária deve ser entendida como uma rede de inextrincáveis relações com o histórico, o social e o cultural e não como um mero corpo isolado no espaço, cujo sentido está encerrado em si mesmo. O texto artístico deve ser encarado como um componente da realidade, que a ela se refere e, também, dela depende para fazer sentido. Como signo, cabe ao texto explicar a realidade e buscar superá-la. 22 O dualismo quéchua-espanhol ainda não resolvido faz da literatura nacional um caso de exceção, que não é possível estudar com o método válido para as literaturas organicamente nacionais, nascidas e crescidas sem a intervenção de uma conquista (MARIÁTEGUI, 2007, p. 197, tradução nossa). 25 No âmbito destas colocações, Cornejo Polar desenvolve um modelo crítico analítico- explicativo-referencial23, tal como é denominado por Bueno Chávez (2004, p. 83), por meio do qual tenta dar conta não apenas dos componentes estruturais de um texto, mas procura sempre compreendê-lo com base nas conjunturas externas que o circunscrevem. Para Cornejo Polar, a literatura não se configura apenas como um fenômeno estético, mas impõe-se como um fato também social que, tal qual uma moeda, adquire cabal sentido no espaço em que circula, negociando os sentidos e os valores com que estima e funciona. Em Problemas e perspectivas da crítica literária latino-americana24, de 1974, Cornejo Polar enfatiza que a tarefa principal da crítica é a de decifrar o sentido dos signos literários, procurando entender qual imagem do “universo empírico” a obra propõe a seus leitores, qual consciência social e individual a anima e a estrutura. Logo, considera que: No se trata de averiguar el grado de fidelidad de la representación verbal con respecto a sus referentes de realidad, pues de ser así la última palabra debería esperarse de las ciencias sociales, o emerger de una disputa impresionista acerca de “cómo es realmente la realidad”, sino – fundamentalmente – de iluminar la índole, fa filiación y significado de esa imagen hermenéutica del mundo que todo texto formula, incluso al margen de la intencionalidad de su autor. Esa imagen no es nunca ni individualmente gratuita ni socialmente arbitraria25. (CORNEJO POLAR, 1982, p. 11). É possível inferir que, no discurso crítico de Cornejo Polar, a linguagem verbal adquire uma conotação mais ampla do que está estabelecido pela linguística. Aproximando- se das ideias de Frantz Fanon, expressas no ensaio Piel negra, máscaras blancas (1952), para Cornejo Polar, “falar é estar em condições de empregar uma certa sintaxe, possuir a morfologia de tal ou qual língua, mas é sobretudo assumir uma cultura, suportar o peso de uma civilização” (FANON, 2008, p. 33). Entender, portanto, a que instâncias ideo lógico- 23 De acordo com a nomenclatura instituída por Bueno Chavez (2004, p. 83), o termo “analítico” relaciona-se com a análise da estrutura textual, ou seja, com a apreciação das formas que compõem uma obra literária. O “referencial” diz respeito à sondagem do contexto da “realidade”, isto é, da situação histórico-social, em que dado texto é produzido. E, por fim, o elemento “explicativo” remete à instância que busca relacionar os significados e a funcionalidade entre a “forma” e as circunstâncias extraliterárias envolvidas na produção de uma obra ficcional. 24 O texto foi lido como apresentação na mesa redonda organizada pela Universidade de San Marcos, em 1974, sobre o tema a que se refere. No ano seguinte, em 1975, saiu publicado em Acta Literaria, 17, 1-2, Budapeste. No presente trabalho, será citada a versão do artigo publicada na obra Sobre literatura y crítica latino- americanas, em 1982. 25 Não se trata de averiguar o grau de fidelidade da representação verbal no que diz respeito a seus referentes de realidade, pois, se assim fosse, caberia às ciências sociais a última palavra, o emergir de uma disputa impressionista acerca de “como é realmente a realidade”, mas – fundamentalmente – trata-se de iluminar a índole, filiação e significado dessa imagem hermenêutica do mundo que todo texto formula, mesmo à margem da intencionalidade de seu autor. Tal imagem não é individualmente gratuita e nem socialmente arbitrária (CORNEJO POLAR, 2000f, p. 17). 