João Lucas Nunes “O que estou fazendo neste lugar e quem sou eu?”: a loucura e o desejo feminino em Wide Sargasso Sea, de Jean Rhys São José do Rio Preto 2022 Câmpus de São José do Rio Preto João Lucas Nunes “O que estou fazendo neste lugar e quem sou eu?”: a loucura e o desejo feminino em Wide Sargasso Sea, de Jean Rhys Dissertação apresentada como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Literatura, junto ao Programa de Pós-Graduação em Letras, do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Câmpus de São José do Rio Preto. Financiadora: CAPES Orientador: Prof. Dr. Pablo Simpson Kilzer Amorim São José do Rio Preto 2022 Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca do Instituto de Biociências Letras e Ciências Exatas, São José do Rio Preto. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. N972“ Nunes, João Lucas “O que estou fazendo neste lugar e quem sou eu?” : a loucura e o desejo feminino em Wide Sargasso Sea, de Jean Rhys / João Lucas Nunes. -- São José do Rio Preto, 2022 101 p. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Instituto de Biociências Letras e Ciências Exatas, São José do Rio Preto Orientador: Pablo Simpson Kilzer Amorim 1. Literatura. 2. Literatura inglesa. 3. Pós-colonial. I. Título. João Lucas Nunes “O que estou fazendo neste lugar e quem sou eu?”: a loucura e o desejo feminino em Wide Sargasso Sea, de Jean Rhys Dissertação apresentada como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Literatura, junto ao Programa de Pós-Graduação em Letras, do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Câmpus de São José do Rio Preto. Financiadora: CAPES Comissão Examinadora Prof. Dr. Pablo Simpson Kilzer Amorim UNESP – Câmpus de São José do Rio Preto Orientador Profª. Drª. Claudia Maria Ceneviva Nigro UNESP – Câmpus de São José do Rio Preto Prof. Dr. Jorge Vicente Valentim UFSCar – Câmpus de São Carlos São José do Rio Preto 10 de março de 2022 AGRADECIMENTOS Ao meu orientador, Prof. Dr. Pablo Simpson, pela paciência, pela atenção, pela dedicação e pela generosidade em cada leitura e cada correção desde o início. Obrigado por acreditar que este trabalho poderia tomar as proporções que tomou e por me guiar nos meus primeiros passos no meio acadêmico, sempre se dirigindo a mim e ao meu trabalho de forma respeitosa e acolhedora, fazendo da minha experiência do mestrado algo saudável. A você, toda a minha gratidão e minha admiração. A Profa. Dra Claudia Maria Ceneviva Nigro e Prof. Dr. Jorge Vicente Valentim, pelos apontamentos e contribuições durante o exame de qualificação. A UNESP, meus professores e funcionários, meus mais sinceros agradecimentos por todos esses anos de acolhimento, respeito e troca de conhecimento. Sem vocês, teria sido impossível atingir meus objetivos. Sempre terão um lugar especial em meu coração. Às amizades que fortaleci e fiz ao longo desta jornada: Amanda, Ana Carolina, Elienn, Jaqueline e Mariana. Aos amigos e colegas de pós-graduação, por me manterem sempre motivado, proporcionando- me momentos maravilhosos, repletos de muita alegria, os quais, certamente, darão boas memórias e deixarão muitas saudades. À família: minha mãe, Zilda, por sempre acreditar em mim e me auxiliar em todos os momentos; minha irmã, Taís, pela convivência diária e todo o suporte; e aos demais familiares, por sempre estarem presentes durante essa jornada. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001, sob o processo nº 88887.354235/2019-00, a quem agradeço. RESUMO Este trabalho tem como principal objetivo produzir uma análise crítica e interpretativa do romance Wide Sargasso Sea, publicado em 1966 pela escritora dominiquenha Jean Rhys, sob a perspectiva da representação da loucura e do desejo feminino, bem como do encarceramento e do isolamento psicológico aos quais a protagonista, Antoinette Cosway, é submetida. A obra de Rhys está no centro do debate dos estudos feministas e pós-coloniais de literatura inglesa, com temas relevantes como a violência do colonialismo britânico e o silenciamento da mulher colonizada e miscigenada. Antoinette Cosway é Bertha Mason, a mulher louca do sótão, personagem criada pela escritora inglesa Charlotte Brontë para o seu romance autobiográfico Jane Eyre (1847). Ao centralizar seu romance na personagem de Brontë, Rhys estabelece um diálogo constante e direto entre as duas obras, fazendo reverberar a ousadia e a importância da escrita de autoria feminina como luta pelo direito à escrita e à voz das mulheres. Jean Rhys dá à Bertha Mason uma segunda chance, a oportunidade de contar ao leitor a sua própria história, desmistificar o equívoco de seu casamento, o mistério por trás de suas origens e por trás de como fora parar no sótão de Thornfield Hall, na Inglaterra. Para tal, revisita a sua juventude em Coulibri, desde antes de seu casamento, e disputa o turno narrativo da obra com o seu marido. O suspense é elemento constante durante toda a narrativa, que não revela sequer o nome do esposo da protagonista. Na forma de dissertação de mestrado, a análise está dividida em três capítulos que buscam abarcar toda a complexidade da heroína e da obra mais aclamada de Jean Rhys, bem como as temáticas de gênero, raça e colonialismo. Além disso, a tese também traz a polêmica por trás da crítica de Rhys e de sua suposta escrita autobiográfica. Palavras-chave: Desejo. Feminino. Sexualiadade. Loucura. Pós-colonial. ABSTRACT The main goal of this thesis is to make a critical and interpretative analysis of the novel Wide Sargasso Sea, published in 1966, by the Dominican writer Jean Rhys, from the perspective of the representation of madness and female desire, as well as the incarceration and psychological isolation of the main character, Antoinette Cosway . Rhys' work is at the center of the debate in feminist and post-colonial studies of English literature, bringing up relevant themes such as the violence of British colonialism and the silencing of colonized and creole women. Antoinette Cosway is Bertha Mason, the mad woman from the attic, a character created by the English novelisg Charlotte Brontë for her autobiographical novel Jane Eyre (1847). By centering his novel on Brontë’s character, Rhys establishes a constant and direct dialogue between the two narratives, making the boldness and importance of writing by female authors reverberate through the centuries as a struggle for the right to write and speak. Jean Rhys gives Bertha Mason a second chance, the opportunity to tell the reader her own story, demystify all the misconceptions about her marriage, the mystery behind her origins and how she ended up in the attic of Thornfield Hall. To do so, she needs to revisit her youth in Coulibri, since before her marriage, and dispute the narrative turn with her husband. Suspense is a constant element throughout the narrative, which does not even reveal the name of the protagonist's husband. In the form of a master's thesis, the analysis is divided into three chapters that seek to encompass all the complexity of the heroine and the most acclaimed work of Jean Rhys, as well as the themes of gender, race and colonialism. In addition, the thesis also brings up the controversy behind Rhys' criticism and her supposed autobiographical writing. Keywords: Desire. Female. Madness. Sexuality. Postcolonial. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 8 2 A FICÇÃO E A VIDA DE JEAN RHYS ........................................................................... 21 2.1 TRAJETÓRIA .............................................................................................................. 21 2.2 “ENTRE VIDA E OBRA” ........................................................................................... 29 2.3 OUTRAS LEITURAS .................................................................................................. 48 2.4 UM CASO PARTICULAR .......................................................................................... 50 2.5 A APORIA DA BIOGRAFIA E DO AUTOBIOGRÁFICO EM JEAN RHYS ..... 58 3 A LOUCURA EM WIDE SARGASSO SEA ...................................................................... 66 3.1 A CONSTRUÇÃO DA LOUCURA ............................................................................ 66 3.2 A LOUCURA E A SEXUALIDADE DE ANTOINETTE ........................................ 81 4. A VOZ MASCULINA NO ROMANCE DE JEAN RHYS E O DESEJO FEMININO .................................................................................................................................................. 83 4.1 A VOZ MASCULINA NO ROMANCE ..................................................................... 83 4.2 O DESEJO FEMININO ............................................................................................... 91 CONCLUSÃO ......................................................................................................................... 96 REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 99 8 1 INTRODUÇÃO Este trabalho visa apresentar uma leitura do romance Wide Sargasso Sea, publicado originalmente em outubro de 1966, obra-prima da escritora dominicana Jean Rhys (1890-1979). Tem como eixo central o questionamento do exílio e do isolamento físico e psicológico de sua protagonista, Antoinette Cosway. Buscaremos avaliar esses dois aspectos a fim de debater questões relacionadas ao gênero e à raça, presentes nesse romance. A curiosidade e a inquietação sobre as temáticas abordadas pela autora caribenha em sua obra surgiram após a apresentação de um seminário, no meu último ano de graduação, para a disciplina de Literatura Inglesa II. Inicialmente pensado como um trabalho de análise da obra de Charlotte Brontë, Jane Eyre, a apresentação tinha como objetivo expor o romance de Brontë, bem como analisá-lo e falar sobre suas personagens. Após o término do seminário, ao ter uma conversa sobre meu desempenho com o professor responsável pela disciplina, surgiu a ideia de ingressar no Programa de Pós-Graduação em Letras, no curso de Mestrado, com um projeto que tivesse como foco a análise de uma protagonista feminina. Em função do número extenso de trabalhos que se propõem a estudar a obra mais famosa de Brontë, o professor sugeriu a narrativa de Rhys como uma das opções, disponibilizando o primeiro exemplar que eu já havia visto de Wide Sargasso Sea. Desde então, nasceu um projeto de mestrado cujo objetivo era colocar a personagem feminina Bertha Mason no cerne do debate. O projeto se desenvolveu, passou por inúmeras alterações e hoje se apresenta no formato de dissertação. O romance de Jean Rhys, segundo Portilho (2012), “funciona como uma introdução a Jane Eyre”, 1 de Charlotte Brontë (1816-1855). Rhys concebe sua narrativa utilizando uma das personagens criadas por Brontë em seu romance vitoriano, Bertha Mason, the madwoman in the attic,2 a primeira esposa de Mr. Rochester, que permanece confinada no sótão de Thornfield Hall durante a maior parte da narrativa original. Em Jane Eyre, há um romance narrado em primeira pessoa, pela própria Jane, que conta a sua trajetória desde os maus-tratos pelos quais passou em sua infância, em Gateshead, até o casamento com o seu amado Mr. Rochester. Contudo, antes que a protagonista pudesse concretizar, finalmente, a sua união, a obra nos coloca diante do maior dos impasses para o casamento, a presença da personagem de Bertha. 1 Texto extraído do prefácio escrito por Carla Portilho (Professora de Literaturas de Língua Inglesa na Universidade Federal Fluminense) para a edição de 2012 de Vasto Mar de Sargaços, da editora Rocco. 2“ A mulher louca no sótão”, em inglês, referência direta à obra Jane Eyre, de Charlotte Brontë. 