UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA "Júlio de Mesquita Filho" Instituto de Artes – Campus de São Paulo MAURÍCIO FUNCIA DE BONIS DA MÃO AO OUVIDO: fichas sobre pensamento e linguagem e uma melodia acompanhada de Willy Corrêa de Oliveira São Paulo 2022 MAURÍCIO FUNCIA DE BONIS DA MÃO AO OUVIDO: fichas sobre pensamento e linguagem e uma melodia acompanhada de Willy Corrêa de Oliveira Tese apresentada ao Departamento de Música do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (UNESP) como requisito parcial para a obtenção do título de Livre- Docente em Contraponto. São Paulo 2022 D278m De Bonis, Maurício Funcia, Da mão ao ouvido : fichas sobre pensamento e linguagem e uma melodia acompanhada de Willy Corrêa de Oliveira / Maurício Funcia De Bonis. – São Paulo, 2022. 129 p.: il. color. Tese (Livre-docência em Contraponto) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes 1. Composição (Música). 2. Música para piano. 3. Melodia. 4. Linguagem e línguas – Filosofia. 5. Acompanhamento musical. I. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. II. Título. CDD 781.3 Bibliotecária responsável: Laura M. de Andrade – CRB/8 8666 MAURÍCIO FUNCIA DE BONIS DA MÃO AO OUVIDO: fichas sobre pensamento e linguagem e uma melodia acompanhada de Willy Corrêa de Oliveira Tese apresentada ao Departamento de Música do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (UNESP) como requisito parcial para a obtenção do título de Livre- Docente em Contraponto. Tese aprovada em 05/07/2022 Banca examinadora ___________________________________ Prof. Dr. Florivaldo Menezes Filho Instituição: UNESP ___________________________________ Prof. Dr. Marcos Fernandes Pupo Nogueira Instituição: UNESP ___________________________________ Prof. Dr. Amílcar Zani Netto Instituição: USP ___________________________________ Prof. Dr. Denise Hortência Lopes Garcia Instituição: UNICAMP ___________________________________ Prof. Dr. Rodrigo Cicchelli Velloso Instituição: UFRJ Para Caroline e Nuria. RESUMO As condições de trabalho que se nos apresentam para a composição musical em tempos hediondos como os nossos são discutidas aqui em um ensaio na forma de 38 fichas, que se propõem correlacionar duas frentes: de um lado, a elucubração sobre as origens das linguagens humanas no Paleolítico superior; de outro, o enfrentamento pontual de um fundamento histórico da linguagem musical em uma peça para piano recente de Willy Corrêa de Oliveira. Das cinco partes textuais que compõem a tese, a primeira e a quinta enquadram a discussão em lugar de introdução e considerações finais, respectivamente. A segunda parte abre os levantamentos sobre as origens das formas articuladas de comunicação humana a partir de Walter Benjamin, Lev Vigotski e Alexander Spirkin, propondo uma ponte para suas implicações na historiografia da arte. A terceira parte modula os resultados das reflexões anteriores para a linguagem musical, situando o perfil de melodia acompanhada como um caso histórico privilegiado na efetividade da construção coletiva da comunicação do pensamento abstrato, enquanto a quarta parte consolida a discussão realizada nesse ensaio ao detalhar, como estudo de caso, a proposta de Willy Corrêa de Oliveira de enfrentamento desse perfil modelar na ausência do lastro comum de linguagem que o conformara na história, na peça para piano Melodia acompanhada, composta em maio de 2020. Palavras-chave: composição musical; filosofia da linguagem; arte pré-histórica; acompanhamento musical. ABSTRACT In this essay, the working conditions in musical composition in hideous times like ours are discussed in the form of 38 records, that intend to correlate two fronts: on the one hand, in the exploration of the origins of human languages in the Upper Paleolithic; on the other hand, in the punctual confrontation of a historical foundation of musical language in a piano piece by Willy Corrêa de Oliveira, composed at the beginning of the pandemic (that now seems to be cooling off). Of the five textual parts that make up the thesis, the first and fifth frame the discussion in place of introduction and final considerations, respectively. The second part reflects on the origins of articulated forms of human communication according to Walter Benjamin, Lev Vigotsky and Alexander Spirkin, building bridges to the implications of their thought in the historiography of art. The third part modulates the results of the previous reflections onto musical language, establishing tonal melody and accompaniment (in "homophonic-melodic" style) as a privileged historical case, through the effectiveness of collective elaboration of a means of communication of abstract thought, while the fourth part welds the argument carried out in this essay by detailing, as a case study, Willy Corrêa de Oliveira's proposal in facing this model in the absence of the common language that had shaped it in history, in the piano piece Melodia acompanhada, written in May 2020. Keywords: musical composition; philosophy of language; prehistoric art; musical accompaniment. SUMÁRIO 1ª parte (Fichas 1 a 6)................................................................................................13 2ª parte (Fichas 7 a 12)..............................................................................................25 3ª parte (Fichas 13 a 24)............................................................................................41 4ª parte (Fichas 25 a 34)............................................................................................67 5ª parte (Fichas 35 a 38)..........................................................................................115 Referências..............................................................................................................123 13 1ª parte (Fichas 1 a 6) 1.1. N.º 01 Há cerca de dois anos, nos primeiros rascunhos para esse trabalho, pensava em orientá-lo a uma pergunta fundamental: quais propriedades concretas dos repertórios históricos modal e tonal permaneceriam pertinentes ainda hoje, na estruturação do discurso musical, em tempos de desarticulação da prática comum na qual vigeram? Em certo sentido, essa teria sido uma das premissas de Schoenberg na formulação do dodecafonismo, em resposta a uma aguda sensibilidade para com o estado da prática musical já em seu tempo. Pela eliminação da medida clara de afastamento ou centricidade (em oposição ao resquício tonal), o serialismo tem uma vocação contrapontística fundamental – de onde decorre, ainda, seu alto grau de densidade de informação. Tomado o partido da expansão do cromatismo, ora erigido em paradigma, a diluição do sentido tonal direciona o contraponto dodecafônico a uma recuperação de alguns fundamentos da polifonia modal: um campo fechado de configurações de módulos lineares de informação, em multiplicados pela textura, sem uma camada de significados pré-estabelecida para suas combinações verticais. Frente à abrangência da pergunta inicial, a especificidade na abordagem do serialismo parecia um desvio de rota, que viria a dominar o trabalho como um todo. Considerei reformular o problema central para um questionamento sobre o que constituiria, na história da música, um sistema de referência; não exatamente em busca de cada resposta a ser encontrada na história, mas do quanto sua abordagem crítica orienta nosso salto no escuro ao escrever hoje – deixando claro, nesse caminho, o compromisso de não abordar os sistemas históricos pelos regramentos em que tantas vezes foram traduzidos (em fins didáticos questionáveis e anacrônicos), mas como formas vivas de linguagem1. Pouco tempo passado, já pensava em descartar as duas linhas de trabalho em busca de uma terceira quando recebi uma ligação do Willy Corrêa de Oliveira, que contava que acabara de escrever uma peça que nomeou de Melodia acompanhada (sic). 1 Anotava à margem, nesse momento, o ensejo de um estudo mais aprofundado do que Carnap chamava de framework. 14 1.2. N.º 02 Fora a curiosidade, logo sanada, de ver a partitura e ensaiar a leitura ao piano, deitara o fone com a memória estranhada não apenas da surpresa com a ideia central da peça, mas estranhando ainda o fato de Willy, por força de expressão, ter dito que no meio do trabalho se sentiu como deve ter se sentido um artista de 30 mil anos atrás. Cabe expor um estranhamento de cada vez, em desvendamento da analepse. Que um perfil essencial para um pensamento musical comumente compartilhado no passado fosse revisitado criticamente, e que sua abordagem crítica se conformasse em plena consciência do estado diametralmente oposto em que subsiste (em isolamentos multiplicados) o fazer musical em nosso tempo: proposta a menos estranhável. Inseparável das chaves mestras do trabalho que realizei com Willy desde minhas primeiras aulas com ele, no século passado. Naturalmente não haveria de ser uma melodia acompanhada nos moldes antigos; mas não deixava de surpreender, como desafio, a escolha de um perfil que fora estratégico em sua simplicidade, e que sempre que foi revisitado em tempos de diluição de seu lastro discursivo original, gerava alguns dos mais gloriosos anti-exemplos, moribundos, caquéticos, natimortos, nas aulas de Willy na USP. Era precisamente esse absurdo da proposta, dizia ele agora, que ao lado da escuta da força de expressão de exemplos históricos do perfil de melodia acompanhada no passado, o motivara a intentar ainda mais uma, mesmo hoje. Pelo que ele me relatava, ocorriam também na peça citações, como sinais de exemplos cabais de invenção na história desse perfil, na busca de se criar uma melodia acompanhada consciente da inexistência do sistema tonal, hoje. É certo que a melodia acompanhada só se realiza plenamente como fundamento de linguagem dentro do universo particular do sistema tonal. Na experiência que Willy relatava, de enfrentar o problema da melodia acompanhada na ausência de um sistema, as tentativas em direção a uma forma de expressão projetavam gradualmente um objeto de linguagem a partir do que se tem à mão, sem material, convenção ou combinação previamente compartilhados ou referenciais. Era essa situação, em que a linguagem se cria na própria enunciação do discurso, que o identificara a uma metáfora das origens da linguagem e das expressões artísticas pré-históricas. Esse ponto, que eu mais estranhara, acabou se convidando a apontar um norte para o que poderia se tornar esse trabalho, com o tempo: de que modo as hipóteses 15 sobre as origens da linguagem e da arte pré-histórica, ao lado de uma contextualização e detalhamento do perfil de melodia acompanhada na história da música, poderiam animar uma análise da Melodia acompanhada escrita por Willy Corrêa de Oliveira que se revelasse como reflexão sobre o enfrentamento desse perfil na ausência do sistema que o conformara, e também como sinal para o sentido do trabalho de criação musical em nosso tempo. Os três eixos dessa proposta constituem, nessa ordem, a segunda, terceira e quarta partes desse trabalho, tomando a leitura da Melodia acompanhada como objetivo central. Em direção a ela caminham as fichas que seguem, escritas à maneira do trabalho empírico com os materiais que, disponíveis no entorno, conformam as formas de expressão que estudaremos aqui, na ausência de um código. Variam de memórias, relatos de percurso e fichas de estudo até leituras das peças escolhidas em chaves particulares. Nas experiências de montagem da tese (como em uma mesa de edição), eventualmente se dispõem em direção a um mesmo fim, na linearidade da argumentação subjacente, que não necessariamente percorre fichas sequenciais ou emerge de forma explícita. 1.3. N.