26 discursivas uma imagem literária se filia e, em seguida, depreender o sentido de tal obra em virtude do diálogo que a mesma estabelece com o momento histórico em que foi produzida e a sociedade a que faz referência parece ser o fim perseguido pelas leituras críticas de Cornejo Polar. Diante destas considerações gerais, cabe averiguar como a obra de José María Arguedas é lida por Cornejo Polar, a partir da perspectiva crítica acima mencionada. Em virtude da imensidão da narrativa de Arguedas e, por conseguinte, da igualmente vasta e profunda sondagem que Cornejo Polar efetua deste corpus de estudo, serão enfatizados somente os pontos examinados nesta fortuna crítica que, além de serem relevantes para o posterior embate com a leitura desenvolvida por Vargas Llosa, no capítulo seguinte deste trabalho, também demonstram em que sentido a crítica de Cornejo Polar pretende instituir-se como um exercício de alteridade e resistência, uma vez que, por meio dela, o crítico presume explicar a literatura e a organização cultural peruana valendo-se de um modelo teórico que considere as peculiaridades do país, em especial da região andina, contrariando postulados que tenderiam a ocultar a índole multicultural e contraditória do Peru. Tal como demonstra José Alberto Portugal (2011, p. 30), é a partir dos anos 70 que se inicia a construção de uma imagem da narrativa de Arguedas como obra coerente e completa, como uma unidade de sentido elaborada ao longo de um extenso processo criativo. Segundo Portugal, um dos estudos que contribui para a disseminação dessa ideia é o ensaio Los universos narrativos de José María Arguedas, de Cornejo Polar, publicado no ano de 1973, cujos argumentos críticos já se encontravam no artigo “El sentido de la narrativa de Arguedas”26, de 1970, no qual o autor dedica-se a uma leitura minuciosa dos principais títulos arguedianos, entre eles, Agua (1935), Yawar Fiesta (1941), Los ríos profundos (1958), El Sexto (1961), Todas las sangres (1964) e El zorro de arriba y el zorro de abajo (1971). Nesse trabalho, Cornejo Polar defende a “compacta e admirável coerência” da obra arguediana, na medida em que essa deixar transparecer a presença de uma estratégia narrativa cujo princípio é o da paulatina intensificação e crescimento (CORNEJO POLAR, 1973, p. 14). Observa-se que se trata de uma atitude consciente, uma vez que é possível notar que Arguedas, com cautelosa mesura, vai abarcando em sua criação, âmbitos cada vez mais vastos e complicados, comprometendo-se, sem forçar o ritmo, em uma tarefa cada vez mais difícil e arriscada (CORNEJO POLAR, 1973, p. 14). 26 Também publicado posteriormente (1989b), no livro La novela peruana, de Antonio Cornejo Polar, sob o título La obra de José María Arguedas: elementos para uma interpretación. Consultar referências. 27 Orientando-se pelo método analítico-explicativo-referencial, Cornejo Polar elabora uma análise que associa as mudanças operadas na dinâmica social, bem como as diferentes maneiras pelas quais as mesmas são concebidas culturalmente, às diferentes formas de representação literária empregada por Arguedas. Em termos sucintos, as segundas refletiriam as primeiras. Essa correspondência entre forma literária e contexto de produção explicaria, portanto, as aparentes contradições por vezes observadas no conjunto da obra arguediana. Amparando-se nos postulados de Goldmann (1968), Cornejo Polar enfatiza: Frente al problema siempre presente de “definir la significación de un escrito o de un fragmento”, Goldmann encontró una primera respuesta: “refiriéndolo al conjunto coherente de la obra”. En el caso que nos ocupa, [...] asumimos como hipótesis que el concepto de la obra y el principio de la coherencia aluden, según acepta Goldmann en algunas circunstancias, “al conjunto de los escritos y de los textos de un autor”27. (CORNEJO POLAR, 1973, p. 13). Verifica-se, então, que, para Cornejo Polar, o significado de uma obra arguediana pode ser atualizado em razão do seu conjunto, ou seja, com base na organicidade intrínseca ao todo da produção literária de Arguedas. Além de sustentar a noção de coerência interna, essa proposição revela, ainda, a intenção de Cornejo Polar de assegurar o valor da produção literária como espaço de simbolização, como bem pontuou Portugal (2011, p. 31). Desse modo, Cornejo Polar pretende comprovar que é movido pelo afã de plasmar os distintos