9 Antes mesmo que Jane pudesse tomar conhecimento sobre Bertha, há, na obra, uma passagem significativa que ilustra a forma aterrorizante com que Bertha está representada na obra de Brontë. Jane conta a seu noivo, na manhã de seu casamento, um episódio que acontecera na noite anterior, em que Bertha foi a seu quarto, segurando um candeeiro, e encontrou o véu e o vestido de noiva de Jane no armário. Bertha experimenta o véu e se olha no espelho. Neste momento há uma descrição fantasmagórica; segundo as palavras de Jane, as feições da mulher que estava no quarto escuro, diante dela, eram medonhas e terríveis; o rosto era sem cor e selvagem; os olhos, injetados; os traços negros tinham um horrendo inchaço, e os lábios eram escuros e grossos, lembrando-lhe do espectro alemão do vampiro. O vampirismo de Bertha é reforçado pela descrição exata do momento em que sai do quarto, quando a luz do dia já se aproxima. Ao se dirigir à porta, vem junto à cama em que Jane está paralisada ao observá-la: Quando chegou perto da minha cama, parou: olhou-me furiosamente com aqueles olhos tenebrosos, puxou o candeeiro para perto do meu rosto e apagou-o em minha frente. Eu tinha consciência daquele rosto fúnebre flamejando sobre o meu, e perdi a consciência. Pela segunda vez em minha vida – apenas a segunda – o terror me imobilizou. (BRONTË, 2014, p. 407, tradução de Goris Goettems)3 Após o incidente e o relato detalhado da heroína, dá-se início à cerimônia de casamento, que acontece num templo dentro da propriedade de Mr. Rochester. Antes que o padre pudesse declarar Jane e Rochester como marido e mulher, uma voz masculina ergue-se atrás do casal, alegando a existência de um “impedimento insuperável para o casamento”, referindo-se à existência de uma esposa anterior à Jane. O homem apresenta então uma certidão que acusa Rochester de ter se casado com Bertha Antoinette Mason.” O homem a delatar a bigamia que Rochester estaria prestes a consumar é o advogado Mr. Briggs, acompanhado de Richard Mason, irmão de Antoinette. Rochester confessa ter se casado com Antoientte, mas, em sua defesa, alega que ela seria louca e proveniente de uma família de “maníacos e idiotas”. Com a cerimônia cancelada e interrompida, Rochester convida o grupo ali presente para conhecer a primeira esposa. Este seria, então, o segundo encontro de Jane com a personagem. Assim que adentram o aposento em que Bertha está trancada, Charlotte Brontë faz uso de expressões peculiares para descrever o comportamento e dar ao leitor uma descrição ainda mais 3 No original: Just at my bedside, the figure stopped: the fiery eyes glared upon me – she thrust up her candle close to my face, and extinguished it under my eyes. I was aware her lurid visage flamed over mine, and I lost consciousness: for the second time in my life – only the second time – I became insensible from terror. (BRONTË, 1847, p. 406) 10 complexa da mulher que estava ali. Termos como hiena vestida/clothed hyena, urrou/bellowed, fera/beast, lunática/lunatic são algumas das palavras utilizadas para assinalar o comportamento da personagem. A própria Jane dirá que Bertha é uma “lunática" quando esta última salta no pescoço de Rochester, mordendo-o no rosto. Quando imobilizada, Rochester, numa tentativa de reforçar a sua justificativa para o que acabara de acontecer, dirige-se à primeira esposa com os seguintes termos: “Isto é a MINHA ESPOSA”/“That is MY WIFE” (BRONTË, 1847, p. 421). Os termos utilizados por Brontë configuram um retrato borrado e animalizado de sua personagem Bertha Mason. A mulher que ficara trancada por dez anos no sótão da mansão carrega o estigma do empecilho, do obstáculo, do fardo. Contudo, a vilania de Mr. Rochester é perdoada imediatamente: “Creia, leitor, eu o perdoei naquele momento, ali mesmo.”/“Reader, I forgave him at the moment and on the spot” (BRONTË, 1847, p. 426-427). Ainda que Jane o tenha deixado e tenha partido de Thornfield Hall, ela o faz não pela forma mesquinha com que Rochester mencionava Bertha ao chamá-la de louca e demente, mas apenas pelo fato de a primeira esposa estar viva e ser reconhecida legalmente como cônjuge. Antes que Jane deixasse a mansão, Rochester a coloca a par da forma como seu casamento com Bertha fora arranjado. Por ser o filho mais novo de seu pai, toda fortuna ficaria com o seu irmão mais velho, Rownland; logo, Rochester teria de arranjar um casamento lucrativo para si. O pai de Rochester tinha um conhecido, Mr. Mason, comerciante e proprietário de terras nas Índias Ocidentais, cuja filha pretendia ser desposada com a quantia de trinta mil libras. O casamento foi consumado assim que Rochester foi à Jamaica, ao concluir a faculdade; segundo o relato de Rochester, os dois viveram juntos por quatro anos nas Índias Ocidentais, um casamento marcado pelo comportamento grotesco e exagerado de Antoinette, até ela ser diagnosticada pelos médicos como louca e Rochester decidir por confiná-la e voltar à Europa, numa tentativa de recomeçar a vida e procurar outra mulher para casar-se. No final do romance, Jane retorna à Thornfield Hall após ter sentido que Rochester ansiava por socorro. Porém, encontra a propriedade destruída e descobre que houvera um incêndio que havia deixado seu amado ferido. O incêndio fora começado pela própria Bertha Mason, que se atirou do telhado durante a ocasião. Com o desaparecimento do maior empecilho para a união dos dois personagens e a independência financeira de Jane, que havia herdado a fortuna do tio, os dois se unem em casamento, e a história tem o seu final feliz, com o apagamento da personagem de Bertha Mason. A morte dela configura-se na narrativa quase como um favor ao casal; o fogo aparece como uma espécie de renovação, apagamento daquilo que antes fora construído. Rochester tem sua oportunidade de recomeçar, como se seu desejo 11 tivesse sido atendido, ao contrário de Bertha, cuja única salvação seria talvez a oportunidade de contar a mesma história sob sua perspectiva. Mais de um século depois, Jean Rhys escreve Wide Sargasso Sea (1966), romance que dá voz à personagem de Brontë, propondo outra perspectiva aos fatos, outro ângulo. No final do romance de Charlotte Brontë, a personagem suicida-se numa tentativa desesperada de livrar- se das mordaças que a haviam imobilizado por anos. Há, na obra de Brontë, apenas as considerações de Jane e a versão de Rochester. A personagem Bertha expressa-se de forma indireta, por meio do que poderíamos chamar de visão deturpada daqueles que são oriundos das colônias britânicas, a qual a narrativa, de certa forma, encena ao nos apresentar uma personagem crioula de forma tão animalesca e maligna, como vimos no trecho de Brontë e como nos descreve seu personagem, o Mr. Rochester. Não há, em Jane Eyre, o espaço para a voz da personagem Bertha, assim como aparecem as falas de outros personagens do romance. Em sua primeira aparição, que, na verdade, poderia ser classificada mais como uma manifestação, uma vez que a personagem é impressa de forma fantasmagórica no romance de Brontë, Bertha escapa do sótão e ateia fogo ao quarto de Mr. Rochester, configurando o que viria a ser a personagem violenta que será apresentada como contraste à delicadeza de Jane. Em Wide Sargasso Sea, haveria, portanto, algo como um spin-off: o relato percorre agora o passado de Bertha Mason, antes de conhecer seu marido e acabar isolada do mundo no sótão da mansão em Thornfield Hall por dez anos. Em Wide Sargasso Sea, na primeira parte do romance, não há logo a presença de Bertha Mason, mas de Antoinette Cosway, filha de um ex-senhor de escravos. A narrativa começa em primeira pessoa. Antoinette afirma que sua família havia perdido tudo após a morte do pai e a abolição da escravidão na Jamaica, que ocorrera mais precisamente em 1833, evento conhecido como Slavery Abolition Act. A Jamaica era, até então, colônia da Inglaterra, conhecida também como as Índias Ocidentais. A Inglaterra entraria, pouco tempo depois, no início do reinado da Rainha Vitória, período conhecido historicamente como The Victorian Period (1837-1901), fundamental para entendermos o contexto histórico em que Jane Eyre foi escrito e publicado. A mãe de Antoinette, Annette Cosway, é descrita como uma mulher bela e oriunda da Martinica, ou seja, Antoinette seria resultado de miscigenação, fator importante e frequentemente revisitado durante a obra pela crítica, como já veremos. É importante indicar que, com a morte do Sr. Cosway, os nativos da ilha em que se situa a fazenda da família, Coulibri, se tornariam, no romance, hostis à presença da família Cosway, o que passa a ser a maior preocupação de Annette, que tenta se casar desesperadamente para retomar a condição financeira da família e poder mudar-se. Antoinette não se sentia aceita pelas outras damas da 12 sociedade e muito menos pelas pessoas a sua volta, sendo perseguida por um sentimento constante de solidão, que pode ser constatado no trecho a seguir, em que se evidencia ao leitor como era alvo da hostilidade dos nativos: Eu nunca olhei para nenhum negro estranho. Eles nos odiavam. Eles nos chamavam de baratas brancas. Era melhor não mexer na casa de marimbondos. Um dia, uma garotinha foi atrás de mim cantando “Vai embora, barata branca, vai embora, vai embora”. Eu apressei o passo, mas ela andou mais depressa ainda. “Barata branca, vai embora, vai embora. Ninguém quer você. Vai embora.” (RHYS, 2012, p. 17, tradução de Léa Viveiros de Castro)4 A solidão e o distanciamento de Antoinette, na verdade, já começam a ser construídos pela autora quando a protagonista menciona como sua mãe a afastava. Além disso, não há menção alguma ao convívio da protagonista com outros jovens de sua idade no início da obra, apenas com familiares e criados: “Estas eram todas as pessoas que existiam em minha vida – minha mãe e Pierre, Christophine, Godfrey e Sass, que nos havia abandonado.”5(RHYS, 2012, p. 17). Pierre é o nome do irmão caçula e doente de Antoinette. Sobre ele apenas sabemos que cambaleava ao andar e não conseguia falar direito. Christophine é o nome de uma das criadas da casa, a mais próxima da família, dada à mãe da protagonista como presente de casamento. Godfrey é um dos serventes que ficaram na fazenda mesmo após a morte do Senhor Cosway. Sass também era um dos serventes da família: fora abandonado pela mãe, mas deixou Coulibri quando o dinheiro de Annette acabou. A protagonista narra como a falta de dinheiro e a preocupação com a situação da família diante da hostilidade dos negros já vinham se apoderando da mente da mãe, fazendo que Annette expressasse sua ansiedade de uma forma que amedrontava Antoinette, como vemos no excerto a seguir, em que o ato de Annette, ao falar sozinha, desperta o medo da filha. Além disso, também é possível notar como a relação entre mãe e filha era distante: Minha mãe normalmente andava de um lado para o outro no “glacis”, um terraço calçado e coberto de telhas [...]. Um vinco formava-se entre suas sobrancelhas negras, profundo - parecia cortado com uma faca. Eu detestava 4 Neste trabalho, as citações em portugués de Vasto Mar de Sargaços provêm do livro de 2012 publicado pela editora Rocco e traduzido por Léa Viveiros de Castro. Por economia, de agora em diante, não repetirei, nas citações, a menção à tradutora, que deve ser subentendida como sendo de Léa Viveiros de Castro, a menos que haja a indicação explícita da existência de outro tradutor. No original: I never looked at any strange negro. They hated us. They called us white coackroaches. Let sleeping dogs lie. One day a little girl followed me singing, ‘Go away white coackroach, go away, go away’. I walked fast, but she walked faster. ‘White coackroach, go away, go away. Nobody want you. Go away.’ (RHYS, 1966, p. 20) 5No original: These were all the people in my life – my mother and Pierre, Christophine, Godfrey, and Sass who had left us. (RHYS, 1966, p. 20) 13 aquele vinco, e uma vez toquei-lhe a testa para alisá-lo. Mas ela me empurrou, não com estupidez, mas calmamente, friamente, sem dizer uma palavra, como se tivesse decidido de uma vez por todas que, para ela, eu era inútil. [...] E, depois eu soube que ela falava sozinha, passei a ter um pouco de medo dela. (RHYS, 2012, p. 14)6 Antoinette também relata o modo como as pessoas se referiam a sua mãe e a sua família. Diz-nos como, desde aquela época, Annette já era considerada louca e como a família era considerada não pertencente às camadas mais altas, tampouco fazia parte do grupo dos nativos daquela região. Tal sentimento de não pertencimento acompanha a personagem desde a juventude e, ao decorrer da narrativa, vai ganhando maior dimensão e complexidade, intensificando-se após o isolamento social e físico posteriormente. Ainda antes de se casar, Antoinette lembra que fora sempre solitária durante seus anos mais jovens, com exceção do tempo em que passou com sua única amiga, a menina Tia. Ao roubar as roupas da protagonista, Tia deixa claro, no entanto, como o poder financeiro prevalece no âmbito das relações afetivas no universo de Wide Sargasso Sea. Ela aposta, com a jovem Antoinette, que essa última não seria capaz de girar o corpo de cabeça para baixo três vezes seguidas embaixo d'água, enquanto as duas estão se banhando nas águas de uma banheira natural. Antoinette aceita a aposta na tentativa de se manter superior à Tia, que, por sua vez, mostra à jovem Antoinette que sua postura de superioridade não pode ser sustentada, pois todos sabiam que sua família estava quebrada e que, apesar de o pai ter sido senhor de escravos, sua família não era como uma família branca. Relaciona, nesse momento, o poder aquisitivo à cor da pele e hostiliza a família Cosway da mesma forma que os outros moradores dali o faziam, como é possível observarmos no trecho seguinte: Ela disse que não foi isso que ouvira dizer. [...] Eu me enrolei na minha toalha rasgada e sentei numa pedra, de costas para ela, tremendo de frio. Mas o sol não conseguiu esquentar-me. Eu queria ir para casa. Olhei em volta e Tia tinha sumido. Procurei por um bom tempo, sem conseguir acreditar que ela havia levado meu vestido. (RHYS, 2012, p. 19)7 6 No original: My mother usually walked up and down the glacis, a paved roofed-in terrace which ran the length of the house and sloped upwards to a clump of bamboos […]. A frown came between her black eyebrowns, deep – it might have been cut with a knife. I hated this frown and once I touched her forehead trying to smooth it. But she pushed me away, not roughly but calmly, coldly, without a word, as if she had decided once for all that I was useless to her. […] and after I knew that she talked aloud to herself I was a little afraid of her.” (RHYS, 1966, p. 18) 7 No original: That’s not what she hear, she said. […] I wrapped myself in my towel and sat on a stone with my back to her, shivering cold. But the sun couldn’t warm me. I wanted to go home. I looked round and Tia had gone. I searched for a long time before I could believe that she had taken my dress […]” (RHYS, 1966, p. 22) 14 Annette casa-se novamente, dessa vez com um cavalheiro chamado Sr. Mason, para reerguer financeiramente a família. Em momento algum da obra, há a voz da protagonista descrevendo uma relação afetuosa entre os dois como motivos para justificar o casamento; tudo é feito para que a família consiga se recuperar, mesmo que não totalmente, de um declínio econômico em detrimento do falecimento do Sr. Cosway e do Ato de Abolição. Pouco depois do casamento, Annette manifesta seu desejo de deixar Coulibri em função da má relação estabelecida entre a sua família e os locais. Porém, o Sr. Mason não dá a devida credibilidade ao argumento de sua esposa, ainda que ela tenha mencionado a forma como os locais se referiam à sua família e o desprezo com que os olhavam. Para o Sr. Mason, os motivos levantados por Annette não passam de exagero, ele subestima seus argumentos e não leva em consideração a proposta de mudança. Além disso, diz que Annette está exagerando ao se preocupar que os nativos possam causar algum mal a eles. A hostilidade dos nativos, porém, chega ao ápice quando incendeiam a casa dos Cosway, obrigando a família a sair dali imediatamente. Durante a fuga, Antoinette perde o irmão Pierre, que, em função de sua saúde debilitada e da fumaça, não sobrevive à tragédia. No momento em que a família está se movendo às pressas para uma carruagem, Antoinette vê a imagem da casa cedendo às chamas e, então, percebe que jamais retornaria à Coulibri. A personagem faz uma descrição de objetos característicos de sua casa, numa tentativa de manter registrada para si mesma um retrato daquilo que acreditava ser a sua morada, o seu lugar, que já não existiria mais. Nesse momento, Antoinette percebe que Tia está perto. A protagonista corre em direção da menina, que pensara até então ser sua amiga. Esboça uma vontade intensa de sair daquela situação, de ser igual à amiga local, ter a mesma vida que ela. É possível entendermos esse sentimento da personagem como uma ânsia por igualdade e inclusão, como se Antoinette quisesse desesperadamente fazer parte de um outro mundo, principalmente agora que o seu não existia mais. O desespero da personagem é tamanho que ela parece não perceber o golpe que acabara de receber de sua amiga, que atirou uma pedra em sua testa, fazendo-a sangrar. Com esse fato (a clareza de que as aspirações de inclusão da protagonista lhe são negadas), Antoinette estaria para sempre isolada em sua própria condição, por vir de uma família que teria acumulado boa parte de seu patrimônio com a venda e a opressão de escravos negros, iguais a Tia: Então, não muito longe, eu vi Tia e a mãe dela, e corri para ela, pois ela era tudo que restara em minha vida como tinha sido. Nós tínhamos comido a 15 mesma comida, dormido lado a lado, tomado banho no mesmo rio. Enquanto corria, eu pensava: Vou morar com Tia e ser igual a ela. Não deixar Coulibri. Não ir embora. Não. Quando cheguei perto, vi a pedra em sua mão, mas não a vi atirá-la. Também não a senti, só uma coisa úmida, escorrendo pelo meu rosto. Olhei para ela e vi seu rosto contorcer-se ela começou a chorar. Olhamos uma para a outra, sangue no meu rosto, lágrimas nos dela. Era como se eu estivesse vendo a mim mesma. Como num espelho (RHYS, 2012, p. 40)8 Após serem forçados a deixar Coulibri, a família se separa e Antoinette vai morar com sua Tia Cora em Spanish Town, capital jamaicana. Posteriormente, passa a residir no convento que seria sua escola. Antes de ir ao convento, a protagonista faz uma visita à Annette, que estaria numa casa de repouso. Desde antes de partirem, Annette já vinha deixando toda a insegurança tomar conta de sua personalidade. O quadro, no entanto, se agrava com a morte do irmão mais novo e doente de Antoinette. No excerto abaixo, é possível observar como a personagem não é bem recebida nem ao menos nesse ambiente novo, pois, em seu primeiro contato com outros jovens, é ofendida, tomada como louca da mesma forma como sua mãe havia sido quando começara a ceder à pressão das investidas dos nativos de Coulibri. Há no trecho um momento em que a protagonista é encurralada por dois adolescentes antes de chegar ao convento, um menino branco, de cabelo ruivo e crespo, e uma menina negra: Na metade da ladeira, eles me cercaram e começaram a falar. A menina disse: — Olha a menina maluca, você é maluca igual a sua mãe. Sua tia está com medo de ter você em casa. Ela mandou você para ficar trancada com as freiras. Sua mãe anda sem sapatos nem meias nos pés, ela sans culottes. Ela tentou matar o marido e tentou matar você também naquele dia que você foi visitar. (RHYS, 2012, p. 44)9 A narrativa não deixa explícito exatamente quanto tempo a protagonista passou no convento, da mesma forma que, em momento algum, faz menção à idade da personagem. O próprio nome da protagonista é mencionado depois de um determinado espaço nas primeiras páginas do romance, o que pode ser entendido pelo leitor como um elemento que configurasse 8 No original: Then, not so far, I saw Tia and her mother and I ran to her, for she was all that was left of my life as it had been. We had eaten the same food, slept side by side, bathed in the same river. As I ran, I thought, I will live with Tia and I will be like her. Not to leave Coulibri. Not to go. Not. When I was close I saw the jagged stone in her hand but I did not see her throw it. I did not feel it eather, only something wet, running down my face. I looked at her and I saw her face crumple up as she began to cry. We stared at each other, blood on my face, tears on hers. It was as if I saw myself. Like in a looking-glass. (RHYS, 1966, p. 41) 9 No original: Half-way up they closed in on me and started talking. The girl said, ‘Look the crazy girl, you crazy like your mother. Your aunt frightened to have you in the house. She send you for the nuns to lock up. Your mother walk about with no shoes and stockings on her feet, she sans cullotes. She try to kill her husband and she try to kill you too that day you go to see her. (RHYS, 1966, p. 45) 16 um certo mistério à narrativa. Em Jane Eyre, por exemplo, há clara referência ao nome de Antoinette no momento em que Rochester conta a verdade para a sua amada Jane. Portanto, uma possível explicação para este fato talvez seja instigar os leitores de Brontë mais especificamente ou, até mesmo, imprimir a complexidade da questão identitária da personagem já logo no início da narrativa, uma vez que tal temática começa a ser construída na obra nos momentos iniciais, quando o leitor toma conhecimento das origens da protagonista e da situação de sua família. Um fato importante, contudo, é destacar o trecho em que a protagonista pontua que “[n]omes são importantes, como quando ele se recusava a me chamar de Antoinette” (RHYS, 2012, p. 178). Nesse momento, somos instigados a refletir acerca de outra provável interpretação: a primeira vez em que o nome da heroína aparece no romance é o momento em que uma das freiras do Convento do Monte Calvário, em Spanish Town, pergunta o seu nome. A protagonista se apresenta à freira somente com o primeiro nome. De forma irônica, é possível identificarmos que a personagem tem sua oportunidade de apresentação no romance apenas no meio do romance, diante de uma mulher que acabara de conhecer. Não há anteriormente menção alguma ao nome da personagem quando a narrativa estava focada somente em seu eixo familiar, como se sua existência fosse camuflada pelos conflitos internos de sua família ou externos em relação aos nativos de sua terra natal. Após um espaço de tempo indeterminado na narrativa, o Sr. Mason faz uma visita à Antoinette, no convento, para notificá-la de que havia convidado um amigo inglês para passar o inverno em Spanish Town. Trata-se do anúncio da chegada de seu futuro marido. O turno narrativo muda logo após essa cena. Há agora a segunda parte do romance. Nela a narrativa passa a ser contada sob uma perspectiva masculina. Podemos perceber então o marido de Antoinette, Mr. Rochester, na voz do narrador, detalhando a lua de mel do casal numa das ilhas de Windward, numa pequena propriedade que pertencera à mãe de Antoinette. A segunda parte do romance é marcada pela descrição de Rochester da vegetação e do clima das Índias Ocidentais, sua impressão daqueles que ali residem e de sua relação física intensa com Antoinette. Logo no começo, é possível percebermos como Rochester se sente atraído por sua esposa; contudo, não deixa de pontuar as diferenças raciais entre ambos; afinal, ele seria um homem europeu e Antoinette, uma mulher jamaicana. Assim, demonstra seu suposto sentimento de superioridade enquanto relata os incidentes em Windward, como 17 observamos no trecho a seguir: “Ela pode ser crioula de pura descendência inglesa, mas eles não são ingleses nem europeus.” (RHYS, 2012, p. 63).10 Durante a lua de mel, Rochester recebe uma carta enviada pelo meio-irmão de sua esposa, Daniel Cosway, acusando Antoinette e sua família de terem-no enganado para que ele se casasse com ela. Após a correspondência, há um distanciamento entre a protagonista e o esposo, o que faz com que Antoinette fique aflita e insegura, o suficiente para que recorresse até mesmo a meios mais obscuros, como adulterar a bebida de seu esposo para que ele dormisse com ela. Ao notar que o marido estava se afastando ainda mais, corre até Christophine, sua antiga babá, procurando