º 03 Uma obra de arte que consistisse apenas de elementos originais e criativos seria incompreensível; se é compreensível, o é por sua renúncia parcial à originalidade. [...] A ênfase recai sempre sobre a autonomia da arte, na endogamia e autogênese das convenções artísticas. Se essas não existissem, cada pintor teria que inventar a pintura, como cada compositor a música e cada dramaturgo o teatro (HAUSER, 1961, p.478-480, tradução nossa). Como realizar um trabalho artístico em crise aguda das convenções? Desde o século XX se revolve periodicamente sobre esse ponto. Por um lado, têm-se desvendado como nunca dantes as matérias-primas, ao lado do potencial de uma escuta multifacetada de registros das manifestações musicais humanas as mais infinitamente diversas. Trabalha-se em plena desenvoltura técnica, engendrando empiricamente as formas de enunciar o pensamento abstrato com vistas a uma expressão. Mas sem almejar a uma convenção possível, não se abdica do estado de compartilhamento da invenção que a arte possuíra na história (ou até na pré-história!), como uma forma particularíssima de linguagem? 16 É certo, toda forma de linguagem jamais se completaria como experiência na iniciativa individual do artista. Mas caberia, como experimento, inverter o eixo da formulação do problema sobre como se dá, em sua essência, o trabalho artístico em momento de crise das convenções. No polo oposto da referência histórica como lastro para a criação: como se daria, na arte pré-histórica, o nascimento das formas de expressão, sem o recurso a convenções anteriores? Grande parte do problema de abordagem da pré-história da arte (um problema que não é plenamente sanado nos períodos históricos, aliás) se situa na ausência de registros. Mas ainda assim, de que forma se poderiam discutir hipóteses sobre as origens da linguagem, em analogia com as primeiras manifestações artísticas, que contribuam para a problematização da criação em uma forma de linguagem que tem, em dado momento, a desarticulação de sua prática como trabalho coletivo? Malraux, em defesa da força da prática artística anterior como referencial imprescindível para o trabalho de todo artista, chega a um paradoxo ao conduzir sua interpretação à arte pré-histórica. Começa o segundo tópico de La création artistique, terceiro capítulo de Les voix du silence, colocando que "Se a visão de todo artista é irredutível à visão comum, é porque desde sua origem ela é organizada pelas pinturas e esculturas – pelo mundo da arte" (1951, p.279). Defende que ignoramos o que seria de um artista sem conhecimento prévio de arte, como se o problema das causas primeiras de sua origem não fosse um problema pertinente ao campo da arte. Reconhece em seguida, como consequência, que "temos ideias confusas sobre os desenhos dos pitecantropos". Ao reconhecer que as primeiras expressões artísticas demonstram um primeiro sobressalto da humanidade, aponta que elas nos fariam supor uma civilização anterior, em lugar de reconhecermos que teriam surgido "do caos". Sem respostas concretas, ele direciona seu ensaio para uma reflexão sobre as primeiras expressões artísticas infantis. 1.4. N.º 04 Há um estado metalinguístico no fazer musical desde o século XX. A música desde o século XX não é mais uma nova realização das mesmas premissas, um atendimento regular a uma demanda produtiva; só permanece na busca do inaudito em sua formulação e parametrização. "A arte que sucede àquela que compravam os 17 aristocratas não é aquela que compram os burgueses, é aquela que ninguém compra" (MALRAUX, 1965, p.67). É um reaprendizado e redescoberta constante. Existe como projeto metalinguístico, seja na ausência ou na recusa dos conjuntos de materiais e procedimentos consagrados. Unifica-se como prática não no desdobramento natural dos caminhos anteriores, mas no questionamento distanciado de seus fundamentos para se tecerem novas formas de caminhar. "Um estilo morto, é um estilo que só se define por aquilo que ele não é" (MALRAUX, 1965, p.81). Nesse sentido, alcança-se um estado metalinguístico de expressão, em comparação com a prática musical anterior. Não nos referimos à metalinguagem como materialização da referencialidade material e suas implicações semânticas, mas como operação linguística que privilegia a consciência de linguagem no observador, fora do canal entre emissor e receptor. Colin Cherry expressa com precisão, em primeiro lugar, que um campo de expressão artística constitui uma forma de linguagem pelo quanto o artista "instila ideias em nós". Atesta em seguida, no que diz respeito à interdependência entre linguagem e pensamento: "A linguagem de um povo restringe consideravelmente seus pensamentos. Suas palavras, conceitos, sintaxe, de todos os signos usados pelas pessoas, são o determinante mais importante do que elas são livres e aptas para pensar" (CHERRY, 1968, p.73). Ao distinguir em seu trabalho a linguagem-objeto da metalinguagem, enfatiza o papel da metalinguagem em veicular hipóteses, teorias, descrições, regras, leis, relações (CHERRY, 1968, p.91, p.307). O aprendizado ou a formulação de formas de comunicação são sempre metalinguísticos. Em determinado ponto, aponta o quanto implicações e inferências lógicas têm muito pouco a ver, diretamente, com a linguagem tal como ela é realmente usada nas relações humanas cotidianas. No entanto, não é a linguagem-objeto em si mesma que é necessariamente estruturada de maneira lógica, mas sim a metalinguagem (científica) na qual o linguista faz declarações e proposições sobre a linguagem-objeto que ele observa (CHERRY, 1968, p.252, tradução nossa2). O compositor hoje é muito mais o observador distanciado (seja da história ou do potencial futuro da efetividade de sua expressão) do que emissor em contato com o receptor. Se o pensamento é inseparável da linguagem, por mais que se busque na sistematização do material a sua própria inseparabilidade de suas formas de 2 "[...] logical implications and inference have little to do, directly, with language as it is actually used in everyday human intercourse. It is, however, not the object-language itself which is necessarily logically structured, but rather the (scientific) meta-language in which the linguist makes statements and propositions about the object-language he is observing". 18 enunciação no tempo, dentro de um projeto que se coloque em nome da invenção hoje, cria-se sob essa égide metalinguística. Na ausência de lastro comum largamente compartilhado para a comunicação corrente, o pensamento musical passa inexoravelmente por nova formulação inicial de substratos para novas formas de expressão. A composição tende à autorreflexão, como um depoimento sobre seu próprio processo de descoberta do material e de suas formas de enunciação no tempo. 1.5. N.º 05 Assim, cada uma de suas obsessões permaneceu um trabalho, uma experiência, uma maneira de vivenciar o espaço. "Ele é louco, dir-se-á. Faz três mil anos que se esculpe – e muito bem – sem criar tantos problemas. Por que ele não se dedica a criar obras indefectíveis segundo técnicas comprovadas, em vez de fingir ignorar seus antecessores?" [...] Depois de três mil anos, a tarefa de Giacometti e dos escultores contemporâneos não é enriquecer as galerias com novas obras, mas provar que a escultura é possível (SARTRE, 1949, p.291-292, tradução nossa3). Escrevendo sobre uma exposição de esculturas de Alberto Giacometti em 1948, Jean-Paul Sartre depõe sobre o quanto as soluções do escultor em seu trabalho apontam para um questionamento e uma busca constante por uma redefinição do que constitui, de fato, o trabalho do escultor. A essência do esculpir, que Giacometti dificilmente reconheceria ter alcançado, estaria menos distante em caminho traçado ao mesmo tempo pela recusa de uma convenção ultrapassada, que não atenderia mais à necessidade do trabalho presente, e pela impossibilidade do recurso a novo estado compartilhado de convenções e de procedimentos comuns. O dado mais concretamente compartilhado é precisamente este, o da negação de uma prática estabelecida, a partir da qual se multiplicariam respostas individuais as mais incompatíveis. Assim, o escultor clássico cai no dogmatismo, porque acredita que pode eliminar seu próprio olhar e esculpir no homem a natureza humana sem os homens; mas na verdade ele não sabe mais o que faz, pois não faz o que vê. Ao buscar a verdade, ele encontrou a convenção. E como, ao final, ele descarrega no visitante a tarefa de animar esses simulacros inertes, esse 3 "Ainsi chacune de ses obsessions restait un travail, une expérience, une façon d'éprouver l'espace. 'Il est bien fou, dira-t-on. Voici trois mille ans qu'on sculpte – et fort bien – sans faire tant d'histoires. Que ne s'applique-t-il à réaliser des œuvres sans défaut selon des techniques éprouvées, au lieu de faire semblant d'ignorer ses devanciers ?' [...] Après trois mille ans, la tâche de Giacometti et des sculpteurs contemporains n'est pas d'enrichir les galeries avec des œuvres nouvelles, mais de prouver que la sculpture est possible". 19 buscador do absoluto acaba fazendo sua obra depender da relatividade dos pontos de vista que se assumem sobre ela. Quanto ao espectador, ele toma o imaginário pelo real e o real pelo imaginário; ele busca o indivisível e encontra por toda parte a divisibilidade (SARTRE, 1949, p.288-289, tradução nossa4). Fica claro na reflexão de Sartre que não se trata de desvalorização de uma tradição estabelecida, mas de apontamento de suas contradições, em combate a um dogmatismo estéril (não tão infrequente em nosso tempo) no qual o dado mais estritamente convencional é o que permaneceria, confortável, no trabalho artístico. Uma convenção anacrônica afasta o trabalho artístico de seu conflito com a força de expressão que possuíra em outro tempo, intimamente ligado a sua função no grupo social, ao compartilhamento de seus sentidos profundos. No caso específico da escultura, a contradição se agudiza, segundo Sartre, na contraditória relação com o espectador, do qual se cobra que anime os "simulacros inertes" de uma escultura sem vida, que ao mesmo tempo se lhe apresenta cindida, fragmentada, por trás da promessa de uma força de representação absoluta e indivisível. Sartre vê em Giacometti o trabalho empírico de um "encantador de signos" (SARTRE, 1949, p.290), cujo trabalho teria uma de suas chaves exatamente na ressignificação do ponto de vista do espectador. Ele trabalharia para recuperar na escultura um espaço imaginário, indiviso; o absoluto da representação humana passaria primeiro pela aceitação da relatividade de pontos de vista. Giacometti seria "o primeiro a esculpir o ser humano tal qual ele é visto, ou seja, à distância" (SARTRE, 1949, p.289). Tratando das alongadíssimas figuras humanas obstinadamente reesculpidas por Giacometti, Sartre coloca que [...] esses corpos só têm a matéria minimamente suficiente para prometer. 'No entanto, dir-se-á, isso não é possível: não é possível que o mesmo objeto seja visto de perto e de longe ao mesmo tempo'. Mas não se trata do mesmo: é o bloco de gesso que está próximo, é o personagem imaginário que está distante (SARTRE, 1949, p.300-301, tradução nossa5). 4 "Ainsi le sculpteur classique verse dans le dogmatisme parce qu'il croit pouvoir éliminer son propre regard et sculpter en l'homme la nature humaine sans les hommes ; mais en fait il ne sait ce qu'il fait puisqu'il ne fait pas ce qu'il voit. En cherchant le vrai, iI a rencontré la convention. Et comme, en fin de compte, il se décharge sur le visiteur du soin d'animer ces simulacres inertes, ce chercheur d'absolu finit par faire dépendre son œuvre de la relativité des points de vue qu'on prend sur elle. Quant au spectateur, il prend l'imaginaire pour le réel et le réel pour l'imaginaire ; il cherche l'indivisible et rencontre partout la divisibilité". 5 "[...] ces corps n'ont de matière qu'autant qu'il en faut pour promettre. 'Pourtant, dira-t-on, cela n'est pas possible : il ne se peut pas qu'un même objet soit vu de près et de loin à la fois'. Aussi n'est-ce pas le même : c'est le bloc de plâtre qui est proche, c'est le personnage imaginaire qui est éloigné". 