aspectos de uma realidade múltipla e permeada de conflitos, que Arguedas buscou ampliar o escopo de representação para melhor captar literariamente a complexidade da cultura peruana. É valendo-se da constatação de um paulatino processo de ampliação do sentido da obra arguediana que Cornejo Polar ilustra como suas narrativas promovem a superação da perspectiva dualista predominante na produção literária do indigenismo na primeira metade do século XX. Em razão do interesse dirigido à expressão da cultura andina, a obra de Arguedas é amiúde associada à literatura indigenista em voga no momento em que o autor peruano publica os seus primeiros textos. Para a melhor compreensão do raciocínio crítico de Cornejo Polar acerca do romance arguediano e a sua relação com o indigenismo literário, é necessário tecer algumas considerações preliminares sobre tal vertente literária. A propósito, Silvina Carrizo (2010) enfatiza: 27 Diante do problema sempre presente para se “definir a significação de um escrito ou de um fragmento”, Goldmann encontrou uma primeira resposta: “referindo-o ao conjunto coerente da obra”. No caso que nos ocupa, [...] assumimos como hipótese que o conceito da obra e o princípio da coerência aludem, segundo aceita Goldmann em algumas circunstâncias, “ao conjunto dos escritos e dos textos de um autor” (CORNEJO POLAR, 1973, p. 13, tradução nossa). 28 O indigenismo literário do século XX esteve vinculado tanto à esfera dos novos regionalismos, quanto à ruptura tradicionalista e às vanguardas andinas. Seus autores se moviam entre diferentes disciplinas como a incipiente antropologia, a história, as artes e militância política. Este indigenismo artístico procurou e implicou uma transformação e cancelamento dos suportes ideológicos e das convenções estéticas do indianismo, do naturalismo e do modernismo hispano-americano, sendo, de um modo geral, um movimento anti-oligárquico. [...]. Num amplo sentido, o indigenismo podia se misturar com o romance social e de denúncia, com as estéticas de vanguarda e, ao mesmo tempo, levantar o regionalismo ou negá-lo. (CARRIZO, 2010, p. 216-217). A autora salienta a ampla abrangência do termo “indigenismo”, apontando assim o seu caráter polivalente: ao mesmo tempo em que pode se relacionar com o novo regionalismo, pode também estar envolvido com a renovação vanguardista na medida em que visa romper com as convenções literárias estabelecidas pelo indianismo, naturalismo e pelo modernismo hispano-americano. Apesar da multifacetada discursividade, o indigenismo deve ser compreendido como um movimento antioligárquico, com base no qual escritores defendem as causas indígenas e, ainda, denunciam as condições de exploração e injustiça social que acometem o contingente humano da região dos Andes. A postura antioligárquica da literatura indigenista, por outro lado, inscreve-a dentro dos debates sobre o caráter das nacionalidades andinas na medida em que, com o fim de deslegitimar as imagens ocidentalizadas elaboradas e impostas pelas elites criollas, propõe como símbolo de identidade do Peru as figurações mestiço-indígenas, as quais buscam revalorizar justamente os elementos culturais renegados pela aristocracia peruana. Como pontuou Carrizo (2010, p. 209), o movimento indigenista faz a sua aparição articulada com a revista Amauta, fundada em 1926, por José Carlos Mariátegui, de modo que este veículo de comunicação cumpriu um importante papel na divulgação das reivindicações políticas e econômicas aclamadas pelo indigenismo. Em “Razón de ser del Indigenismo en el Perú”28, artigo publicado postumamente no ano de 1970, na revista Visión del Perú, Arguedas (1977, p. 195-196) tece algumas considerações sobre o movimento indigenista, reservando, assim, algumas críticas a respeito da tendência literária divulgada por autores pertencentes à geração Amauta, nos anos 20. De acordo com o escritor peruano, as obras indigenistas publicadas em tal período, apesar de terem cumprido uma importante função social, tornaram-se superficiais com o passar do tempo. Isso pode ser explicado, em parte, pelo tom de denúncia e pelo telurismo presentes em 28 Neste trabalho cita-se a edicão do artigo publicada na obra Formación de una cultura nacional indoamericana, organizada por Ángel Rama (1977). Consultar as referências. 