conselhos. Nesse momento, o que mais chama atenção no diálogo entre as duas personagens é o quanto Antoinette é subordinada e dependente do amor de um homem que acabara de conhecer, traço marcante de todas as personagens femininas de Rhys, como veremos posteriormente. A obra é contextualizada no Período Vitoriano, em que era exigido das mulheres que vivessem com exclusiva dedicação a seus lares, servido apenas aos propósitos familiares e procurando na figura masculina proteção e uma oportunidade de resguardar seu futuro financeiro. A partir dessas considerações, conseguimos encontrar mais evidências para constatar a forma obstinada com que Antoinette luta para manter o casamento mesmo quando Christophine lhe sugere partir. A protagonista parece insistir na ideia de fazer que esse homem volte a “amá-la” como antes: Quando um homem não ama você, quanto mais você tenta, mais ele odeia você, homem é assim. Se você os ama, eles tratam você mal, se você não ama, eles ficam noite e dia atrás de você, perturbando o seu espírito. Eu soube de você e seu marido — disse ela. — Mas eu não posso ir embora. Afinal de contas, ele é meu marido (RHYS, 2012, p. 106)11 A tensão se instaura de fato quando Antoinette descobre que o marido se deitou com uma de suas criadas enquanto ela esteve na casa de Christophine. A personagem se revolta e os conflitos começam a se intensificar. Embora a protagonista se esforce e tente fazer com que ele 10 No original: Creole of pure English descent she may be, but they are not English or European either. (RHYS, 1966, p. 61) 11 No original: ‘When a man don’t love you, more you try, more he hate you, man like that. If you love them they treat you bad, if you don’t love them they after you night and day bothering you soul case out. I hear about you and your husband’, she said. ‘But I cannot go. He is my husband after all.’ (RHYS, 1966, p. 99) 18 a ame de volta, as circunstâncias não a favorecem. Com o conflito já instaurado, o marido de Antoinette decide que eles devem deixar o campo e partir para a Inglaterra, onde a esposa seria trancafiada e, segundo ele, não poderia estar com mais ninguém: Eu não poderia tocar nela. Exceto da forma como um furacão irá tocar nessa árvore — e quebrá-la. Você disse que eu fiz isso? Não. Aquilo foi causado pela violência do amor. Agora eu o farei. Ela não vai mais rir sob o sol. Ela não vai mais se enfeitar e sorrir para si mesma naquele maldito espelho, tão confiante, tão satisfeita. Criatura vaidosa e tola. Feita para amar? Sim, mas não vai ter nenhum amante, porque eu não a quero e ela não verá mais ninguém. (RHYS, 2012, p. 164)12 No excerto acima, é possível observar a possessividade com que Rochester se refere à Antoinette. Há aqui, assim como na passagem em que ele passa a chamá-la de Bertha, a evidência de como essa personagem feminina é reduzida a algo que seu marido possa controlar, de que se apropria. A exuberância com que a personagem é descrita,“confiante”, “satisfeita” e “vaidosa”, desperta em Rochester seu desejo sexual desvairado, colocando o personagem numa espécie de embate, quando ele se vê na posição de refém da beleza de sua esposa e, ao mesmo tempo, entra em conflito com sua moral colonial, pois, apesar de a protagonista abalar os valores moralistas de seu marido, fazendo com que ele a deseje de forma descontrolada, ainda está sob o jugo colonial que também opera para agravar a tensão entre as personagens. O fato de a heroína ser das Índias Ocidentais, ser uma estrangeira aos olhos do colonizador inglês e manifestar seu desejo sexual por ele, que na obra aparece em uma fala da criada Christophine a Rochester — “Ela o ama tanto. Ela está sedenta do senhor” (RHYS, 2012, p. 154) — faz com que Rochester sinta-se vulnerável como homem. Vê-se diante de uma mulher que o deseja e o enxerga como objeto sexual da mesma forma que ele o faz. Além disso, sua riqueza só é assegurada após ele se casar, ou seja, o dinheiro e a posse são, na verdade, de sua esposa. No romance, todas essas questões afetam Rochester, fazendo com que manifeste seu ódio e temor de maneira extrema. Logo, se Antoinette é uma mulher “sedenta” (thirsty, termo em inglês), ela pode ser sedenta por qualquer outro homem, de acordo com seu marido, o que desperta seu ciúme, sua ira e resulta na resolução de confiná-la. Spivak, em Pode o subalterno falar?, ajuda a pensar na forma com que a personagem Antoinette é representada na 12 No original: I could not touch her. Excepting as the hurricane will touch that tree – and break it. You say I did? No. That was love’s fierce play. Now I’ll do it. She will not laugh in the sun again. She’ll not dress up and smile at herself in that damnable looking-glass. So pleassed, so satisfied. Vain, silly creature. Made for loving? Yes, but she’ll have no lover, for I don’t want her and she’ll see no other. (RHYS, 1966, p. 150) 19 obra de Rhys. Em termos de representação, a figura masculina, o homem inglês, marido da heroína se relaciona com imperialismo britânico ante os povos de Terceiro Mundo, no caso, representado pela sua esposa. A mulher, sem dinheiro e de pele mais escura, aparece como refém de uma dupla subalternidade. Denuncia-se o agenciamento e a apropriação do imperialismo, fortificado pelas bases patriarcais, do corpo do subalterno. A Inglaterra, como uma das potências colonizadoras do Ocidente, se colocaria como centro de um modelo de sociedade mais moderna, ideal e, portanto, superior às suas colônias; o colonizador se apossa das estruturas hegemônicas que lhe propicia a posição de Sujeito. Tal preceito imobiliza a voz da mulher subalterna, delegada à posição do Outro (SPIVAK, 2010). Ao transportarmos a crítica de Spivak ao contexto do romance, percebemos como Rochester se apropria não só do dinheiro de sua esposa, mas também do seu corpo. O silêncio de Antoinette na obra e sua submissão ao marido confirmam o texto de Spivak, na medida em que a autora afirma que o subalterno não pode falar ou fazer-se escutar, o que acaba por atestar o privilégio e a realização do desejo do Sujeito masculino. Temos então a terceira e última parte do romance, quando o casal chega à Inglaterra. Antoinette é confiada aos cuidados da criada Grace Poole. Neste momento, mais uma vez, há um diálogo direto com o romance de Charlotte Brontë, pois este é o mesmo nome da criada que vigiava e cuidava de Bertha Mason, a esposa de Mr. Rochester no romance Jane Eyre. Antes do desfecho e clímax da última cena do romance, há várias cenas que fazem referência a episódios de Jane Eyre, como a visita de Richard Mason, filho de seu padrasto, e as escapadas da esposa louca durante a noite em Thornfiel Hall, em que é descrita como uma figura assustadora. Esses eventos são introduzidos na diegese por meio de flashbacks, como se Antoinette não se lembrasse exatamente que fez tudo aquilo, como se não estivesse totalmente certa até mesmo de sua própria identidade: Nomes são importantes, como quando ele se recusava a me chamar de Antoinette, e eu vi Antoinette flutuando para fora da janela com seus perfumes, suas belas roupas e seu espelho. Não tem nenhum espelho aqui e eu não sei como sou agora. Eu me lembro de me ver escovando o cabelo no espelho e como os meus olhos olhavam de volta para mim. A moça que eu via era eu, mas não exatamente eu. Muito tempo atrás, quando eu ainda era uma criança e muito solitária, eu tentei beijá-la. Mas havia um espelho entre nós - duro, frio e enevoado com a minha respiração. Agora eles levaram tudo 20 embora. O que eu estou fazendo neste lugar e quem sou eu? (RHYS, 2012, p. 178)13 Ao final do romance, a personagem descreve um sonho que tivera: escapa de sua prisão, no sótão da mansão, incendeia a propriedade inteira e comete suicídio. Após a descrição detalhada daquilo que acontecera apenas em sonho, rouba as chaves de Grace Poole, que adormece em função do consumo de bebida alcoólica, e escapa de seu quarto para consumar o mesmo ato com que sonhara e que levaria à sua morte. Antoinette incendeia a mansão de Rochester e atira-se do topo do edifício superior. Não há para a protagonista rendição alguma ou chance de recomeço, sua morte é inserida como o único desfecho possível de sua infelicidade. A personagem se torna o mesmo fantasma que Brontë premeditou, concretizando o destino já prescrito desde Jane Eyre. 13 No original: Names matter, like when he wouldn’t call me Antoinette, and I saw Antoinette drifting out of the window with her scents, her pretty clothes and her looking-glass. There is no looking-glass here and I don’t know what I am like now. I remember watching myself brush my ha ir and how my eyes looked back at me. The girl I saw myself yet no quite myself. Long ago when I was a child and very lonely I tried to kiss her. But the glass was between us – hard, cold and misted over with my breath. Now they have taken eveything away. What am I doing in this place and who am I? (RHYS, 1966, p. 162) 21 2 A FICÇÃO E A VIDA DE JEAN RHYS 2.1 Trajetória Nascida Ella Gwendoline Rees Williams (1890-1979), em Roseau, na Dominica, Rhys deixou sua terra natal aos 16 anos para morar na Inglaterra, onde concluiria seus estudos. Após um período na Perse School, ela, abandonou a escola e ingressou na Royal Academy of Dramatic Art (RADA), em Londres, para tornar-se atriz. Suas aspirações de ter uma carreira no meio artístico, contudo, encontraram um empecilho que também se faz muito presente no romance em questão: era uma mulher estrangeira. A diferença em relação aos outros não era acolhida em sua terra natal, como podemos ver no estudo de Thomas Staley (1979), Jean Rhys: A Critical Study, no seguinte excerto: “Conforme crescia, Jean não era particularmente próxima de seus irmãos e irmãs, mas famílias brancas como a dela, na cultura da ilha, viviam em um mundo confinado de dimensões estreitas repleto de atividades familiares.” (STALEY, 1979, p. 2, tradução nossa).14 Logo, as barreiras raciais se tornariam um problema para Jean Rhys novamente na Inglaterra, onde voltaria a se sentir diferente e solitária por ser uma imigrante das antigas colônias inglesas, assim como se sentira solitária no Caribe por não ser como os habitantes nativos de sua ilha. Após ingressar na RADA, o pai de Rhys veio a falecer, deixando a família em uma condição financeira desfavorável. A mãe acabou se mudando para a Inglaterra. A jovem Rhys estava sem dinheiro e precisava se manter, para não se tornar refém da condição desprivilegiada de outras mulheres imigrantes. Rhys se juntou, então, a uma trupe de coro musical itinerante, fazendo shows em pequenas cidades da Inglaterra e, posteriormente, participando de produções teatrais. Durante o período da Primeira Guerra Mundial, Jean Rhys vivia em Londres, quando conheceu seu primeiro marido, Jean Lenglet. Após o término da guerra, o casal tem o seu primeiro filho, que vem a falecer três dias após o nascimento. A primeira obra autoral de Rhys foi The Left Bank and Other Stories, publicada em 1927. São uma coleção de 22 pequenas narrativas que se passam na Paris boêmia que Jean Rhys conhecera durante a juventude. O livro contou com o apoio de Ford Madox Ford, que teria sido o grande mentor literário de Rhys. A obra ainda apresentava um prefácio escrito por ele próprio em que fazia elogios ao comprometimento de Rhys com as emoções de suas personagens. Ao 14 No original: As she was growing up, jean was not particularly close to her brothers and sisters, but white families such as hers in the island culture lived in a confined world of narrow dimensions crowded with family activities. 