20 A razão de ser da tendência alongada, hierática, em estranha posição de movimento, evitando a expressão particularizada, se direciona à reflexão sobre a natureza da representação humana no espaço, em recolocação crítica de um problema fundamental com que o trabalho artístico se depara desde o Paleolítico – aqui, ressignificada pela recusa de soluções passadas anteriores, em processo de redescoberta dos modos de ver. Para Sartre essa é a chave para a dimensão do trabalho de Giacometti: na crítica à noção de progresso linear na história da arte, em momento de perda de função das convenções e de buscas particulares em resposta à ausência de um referencial compartilhado (que se mostrasse apto às demandas presentes das formas de expressão), retornamos empiricamente a uma construção primordial de sentido, similar à que se nos revela no trabalho artístico pré-histórico. Não é preciso olhar muito para o rosto antediluviano de Giacometti para adivinhar seu orgulho e seu desejo de se situar no princípio do mundo. Ele zomba da Cultura e não acredita no Progresso, pelo menos no Progresso nas Belas Artes; ele não se considera mais 'avançado' de que aqueles que ele escolheu como seus contemporâneos, o homem de Les Eyzies, o homem de Altamira6. Nesta extrema juventude da natureza e dos homens, não existe ainda o belo nem o feio, nem o gosto, nem as pessoas de bom gosto, nem a crítica: tudo está por fazer; pela primeira vez vem ao homem a ideia de esculpir um homem a partir de um bloco de pedra. Eis então o modelo: o ser humano (SARTRE, 1949, p.289, tradução nossa7). 1.6. N.º 06 Era o segundo dia do ano, há sete anos atrás; seco, quente, ermo8. A estrada de terra cortava o esboço de cerrado, e a vista era sempre interrompida de surpresa pelas rochas imensas, imprevisíveis, esculpidas pelos tempos. A toda roça que se nos apresentasse, parávamos o carro (corajoso, nem minimamente preparado para a empreitada) e perguntávamos se alguém vira rochas pintadas por ali, tal como ouvíramos falar em Diamantina. E ali mais adiante, dentro mesmo do terreno do sítio 6 Sítios arqueológicos do Paleolítico superior, entre aqueles que contêm as primeiras manifestações artísticas humanas. 7 "Il n 'est pas besoin de regarder longtemps le visage antédiluvien de Giacometti pour deviner son orgueil et sa volonté de se situer au commencement du monde. Il se moque de la Culture et ne croit pas au Progrès, du moins au Progrès dans les Beaux-Arts, il ne se juge pas plus 'avancé' que ses contemporains d'élection, l'homme des Eyzies, l'homme d'Altamira. En cette extrême jeunesse de la nature et des hommes, ni le beau ni le laid n'existent encore, ni le goût, ni les gens de goût, ni la critique : tout est à faire, pour la première fois l 'idée vient à un homme de tailler un homme' dans un bloc de pierre. Voilà donc le modèle : l'homme". 8 Com a licença do leitor, encerro essa primeira parte com uma espécie de assinatura; uma memória pessoal provocada pela citação de Sartre sobre Giacometti e seus contemporâneos eleitos, os pintores rupestres pré-históricos. 21 vizinho, prometeram que Caroline e eu veríamos uns animaizinhos desenhados. Primeiro estacionamos para depois pedir licença, aos olhares pacientes dos moradores aparentemente acostumados com a curiosidade alheia. Passamos, os cachorros, o trator, amontoados de peças de maquinaria; seguíssemos o caminho de terra em direção à serrinha rochosa ao fundo e estaria tudo lá, parece. Fig. 1 – Formação rochosa próxima a Diamantina – MG. Fonte: acervo pessoal (2015). O carro, que deveria ter descansado bem antes, atolou entre a lama e as rochas no chão e nos esperou por ali. Seguimos entre um mato baixo mas denso, cruzando o regato naquele silêncio ruidoso com que os insetos nos avisam (sons e fontes sonoras atingindo desordenadamente os ouvidos e a face) que o território não é nosso. O sol a pino, o chão irregular, o mato denso e a escuta do entorno fazem da lapa avistada na rocha (Fig.1) uma meta cada vez mais sedutora. A sensação de alívio ao avistá-la mais de perto e perceber a proteção que o breu da gruta oferece é imediatamente acompanhada da consciência de que estamos em dois e não possuímos nenhum meio de proteção contra os animais maiores, que certamente também apreciariam o esconderijo. O arrepio na espinha torna mais tensa a busca de sinais na pedra, que parece intacta de qualquer manifestação humana. A lapa é revelada em um trecho de desabamento da parte superior da rocha, com empilhamentos desordenados de grandes pedras ao chão e uma variedade de 22 manchas das cores da sedimentação que acompanha a irregularidade do espaço, dos cortes no frontão, do teto curvilíneo (Fig.2). Nesse jogo de cores e ruídos, qualquer jogo de luz e sombra parece ser a fera na selva, ou o pobre animal por trás da pedra com medo dos visitantes urbanoides. Fig.2 – Vista da entrada da lapa, à esquerda Fonte: acervo pessoal (2015). Em um lampejo simultâneo, de repente viramos uma chave de leitura, e o espanto do ajuste do foco ocular suspendeu o calafrio. Alguns dos fragmentos de manchas, conectados a traços, se revelam não mais como rocha, vegetação, luz, mas como ação intencional pela mão humana, e invadem a consciência como representação do visível. Nesse caso, representação do que não se vê no momento, mas do que já se viu e povoa a memória e o medo estampado no córtex. Imediatamente, qualquer golpe de vista sobre a rocha traduz agora tudo que era signo estampado e se camuflara à percepção desavisada. Pouquíssimos desenhos de figuras humanas (talvez posteriores aos outros); apenas um pequeno grupo, bastante simples graficamente, de três a seis figuras (difícil contagem, os hominídeos feitos de poucos traços que gradualmente se tornam mais fracos e se fundem às fissuras da rocha). Predominam pela lapa aves, peixes, tatus e mamíferos maiores. Em um painel frontal de rocha multicolorida (que agora 23 forçosamente se imagina esculpido e tingido) os mamíferos parecem em proximidade e com os corpos articulados, em clara sugestão de movimento (Fig.3). Fig.3 – Painel rochoso frontal sobre a entrada da lapa. Fonte: acervo pessoal (2015). Dificílimo o acesso a esse painel mais alto, que é o que contém a maior variedade de técnicas de preenchimento dos contornos dos animais, desde manchas mais homogêneas até linhas paralelas. Já no teto da entrada da gruta, mais facilmente acessível e estendendo-se da plena iluminação à completa obscuridade, sobrepõem- se desordenadamente inúmeros animais, agrupados porém por categorias: acumulações de mamíferos à esquerda e de aves à direita (Fig.4). As aves seguem o preenchimento dos contornos por poucas linhas internas paralelas ao desenho, mas esses mamíferos são coloridos por pontilhados ou linhas tracejadas. 24 Fig.4 – Vista da entrada da lapa, à direita. Fonte: acervo pessoal (2015). Passado o primeiro espanto, a sensação de missão cumprida em pleno despreparo e a decodificação primária dessa profusão de sinais (em estreita relação com o suporte e o entorno) fez reemergir o receio da decodificação dos outros sinais, das sombras que sugeriam o jogo de camuflagem da fera retratada e imaginada por trás da rocha. Meia-volta em passo mais acelerado que a vinda, o pedido de ajuda para desatolar o auto sofrido, e o asfalto até a cidade. Na beira da estrada, a cada rocha uma pergunta. 25 2ª parte (Fichas 7 a 12) 2.1. N.º 07 "Conteúdo artístico e comunicação espiritual são uma e a mesma coisa!", escreve Walter Benjamin (2020, p.172) em carta a Gershom Scholem de 29 de outubro de 1917. Benjamin concluíra no ano anterior seu ensaio Sobre a linguagem em geral e a linguagem humana, em que argumenta sua concepção da unidade e inseparabilidade entre pensamento e linguagem. Escolhe para a construção do seu argumento um de seus campos de predileção, a comparação com a filosofia da religião, o que "não significa que o objetivo seja o de fazer exegese bíblica, nem tampouco o de tomar a Bíblia, neste contexto, como verdade revelada"; mito de criação como livro que considera a si mesmo como revelação, "tem necessariamente de desenvolver os fatos fundamentais da língua" (BENJAMIN, 2020, p.16-17). A reflexão sobre a origem mítica da linguagem direciona-se ao questionamento sobre sua essência, seu sentido e sua multiplicidade como dado humano fundamental. Por todo o texto ele ressalta o quanto a palavra é um caso particular do edifício da linguagem humana, que corresponde a toda e qualquer comunicação de conteúdos espirituais. É no desenvolvimento dessa concepção que ele combate a "insustentabilidade e vacuidade" de uma "concepção burguesa da linguagem" em que "o meio da comunicação é a palavra, o seu objeto a coisa, o seu destinatário um ser humano" (BENJAMIN, 2020, p.13). Para Benjamin toda essência espiritual só se comunica sob a forma de linguagem, e nesse sentido a ela corresponde, desde que seja suscetível de comunicação (BENJAMIN, 2020, p.10). É nesse sentido que a linguagem comunica sempre a si mesma, comunica uma comunicabilidade por excelência (BENJAMIN, 2020, p.15). A origem mítica do poder da linguagem que comunica a essência de linguagem das coisas está na faculdade do ser humano de nomear aquilo que conhece, que o cerca, que se fez necessário. Traduz-se o sem-nome da linguagem das coisas em nomes humanos. Nesse dado de ação transformadora sobre a realidade, pela nomeação, e de expressão dos conteúdos espirituais das coisas em inseparabilidade do meio pelo qual se exprimem, Benjamin reitera sua crítica a uma concepção burguesa da linguagem "segundo a qual existiria uma relação arbitrária entre a palavra e a coisa, e que a palavra seria um 26 signo puramente convencional da coisa (ou do seu conhecimento). A linguagem nunca se limita a fornecer meros signos"9 (BENJAMIN, 2020, p.19). A especificidade da discussão sobre o papel da palavra e da linguagem verbal não encerram o ensaio de Benjamin nesse único campo. Na abertura do texto, após a afirmação de que "Todas as manifestações da vida do espírito no ser humano podem ser entendidas como uma forma de linguagem", a assertiva na frase que segue é a de que "Pode-se falar de uma linguagem da música e da escultura [...]. Linguagem significa, neste contexto, o princípio orientado para a comunicação de conteúdos espirituais nos respectivos domínios". Numa palavra: toda comunicação de conteúdos espirituais é linguagem, sendo que a comunicação pela palavra é apenas um caso particular, o da comunicação humana e daquilo que a fundamenta ou nela se baseia (a justiça, a poesia, etc.). A existência da linguagem, porém, não abarca apenas todos os domínios das manifestações do espírito humano, de algum modo sempre animadas pela língua – abarca absolutamente a totalidade do ser. Não existe acontecimento ou coisa, nem na natureza animada nem na inanimada, que não participe de algum modo da linguagem, porque a tudo é essencial poder comunicar o seu conteúdo espiritual. Mas de nenhum modo o uso da palavra "linguagem" neste contexto é metafórico. De fato, trata-se de uma constatação plena e substancial: não nos é possível imaginar seja o que for que não comunique a sua essência espiritual através da expressão (BENJAMIN, 2020, p.9). Ao final do ensaio Benjamin expande a aplicação dessas ideias para as artes, colocando que se fundam em certos tipos de linguagem das coisas, que elas documentam uma tradução da linguagem das coisas para uma linguagem infinitamente superior, mas talvez da mesma esfera. Trata-se, nesse caso, de linguagens sem nome, [...] de linguagens constituídas pelo próprio material (BENJAMIN, 2020, p.26). Ao sugerir que, em sua especificidade, a linguagem da arte fosse devidamente abordada em profunda relação com a doutrina dos signos, de modo a buscar sua compreensão particular como forma de pensamento – e de expressão da parte comunicável do pensamento – que não compartilha seu modo próprio de existir com a linguagem verbal, Benjamin reforça que mesmo a linguagem em sentido estrito não coincide necessariamente com o signo. Uma estreiteza de sentido em uma abordagem pela doutrina dos signos eliminaria a univocidade essencial entre linguagem e pensamento. O ponto central, para ele, é que "a linguagem nunca é 9 Benjamin reitera esse ponto no texto A doutrina das semelhanças, de 1933: "a linguagem, como é evidente para os mais perspicazes pesquisadores, não é um sistema convencional de signos" (BENJAMIN, 2020, p.49). 