29 tais textos que, frequentemente, tendem a sobrepor o trabalho estético da linguagem, o que lhes atribui um caráter meramente panfletário, carente de valor artístico. Para Cornejo Polar, Arguedas notabiliza-se justamente por superar o caráter telúrico e a estruturação dicotômica esquematizada pela oposição “índios x brancos” ou “serra x costa”, que, em geral, era plasmada pelo romance indigenista29. O crítico peruano ilustra sua proposição contrastando os recursos literários empregados nas obras arguedianas com os aplicados em narrativas como Pueblo enfermo (1909) e Raza de Bronce (1919), de Alcides Arguedas (1879-1946), e Huasipungo, de Jorge Icaza (1906-1978). Edificados sobre uma base positivista, tanto os romances de Alcides Arguedas quanto o de Jorge Icaza representam as circunstâncias socioculturais e políticas vigentes no universo andino desde uma focalização dualista, por meio da qual se retrata a região dos Andes como sendo formada por uma sociedade fragmentada e bipartida, composta por dois grupos culturais independentes e incomunicáveis. Nesse contexto ficcional, o conflito entre ambos os segmentos socioculturais é expresso pelo enfrentamento do latifundiário e do índio/camponês, o qual é descrito mediante uma linguagem com acentuada entonação de denúncia social. Dessa forma, Cornejo Polar (1995, p. 732) considera que Pueblo enfermo, Raza de Bronce e Huasipungo, além de promoverem uma imagem simplista da complexa configuração social andina, incorrem ainda numa abordagem paradoxal sobre a questão da identidade nacional. De um lado, sugerem que os aspectos identitários de um país andino devam ser plasmados da tradição indígena que nele vigora. Contudo, por outro lado, tais romances revelam um discurso reivindicativo por meio do qual destacam a necessidade de se “salvar” o índio da ignorância, dos vícios e da exploração, de modo que o caráter apelativo desses enunciados termina por invalidar os “valores nativos” aclamados como substrato para a formação de uma nacionalidade. Consequentemente, Cornejo Polar (1995, p. 732) assinala que o leitor dessas obras sente indignação diante dos abusos dos latifundiários contra os camponeses indígenas, porém, no que se refere a esse grupo étnico, é provável que sinta apenas piedade e comiseração. Em outros termos, ditos romances não são capazes de revelar aspectos da cultura indígena suficientes para persuadir os leitores quanto à sua relevância no processo de constituição da identidade nacional. 29 Além de propagar as ideias indigenistas, Amauta também cumpre uma importante função na divulgação de ideais revolucionários de cunho marxista e vanguardista. Segundo, Rama (1977, p. XIII) muitos dos conceitos estabelecidos pelos escritores desta geração, tal como o de “realismo” e o de “tipicidade”, tendiam a definir a sociedade peruana em um modelo esquemático e dicotômico em que as aldeias indígenas aparecem em constante conflito com a costa urbanizada. Apesar de terem sido superadas, estas concepções se revestiam de um tom combativo cujo fim era a restauração da ordem sociocultural e econômica do Peru, sob a implantação do regime socialista. 30 Segundo Cornejo Polar (1995), o projeto literário de José María Arguedas sobrepuja os limites da tese dualista presente nos romances indigenistas acima mencionados, justamente porque, ao ficcionalizar o mundo andino, o escritor peruano procura agregar-lhe novas dimensões que, sem negar a anterior, contribuem para a constituição de uma visão mais global e internacionalizada deste território. Cornejo Polar (1995) verifica que as narrativas arguedianas se destacam por redimensionar a abrangência do discurso indigenista, rompendo, assim, as fronteiras de um maniqueísmo redutor comumente empregado nas representações do mundo binário da nação peruana. Para Cornejo Polar (1995), o redimensionamento do romance indigenista inicia-se, efetivamente, com a publicação de Los ríos profundos, obra que se destaca pelo duplo movimento que realiza: de um lado, “retrocede” em busca das fontes primordiais; porém, de outro, “avança” em direção a um projeto modernizador, a partir do qual passa a assumir a dinâmica modernizadora da sociedade andina tanto no universo referencial quanto em sua estruturação interna. Comparando Los ríos profundos com as obras