22 contrário da Paris glamurosa que todos talvez esperassem, Jean Rhys retrata um submundo em que as personagens femininas são apresentadas de forma angustiada, todas reféns da solidão e confinadas em lugares deploráveis das periferias, como em Hunger, em que a heroína se encontra literalmente em uma situação de miséria, sem ter condições de se alimentar regularmente. Marco inicial da carreira literária de Jean Rhys, The Left Bank foi criticado ao não apresentar uma focalização central da obra por completo; pois, em um primeiro momento, Rhys se propusera a apresentar uma obra centralizada em uma região decadente de Paris, mas boa parte das narrativas se passam em outros lugares, muitos deles remotos e distantes de Paris. O trecho a seguir é da crítica de Staley (1979), quando o autor cita os comentários de veículos de imprensa de grande renome na época, como o The New York Times: A revisão na TLS observou que seus “esboços e estudos de personagens curtos parecem quase provisórios”. A crítica do New York Times aproximou-se das características de seu trabalho, descrevendo seu método como uma rejeição do enredo descritivo, expositivo e estruturado, mas observou que o dela é um “dom de conotação, para captar em um momento tudo o que está por trás da situação e inerente ao personagem”. (STALEY, 1979, p. 24, tradução nossa)15 Apesar da crítica, Rhys apresenta, já em seu primeiro trabalho, temas que serão principais e recorrentes em sua escrita, como a personagem feminina representada na forma de vítima de uma sociedade cruel, em que mulheres jovens e sem condições financeiras são presas fáceis para homens que as exploram, como é possível observarmos nos contos Illusion, Hunger, La Gross Fifi e Vienne, além também de questões raciais, abordadas no conto Again the Antilles, que apresenta ao leitor a disputa entre dois homens: de um lado, um proprietário de terras inglês e, do outro, o editor chefe do jornal Dominica Herald and Leeward Islands Gazette, que é negro. A disputa acontece por meio de publicação e réplica de cartas no jornal e tem um requinte de humor. A despeito da temática de gênero abordada por Jean Rhys em sua primeira obra, cabe ressaltar que a posição de vulnerabilidade das personagens femininas constitui um lugar comum referenciado por Staley durante quase toda a sua análise das obras de Jean Rhys. Contudo, sabemos que tal forma de retratar as personagens femininas também compõe um cenário de muita tensão, que, quando dotado de maior profundidade, como em Wide Sargasso Sea, confere 15 No original: The review in TLS noted that her ' ... sketches and short character studies seem almost tentative'. 8 The New York Times review got closer to the characteristics of her work, describing her method as a rejection of the descriptive, expository, and structured plot, but noted that hers is a '. . . gift of connotation, to grasp in a moment all that is behind the situation and inherent in the character. 23 ao romance uma complexidade ainda maior, não sendo capaz somente de representar o maior impacto de sua obra em seus leitores, ou seja, não seria, portanto, a vulnerabilidade de suas personagens o elemento a conferir maior importância ou complexidade a suas obras, mas a forma como a autora passa a retratá-las, utilizando-se de elementos linguísticos e componentes da própria narrativa que são capazes de atribuir diversas possibilidades para a análise de suas obras, e não somente a referência ao lugar de desvantagem ocupado por suas personagens. Em Illusion, por exemplo, há a voz de uma personagem feminina narrando sua amizade com Miss Bruce, uma pintora de retratos inglesa vivendo em Paris há sete anos. Ao mencionar que Miss Bruce permanecera intocada ao longo dos sete anos que esteve morando em Paris, a narradora mostra ao leitor que a personagem exibia apenas o seu lado exterior, o de uma artista fascinada pela beleza. Podemos observar também, pela descrição da narradora, que se apresenta como amiga de Miss Bruce há dois anos, como a personagem se mostra cética e intocável em relação àqueles que estão a sua volta, principalmente outras mulheres, que, da mesma forma que chamavam atenção de seu olhar artístico, também não estavam à altura de seu senso estético e crítico. O conto tem uma reviravolta quando a narradora vai visitar a amiga e descobre, pela concierge, que Miss Bruce fora internada e não tivera tempo de levar nenhum pertence consigo. A amiga sobe a seu apartamento para recolher algumas camisolas para Miss Bruce e descobre, trancafiado em seus armários, um mundo colorido e sofisticado de vestidos e fantasias, que nada tinham a ver com a Miss Bruce que conhecia e que estivera sempre tão elegante. Em Hunger, por sua vez, há, como protagonista, uma jovem abandonada à própria sorte em Paris. Sem condições financeiras para pagar o quarto de hotel e sem dinheiro algum para comprar comida, alimenta-se apenas de pão e café, mas já está sem comer há cinco dias. Neste conto, temos a protagonista retratada de maneira conformada com o destino e já sem forças para tomar posse de sua própria existência. Já em La Gross Fifi, a personagem Roseau relata seu desamor à excêntrica Fifi, uma prostituta que vive no quarto ao lado, no mesmo hotel aterrorizante e asqueroso. O conto é narrado em terceira pessoa e descreve a aproximação de Fifi e Roseau, quando Fifi presta solidariedade à vizinha de quarto ao notar que a outra não parece estar bem. Ao simpatizar com as confissões de sua nova amiga, Fifi a aconselha a encontrar um homem mais refinado. Contudo, mantém um relacionamento conturbado com um gigolô. Ao final do conto, Fifi morre esfaqueada pelo amante, trazendo ao conto certa ironia, uma vez que Roseau parece estar em conformidade com seu destino quando se mostra vulnerável diante dele, mesmo que Fifi a tenha incentivado a achar um homem diferente. Além disso, também é importante ressaltar que o 24 nome da protagonista, Roseau, é uma referência clara às origens de Jean Rhys, configurando o nome da capital de sua terra natal, a Dominica. Vienne, por sua vez, é a última narrativa da obra. Conta a história do casal Francine e Pierre e se passa no contexto posterior à Primeira Guerra Mundial. Narrada em primeira pessoa por Francine, a narrativa descreve a percepção da protagonista feminina dos acontecimentos e aspectos da aristocracia europeia. A despeito do olhar da personagem para os componentes do cenário do conto, Staley (1979) também nos chama atenção para a forma como a personagem olha para as outras personagens femininas que figuram na obra, as acompanhantes dos amigos de seu marido, como todas aquelas mulheres que, ainda que atraentes e charmosas à primeira vista, não passavam de vítimas e meros adereços ao lado dos homens, poderosos e detentores de dinheiro. O marido de Francine trabalha para os japoneses do Conselho dos Aliados, num ramo sombrio de transações financeiras. A vida do casal é regada a vinhos e ambientes sofisticados, até que Francine, deslumbrada por seu estilo de vida, tem um pressentimento e questiona o marido a respeito do quanto ele estaria lucrando. Ao ser questionado, Pierre alega estar fazendo bastante dinheiro e que o pessimismo de sua mulher traria má sorte aos negócios. O casal se muda para Budapeste, onde Francine descobre estar grávida. Pierre finalmente confessa à esposa que não possui mais dinheiro, que seus negócios ruíram e que poderia ser preso. Francine o pega com uma arma, prestes a se matar. É nesse momento que a protagonista consegue convencê-lo do contrário e os dois fogem das autoridades, começando aí uma vida errante pela Europa. A despeito da pauta racial em The Left Bank, há, em Again the Antilles, uma disputa entre Papa Dom e Mr. Musgrave, narrada em terceira pessoa. Papa Dom seria o editor do jornal Dominica Herald and Leeward Islands Gazette, em Roseau. Além disso, é descrito como a coloured man, e isso, segundo o narrador, o teria tornado um homem amargurado. Além disso, Papa Dom também seria um homem contra as manifestações religiosas da Igreja Católica e Anglicana que estariam ganhando força na Dominica. O conto começa descrevendo um ataque que Papa Dom sofrera em sua residência por fiéis religiosos após tecer severas críticas a um edifício religioso que estava sendo erguido na região. Passado o incidente, há de imediato a disputa entre Papa Dom e Mr. Musgrave, que se dá no âmbito escrito, por meio de uma coluna para cartas de leitores do jornal de Papa Dom. Mr. Musgrave é descrito como um senhor inglês, dono de uma plantação de cana de açúcar e lima. De forma quase humorística e irônica, a disputa se desenrola conforme Mr. Musgrave responde às críticas de Papa Dom citando referências como Shakespeare. De acordo com o editor, Mr. Musgrave teria cometido um ato de tirania, que permanece sem detalhes mais explícitos. O conto termina de forma súbita, com o narrador questionando se deveria ler 25 novamente o jornal. As cartas são marcadas por posicionamentos de questões raciais referentes um ao outro, tendo Mr. Musgrave inclusive utilizado o termo damn niggers em uma delas. Logo, Rhys mostra, em seu conto, já um rascunho de uma disputa no âmbito do discurso entre duas personagens marcadas pela identidade racial, da mesma forma que virá a fazer novamente, de forma mais complexa e desenvolvida, em Wide Sargasso Sea, com Antoinette e o marido. Jean Rhys publicaria ainda Quartet, em 1928. Este livro encena muitos aspectos que a crítica da autora atribuiu à sua vida pessoal, como um ménage à trois. Após a prisão de seu marido, Leglet, por espionagem, Jean Rhys se viu sozinha e desemparada, e foi quando começou a se envolver romanticamente com Ford Madox Ford, que também era casado. É, de algum modo, a tensão de um triângulo amoroso que se apresenta nessa segunda obra. Desta vez, temos Marya Zeli, uma jovem das Índias Ocidentais que costumava atuar como cantora de corais na Inglaterra antes de se mudar para Paris com seu marido, Pole. Após Pole ser mandado para a prisão por vender objetos roubados, Marya é deixada ao seu próprio destino até receber a proposta de se mudar para a casa do casal Heidler. O casal era formado por um homem rico já de certa idade e a esposa. O fato é que Marya seria a amante do senhor Haidler numa espécie de acordo comum com a esposa. A tensão do romance vai se agravando conforme Marya luta entre revolta e abandono, apaixonando-se e se entregando ao senhor Heidler. Ao final do romance, Pole consegue sair da prisão; contudo, ao descobrir a verdade sobre a vida que a esposa estivera levando durante o tempo seu na cadeia, Marya é abandonada pelo marido e acaba sem nenhum de seus companheiros. Nessa obra, apresentam-se as inseguranças do abandono e a incapacidade de prover do próprio sustento. A situação de Marya é considerada complexa por fazer referência às adversidades enfrentadas por mulheres imigrantes em uma sociedade em que os lugares hegemônicos, principalmente na época do romance, eram ocupados majoritariamente por homens, que reduziam as mulheres apenas a meros objetos sexuais, ornamentais e de companhia. A partir do momento em que a personagem feminina não possui mais qualquer recurso para sobreviver, o destino seria a prostituição e a miséria ou se entregar à proteção de outro homem, mesmo sendo esse comprometido. O romance ganhou uma adaptação cinematográfica em 1981, estrelando Isabelle Adjani no papel principal de Marya Zeli, e Maggie Smith e Alan Bates, nos papeis de Senhor e Senhora Heidler. After Leaving Mr. Mackenzie, segundo romance de Jean Rhys, publicado em 1930 é outro romance que a autora representa a personagem principal de forma insegura. O romance é divido em três partes, assim como Wide Sargasso Sea; contudo, é narrado em terceira pessoa. Também se passa em Paris e traz a protagonista Julia Martin, que, assim como Marya Zelli de 26 Quartet, estava em uma situação miserável sem um homem para mantê-la. No caso de Julia, a personagem era financiada por um ex-amante, Mr. Mackenzie, com o qual havia rompido havia seis meses. Certa tarde, Julia recebe mais um cheque do ex-amante e uma carta dizendo que aquele seria o último cheque que receberia. A partir de então, viaja a Londres em busca de algum homem que pudesse sustentá-la, chegando a ter um caso com Mr. Horsfield, que também não acaba bem. Em After Leaving Mr. Mackenzie, vemos a personagem feminina revoltada por sentimentos de autocomplacência, vitimização e desespero, que a fazem cometer atos desesperados, como seguir o