27 apenas comunicação daquilo que é comunicável, mas também símbolo do não- comunicável" (BENJAMIN, 2020, p.26). 2.2. N.º 08 A questão das relações entre pensamento e linguagem são aprofundadas em outra clave por Lev Vigotski em A construção do pensamento e da linguagem. Em sua pesquisa da fundamentação teórica, no campo da psicologia, para a unidade entre pensamento e linguagem, Vigotski verifica, a partir de diversos estudos feitos com crianças, que por mais que o pensamento e a fala tenham raízes diferentes (a fala tem um estágio pré-intelectual, assim como o pensamento tem uma etapa pré-verbal). "Em um determinado ponto, ambas as linhas se cruzam, após o que o pensamento se torna verbal e a fala se torna intelectual" (VIGOTSKI, 2001, p.133). Se a crítica às investigações que alienem o desenvolvimento do pensamento e da linguagem é uma chave para o pensamento de Vigotski que o aproxima da visão de Benjamin, ela permanece um referencial de particular importância para a abordagem crítica da historiografia da arte no quanto ela levanta hipóteses sobre a origem das linguagens visuais. Vigotski aprofunda sua análise, a uma vez, da antropologia, na análise das formas de linguagem nas espécies que compartilhariam características biológicas com os antepassados humanos, e da psicologia infantil, nos experimentos sobre o desenvolvimento da linguagem e do pensamento na infância. A agudeza crítica de Vigotski, aliada a um agudo senso materialista dialético, o aproximam diretamente da crítica de Benjamin a uma abordagem da linguagem como um sistema de convenções arbitrárias, em que o significado estivesse essencialmente desconectado da palavra que o veicula. Silvana Tuleski (2008, p.124-125) detalha o quanto o pensamento de Vigotski deve aos trabalhos de Engels nesse sentido. Encontramos no significado da palavra essa unidade que reflete da forma mais simples a unidade do pensamento e da linguagem. O significado da palavra, como tentamos elucidar anteriormente, é uma unidade indecomponível de ambos os processos e não podemos dizer que ele seja um fenômeno da linguagem ou um fenômeno do pensamento. A palavra desprovida de significado não é palavra, é um som vazio. Logo, o significado é um traço constitutivo indispensável da palavra. É a própria palavra vista no seu aspecto interior. [...] O significado da palavra só é um fenômeno de pensamento na medida em que o pensamento está relacionado à palavra e nela materializado, e vice- versa: é um fenômeno de discurso apenas na medida em que o discurso está vinculado ao pensamento e focalizado por sua luz. É um fenômeno do 28 pensamento discursivo ou da palavra consciente, é a unidade da palavra com o pensamento (VIGOTSKI, 2001, p.397-398). Essa citação contribui para o detalhamento de um ponto central em nosso trabalho, a saber, na discussão sobre as origens da linguagem e de sua inseparabilidade do pensamento, de que forma uma abordagem crítica no campo da psicologia encontra os mesmos resultados da filosofia da linguagem, quando esta se baseia sobre uma abordagem materialista dialética das ciências naturais. Não caberia, em um ensaio como o que apresentamos aqui, o questionamento sobre o estado da arte da pesquisa científica em todos os campos evocados por esses autores. Convergem aqui, como em sua proposta de origem, ao amadurecimento de um partido tomado na visão dos fenômenos, em direção a uma hipótese coerente com os materiais revelados pelos campos científicos invocados independentemente do compromisso com seus modelos teóricos específicos e interpretações particulares. 2.3. N.º 09 O quanto Benjamin acompanhava com extrema atenção o estado das pesquisas e hipóteses sobre as origens da linguagem fica claro em um texto de 1935, Problemas de sociologia da linguagem (BENJAMIN, 2020, p.57-83), em que faz um levantamento crítico bastante detalhado das correntes e debates de seu tempo no campo, que transcorriam em intersecções entre a linguística, a arqueologia, a antropologia, a etnografia e a psicologia infantil. No abismo da falta de dados concretos entre as descobertas arqueológicas de resquícios da pré história e o uso moderno da linguagem, hipóteses e construções dedutivas se beneficiaram do cruzamento dos exemplos, por um lado, de sociedades que ainda hoje se organizassem economicamente como grupos humanos antigos, e por outro, da formação da linguagem na infância. Com o devido distanciamento crítico, o primeiro caso atesta para a hipotética permanência de sinais da inseparabilidade entre as relações de produção e o desenvolvimento das forças produtivas (tomando a sobrevivência material como base da vida social), enquanto o segundo traz elementos para a compreensão das formas de aprendizado social da linguagem em relação com o desenvolvimento da capacidade cognitiva. Um dos primeiros e mais extensivos e marcantes trabalhos nesse sentido, no século XIX, foi Ancient Society de Lewis Morgan, que propõe a partir de um longo 29 estudo sobre tribos de povos originários norte-americanos um panorama sobre o processo de transformação das sociedades antigas, com especial ênfase sobre o desenvolvimento do trabalho e da fabricação de utensílios na evolução da espécie humana. O trabalho de Morgan, como o de Darwin, desencadearam avanços fundamentais em seus campos de estudo, apesar de suas limitações conceituais e documentais e do questionamento posterior de algumas de suas conclusões particulares. As conclusões de Morgan foram de especial interesse e contribuição para a formulação do pensamento de Marx e Engels, como demonstram suas cartas e os textos O papel do trabalho na transformação do macaco em homem e A Origem da família, da propriedade privada e do Estado, de Engels (1963). Um trecho d'O Capital demonstra brevemente a importância desses estudos no trabalho de Marx: Nas cavernas humanas mais antigas encontramos instrumentos de pedra e armas de pedra. [...] O uso e a criação de meios de trabalho, embora existam em germe em certas espécies de animais, caracterizam o processo de trabalho especificamente humano e [Benjamin] Franklin define, por isso, o homem como a toolmaking animal, um animal que faz ferramentas. A mesma importância que a estrutura de ossos fósseis têm para o conhecimento da organização de espécies de animais desaparecidas, os restos dos meios de trabalho têm para a apreciação de formações socioeconômicas desaparecidas (MARX, 1996, p.299). Pouco adiante, acrescenta ainda em nota de rodapé: Por pouco que a historiografia até agora conheça o desenvolvimento da produção material, a base, portanto, de toda vida social e por isso de toda verdadeira História, pelo menos dividiu-se o tempo pré-histórico com base em pesquisas das ciências naturais e não das chamadas históricas, em idade da pedra, do bronze e do ferro, segundo o material das ferramentas e das armas (MARX, 1996, p.299-300). Um panorama crítico das contribuições citadas por Benjamin, construído a partir da referência de Marx e Engels a Morgan e convergindo especificamente para a relação entre pensamento e linguagem, pode ser encontrado no trabalho de Alexander Spirkin, Origem da linguagem e seu papel na formação do pensamento (1961). 2.4. N.º 10 Às teorias hegemônicas que propunham as origens da linguagem humana ora na imitação de ruídos do ambiente, ora na emissão sonora espontânea como expressão das emoções, Spirkin responde com o questionamento de quais seriam as condições objetivas da vida do ser humano em formação que poderiam dar origem à 30 necessidade de se comunicarem uns com os outros. Estuda meios de sinalização nos animais, em comentário crítico dos estudos influenciados por Darwin e Pavlov, defendendo que, uma vez que os animais em geral (e os símios em particular) não percebem o ambiente que os circunda como experiência de coletividade, como o fazem os seres humanos, não necessitam de linguagem articulada, por mais complexo que tenha sido seu desenvolvimento biológico (SPIRKIN, 1961, p.27-28). O surgimento da linguagem (como instrumento necessário do pensamento) estaria coerentemente situado, portanto, no Paleolítico, com o processo do trabalho coletivo da caça de grandes animais, a fabricação de ferramentas e armas, as primeiras expressões artísticas. A história da arte, em suas impressionantes origens paleolíticas10 (ainda surpreendidas, de tempos em tempos, por novos sítios de invenções soterradas por dezenas de milhares de anos), apresenta um atestado de tal forma categórico sobre sua origem na inseparabilidade entre pensamento e linguagem, no contexto em que as hordas pré-históricas dominam a caça e fabricação de utensílios, que é comum a coincidência com uma leitura marxista na descrição das origens da arte, ainda que eventualmente não se encontre, nas mesmas obras, rastro de abordagem materialista dialética na reflexão sobre a história da arte ulterior. Georges Bataille, por exemplo, em um de seus intensos depoimentos sobre a arte paleolítica, coloca que o que distinguiria o Homo sapiens seria não exatamente a consciência, mas “a maestria da obra de arte”. Nunca devemos perder de vista o fato de que o trabalho expandiu a consciência. Acima de tudo, o trabalho é a operação intelectual que modificou o cérebro do animal que o homem inicialmente era em um cérebro humano. Esse cérebro tomou o sílex amorfo e isolou empiricamente as ações que transformavam essa rocha em um objeto útil, em uma ferramenta (BATAILLE, 2005, p.149-150, tradução nossa). Germain Bazin, mediando a interpretação mítica das origens da arte com a interpretação materialista, coloca que "pela consciência que lhe é dado ter do mundo que o cerca, o homem separa-se dele e tenta constantemente recuperá-lo através do pensamento e da ação", acrescentando (em correspondência com o pensamento de Benjamin) que "a gênese da linguagem é uma operação artística na medida em que 10 Note-se que datam também do "aurignaciano", período de criação das primeiras esculturas que chegaram até nós, as primeiras flautas feitas de osso ou marfim (CONARD et al., 2009). Mário de Andrade pontua com propriedade que "talvez seja mais acertado falar que os povos primitivos constroem instrumentos apenas com o fito de obterem som. Mas nem sempre sons predeterminados" (ANDRADE, 1987, p.21-22). 31 é geradora de formas; a faculdade de dar nomes às coisas é o primeiro acto criador" (BAZIN, 1976, p.10). Spirkin segue argumentando que na investigação sobre as origens da linguagem, questionando-se os meios que responderiam às necessidades de comunicação, coloca-se em nova clave a questão da unidade entre pensamento e linguagem, entre palavra e significado. Spirkin retoma a afirmação do linguista Alexander Potebnya (1835-1891) de que "na criação da linguagem não existe arbitrariedade, pelo que cabe perfeitamente perguntar qual é a razão de que uma palavra dada designe precisamente uma coisa e não outra" (apud SPIRKIN, 1961, p.29). Distingue, nesse sentido, as origens do estado atual da linguagem, colocando que recebemos sentidos historicamente formados determinados pelo uso e não pelo aspecto material da palavra, e que as hipóteses sobre as origens da linguagem não poderiam partir do mesmo pressuposto. 2.5. N.