anteriores de Arguedas, Agua e Yawar Fiesta, observa-se que as três apresentam uma estrutura similar: a dicotomia “índios x brancos” (em Agua) e “serra x costa” (em Yawar Fiesta) se repetem e, do mesmo modo, nota- se a adesão do protagonista Ernesto aos primeiros itens desses pares antitéticos (ou seja, aos índios e à serra). Entretanto, ao contrário dos dois títulos anteriores, cuja ênfase do discurso narrativo ainda recai mais no aspecto social, este último romance evidencia a sondagem dos aspectos antropológicos que permeiam o universo ficcional. Assim, Cornejo Polar (1973, p. 101) aponta que o narrador, em Los ríos profundos, busca investigar mais as instâncias profundas do homem e da cultura em que está inserido do que os conflitos entre os diferentes segmentos das comunidades andinas. Diante desta constatação, Cornejo Polar chama a atenção para a natureza introspectiva da obra, definida tanto pela imersão em uma vida individual quanto em um passado distante. Logo, Los ríos profundos promove a revelação de um universo já conhecido, porém desde uma perspectiva interior (subjetiva). Embora os embates sociais também sejam relevantes para o sentido global da narrativa, como é o episódio do levante das mulheres “chicheras” pela partilha do sal, estes tangenciam as esferas secundárias da tessitura romanesca. Deste modo, o enfoque privilegiado incide sobre o tom memorialístico do relato. A permanente obsessão de Ernesto em associar a sua realidade presente às experiências do passado, época em que vivia nas aldeias indígenas, resulta na expressão de uma visão mágica do mundo, capaz de revelar as relações subterrâneas entre os seres, os objetos e as paisagens do universo. 31 Cornejo Polar (1973, p. 108-109) destaca que, em Los ríos profundos, a memória tem, para Ernesto, outros valores. Além de assegurar a coerência interior do personagem, na medida em que evita a desintegração do sujeito de índole nômade, conhecedor de diferentes mundos, por vezes contraditórios e conflituosos, a memória também permite a esse protagonista, solitário e marginalizado, construir de alguma maneira o seu próprio mundo, convertendo-se em uma arma contra a solidão e a dor. Em outros termos, trata-se de uma força que lhe permite sobreviver em meio à hostilidade do colégio de Abancay. Entretanto, Cornejo Polar não entende que a batalha de Ernesto pela adaptação em um ambiente diferente seja apenas uma luta individual. Considerando o contexto histórico peruano e associando-o aos elementos constituintes do personagem, o crítico defende a ideia de que Ernesto é sujeito de uma “memória supra pessoal” (CORNEJO POLAR, 1973, p. 109), capaz de estender as fronteiras das lembranças individuais para projetar-se, de alguma maneira, às instâncias pretéritas do povo quéchua. Logo, ressalta o uso metafórico do vocábulo “memória”, o qual parece ser suficientemente apropriado para designar também o tipo de relação que o protagonista estabelecia com os signos materiais do passado histórico da cultura andina. No capítulo inicial de Los ríos profundos, ao se defrontar com o muro inca, em Cuzco, Ernesto demonstra ser portador de uma atitude insólita, isto é, a de revelar o sentido oculto das velhas ruínas incaicas e, ainda, a de se comunicar com elas em meio a um tempo “presente” que as ignora e delas escarnece. A propósito, Cornejo Polar (1973, p. 109) observa que o muro, tão cativado pelo garoto, ergue-se em meio a uma rua que “cheirava a urina” (ARGUEDAS, s/d, p. 10); além disso, era considerado pelo Velho, suposto parente rico e avarento do pai de Ernesto, como uma amostra do “caos do gentio, das mentes primitivas” (ARGUEDAS, s/d, p. 22). Contudo, para o jovem protagonista, o significado da antiga parede inca é outro. Esta parecia estar se movendo “como um animal que se agitava à luz” (ARGUEDAS, s/d, p. 22) e comunicava “o desejo de celebrar, de correr por uma pampa, lançando gritos de júbilo” (ARGUEDAS, s/d, p. 22). Desta forma, tem a impressão de que o muro “é capaz de caminhar: poderia elevar-se até o céu ou avançar em para o fim do mundo e voltar” (ARGUEDAS, s/d, p. 12). Segundo Cornejo Polar (1973, p. 110), o sentido atribuído por Ernesto à muralha inca constitui uma estratégia narrativa por meio da qual se é possível plasmar esteticamente, no nível ficcional, a vigência e o poder de um passado incaico, cuja “força” ainda pode ser “sentida” no momento presente do protagonista. 