próprio Mr. Mackenzie após ele suspender os cheques, até partir em busca de outro amante, sempre carregando consigo o desespero e a incerteza de ainda ser capaz de conquistar algum homem em função de sua idade avançada. Voyage in the dark, por sua vez, lançado em 1934, quando Jean Rhys havia retornado à Inglaterra após uma vida de peregrinações pela Europa e uma longa viagem de volta à Dominica, curiosamente, igualmente estabeleceria, segundo a crítica, relação com muitos aspectos da vida pessoal da autora, uma vez que sua protagonista, a jovem Anna Morgan, de 19 anos, também é caribenha e se muda para a Inglaterra. Assim que Anna deixa a escola, sua mãe para de sustentá-la, o que faz com que ela passe a trabalhar como parte integrante de um coral. Mais tarde, Anna é seduzida por um homem mais velho, Walter Jeffries, que se oferece para mantê-la financeiramente. Contudo, assim que Walter dispensa a jovem Anna, ela passa a viver um pesadelo, envolvendo-se com a prostituição e passando até por um aborto ao final do romance. O aborto e a prostituição representados na narrativa também são partes traumáticas da vida da própria Jean Rhys, que acabou se envolvendo com alcoolismo em função de relações amorosas frustradas após embarcar em sua carreira artística, como escreve a jornalista Lesley McDowell em seu artigo Jean Rhys, Prostitution, alcoholism and the mad woman in the attic, publicado em janeiro de 2014. Por fim, Good Morning, Midnight, de 1939, ao contrário de Voyage in the dark, que se passa na Inglaterra, volta a ser ambientado em outra parte da Europa e traz a heroína Sasha Jansen. Após um casamento infeliz e a perda de um filho, Sasha retorna à Paris. A partir daí, a protagonista é assombrada pelo passado e se envolve com um gigolô, que se engana ao pensar que ela teria dinheiro. Com a publicação de Good Morning, Midnight, Jean Rhys desaparece, e muitos chegaram a pensaram que ela estaria morta, uma vez que seus livros também não estariam mais sendo impressos. Quando encontrada, finalmente, Rhys estaria trabalhando em seu último e mais complexo romance, Wide Sargasso Sea. Sua heroína, ao contrário de todas as anteriores, estaria diretamente relacionada à afirmação de uma identidade caribenha, racial e feminina, que, inclusive, dialogava com outra obra de autoria feminina e de grande prestígio 27 no cenário mundial da literatura. Embora Wide Sargasso Sea seja um marco nos estudos pós- coloniais, feministas e de literatura inglesa e caribenha, no Brasil, o nome e a obra de Jean Rhys ainda permanecem desconhecidos pela maioria dos leitores, talvez pela complexa veiculação de discursos não hegemônicos nos centros dos principais debates em nossa sociedade, apesar de tópicos como o feminismo e o movimento negro estarem ganhando cada vez mais destaque em nossa sociedade. Em âmbito acadêmico, não são muitos os trabalhos desenvolvidos acerca do romance em nosso país, com exceção de estudos como o de Vera Helena Gomes Wielewicki (1992), que investiga, em sua dissertação de mestrado, “Say nothing and it may not be true”: focalization and voice in Wide Sargasso Sea, os silêncios relacionados à protagonista, dialogando com as teorias de focalização e voz narrativa de Gerard Genette. Além do trabalho de Wielewicki, também podemos citar o artigo de Shirley de Souza Gomes Carreira (2012), Gênero, Identidade e Poder: Uma Reflexão sobre Vasto Mar de Sargaços, de Jean Rhys, em que autora afirma que “o romance de Rhys demonstra como o sistema patriarcal não só impunha à mulher um papel de subalternidade, mas também imputava ao homem obrigações tais que também cerceavam a sua independência e liberdade”, e discorre sobre a posição desprivilegiada de Bertha e a conduta problemática de Rochester no romance. Também destacamos o trabalho de Naylane Araújo de Matos (2018), intitulado A tradução brasileira de Wide Sargasso Sea, de Jean Rhys: uma crítica feminista pós-colonial, em que a autora discute a importância de uma tradução engajada para que a obra seja contemplada e lida com todo seu potencial, pois, segundo Matos, a tradução feita por Léa Viveiros de Castro, ainda que demonstre cuidado na tradução de termos que abarquem toda a nomenclatura e a questão racial do texto de Rhys, deixa um pouco a desejar quando analisamos a forma com que as personagens femininas são representadas no texto traduzido. Segundo Matos: As alterações no texto traduzido ocorrem mais facilmente quando se trata da imagem de personagens femininas. Há diversas alterações negativas na imagem de Antoinette, sua mãe e principalmente de Christophine. Enquanto que a imagem do marido ou não se afasta do texto fonte ou é valorizada. (MATOS, 2018, p. 106-107) Em âmbito internacional, é importante mencionar obras como a de Molly Hite (1989), The Other Side of the Story: Structuries and Strategies of Contemporary Feminist Narratives, em que a autora apresenta sua análise de personagens e obras escritas por autoras como Jean Rhys, Alice Walker e Margaret Atwood. Seu livro é dividido em uma introdução e quatro capítulos, sendo o primeiro intitulado Writing in the Margins: Jean Rhys. Neste capítulo, Hite 28 (1989) aprofunda seu debate acerca das personagens femininas de Jean Rhys, bem como sua tão revisitada e polêmica questão autobiográfica. A autora ainda menciona o termo Rhys woman para fundamentar seu debate acerca das protagonistas de Rhys, definindo-as como financeiramente dependentes de uma figura masculina. A autora, no entanto, também coloca no centro de seu debate que Jean Rhys não somente escreveu sobre personagens femininas marcadas por essa dependência, como também discorreu sobre “os horrores do isolamento psicológico”. No que tange às questões étnicas e de gênero, há trabalhos importantes que auxiliam em uma leitura mais crítica de suas personagens, como o estudo de Thomas F. Staley (1979), Jean Rhys A Critical Study. Trata-se de uma referência nos trabalhos e artigos sobre a carreira e a crítica literária de Jean Rhys, sendo o primeiro a ser publicado sobre a autora. Nele, Staley não só apresenta Jean Rhys de forma detalhada ao leitor, mas também faz uma leitura crítica de obras publicadas da autora, como The Left Bank, Quartet, After Leaving Mr. Mackenzie, Voyage in the dark, Good Morning, Midnight and Wide Sargasso Sea. Rhys também contou com a leitura de nomes consagrados na área dos estudos pós- coloniais, como Gayatri Spivak (1985), em Three Women's Texts and a Critique of Imperialism. Em seu texto, Spivak problematiza a leitura das autoras Sandra Gilbert & Susan Gubar da personagem Berth Mason, que a sintetizam como o “duplo” de Jane Eyre, mais especificamente, sua “dark double”, em termos psicológicos. De acordo com Spivak, a obra de Brontë imprimiria uma visão feminista, porém ainda imperialista, representando de forma negativa a personagem crioula e colonizada Bertha Mason, ao passo que favorece Jane, uma personagem branca e europeia, para que ela venha a ser tornar, no final do romance, a “heroína feminista”. Assim como o trabalho de Spivak, ao qual retornaremos ao longo deste estudo, há também a obra de Elaine Savory (1999), Cambridge Studies in African and Caribbean Literature - Jean Rhys, publicada pela Cambridge University Press, cujas considerações dialogam com o presente trabalho. Savory, em seu estudo, faz considerações não só sobre o romance, mas também sobre outras personagens e sobre a escrita de Jean Rhys. Trata-se de uma introdução ao trabalho da autora, detalhando seu percurso literário e analisando algumas de suas personagens femininas, incluindo a protagonista de Wide Sargasso Sea. Diante do exposto até aqui, gostaria de indicar a divisão da dissertação. O presente trabalho pretende fazer uma leitura crítica de Wide Sargasso Sea, sob a perspectiva do isolamento físico e psicológico ao qual a heroína é submetida, sob três perspectivas: 1) da representação feminina e da loucura; 2) da voz masculina na obra e 3) das questões coloniais e 29 raciais no romance. Contudo, antes de desenvolvermos os temas propostos, faz-se importante destacar que o isolamento é uma das temáticas centrais do romance de Jean Rhys. Tal perspectiva de análise se relaciona ao que observou Molly Hite (1989, p. 20), quando afirmou que Jean Rhys “não escreve sobre a 'mulher’” e que seus romances “estão longe de serem exercícios de narcisismo literário feminino”. Segundo ela, o que Rhys traz em sua obra é algo mais “palpável”, como “o horror do isolamento psicológico”. Neste primeiro capítulo, separamos sua obra de sua vida pessoal, mesmo que mencionando muitos fatos que se assemelham aos seus enredos, como veremos ao nos debruçarmos sobre suas principais personagens femininas, além da heroína do romance em questão. Já no segundo capítulo, analisaremos a noção de histeria em sua relação com representação feminina no romance. A loucura é uma das chaves fundamentais para a análise da personagem Antoinette e da exclusão feminina na obra, uma vez que, desde o romance de Brontë, ela fora representada e apresentada ao leitor, justamente, como uma mulher louca. O trabalho mostra como a questão da loucura é construída no romance, além da problematização de conceitos que associavam a loucura às mulheres na época em que Wide Sargasso Sea é contextualizado; faz uma análise crítica e feminista da forma como a protagonista é representada no romance; e, por fim, apresenta como a questão do gênero aparece também diretamente como pressuposto para a dominação e marginalização dessa personagem. No terceiro e último capítulo, discorreremos sobre o discurso masculino na obra, ou seja, sobre a voz de Mr. Rochester no romance de Rhys. Nesse capítulo, nosso objeto de análise é a forma como se dá a dualidade entre as vozes de Antoinette e seu marido; a forma como o antagonismo entre as duas vozes é construído; o que ele expressa ao leitor em relação às questões de gênero presentes na obra e todas as suas particularidades, que contracenam juntas no romance quase de maneira teatral. 2.2 “Entre vida e obra” Ao nos debruçarmos sobre a ficção, os estudos críticos e as biografias da escritora Jean Rhys, é muito comum nos depararmos com o debate polêmico de sua autoficção. Toda a crítica literária que se preocupa em analisar de forma profunda suas obras e personagens tem a complexa tarefa de mover-se na relação ambígua entre autoria e ficção. Isso acontece em virtude da recorrência com que os acontecimentos e elementos da vida real de Jean Rhys aparecem em sua obra, seja em personagens com a mesma origem caribenha da autora, como é o caso de Antoinette de Wide Sargasso Sea, ou até mesmo com o sentimento de abandono e 30 desespero que acompanha personagens como Julia Martin, de After Leaving Mr. Mackenzie. A autobiografia ocupa um dos eixos centrais do debate de questões que Jean Rhys também traz em sua obra, como a subordinação feminina, a loucura e a questão racial, uma vez que todas essas questões teriam acompanhado a autora, segundo relatos biográficos, desde muito antes de ela iniciar o seu processo criativo de escrita e consolidar o seu estilo literário. De todo modo, vale ressaltar que a autora estava trabalhando em uma autobiografia ao falecer, que fora publicada postumamente, intitulada Smile, Please: An Unfinished Autobiography (1979). Nela, a primeira parte do livro introduz os anos mais jovens da autora, bem como sua infância na Dominica, enquanto a segunda parte se encarrega de relatar aspectos de sua vida adulta. Os estudos de Thomas F. Staley (1979), Jean Rhys A Critical Study, e de Elaine Savory (1999), Cambridge Studies in African and Caribbean Literature – Jean Rhys, dialogam com as questões a serem aprofundadas neste trabalho, além de terem extrema relevância no âmbito da relação entre autobiografia e ficção em Jean Rhys. O trabalho de Thomas F. Staley traz, como objeto principal, a biografia de Rhys, sua origem, bem como as principais questões pessoais da autora, relacionando os fatos de sua vida a elementos de sua obra, datando e situando o leitor em uma linha do