º 11 Para Spirkin, no trabalho coletivo desenvolve-se paulatinamente a capacidade para que um indivíduo influencie os demais por meio de sons e gestos, e que para que isso ocorra de forma consciente, é necessário o estabelecimento de um vínculo cabal entre som e imagem, entre palavra e objeto (SPIRKIN, 1961, p.32). Citando o antropólogo Lévy-Bruhl, comenta que em um momento anterior ao desenvolvimento da linguagem articulada, a linguagem gestual e mímica teria uma função primordial, como pode ainda hoje ser observado em algumas tribos11. Spirkin segue argumentando que a defesa e o ataque contra outros animais exige uma ação coordenada, um contato entre os membros do grupo humano. A comunicação sonora atende a uma necessidade vital da coletividade. Uma série de condições para o desenvolvimento da linguagem e do pensamento se acumula nos estágios anteriores à formação da espécie humana, sem uma correspondência direta entre seu desenvolvimento e as condições materiais que o possibilitassem. Assim, ainda que não houvesse necessidade coletiva para o desenvolvimento e aperfeiçoamento da linguagem articulada, as condições para seu desenvolvimento já 11 Walter Benjamin, no texto Problemas de sociologia da linguagem, detalha uma crítica pontual ao método e às conclusões míticas de Lévy-Bruhl, opondo a ele a crítica de Nikolaus Marr (BENJAMIN, 2020, p.65-66). 32 estariam presentes e permitiram as primeiras expressões inarticuladas, na organização do trabalho coletivo (SPIRKIN, 1961, p.33-37). Em estágio correspondente da pré-história da arte Elie Faure defende que A arte é então uma ferramenta de utilidade imediata, como os primeiros balbucios da palavra: designar os objetos que o circundam, imitá-los ou modificados para deles se servir, o ser humano não vai além disso. A arte não pode ser ainda um instrumento de generalização filosófica, que ele ainda não saberia utilizar. Mas ele fabrica esse instrumento, porque destaca de seu meio algumas leis rudimentares que aplica para se beneficiar (FAURE, 1976, p.41, tradução nossa12). Spirkin remete, nesse contexto, às relações entre a consolidação da postura ereta nos hominídeos e sua relação não apenas com o desenvolvimento da mão mas com a transformação do aparelho vocal (SPIRKIN, 1961, p.37). Esse ponto foi bastante detalhado por André Leroi-Gourhan, autor de vasta obra sobre as formas de trabalho do artista pré-histórico (2009a, 2009b). No texto Libération de la main, ele relaciona a transformação da caixa craniana e das áreas corticais de integração e associação motora nos símios com o trabalho manual, relacionando inclusive, na topografia cortical, a importância equivalente da mão e do polegar com as fibras da face, os lábios e a língua. Ao comparar essa característica com a dos primeiros humanos, ele complementa: [...] enquanto se desenvolve de maneira quase exclusiva a tecnicidade manual, uma nova forma de atividade progressivamente toma posse do campo facial: a mímica e a linguagem. Não se produz corte algum, já que os movimentos dos lábios e da língua simplesmente deslizam das operações alimentares em direção à modelagem dos sons; os mesmos órgãos e as mesmas áreas motoras interessam às duas formas de atividade. Essa relação entre tecnicidade manual e linguagem, implicada de alguma forma por uma evolução que pode ser acompanhada desde os primeiros vertebrados, é certamente um dos aspectos mais gratificantes da paleontologia e da psicologia, pois restitui os elos profundos entre o gesto e a palavra, entre o pensamento exprimível e a atividade criativa da mão (LEROI-GOURHAN, 2014, p.8-9, tradução nossa13). 12 “L’art est d’abord un outil d’utilité immédiate, comme les premiers balbutiements du verbe : désigner les objets qui l’entourent, les imiter ou les modifier pour s’en servir, l’homme ne va pas au-delà. L’art ne peut être encore un instrument de généralisation philosophique qu’il ne saurait pas utiliser. Mais il forge cet instrument, puisqu’il dégage déjà de son milieu quelques lois rudimentaires qu’il applique à son profit.” 13 "alors que se développe de manière presque exclusive la technicité manuelle, une forme nouvelle d’activité prend progressivement possession du champ facial : la mimique et le langage. Aucune coupure ne se produit car les mouvements des lèvres et de la langue glissent simplement des opérations alimentaires vers le façonnage des sons, les mêmes organes et les mêmes aires motrices intéressant les deux formes d’activités. Ce rapport entre la technicité manuelle et le langage, impliqué en quelque sorte par une évolution qu’on peut suivre depuis les premiers vertébrés, est certainement un des aspects les plus satisfaisants de la paléontologie et de la psychologie car ils restituent les liens profonds entre le geste et la parole, entre la pensée exprimable et l’activité créatrice de la main." 33 Spirkin acrescenta a esse mesmo ponto que a região cerebral responsável pela fala se situa no hemisfério cerebral correspondente à mão utilizada na escrita, contribuindo para a verificação da "estreitíssima concatenação existente entre o trabalho, o pensamento e a linguagem". Comparando o desenvolvimento do trabalho e da vida social entre o Neandertal, o sinantropo e o Cro-Magnon, associa a esse último o estágio em que já se produzem ferramentas destinadas à produção de outros utensílios, enquanto se desenvolvem amplamente a pintura rupestre e embriões da linguagem escrita. Todos esos aspectos de la actividad creadora del hombre en el trabajo y en el arte que brotan de las necesidades de la vida económica se encuentran ya a gran distancia de los fines inmediatos que se cifraban en satisfacer las necesidades materiales del hombre primitivo. Sólo el lenguaje articulado podía servir de forma en que cobrara realidad el pensamiento abstracto. (SPIRKIN, 1961, p.44-46). Esse estágio de desenvolvimento da linguagem corresponderia às primeiras manifestações coletivamente organizadas da comunicação como atividade potencialmente independente da produção, do trabalho para subsistência. A imensa força de expressão das pinturas parietais do Paleolítico superior, independentemente de sua hipotética função mágica ou ritual, tem uma estreita relação não apenas com o trabalho coletivo para sobrevivência do grupo humano como também com uma extremamente amadurecida aptidão para a expressão comunitária do pensamento abstrato. Nesse contexto, em que abundam estudos comparativos entre as origens da linguagem e a observação de sua formação na criança, Spirkin é categórico: "A criança assimila – e não cria – a linguagem das pessoas maiores, de formas, já preparadas, que foram se cristalizando no devir da história. O homem primitivo criava sua linguagem espontaneamente" (SPIRKIN, 1961, p.47). Em oposição às hipóteses de que em uma fase inicial a linguagem consistia de palavras isoladas, como na primeira infância, defende que em um estágio inarticulado, as reações fônicas já constituíam cadeias de sinalizações recíprocas, ainda que breves e primitivas. As etapas subsequentes de seu desenvolvimento passam por diversos estágios da capacidade de síntese e de estabelecimento de relações entre complexos fônicos, que provavelmente ainda não tinham um papel fundamental no sistema de relações mútuas do grupo humano. Em um estágio ulterior, a hipótese de Spirkin é a de que, na consolidação da expressão de complexos de pensamentos através de complexos sonoros, a palavra e a oração teriam surgido simultaneamente. Afinal, a palavra não 34 seria o início da linguagem inarticulada, mas o resultado da formação da linguagem articulada, que tem sua unidade não na palavra mas na oração (SPIRKIN, 1961, p.49- 50). Nesse contexto, pode-se pressupor que o sentido concreto da palavra ainda estava plenamente determinado pelo contexto e pelo entorno, resultando em uma polissemia abstrata compensada pelo significado exato do seu uso na vida social, até que os processos de comunicação adquirissem algum grau de independência das atividades quotidianas. O afastamento de uma "gramática material" impõe a necessidade da elaboração de uma estrutura gramatical, que teria se configurado nas origens do pensamento abstrato. A elaboração de um regime fonético, a formação do vocabulário e das combinações mais simples de palavras em orações acompanhariam o desenvolvimento de um regime gramatical, que permitiria o lento desenvolvimento da linguagem articulada (SPIRKIN, 1961, p.51-52). Tratando em seguida do surgimento da escrita, Spirkin supõe que seu surgimento, em oposição ao da linguagem falada, deu-se como atividade criadora plenamente consciente, em alto grau de desenvolvimento do pensamento e da coordenação dos movimentos da mão, em complexo sistema de mediações entre o ser humano e a realidade. Nessa mediação, a escrita supera as limitações da linguagem oral, que para além de suas limitações no tempo e no espaço, converte-se em domínio da memória, adquirindo uma forma subjetiva de existência (SPIRKIN, 1961, p.55). Nesse ponto, imagina uma indistinção inicial entre a escrita pictográfica e as artes plásticas, na qual o desenho, a gravura e a pintura já possuíam a mesma propriedade de superação das limitações da fala que a escrita aperfeiçoaria com o passar do tempo. Nessa etapa não se fixariam pensamentos particulares, nem conceitos precisos, mas conjuntos de pensamentos que refletissem uma situação compartilhada: "um meio para fixar de maneira patente formas do pensamento em imagens". A hipótese que segue associa a evolução do pictográfico (simbólico) ao ideográfico (abstrato) e ulteriormente ao fonético, elaborado como envoltura material da língua, convertendo-se na realidade material do pensamento (SPIRKIN, 1961, p.57-62). Spirkin conclui seu ensaio detendo-se sobre o ponto comum com os trabalhos evocados de Benjamin e Vigotski, a saber, a inseparabilidade entre linguagem e pensamento. Spirkin coloca que, ao dar forma objetiva material ao reflexo das propriedades das coisas e suas relações na consciência, a linguagem possibilita a 35 criação de conceitos, como objetos ideais de pensamento. Como forma material do pensamento, a linguagem cumpriu de certa forma uma função análoga às ferramentas do Paleolítico: "Assim como através do instrumento de trabalho o ser humano transforma um objeto no sentido que lhe seja útil, por meio da linguagem – que dá caráter mediato à relação entre os seres humanos – um sujeito influi sobre outro sujeito também no sentido desejado" (SPIRKIN, 1961, p.64). El pensamiento humano, nacido junto con el lenguaje, constituye la actividad cognoscitiva del sujeto hecha inmediata por medio de la palabra. La palabra enlaza la relación existente entre el sujeto y la realidad con la relación existente entre el sujeto y otros individuos. La esencia del propio pensar radica en la actividad que el sujeto lleva a cabo utilizando el resultado de la experiencia social objetivamente condensada en la palabra y que dirige conscientemente a la comprensión del mundo real (SPIRKIN, 1961, p.65). A dialética da relação entre o trabalho manual e o desenvolvimento do pensamento como etapa formadora da condição humana, em sua inseparabilidade da constituição biológica anterior que permitisse o desenvolvimento motor, cognitivo e fonético, encontra sua materialização final na linguagem, como instrumento e como produto gradual do trabalho coletivo, em constante transformação da própria natureza humana. Assim como a verificação da efetividade do trabalho se dá no grupo social e pelo atendimento à função, a verificação da comunicação se dá pelo compartilhamento dos sentidos. Nesse processo, o pensamento abstrato se faz verificável, em sua relação seja com objetos ou conceitos, pelo compartilhamento da linguagem. É através da linguagem que a consciência humana chega a ter uma visão de conjunto da infinita variedade das coisas e dos fenômenos particulares do mundo real, fixando seu aspecto geral, suas concatenações e relações, diferenciando-os, sintetizando-os em conceitos e apresentando-os como relativamente estáveis. Com isso, a atividade mental pôde adquirir um caráter até certo ponto independente e chegar ao pensamento abstrato, à ciência e à arte, à cultura espiritual e material. 2.6. N.