32 Em outras palavras, nessa leitura, Cornejo Polar ressalta como aspectos da cultura inca podem ser transportados para um primeiro plano do relato em virtude das recordações do protagonista. Na ocasião, portanto, a memória de Ernesto parece responder a uma visão mágica do mundo, capaz de romper com as técnicas “realistas” de representação para construir a realidade fictícia desde uma perspectiva alternativa, por meio da qual é possível descobrir outras relações entre os seres, paisagens e objetos. Para o crítico, ainda que Ernesto recorde os momentos de sua infância, sua memória ultrapassa os limites de sua própria vida. Dessa forma, o garoto recorda também, de alguma maneira, os tempos remotos do mundo cultural andino, cujo ponto de vista que pretende assumir. Nesse universo ficcional se tornam explícitos dois elementos-chave. De um lado, observa-se o afã integrador de ambas as culturas (serra + costa) que se converte em uma obsessão para o protagonista; e, de outro, a realidade incontestável de um mundo desintegrado. Desta cega dialética que não pode se resolver em síntese, resta somente a tragédia do homem incapaz de afastar-se de seu anseio de modificar as dinâmicas socioculturais peruanas. Assim, Cornejo Polar chama a atenção para o desfecho do relato. Nele, o leitor tem acesso ao drama de um garoto que busca construir seu futuro não com base nas experiências cultivadas no presente, mas, contraditoriamente, valendo-se das vivências de um passado, ao mesmo tempo individual e coletivo. Dentro do panorama das obras de Arguedas, Cornejo Polar demonstra como Todas las sangres expressa uma abordagem mais global da cultura peruana. Com audácia, o romance incorpora uma nova dimensão de conflito às oposições iniciais (primeiro entre índios x brancos; em seguida, entre serra x costa), isto é, o embate de todo o país contra as ameaças do imperialismo. Observa-se, assim, uma proposta ficcional que visa debater os problemas do Peru diante de um sistema internacional. É possível perceber, novamente, a superação do pensamento dualista que orientava as produções indigenistas anteriores. Desde uma focalização mais abrangente, a causa indígena e os demais problemas da sociedade peruana passarão a ser entendidos em virtude da sua relação com o capitalismo e o neocolonialismo. Em outros termos, o subdesenvolvimento e a dependência econômica do país são os temas que receberão maior atenção do romancista. Embora, em Todas las sangres, haja o predomínio de uma representação global da nação peruana, é importante salientar que o ponto de vista presente na obra ainda permanece inclinado a favor das culturas dominadas, das quais, o índio continua sendo o alvo de defesas da enunciação. Da mesma forma, assim como já foi observado em Los rios profundos, Cornejo Polar assinala que essa narrativa também é contada por uma voz que emite seu 33 discurso desde a perspectiva andina, como demonstra com o fragmento abaixo, referente à morte do sacristão São Pedro: Don Bruno y Rendón asistieron a su entierro. Ahora [el sacristán] está trabajando, feliz, en la cima del K’oropuna. Lo enterraron los índios, en el cementerio de índios. No demoró mucho en llegar a la cima de la montaña. “¡Wifááá’!”, gritaron los muertos cuando llegó a la cima, sonriente. (ARGUEDAS, 2001, p. 426, grifos nossos)30. Por trás da aparente neutralidade do narrador onisciente, nota-se que sua voz deixa transparecer crenças de origem indígena, as quais aparecem em destaque. Contudo, segundo ressalta Cornejo Polar (1973, p. 194), não é somente a inclusão dos componentes culturais andinos na enunciação que assinala a prevalência do ponto de vista mítico sobre a esfera do discurso positivista. O que chama a atenção nessa breve passagem é o empenho do narrador em outorgar um tom de “objetividade” aos elementos “mágicos” do imaginário indígena, o qual os plasma, em sua fala, como sendo “verdades/fatos” passíveis de concretização. Com base nessas constatações, Cornejo Polar assinala que o foco narrativo em Todas las sangres é definido pela cosmogonia da cultura andina. Em comparação com Los ríos profundos, em que a adesão a esse universo cultural ocorre de maneira