tempo, enquanto o trabalho de Elaine Savory, por sua vez, preocupa-se, de forma integral, apenas com a obra, perpassando a questão autobiográfica como um aspecto associado à sua escrita, à sua forma de fazer ficção. Gostaria de percorrê-los antes de avançar à leitura da obra, com o auxílio de considerações de François Dosse (2015), em O Desafio Biográfico: Escrever uma Vida. O trabalho de Staley se anuncia como o primeiro a trazer um estudo completo da autora já em suas páginas iniciais. Trata-se de um estudo crítico organizado em sete capítulos. Em seu primeiro capítulo, o autor conta a história de Jean Rhys, apresentando-a ao leitor desde suas origens, enquanto, nos demais capítulos, apresenta-nos com profundidade toda a crítica e a análise acerca da produção literária da autora. Cada capítulo é nomeado com uma obra de Rhys e destina-se inteiramente à abordagem de suas principais temáticas. Dessa forma, há um prefácio, em que o autor situa seu lugar de análise e todos os elementos que ele julga como essenciais para a compreensão da escrita e das temáticas de Jean Rhys; um primeiro capítulo, Art and Experience, voltado à biografia da autora; e, seguindo a ordem cronológica de suas publicações, há um capítulo encarregado de abordar as seguintes obras: The Left Bank, Quartet, After Leaving Mr. Mackenzie & Voyage in the Dark, Good Morning, Midnight, Wide Sargasso Sea; e um último capítulo intitulado The Later Writing, destinado à repercussão, ao reconhecimento de Jean Rhys após a publicação de Wide Sargasso Sea. 31 Segundo as palavras de Staley, seu objetivo está em traçar as primeiras linhas de um diálogo crítico sem se preocupar em listar contribuições de Jean Rhys para a ficção moderna, muito menos desenvolver uma tese com abordagem específica. Traz, logo em seu primeiro capítulo, a biografia de Jean Rhys com a justificativa de que seria necessário saber sobre sua vida e suas influências para que o leitor fosse capaz de fazer uma leitura, na perspectiva do autor, mais completa das obras da autora e de suas realizações. Para a concretização do estudo crítico de Staley, a própria Jean Rhys foi entrevistada duas vezes. No primeiro capítulo, o autor retoma sua intenção de trazer, logo de início, a biografia de Jean Rhys em um primeiro plano, “ao invés de tratá-la como pano de fundo para seu trabalho” (STALEY, 1979, p. 1, tradução nossa), e ainda enfatiza “a importância de entendermos o mundo que Rhys viveu para apreciarmos mais plenamente o mundo que ela estaria prestes a criar em sua obra” (p. 1). Após os primeiros esclarecimentos, somos convidados, então, a imergir no mundo de Jean Rhys retratado por Staley. Inicialmente, não nos deparamos apenas com os fatos iniciais da vida da autora, mas somos também convidados a visualizar, de maneira topográfica, a paisagem que seria cenário e palco para suas obras, a Dominica. Tomamos conhecimento de sua história de colonização, uma história que é classificada como “sangrenta” pelas palavras do autor, como podemos observar no excerto a seguir: Dominica fica no extremo sul das Ilhas de Sotavento das Pequenas Antilhas, ao sul de Guadalupe e ao norte da Martinica, logo acima do paralelo I 5 °. O primeiro europeu a pisar na ilha e a registrar foi Colombo em 1493. É uma ilha com uma história atormentada e sangrenta; os caribenhos nativos lutaram contra os invasores europeus por vários séculos, mas, uma vez que os franceses se firmaram, eles lutaram para frente e para trás com os ingleses por mais de meio século, até que os ingleses finalmente prevaleceram em 18-15. Durante o século XIX, Dominica passou de uma sociedade escrava a uma colonial, mas a língua dominante da ilha permaneceu o dialeto francês. Uma ilha de vegetação exuberante e beleza natural dramática, é coroada por picos vulcânicos entre os quais são esculpidos desfiladeiros profundos onde os rios correm através da densa floresta, passando por praias de coral em um mar azul-turquesa límpido. Imagens desta ilha primitiva e bela aparecem fugazmente nos romances de Rhys e finalmente dominam em Wide Sargasso Sea. (STALEY, 1979, p. 2, tradução nossa)16 16 No original: Dominica lies southernmost of the leeward islands of the Lesser Antilles, south of Guadeloupe and north of Martinique,just above the I 5° parallel. The first European to have set foot on the island and recorded it was Columbus in I493· It is an island with a tormented and bloody history; the native Caribs fought off the European invaders for several centuries, but once the French got a foothold they battled back and forth with the English for over half a century, until the English finally prevailed by 1815. During the nineteenth century Dominica passed from a slave to a colonial society, but the dominant language of the island remained a French patois. An 32 A família de Rhys é, curiosamente, dissecada neste primeiro capítulo, como se fosse intenção do próprio autor fazer com que relacionássemos, de imediato, sua árvore familiar com a de sua personagem Antoinette Cosway. Rhys seria a quarta filha de cinco irmãos, filhos de Rhys Williams e Minna Lockhart. Segundo Staley, o pai de Jean era galês e havia estudado para ser médico em Londres e, de acordo com o autor, teria vindo à Dominica para adquirir prática. Minna, por outro lado, é unicamente associada à sua linhagem crioula; o termo a third- generation Dominican Creole (p. 2) é utilizado pelo autor para ilustrar a ascendência dela, estrategicamente indicada para que Staley pudesse enfatizar o quanto a herança crioula de Jean Rhys seria de extrema importância e constantemente revisitada na obra da autora. Jean é retratada como uma criança que nunca tivera uma relação próxima com os irmãos, mas que estaria sempre envolvida em atividades familiares. Sobre a juventude de Rhys, o autor nos informa que Jean demonstrara aspirações de se tornar freira, tendo até frequentado uma escola de convento de freiras católicas e se tornado muito próxima da madre superior. Nesse momento, há a menção às principais influências para suas inclinações de se tornar freira, sua preparação religiosa no convento e seu conhecimento da cultura “Negro", que Jean supostamente teria adquirido por meio de seus empregados. Ademais, Staley ainda pontua que, durante sua juventude, Jean teria sido capaz de narrar uma convivência sem conflitos entre ambas as culturas, a católica e a cultura Negro. Porém seus pais não se mostravam muito entusiastas com sua forte devoção religiosa, chegando até a desmotivá-la em alguns momentos. A forma fechada e introspectiva com que Jean Rhys é retratada pelo autor cede espaço também à abordagem de outros conflitos pessoais da autora que, posteriormente, ilustrariam suas obras, como sua insegurança e sua passividade, que, de acordo com Staley, seriam frutos dos medos de sua adolescência: Seus encontros posteriores com a exploração na Inglaterra e na Europa, combinados com o papel doméstico e passivo esperado das mulheres brancas na Dominica, foram fontes de tensão constante dentro dela. Embora eventualmente se lembrasse de seus anos na ilha com alguma nostalgia, ela reconheceria, no entanto, que, em ambos os mundos, a agressão masculina era um denominador comum, por mais diferente que fosse a forma que assumisse. Isso não quer dizer que suas ansiedades foram criadas apenas por um conflito homem-mulher, mas sim que ela reconheceu muito cedo o papel conflitante e island of lush vegetation and dramatic natural beauty, it is topped by volcanic peaks between which are carved deep gorges where rivers run through the dense forest past coral beaches into a limpid turquoise sea. Images of this primitive and beautiful island appear fleetingly in Rhys's novels and finally dominate in Wide Sargasso Sea. 33 instável das mulheres e quão pouco sua natureza era compreendida pelos homens. Um dia, em Paris, na década de 1920, ela foi ao Shakespeare and Co. de Sylvia Beach e encontrou um livro sobre psicanálise, mas para ela o homem que o escreveu estava certamente errado. Ela esperava então que algum dia um homem escrevesse sobre as mulheres de forma justa - uma esperança não realizada que lhe deu outro impulso para escrever. (STALEY, 1979, p. 4, tradução nossa)17 Apesar de Staley mencionar e dar espaço aos conflitos relacionados às questões de gênero, que também têm espaço relevante na obra da autora, o autor aborda essa questão de forma muito rasa em seu primeiro capítulo, como é possível percebermos a partir do trecho acima, não mencionando nada a respeito do abuso sexual que Jean Rhys teria sofrido durante a juventude, por volta de seus 14 anos. Os detalhes deste episódio podem ser encontrados em um caderno de anotações que Rhys escreveu à mão, documento que contém aproximadamente 112 páginas e foi escrito durante o processo de elaboração de Good Morning, Midnight, em 1938. As partes referentes ao abuso sexual estão entre as mais confusas deste documento, uma vez que a autora teria feito muitas anotações nas margens superior e inferior e até mesmo escrito palavras por cima, ao lado e abaixo de outras palavras. Segundo Jean Rhys, tal ocorrido teria permanecido em total esquecimento por quase 30 anos em sua mente; em função da relação complicada que a autora tinha com sua mãe, a rigidez de sua educação católica e o sentimento de culpa, Rhys teria se tornado, segundo ela, muito boa em esquecer as coisas.18 Ao mencionar que “isso não quer dizer que suas ansiedades foram criadas apenas por um conflito homem-mulher, mas sim que ela reconheceu muito cedo o papel conflitante e instável das mulheres e quão pouco sua natureza era compreendida pelos homens”19 (p. 4), Staley nos apresenta, mais uma vez, de forma sutil, os conflitos entre Jean Rhys e sua mãe, como também o recorrente sentimento de punição e culpa que a atormentava, possivelmente em detrimento do episódio traumático envolvendo seu abuso, uma vez que seu relacionamento 17 No original: Her later encounters with exploitation in England and Europe, combined with the domestic and passive role expected of white women in Dominica, were sources of constant tension within her. Although she would eventually recall her years on the island with some nostalgia, she would nevertheless recognize that in both worlds masculine aggression was a common denominator, however different the form it would take. This is not to say that her anxieties were created solely by a male-female conflict, but rather that she recognized very early the conflicting and unstable role of women and how little their natures were understood by men. One day in Paris in the 1920s she went into Sylvia Beach's Shakespeare and Co. and found a book on psychoanalysis, but to her the man who wrote it was surely wrong. She hoped then that someday a man would write about women fairly-an unfulfilled hope which provided her with another impulse to write. 18 Em Virginia Woolf, Jean Rhys, and the Aesthetics of Trauma (2007), Patricia Moran descreve, de forma detalhada, os efeitos psicológicos do trauma sofrido por Jean Rhys em decorrência do ocorrido durante sua juventude; as informações mencionadas neste parágrafo também foram extraídas da obra de Moran. 