º 12 O pensamento de Spirkin fornece uma chave preciosa de leitura para um tempo de abordagens tão hipotéticas quanto improváveis como a arte produzida no Paleolítico superior (aproximadamente entre 50 e 10 mil anos atrás). Se no mínimo se reconhece, como disse Marx, que a divisão entre as eras da pré-história devesse 36 seguir o estágio do desenvolvimento técnico e material, como dado determinante para as condições de sobrevivência e para a organização da vida social, grande parte da bibliografia evita a construção de uma relação mais estreita entre a arte como manifestação do pensamento abstrato, a origem da linguagem articulada e o desenvolvimento da habilidade manual e da fabricação de ferramentas. Naturalmente, não se devem associar esses elementos centrais do desenvolvimento humano como se percorressem evoluções simétricas, coordenadas ou sucessivas de modo linear. Não apenas pela impossibilidade de um registro preciso de um processo tão distante, mas porque na abordagem do ser humano como ser social, que se desenvolveu através do trabalho coletivo, não bastam apenas as condições técnicas e materiais para que esses processos se desencadeiem; elas são necessárias como condições prévias para uma transformação que dependerá da necessidade concreta da comunidade, na vida social. É nesse sentido que, se o desenvolvimento das pinturas paleolíticas das quais temos rastros data desde cerca de 40 mil anos, claros elementos de uma oficina de fabricação de pigmentos para pintura (restos de ocre vermelho macerado dentro de uma concha) foram encontrados em Blombos, na África do Sul, um sítio datado de aproximadamente 100 mil anos atrás que não possui nenhum sinal de arte parietal (DAVID, 2017, p.281-294). Já em sítios como Limeuil, com uma série de representações de animais de no mínimo 12 mil anos, encontram- se placas gravadas corresponderiam a esboços para a realização das pinturas (BAZIN, 1976, p.14). Na formação primeira da arte como linguagem, como expressão do pensamento abstrato, René Huyghe destaca a relação entre os planos mental, visual e manual, reconhecendo o papel fundamental do desenvolvimento da mão humana para a configuração social do pensamento. “O homem não vislumbra mais do que aquilo que já conhece, o que aprendeu a ver. [...] Mas o visual não seria viável sem o concurso do manual, que transpõe o mental e o visual para a matéria” (HUYGHE, 1986, p.27-28). Um passo além nessa direção é empreendido por Virgilio Gilardoni em seu Naissance de l’art, assertivo quanto às consequências de uma abordagem que não reconhecesse o papel do trabalho tanto na conformação social da espécie humana quanto na origem das expressões artísticas e das formas de linguagem. Negar o papel da mão, o papel do trabalho, no desenvolvimento da sociedade e das manifestações ideológicas, é caminhar, consciente ou inconscientemente, para essa forma de alienação do espírito que consiste em negar da mesma forma que a arte e as outras produções do espírito tiveram 37 sua origem inteira e exclusiva no trabalho humano, e atribuir sua invenção a supostas divindades, a fetiches mitológicos (GILARDONI, 1948, p.8-9, tradução nossa14). A importância do trabalho manual na formação da arte, da linguagem e do pensamento são inseparáveis de seu papel no próprio desenvolvimento anátomo- fisiológico da espécie humana. Nesse sentido, a argumentação de Gilardoni converge para o questionamento da real função da ênfase, na historiografia da arte, sobre a função mágica ou mítica dessas manifestações artísticas, especialmente tratando-se de uma prática sobre a qual não teremos jamais a comprovação de hipóteses dessa ordem. “Na realidade, o que nasceu da mão deve ser experimentado e degustado pela mão” (GILARDONI, 1948, p.8). Mesmo em tudo que se relaciona à argumentação de Spirkin sobre as origens e as etapas de formação da linguagem, o que o Paleolítico nos legou de mais concreto é precisamente a pintura parietal, a gravura, a escultura. Não são apenas uma demonstração do estágio de desenvolvimento da habilidade manual e da representação visual, são correspondentemente um documento do desenvolvimento do pensamento abstrato na coletividade. É claro que, a partir deste momento [o aurignacense], o cérebro humano estava apto a generalizar, a condensar numa ideia o traço comum de uma multidão de fatos particulares. O dom da abstração e do símbolo já nascera! Esta dupla faculdade parece derivar do desenvolvimento cerebral no homem. O córtex, permitindo conexões entre miríades de neurônios, detém provavelmente o poder de associar que caracteriza o símbolo e um poder de combinar mentalmente que se traduz na inteligência por estruturas: ao nível da consciência, inauguram a aptidão para conceber as ideias e as formas. A generalidade que estas implicam reflete, sem dúvida, as conexões mais fundamentais existentes, assim como um denominador comum, sob a ramagem diversa dos casos particulares. Semelhança e símbolo, por um lado, ideia e forma por outro, fundamentam todas as possibilidades da arte (HUYGHE, 1986, p.50). A arte paleolítica não consiste em um documento de uma busca empírica com resultados pontuais; aponta para uma clara unidade de linguagem em sua imensa variedade. O poder de síntese se desenvolve pari passu com a habilidade manual; elaboram-se representações animais que extraem a unidade da generalização do conhecimento do animal a partir da variedade com que se apresenta à visão na vida cotidiana; "à força de obter formas essenciais, o artista franco-cantábrico tinha 14 "Nier le rôle de la main, le rôle du travail, dans le développement de la société et de ses manifestations idéologiques, c'est s'acheminer, consciemment ou inconsciemment, vers cette forme d'aliénation spirituelle qui consiste à nier également que l'art et les autres productions de l'esprit aient leur origine entière et exclusive dans le travail de l'homme, et à en attribuer l'invention à de prétendues divinités, à des fétiches mythologiques.” 38 acabado por sistematizá-las, por reduzi-las a uma espécie de geometria" (HUYGHE, 1986, p.64). Retratam-se não animais particulares, mas símbolos precisos aos quais corresponde cada categoria animal por inteiro. A vida em movimento é primeiro reduzida à sua forma mais elementar, imediatamente reconhecível a partir do contorno gerado por um único traço. Em seguida esse mesmo movimento é sugerido em elaboração plástica, seja pela superposição desordenada das figuras, seja pelo planejamento de sua justaposição linear. Na película Cave of forgotten dreams (2010), Werner Herzog vê a invenção plástica da justaposição coordenada de imagens correlatas sobre um suporte na caverna de Chauvet, à maneira de uma câmara escura, proposta para ser vista por meio de uma ação luminosa também em movimento no espaço, como uma forma de invenção cinematográfica paleolítica15. Em outra clave, Stanley Kubrick aponta em 2001: a space odissey (1968) o domínio da ferramenta pela mão em bandos dos primeiros hominídeos como um passo que levaria em última instância (na cena contígua) para a exploração interestelar; mas por inegável força que a cena tenha (ressignificando o nascer do sol do Zarathustra de Strauss), forçoso é reconhecer que em seu contexto, em trama que tange os limites últimos do conhecimento e do desenvolvimento técnico humanos, o embate dramático com a inteligência artificial no filme tem sua pedra fundamental na intervenção alienígena, inclusive como responsável pela evolução à espécie humana na pré- história (CLARKE, 1968, p.8-22). Entre as maiores realizações artísticas e mesmo técnicas da ficção científica, ainda vemos sua invenção permeada pela origem mítica e sobrenatural do trabalho humano. Gilardoni ressalta por todo seu trabalho que, de forma muito diversa do que se sucederia na história da arte, a “unidade clássica” da pintura do Paleolítico superior se apresentaria independentemente da variedade de suas formas de expressão e dos contextos que lhe deram origem; “este classicismo não foi a conquista de uma geração nem de um povo, mas o produto de milhares de anos de trabalho e de meditação” (GILARDONI, 1948, p.34-37). Trabalhos como Préhistoire de l'art occidental, de André Leroi-Gourhan, já em 1965, apontam para uma detalhadíssima análise da unidade de 15 Essa hipótese é desenvolvida ainda na pesquisa de Marc Azéma. Em outro momento do filme de Herzog, o paleontólogo Julien Monney relata a visita de um etnógrafo ao norte da Austrália, em que ele presencia um aborígene retocando uma pintura rupestre que começara a se desintegrar. O etnógrafo pergunta ao nativo por que ele pintava, ao que ele responde que não está pintando, que o espírito é que pintava através de sua mão. O etnógrafo, Monney e Herzog parecem não ter vislumbrado suficientemente o quanto a expressão precisa do pintor está em plena coerência com a argumentação de Benjamin, Vigotski e Spirkin que evocamos aqui. 39 linguagem da arte paleolítica, de suas soluções comuns em estreita relação com a matéria utilizada e com os recursos técnicos disponíveis, nessa expressão artística em que, nas palavras de Spirkin, o ser humano primitivo "criava sua linguagem espontaneamente" (SPIRKIN, 1961, p.47). 40 41 3ª parte (Fichas 13 a 24) 3.1. N.º 13 Nos ensaios confrontados na segunda parte desse trabalho, de Benjamin e Vigotski a Spirkin, transparece o quanto essas reflexões sobre as possíveis origens da linguagem afastam-se de tal forma do uso comum da linguagem verbal hoje que pareceriam tratar mais especificamente da arte e de linguagens poéticas de que do quotidiano da comunicação humana. E não obstante, esses autores coincidem na crítica deliberada a concepções da linguagem que a alienassem de sua origem, de seu sentido primordial ligado ao trabalho coletivo, da inseparabilidade entre comunicação expressa, pensamento, espírito. O que Benjamin e Spirkin também não deixam de reconhecer é o estreito elo entre as origens da linguagem, do pensamento abstrato e da arte, sendo esta o único registro intacto que chega até nós das revelações de dezenas de milhares de anos passados. No sentido desdobrado por Gilardoni e Huyghe, associando-o com as reflexões de Benjamin, Vigotski e Spirkin, podemos defender que, nas artes plásticas, o olho está para a linguagem como a mão está para o pensamento. Se pensamento e linguagem são inseparáveis em sua origem e desenvolvimento, o trabalho manual envolve a descoberta empírica, individual, que reflete a visão de mundo compartilhada pelo grupo em que ele ocorre. Em um esboço de analogia dessa ordem de ideias para o universo da música: o trabalho empírico, o lugar da descoberta, da escolha e da recusa representado pela mão no trabalho plástico, encontrar-se-ia no ouvido? Temos tido ferramentas, naturalmente, em contínua evolução conforme a necessidade e a capacidade técnica, mas o trabalho artístico de compositor e intérprete não encontraria a contraparte do pensamento em sua atitude de ouvinte? E no esforço de aproximar a analogia proposta com a afirmação anterior, em que o ouvido corresponderia ao pensamento no trabalho musical, que dimensão associar (comparativamente) ao lugar da linguagem? Olho e ouvido sugerem sentidos receptivos; a mão, a ação transformadora. Considerando a escuta o lugar da ação transformadora no trabalho musical, o lugar da linguagem se situaria nos modos coletivos de ouvir. Estes, nas sociedades humanas, se traduziram seja pela sua 42 função e lugar, seja pela parametrização do material; por sua organização, classificação e limitação com vistas à constituição de paradigma comunitário. "O ouvido se dirige com mais afinco ao interior, o olho ao exterior" (BRESSON, 1995, p.63, tradução nossa16). A parametrização do som não é apenas um dado teórico, ou uma convenção particular de um momento histórico; é a instrumentalização do trabalho com o som. A complexidade do fenômeno sonoro demandou, a cada tempo, a construção e o aperfeiçoamento de instrumentos musicais que libertassem o material dos limites paramétricos de nossa percepção. Somos gradualmente convidados a produzir empiricamente, para instrumentos, o que jamais poderia ter existido antes de sua construção. O campo sonoro como matéria prima da linguagem musical não está na natureza, mas na imaginação criadora do ouvido como órgão de trabalho e de transformação da realidade. 3.2. N.