direta graças à presença de um protagonista que relata suas próprias experiências, em Todas las sangres essa ligação se dá de modo mais tangencial e elíptico, em virtude do pretenso distanciamento almejado pelo romance, o qual se coloca aberto para o debate sobre as divergentes ideologias que buscam compreender, desde perspectivas antagônicas até a caótica e fragmentada sociedade peruana. A questão da modernização do Peru e das comunidades serranas é outro eixo temático discutido no relato. Nesse caso, é interessante o enfoque dado à personagem Demétrio Rendón Willka, líder justiceiro das causas indígenas. No relato, ele se torna o porta-voz do ideal literário de Arguedas, uma vez que é o protagonista representante da luta por uma modernidade que logre conciliar o progresso e a tecnologia com os valores culturais tradicionais e o pensamento mítico andino, elementos considerados válidos para o desenvolvimento de uma mentalidade revolucionária que projete um futuro de bem-estar e de liberdade a todos os peruanos. 30 Don Bruno e Rendón assistiram ao seu enterro. Agora [o sacristão] está trabalhando, feliz, no cume do K’oropuna. O enterraron os índios, no cemitério de índios. Não demorou muito para chegar ao cume da montanha. “¡Wifááá’!”, gritaram os mortos quando chegou ao cume sorridente (ARGUEDAS, 2001, p. 426, grifos nossos, tradução nossa). 34 A morte de Rendón Willka anuncia simbolicamente a chegada dos novos tempos. No momento de seu fusilamento, o narrador descreve o desencadeamento de um forte estrondo que ressoa por todo o universo: “[...] escuchó un sonido de grandes torrentes que sacudían el subsuelo, como si las montañas empezaran a caminar [...]” (ARGUEDAS, 2001, p. 603)31. É um ruído aterrador que parece sugerir a destruição de um mundo antigo – marcado pela miséria, exploração e ganância – e, o subsequente nascimento de uma nova era, contemplada pela justiça, igualdade e liberdade. Com base nas considerações acima, Cornejo Polar ressalta que Todas las sangres constrói seu sentido partindo de duas perspectivas. A primeira refere-se a sua tendência globalizadora, a qual busca descrever o Peru em sua totalidade, tanto em seus conflitos internos quanto em suas relações com o estrangeiro. A segunda remete à natureza axiológica do romance, a qual concede um destino a esse mundo integrado, evidentemente filiado à cultura quéchua. Dessa maneira, a obra não apenas interpreta o universo desde o ponto de vista do índio (como foi demonstrado pela voz do narrador), mas supõe a prefiguração de um futuro que, embora moderno, conserve também os valores da cultura andina. El zorro de arriba y el zorro de abajo também reflete a vocação totalizante pretendida em Todas las sangres. Segundo Cornejo Polar, trata-se de uma narrativa que urde em sua trama os mais opostos destinos humanos e sociais. Em síntese, deixa transparecer o desejo de traduzir ficcionalmente as transformações socioeconômicas experimentadas pelo Peru, a partir da metade do século XX. Dessa forma, destaca-se por retratar os conflitos gerados pelo intenso processo migratório ocorrido em Chimbote, cidade localizada na costa peruana que, em poucos anos, torna-se uma das maiores produtoras de farinha de peixe do mundo. O processo de urbanização representado no texto, em si, deve ser compreendido como resultado das demandas da modernização ocorridas no Peru. Portanto, El zorro de arriba y el zorro de abajo pode ser lido em função de tal contexto histórico. Partindo destas considerações, Cornejo Polar assinala que uma das preocupações da narrativa é refletir sobre o futuro da cultura andina/quéchua em meio a essa série de mudanças de ordem sociocultural e econômica. Que destino estaria reservado para as tradições indígenas dentro da configuração deste novo sistema? Resistiriam ou seriam extintas? Aparentemente, uma resposta negativa tende a prevalecer na tessitura romanesca. Em sua leitura, Cornejo Polar constata que há uma resposta contrária ao presságio sugerido pelos ruídos subterrâneos que suscita a heroica morte de Demetrio Rendón Willka em Todas las 31 “[...] escutou um som de grandes torrentes que sacudiam o subsolo, como se as montanhas tivessem começado a caminhar” (ARGUEDAS, 2001, p. 603, tradução nossa). 