19 No original: This is not to say that her anxieties were created solely by a male-female conflict, but rather that she recognized very early the conflicting and unstable role of women and how little their natures were understood by men. 34 distante e complicado com a mãe, somado aos episódios de punição, em que sua mãe batia nela, e à sensação de exploração e dominação masculina teriam gerado um sentimento de ansiedade muito além daquilo que ela pudesse compreender. Logo, podemos entender a forma isolada e distante como Rhys é retratada por Staley como uma estratégia de escape e fuga. Além disso, Jean Rhys acreditava que um dos motivos pelos quais sua mãe não a queria da mesma forma que a seus irmãos era o fato de ela ser aquela com a pele mais clara dentre os filhos. De acordo com Staley, a juventude na Dominica teria formado “a inquietação de sua identidade”20 (p. 4) de Jean Rhys, uma vez que todos os conflitos que já se estabeleciam diante da autora ainda em sua infância e adolescência seriam revisitados no futuro ao longo de sua carreira literária. Em relação ao primeiro contato de Rhys com a escrita, o autor menciona que a autora teria começado a escrever poesia ainda na adolescência. Staley destaca uma poética sensível e ainda aponta as palavras “mar”, “dormir” e “silêncio” como as favoritas da jovem autora, apontando para elas como reflexos de uma fase marcada por um tormento cuja fonte ela não conseguiria encontrar. Anos mais tarde, após colocar em seu diário os traumas consequentes do abuso que sofrera, saberíamos que Rhys, na verdade, havia sentenciado tais recordações ao esquecimento. Sobre os impactos e fatos acerca da mudança de Rhys para a Inglaterra, o autor data que ela teria se mudado em 1910, aos 16 anos de idade, e que sua ficção estaria para revelar “os sentimentos ambíguos que ela carregava de sua infância e adolescência” (p. 5), que seriam também “moldados pelas dificuldades que ela experienciou na Inglaterra”. Ao instalar-se em terras Inglesas, mais precisamente em Cambridge, na casa de sua tia Clarice Rhys Williams, Staley menciona que Rhys teria demonstrado certa empatia por aqueles que eram considerados oprimidos, utilizando-se do termo underdog (p. 5) para tal categorização. Após abandonar a escola Perse School, na qual sua tia a teria matriculado, Rhys passou a frequentar a Royal Academy of Dramatic Art (RADA) em Londres, onde estudou dança e atuação. O estudo crítico centraliza este momento como uma mudança enorme também na vida familiar de Rhys, pois seu pai havia falecido pouco tempo depois de ela se mudar para a Inglaterra, e sua mãe se encontrava muito doente. Além disso, sua mãe se opusera à decisão da filha de abandonar os estudos para se tornar artista, e as condições financeiras da família estavam precárias após a morte de seu pai. Todavia, o autor ainda chama nossa atenção para o fato de este ser o ponto em que Rhys passa a observar as outras mulheres ao seu redor, aquelas que se encontravam em situações tão ruins quanto a sua, mulheres sem qualquer tipo de treinamento ou condições financeiras para suportar as hostilidades e os perigos de uma sociedade dominada pela força de 20 No original: “restlessness of her identity”. 35 exploração masculina, além de serem imigrantes e tão exiladas quanto ela própria. A partir daí, a carreira artística de Jean Rhys tem seu pontapé inicial. Ela começa a trabalhar em trupes itinerantes por cidades pequenas por todo Reino Unido. O autor nos traz uma breve descrição física da jovem Rhys nesse momento de sua vida: Como uma jovem atraente com belos olhos verdes, um rosto indefinidamente exótico, uma figura delicada e bem proporcionada, ela tinha feições atraentes para o palco. Aqueles que a conheceram nos anos 20 e 30 a descreveram como impressionante. Se sua voz fosse mais forte e sua personalidade mais aberta, ela poderia ter tido uma carreira de sucesso como atriz. (STALEY, 1979, p. 6, tradução nossa)21 Apesar do glamour do meio artístico, isso não era o bastante para colocar em segundo plano toda a falta de respaldo financeiro da autora, que também descreve lugares com uma infraestrutura barata em que viveu durante esses anos. Após pouco tempo exercendo suas atividades artísticas, a vulnerabilidade financeira acabou por arruinar todas as expectativas de Jean Rhys, principalmente o fato de, segundo o autor, Jean não ser uma artista com presença de palco suficiente para encarar papeis mais dramáticos provavelmente; pelo contrário, Rhys teria sido capaz de esconder-se muito bem entre o coro. Ademais, Rhys, descrita como uma mulher inocente e sem muita experiência, assim como as outras garotas em sua situação, é apresentada como vítima fácil para homens ricos e influentes que frequentavam os espetáculos. Observa- se, então, a relação direta entre criação e dependência financeira nesse momento em que o autor nos apresenta as consequências de uma criação em um ambiente protegido e sem treinamento adequado para enfrentar as hostilidades de uma sociedade europeia, isso somado à ambiguidade que a figura masculina tinha para Jean Rhys, que, até então, para a autora, era relacionada a uma imagem que, supostamente, não deveria se colocar diante dela como uma ameaça ou de forma que a amedrontasse, além de prover financeiramente, de acordo com as expectativas sociais estabelecidas previamente para homens e mulheres do contexto social em específico em que Rhys nasceu. Porém, também há menção à forma com que os homens são retratados em sua obra, em função das circunstâncias experienciadas por ela durante a infância: Podemos ver claramente uma fonte da atitude amarga para com os homens descrita em seus romances, refletindo sobre essas circunstâncias com as quais ela foi confrontada tão cedo em sua vida e o contraste severo que elas devem 21 No original: As an attractive young woman with beautiful green eyes, an indefinably exotic face, a delicate and well-proportioned figure, she had the appealing features for the stage. Those who knew her in the twenties and thirties have described her as striking. Had her voice been stronger and her personality more open, she might have had a successful career as an actress. 36 ter representado para uma jovem em um ambiente tão protegido. Suas imagens infantis da figura masculina como protetora não eram necessariamente estáveis, como ela registra em outros lugares, mas por mais ambígua que fosse a figura masculina em sua infância, sua primeira experiência na Inglaterra comprovou as qualidades malévolas. Essas experiências também reforçaram sua dependência feminina e dominação masculina como um fato da vida. A dominação masculina está intimamente ligada à dependência financeira; portanto, o dinheiro se torna um tema de grande importância e tem grande significado psicológico e social na obra de Rhys. (STALEY, 1979, p. 7, tradução nossa)22 Assim como mencionado no excerto acima, o dinheiro aparece como um aspecto recorrente em suas obras e está diretamente relacionado à questão da exploração de suas personagens femininas, mas não só em âmbitos de gênero, pois esta temática também está estritamente atrelada às questões raciais e, portanto, coloniais, que Jean Rhys nos propõe em sua obra. Quando vemos um Mr. Rochester que se preserva de forma anônima e aliena sua esposa, confinando-a e também tomando posse de seus bens, percebemos que o único recurso capaz de atribuir um destino diferente às personagens de Rhys seria o sucesso financeiro, se não fosse pelo sentimento constante de autocomplacência de suas personagens que faz com que elas se sujeitem à condição de eternas vítimas da má conduta masculina. Todas as suas personagens sabem, assim como a própria Jean Rhys o sabia, que as figuras masculinas com as quais elas estavam se relacionando não lhe conferiam uma condição semelhante para que a relação não se desenvolvesse no âmbito exploratório, mas o desespero, o sentimento de solidão e isolamento como sintomas do exílio fazem com que “o pertencer” pareça a única forma de preencher as lacunas da trajetória traumática de suas personagens. Ao nos debruçarmos sobre o estudo crítico de Staley (1979), é como se fôssemos induzidos, de forma silenciosa, a relacionar toda a trajetória de Jean Rhys com a sua obra, como se o drama e os traumas de sua vida estivessem sendo retratados de forma fiel e direta por meio de suas personagens, sem considerar que algumas informações foram/podem ter sido omitidas pela própria Rhys, que já confessou ela mesma ter acessado memórias esquecidas muito tempo depois da publicação de algumas de suas principais obras. Sendo assim, Staley parece 22 No original: We can see fairly clearly one source of the bitter attitude toward men described in her novels by reflecting on these circumstances with which she was confronted so early in her life and the harsh contrast they must have presented to a young girl from such a protected environment. Her childhood images of the male figure as protector were not necessarily stable, as she records elsewhere, but however ambiguous the male figure was in her childhood, her early experience in England substantiated the malevolent qualities. These experiences also reinforced for her female dependence and male dominance as a fact of life. Male domination is intricately tied with financial dependence; hence money becomes a theme of major importance and has great psychological as well as social significance in Rhys's work. 37 desconsiderar uma das chaves mais importantes para a leitura das obras de Jean Rhys, principalmente quando nos deparamos com Wide Sargasso Sea, que seria o ato performático de sua escrita e o jogo de encenação em que se veem suas personagens. Outro fator na escrita de Staley que pode induzir o leitor a tomar a biografia de Jean Rhys sempre como fonte de criação de suas personagens é a passagem em que o autor menciona que Rhys, após algumas desilusões amorosas, voltou a escrever seus sentimentos em um caderno de anotações; que esta, inclusive, seria a primeira vez, desde a sua infância, em que teria voltado a escrever; e que tais memórias serviram para a composição de seu romance favorito, Voyage in the Dark. Os acontecimentos na vida de Jean Rhys são contados em ordem cronológica e, paralelamente, associados à sua produção escrita, como se cada evento e cada data de sua jornada pela Europa estivesse a ser desenvolvido e dissecado em uma obra específica que ela estava destinada a escrever. Tal fato acontece de forma ainda mais recorrente no estudo crítico em questão, principalmente, quando o autor menciona os eventos que se sucederam durante a vida adulta de Rhys, quando ela passa a se relacionar com outros homens até se apaixonar e passar a levar uma vida errante ao lado de seu primeiro esposo, Jean Lenglet. Ao mencionar sua peregrinação pela Europa, Staley também pontua o quanto o sentimento de solidão, de não pertencimento de Rhys, tomou proporções ainda maiores, levando a autora, inclusive, a desenvolver uma relação nada saudável com o álcool. Apesar disso, referências externas pontuam que, antes mesmo de Rhys se casar ou abandonar por completo sua vida como artista, ela já teria problemas com o alcoolismo; em função de sua solidão na Inglaterra e suas condições financeiras muito ruins, Jean Rhys teria recorrido à prostituição, tendo como consequência drástica um aborto que teria sido fruto de uma relação com um homem mais velho que a sustentava, Lancelot Hugh Grey Smith, financiador aristocrático e o primeiro homem de que Rhys passou a depender financeiramente. Curiosamente, observamos aí mais um fato que não aparece no texto de Staley., porque o abuso e o aborto caracterizam capítulos relevantes para a elaboração de uma figura masculina ambígua para a autora e também ocupam espaços relevantes na obra de Jean Rhys. Se a intenção do estudo crítico seria apresentar a biografia de Rhys para que o leitor pudesse entender a dimensão de suas obras, pode ser um tanto atípico essas informações terem sido omitidas, ainda mais se considerarmos o fato de que a prostituição e o alcoolismo são elementos que também ocupam os espaços em sua literatura. O primeiro capítulo do estudo só menciona a gravidez de Jean Rhys quando ela já está casada com Lenglet e engravida de seu primeiro filho, Owen, que morreu três semanas após o nascimento em 1919, por causas não 38 mencionadas. Rhys engravida novamente três anos após a perda de seu primeiro filho, em 1921, dando à luz a sua filha Maryvonne. O início da carreira literária de Jean Rhys acontece somente no começo da década de 1920, quando ela finalmente é apresentada a Ford Madox Ford, seu futuro mentor. Sobre Madox, Staley afirma: Ford não apenas trabalhou com ela em seus próprios escritos, como também a apresentou à literatura moderna, deu-lhe listas de leitura e cópias da crítica transatlântica e de outras revistas que continham os melhores escritos contemporâneos.