º 14 Desde que artistas como Picasso, Matisse, Modigliani, Derain e Epstein começaram a se entusiasmar com ela há trinta anos, o interesse na escultura africana aumentou consideravelmente. [...] A escultura africana exerceu um grande papel no nascimento do Cubismo, e teve uma influência poderosa em toda a pintura e escultura contemporâneas. Ela ajudou o artista a perceber o significado emocional intrínseco das formas como distinto de seus valores como representação, e o libertou para reconhecer novamente a importância do material sobre o qual ele trabalha (MOORE, 2002, p.99, tradução nossa). Entre as ideias fixas do anseio de linguagem na arte ocidental do século XX está um encantamento por expressões artísticas exteriores a sua própria tradição, desde a fantasia de suas origens no passado remoto até a busca referencial em culturas as mais distantes, que refletissem modos de vida social e funções da arte estranhas ao modo de produção capitalista. A arte é provavelmente o campo em que essa influência ocorreu da forma menos violenta e colonialista, em comparação com a etnografia ou mesmo com a historiografia da arte. Nem toda abordagem traz a sensibilidade de Boas, quando coloca que todo aquele que viveu entre tribos primitivas [...] concordará que não exista a tal 'mente primitiva', nem uma maneira 'mágica' ou 'pré-lógica' de pensar, mas que cada indivíduo na sociedade 'primitiva' é um homem, uma mulher ou uma criança da mesma classe, da mesma maneira de pensar, de sentir e de trabalhar que um homem, uma mulher ou uma criança de nossa própria sociedade (BOAS, 1947, p.8). 16 "L'oreille va davantage vers le dedans, l'oeil vers le dehors". 43 A arte do século XX frequentemente reconheceu com a devida propriedade a riqueza (não apenas material, mas de invenção e de estruturação de linguagem) no trabalho artístico de outras culturas, fossem suas contemporâneas ou do passado distante, como manifestação do pensamento abstrato. Nesse contexto, por mais inviável que fosse vislumbrar um traço inicial da expressão musical na aurora da humanidade, houve uma atração não apenas pela música de outros povos como também pela emulação de linguagens musicais ancestrais, em contexto de superação da tonalidade (em manifesta negação de seus materiais e implicações). Se o contato com culturas musicais milenares do oriente distante foi um divisor de águas na trajetória de Debussy, a Sagração da Primavera é provavelmente a peça mais simbólica dessa tendência – seja pela unidade estrutural em torno de pentatônicas e poucas combinações acórdicas (como Pousseur mais tarde detalharia em sua análise), seja pela força impulsionadora dos jogos de periodicidade e aperiodicidade rítmica, ou pela eventual acumulação polifônica anti-contrapontística (que poderia fazer lembrar os painéis de pinturas rupestres sobrepostas). Mas o ballet de Stravinsky guarda ainda o símbolo de um sopro ancestral; depoimentos do compositor e mesmo os projetos para cenografia e figurinos do ballet evocam a memória da dudka eslava, da qual se ouve um eco distante na parte alta do fagote que abre a cortina. Teriam sido tubos perfurados para o sopro os primeiros instrumentos que até nós sobreviveram, de osso e marfim, desde o Paleolítico. E em fantasias as mais variegadas, evocações de aerofones ancestrais permeariam, nesse início de século, o Uirapuru de Villa-Lobos, Amériques de Varèse, Prélude à l'après-midi d'un faune e Syrinx de Debussy, Daphnis et Chloé de Ravel. A falta de todo e qualquer registro sonoro, por um lado, e a impossibilidade de se reconstruir com responsabilidade qualquer manifestação musical apenas pelo seu registro escrito, direcionam necessariamente a reflexão sobre estados ancestrais da linguagem musical para o campo particular da música erudita ocidental, sistematicamente registrada em notação desde as suas origens, de forma a ter seus próprios desdobramentos históricos em estreita relação e interdependência com a transformação da escrita. 44 3.3. N.º 15 A origem material da música erudita ocidental como trabalho de criação, inseparável de seu sentido mítico de representação (na palavra), está na monodia cristã. Tão claro quanto a prática do Gregoriano não se fundamente em intenção de trabalho de criação individual é que a unidade essencial entre música e pensamento na Idade Média tenha sua materialidade originada em práticas e ideias de experiências pregressas (como o Oktoechos bizantino e a teoria grega antiga) e, ainda, que seu desdobramento ulterior tenha se caracterizado pela expansão do potencial de articulação do pensamento abstrato e da força de expressão criadora em maior independência da funcionalidade prática imediata. Abre-se o Musica enchiriadis (de autor anônimo do século IX) com as palavras: Assim como os componentes elementares e indivisíveis da fala (vox articulata) são letras, das quais as sílabas são formadas, e essas por sua vez conformam verbos e substantivos, e desses é composto o tecido de um discurso completo, também as raízes do canto (vox canora) são phthongi, que são chamado soni em latim. O conteúdo de toda música é em última instância redutível a eles. Da combinação de sons vêm os intervalos, e dos intervalos, por sua vez, nascem os sistemas (PALISCA, 1995, p1, tradução nossa). Na música medieval esse caminho para o domínio da articulação se dá na estruturação parametrizada da simultaneidade sonora. Circunscrita às possibilidades técnicas da época e a sua funcionalidade específica (inclusive na multiplicação da monodia como cláusula para incorporação na função litúrgica), concentrou-se na invenção do pensamento polifônico – do qual resta nem pálido resquício (eventualmente alguma teoria desconectada da prática do pensamento musical) no que tão frequentemente se chama de Contraponto em nossa pedagogia. A invenção da polifonia medieval se dá em elaboração ainda murada pela estrutura social e econômica que originara o Gregoriano: proposta de linguagem articulada que afirmasse o humano como transcendência do mito original, no qual apenas se reconhece a mão, o ouvido, mas não ainda a pulsão artística amadurecida em meio à coletividade. Exploração em descoberta do espaço de expressão, em profusão polifônica pouco organizada a partir da estrutura modal sistêmica, mas que revelava aos ouvidos superposições intervalares inauditas, reverberando por templos das mais variadas dimensões. 45 Em livre analogia, o século XX se aperceberia em desarticulação dos lastros anteriores de linguagem musical, o que reconduz a questionamentos milenares no campo de trabalho da música erudita, agora desprovidos do eixo funcional e sistêmico que a liturgia demandava na Idade Média. Na diversidade das constituições de materiais lineares, na configuração de novas formas de notação, na descoberta empírica de soluções para a simultaneidade sonora, no fluxo temporal dessa simultaneidade sem cláusulas discursivas pré-definidas, a aventura da polifonia medieval poderia encontrar termos de comparação com as formas de expressão intentadas no século XX, mas com a exclusão categórica de seu principal lastro unificador: o modalismo Gregoriano. 3.4. N.º 16 O anseio por algo que se impusesse com força comparável aos sistemas musicais históricos permeia (como metalinguagem) parte significativa do repertório desde o início do século XX. Talvez a última proposta de uma ampla generalização compartilhada da operação composicional tenha sido a de Pousseur na década de 1960, que por sua vez, é claramente exposta como desdobramento do pensamento serial. As experiências seriais, desde Schoenberg, sempre se propuseram agir na lacuna da falta de uma sistematização, no compartilhamento de uma solução estruturante para o discurso musical em larga escala. Em resposta ao repertório atonal de seu tempo, o primeiro serialismo opera como uma pulsão para a superação do balbucio pré-linguístico em direção à linguagem articulada. A música dos últimos séculos, que consideramos como nossa música clássica em sentido amplo, como nossa música tradicional, e que encontra no sistema da tonalidade sua expressão sintática mais equilibrada, é uma música na qual praticamente tudo se encontra construído e sustentado de maneira periódica. [...] Pode-se facilmente mostrar que essa disposição estrutural bem definida é a expressão e a realização de uma ideologia igualmente bem definida, de uma estrutura social e de uma prática das relações humanas facilmente reconhecível. Para ser breve, podemos resumi-las num único vocábulo: "individualismo". A disposição simétrica, periódica, era, por excelência, auxiliar de uma concepção de mundo concêntrica, egocêntrica. Que as dificuldades experimentadas desde muito cedo pelo individualismo geral, e que conduziram à sua progressiva desagregação, tenham encontrado suas correspondências no domínio musical, que uma crise autodestrutiva se tenha desenvolvido na música como em todos os outros domínios parciais, parece ser evidente e não necessitar de maiores desenvolvimentos neste quadro limitado. 46 Devemos a Arnold Schoenberg uma das enunciações teóricas mais lúcidas sobre esse estado de crise, tendo contribuído de maneira essencial a orientar sua evolução ulterior (POUSSEUR, 2009, p.112-113). Se o projeto serial constituiu um gesto de responsabilidade do compositor (em que pese o agudíssimo senso da história da linguagem em Schoenberg e Pousseur), a abordagem distanciada do repertório deixa claro que, como projeto, o serialismo abriu campos, espaços, portas, registros, mas não garantiu nem pertinência coletiva como compartilhamento de linguagem (o que dependeria de inúmeros fatores externos à prática musical), nem o mínimo juízo prévio de valor sobre qualquer obra que nele se realizasse, como se pretendeu em certas militâncias. A efetividade da solução particular para cada obra em nosso tempo (na ausência de critério minimamente compartilhado socialmente) independe, inabalada, de toda qualquer filiação anterior. As formas de expressão musical do século XIX se mostraram em pleno esgotamento em poucas décadas; mas não se tratava precisamente de uma aceleração no campo da comunicação, da vida social, do tempo histórico, mas antes de sua própria natureza, já tão entrecortada, autossuficiente e autorreferente mesmo em seus maiores acertos. Se o século XX teve o que dizer em arte, com força e propriedade, começou do reconhecimento de quais aspectos da produção anterior estavam plenamente liquidados (muitos já em frangalhos, moribundos, em sua origem mesma). Se essa produção anterior era, ela própria, o estertor do empirismo individual, sua liquidação reconduziria a experiência ulterior a um balbucio pré- linguístico, a uma pré-história de outra música ainda impossível de se vislumbrar. No estúdio, trabalho, material e descoberta se configuram com mais força quanto mais isolados do que soa na paisagem do mundo. 3.5. N.º 17 Schoenberg, ao discutir a efetividade do slogan "música nova" já em 1946, escolhe a melodia acompanhada como exemplo modelar na argumentação sobre quais seriam as razões de fato para as transformações históricas na linguagem musical. Coloca que há uma dialética na tendência de um tempo histórico manifestar- se musicalmente em incremento do discurso precisamente nas dimensões específicas da linguagem que tivessem sido submetidas, estrategicamente, ao maior grau de 47 simplificação nas gerações anteriores. Um caso privilegiado dessa tendência, para ele, seria a simplificação da polifonia na segunda metade do século XVIII – por mais que se tivesse conquistado “grande habilidade na criação melódica” nesse momento. Ele elucubra em seguida que um equilíbrio contrapontístico em uma dada textura, privilegiada em um momento histórico dado, geraria necessariamente uma menor elaboração e destaque para cada linha melódica, em comparação à elaboração de uma voz principal, acompanhada. E que essa mesma complexidade polifônica poderia fazer ressurgir, renovado, “o desejo de elaborar apenas uma voz e reduzir o acompanhamento ao mínimo exigido para a compreensibilidade”, como nova tendência generalizada (SCHOENBERG, 1984, p.115-116). A defesa de uma dialética própria do material musical na história da música por Schoenberg (comparável em certo sentido às ideias de Wölfflin para a história da arte) nunca prescinde da sua pertinência como dado de linguagem, como objeto apreensível, pela comunidade que a pratique. Tal é o equilíbrio a ser tecido entre o tempo ideal da enunciação da ideia e a responsabilidade pela sua clara apreensão, pelo qual ele advoga (em forte coincidência com a teoria da informação) em trecho que soa profético em relação aos riscos assumidos pela geração seguinte. Em um sentido multifacetado, a música faz uso do tempo. [...] Seria muito desagradável se ela não tivesse como objetivo dizer as coisas mais importantes da maneira mais concentrada em cada fração desse tempo. [...] A necessidade do compromisso com a compreensibilidade proíbe o salto a um estilo que seja abarrotado de conteúdo, um estilo no qual fatos são muito frequentemente justapostos sem conectivos, e que se lança em conclusões antes do amadurecimento apropriado (SCHOENBERG, 1984, p.116, tradução nossa17). 