35 sangres. El zorro de arriba y el zorro de abajo revela a edificação de um novo mundo sobre as bases do capitalismo consumista e do individualismo. A imagem do caos que paira sobre o universo ficcional de Chimbote é construída por uma técnica de representação fundada no princípio da fragmentação. Logo, o narrador, por si mesmo, ou por meio dos diálogos das personagens, mediante as reflexões críticas formuladas nos diários ou pelos símbolos criados no nível mítico, vai mostrando as peças avulsas que se integram e desintegram constantemente, a partir de uma dinâmica que parece mimetizar plasticamente a própria constituição de uma efêmera e falaz sensação de harmonia ou, mesmo a desintegração da realidade, seja em nível social seja individual. Cornejo Polar aponta que a estrutura da obra é elaborada em virtude da alternância do relato propriamente romanesco e dos “diários”, fragmentos autobiográficos que Arguedas escreve entre o dia 10 de maio de 1968 e 22 de outubro de 1969. Esses diários estão presentes ao longo de toda a narrativa e se complementam com o epílogo – cartas que o escritor enviou a Gonzalo Losada e ao Reitor da Universidade Maior de San Marcos – que correspondem à conclusão do diário. A última data – 28 de novembro de 1969 – se refere ao dia que Arguedas comete o suicídio, disparando uma bala contra a própria cabeça. A respeito das relações estabelecidas entre o discurso ficcional e o elemento autobiográfico, Cornejo Polar demonstra que este último cumpre um papel metalinguístico, a partir do qual anuncia, completa, comenta e critica o primeiro. Observa-se, então, que os diários são fundamentais para o encaminhamento da narrativa, porque, ao mesmo tempo que funcionam como apoio para o avanço do relato, refletem também, em outro nível, a decisão do autor em continuar escrevendo. O ato da escrita, nesse caso, é sinônimo da própria vida, conforme Cornejo Polar verifica no trecho extraído do Primeiro diário: “escribo estas páginas porque se me ha dicho hasta la saciedad que si logro escribir recuperaré la sanidad”32 (ARGUEDAS, 1996, p. 8). Se escrever significa vida, não escrever corresponderia à morte. Neste sentido, o crítico peruano ressalta que os diários, além de expressarem o angustioso processo da escrita, mostram-se ainda como testemunhos de que a morte permanece protelada, mas não vencida. Assim, Cornejo Polar concebe El zorro de arriba y los zorros de abajo como um desesperado gesto vital, como uma aposta – fracassada já de antemão – a favor da sobrevivência. Em ¿Último diario?, o narrador Arguedas expressa a sua despedida: 32 “[...] escrevo estas páginas porque me disseram exaustivamente que se consigo escrever recuperarei a sanidade”. (ARGUEDAS, 1996, p. 8, tradução nossa). 36 Y ese país en que están todas las clases de hombres y naturalezas yo lo dejo mientras hierve con las fuerzas de tantas sustancias diferentes que se revuelven para transformarse al cabo de una lucha sangrienta de siglos que ha empezado a romper, de veras, los hierros y tinieblas con que los tenían separados, sofrenándose. Despidan en mí un tiempo del Perú cuyas raíces estarán siempre chupando jugo de la tierra para alimentar a los que viven en nuestra patria, en la que cualquier hombre no engrilletado y embrutecido por el egoísmo puede vivir, feliz todas las patrias.33 (ARGUEDAS, 1996, p. 246). O fragmento deixa transparecer, no nível ficcional, a consternação de Arguedas por não ter presenciado o sonho pelo qual lutou durante a sua vida, isto é, ver o Peru se converter em um espaço aberto, capaz de acolher, com alegria, a todas as pátrias e culturas nele coexistentes; um território, portanto, onde as diferenças entre os seres humanos fossem respeitadas e aceitadas mutuamente. A atmosfera fatalista sentida ao final do romance, além de sugerir a morte do autor, sugere ainda o destino trágico para o qual se encaminha a própria nação peruana e, consequentemente, a cultura andina, condenada a perder sua identidade e a cair no esquecimento. Contudo, Cornejo Polar aponta que em contrapartida à aparente tragicidade da narrativa, Arguedas, em o ¿Último diario?, deixa transparecer sua na fé na instauração de um futuro mais promissor e justo sobre as ruínas de um mundo destruído, segundo constata com a passagem: “Quizá conmigo empieza a cerrarse un ciclo y a abrirse otro en el Perú […]: se