3.6. N.º 18 O que chamamos de melodia acompanhada foi, historicamente, o perfil da matéria musical responsável pela mais clara expressão de uma nova densidade de informação em um campo subjacente de significado, que articularia a relação da polifonia com a larga medida de tempo e (de forma mais efetiva que outrora) com todo o repertório de uma mesma época. A construção do campo direcional de alturas e 17 "In a manifold sense, music uses time. [...] It would be most annoying if it did not aim to say the most important things in the most concentrated manner in every fraction of this time. [...] The necessity of compromising with comprehensibility forbids jumping into a style which is overcrowded with content, a style in which facts are too often juxtaposed without connectives, and which leaps to conclusions before proper maturation". 48 acordes em atrações e afastamentos torna-se uma especulação coletiva, em que cada experiência no repertório tem o potencial de influenciar uma coletividade que compartilha das mesmas premissas, num contexto em que a linguagem responde muito mais por uma invenção estrutural de que pelo cumprimento de uma função simbólica, como ocorrera na música sacra seiscentista. É nesse contexto também que ocorre uma separação mais efetiva entre o repertório instrumental e o repertório vocal, invertendo-se a relação de forças entre os materiais tal como esta se organizava, ainda, em torno da contrarreforma – tanto na música sacra como também na profana. O repertório instrumental do século XVI, quando aborda com precisão os meios instrumentais convocados e a especificidade dos discursos a eles enunciados, demora a se pensar autônomo da voz. Madeiras e cordas vinham de longe enquanto se experimentava o tato em novas harpas e tubos, e o que para eles à mesa se escrevia por muito tempo veio transportado das naves dos coros. Muito antes de seu voo sem palavras a partir do século XVII, a música vocal já esvaziara todo o arcabouço do antigo modalismo, enquanto traduzia e entoava em língua franca suas descobertas empíricas. Para Giulio Caccini, um dos artífices desse esvaziamento, "o contraponto é obra do Diabo, ele destrói a inteligibilidade. O acompanhamento deve ser simples, a ponto de não ser escutado" (HARNONCOURT, 1998, p.167). Há um longo caminho desde uma experimental simplicidade de acompanhamento sob os arabescos melódicos, na geração de Caccini, até os perfis de melodia acompanhada tonal que se configuram durante o século XVIII. A desintegração do modalismo no final do século XVI abriria uma era de experimentos em que a harmonia lentamente se revela como nova dimensão semântica do material sonoro, em plena força de expressão. A música instrumental ao final do século XVIII consolidaria, ao fim e ao cabo, um pleno exemplo da autonomia da linguagem musical para a estruturação autossuficiente de discursos mais extensos, autorreferentes, sem necessário lastro na palavra, no gesto, na cena ou na liturgia para a sustentação do edifício do espírito. Há certamente um desdobramento dessa gradual descoberta da harmonia no Barroco no campo da ópera, e eventualmente, no caráter dramático das cantatas e oratórios, como reforço na caracterização e aprofundamento de sentidos extramusicais particulares. Convoca-se com muita frequência a harmonia a uma expressão pontual, representativa. Mas na nova música instrumental do Classicismo, 49 a responsabilidade estrutural para com a novidade da especulação harmônica se faz premente, de fato. Em nome de uma prática socialmente compartilhada de tal complexidade discursiva (em constante especulação e ampliação do campo de materiais e de suas implicações estruturais), foi imprescindível formular com clareza e coerência o modo de jogo da polifonia que permitisse tal apreensão discursiva. Em formas homofônicas, em prol do desenvolvimento da parte principal, certa economia governa a harmonia, graças à qual ela está em posição de exercer uma influência decisiva no desenvolvimento da estrutura (contrastes, clímax, pontos de virada, intensificações, variações) (SCHOENBERG, 1984, p.208, tradução nossa18). A lenta construção dos modos de jogo do campo harmônico encontraria a plena expressão de suas potencialidades após o atendimento de um requisito técnico primordial, sem o qual a harmonia não alcançaria força de expressão e projeção no tempo (em larga escala) comparáveis aos outros elementos da linguagem: o temperamento igual. É com o sacrifício dos múltiplos sistemas de afinação, na imposição de um leito de Procusto às antigas sensíveis dos séculos XVI e XVII e seus afetos, que floresce a lógica própria dos acordes como objetos que tecem seus próprios destinos. É a partir dessa condição técnica anterior que as funções do repertório musical ocidental passam a ser gradualmente atendidas através do perfil predominante da melodia acompanhada, em meados do século XVIII. 3.7. N.º 19 O Lied desde o século XIX (com gloriosas antecipações no final do XVIII), em certo sentido, é mais um desdobramento da melodia acompanhada clássica de que da música vocal Barroca. Passa por um aprendizado das melodias tradicionais do país, sempre, mas tem sua razão de ser no modo de jogo da melodia acompanhada tonal, agora em isomorfismo com a poesia. Se uma personagem do teatro lírico pode ser representada mesmo na redução pianística uma ária de ópera, sem a orquestra que situa seu espaço cênico, nada no Lied se sustenta sem a precisão solução camerística para a qual ele foi imaginado. 18 "In homophonic forms, for the sake of the principal part's development, a certain economy governs the harmony, thanks to which it is in a position to exert a decisive influence on the development of the structure (contrasts, climaxes, turning-points, intensifications, variations)". 50 E foi muitas vezes em memória nostálgica da canção que a melodia acompanhada persistiu anacrônica, em nome de um sentido extramusical ausente, quando não era simples repetição conservatorial de um padrão canônico. Viria a povoar o repertório, com cada vez mais frequência, esse modelo de simplicidade e clareza de enunciação e memorização, mesmo em peças distantes do compromisso estrutural da sonata clássica. Seja por influência dos temas de sonatas, seja pela transposição do perfil de canções e árias conhecidas ao teclado em uso doméstico, o século XIX viu a proliferação descontrolada da melodia acompanhada em peças instrumentais despretensiosas, na imensa maioria de interesse vertiginosamente decrescente. Preciosas e condensadas proposições novas para problemas simples nesse campo, encontremo-las em Chopin, Schumann, Grieg, Alkan. Até o início do século XX, em paralelo aos desenvolvimentos propriamente musicais, a ópera pôde se beneficiar do legado da estruturação do perfil no repertório tonal. De Bellini a Verdi e a Puccini, o lastro no repertório musical do Classicismo foi imprescindível para a construção de formas musicais de expressão dramática rediviva, senão finalmente liberta e consolidada, no campo da ópera. Não é um cuidado excessivo (ainda mais em tempos anômicos como o que se nos apresenta) alertar para que uma melodia acompanhada em uma ária de ópera jamais deveria ser ouvida como aquelas que configuram temas clássicos, lieder, cantatas, oratórios, movimentos lentos nos séculos XVIII e XIX. Indispensável: alfabetização elementar no campo de cada uma dessas linguagens para que se saiba a chave de leitura específica a decodificar cada objeto (de categoria aparentemente idêntica) como proposta absolutamente distinta. De todo modo, não é infrequente a associação do nome de Bellini a uma notória pobreza de soluções de acompanhamento, por mais que se reconheça seu veio de melodista. De fato, não se deveria estranhar a extrema simplicidade com que ele frequentemente confia todo o aparato orquestral à repetição obstinada de arpejos, de acordes quebrados sobre poucas pontuações ao baixo? Força é reconhecer que o recurso à melodia acompanhada em meio à dramaturgia, no caso de Bellini, não transcende sua dependência da trama e da identificação da personagem na escuta (como pode ser sugerido em casos muito particulares em meio ao repertório lírico; exceções que confirmam a regra). Mas ainda que essa trama ou mesmo a especificidade do papel não sejam conhecidos, para o ouvinte de ópera bem informado a chave de leitura é 51 inconfundível com a escuta do repertório da música erudita. E mesmo assim, caberia refletir sobre a aparente pobreza deliberada de suas soluções de acompanhamento mais frequentes em suas árias. Bellini trabalha sistematicamente, em suas árias, em clara hierarquia entre as camadas da polifonia: uma base harmônica sugerida em pontuações eventuais ao baixo, como sinais de referência para uma caminhada em larga escala em trajeto permanentemente flutuante, na melodia. Como se houvesse uma possibilidade de mensuração ponto a ponto de uma linha da mais absoluta fluidez sobre uma marcação rítmica periódica. Entre essas duas dimensões distantes, caminham inabaláveis arpejos, repetidos em moto perpétuo na região central do campo de tessitura. Esses cantos, como fluir continuado movido por suas mais sutis inflexões de frequência e duração, se beneficiam da imprevisibilidade de seu perfil, seja nas implicações intervalares do desenho de alturas e na variedade das formas do seu deslocamento no campo de tessitura, seja evitando a estrita regularidade rítmica. Na construção de cada personagem na ópera do século XIX, as sutilezas mais características de sua personalidade estão no modo de jogo do perfil melódico e no tecido dos conflitos entre os tipos vocais, de forma muito mais determinante de que nas palavras entoadas. Um segredo da melodia de Bellini é que a força dramática da construção de suas personagens atinge um grau de sutileza e profundidade que não seria realizável sem a participação direta do intérprete. Cada inflexão melódica escrita por Bellini pede sua execução de modo que a medida de tempo (desde modulações mínimas nas durações até imensas suspensões e alterações de andamento) seja da ordem do espírito, e não da aritmética. A ferramenta para a possibilidade de sincronia entre a pontuação do baixo como cláusula métrica em larga escala e a eterna flutuação do caráter trágico de cada personagem cantado é a estrita regularidade dos arpejos na camada central da polifonia (Fig.5-6). Em virtuosístico acompanhamento de cada microscópico ademane, o regente propicia a medida para a indeterminação em tudo que ouve (e vê), e o espírito da tragédia encarnado na voz se torna mais humano na melancolia das tríades perfeitas quebradas. 52 Fig.5. Trecho de Col sorriso d'innocenza, ária do segundo ato de Il Pirata, de Vincenzo Bellini. Fonte: Bellini (1970). 53 Fig.6. Sequência do exemplo anterior, somando quatro indicações de col canto em um espaço de seis compassos, em meio a indicações como a piacere, stentato e fermatas. Fonte: Bellini (1970).