TriceVersa, Assis, v.4, n.1, jul.-dez.2010 28 EÇA DE QUEIRÓS E A IMPRENSA CARIOCA: O “SUPLEMENTO LITERÁRIO” DA GAZETA DE NOTÍCIAS (1892) Juliana Cristina Bonilha Rosane Gazolla Alves Feitosa Universidade Estadual Paulista — CAPES RESUMO O “Suplemento Literário” consiste numa folha especial de literatura dirigida por Eça de Queirós e aparecia num dos mais importantes jornais cariocas do final do século XIX- a Gazeta de Notícias. Seu objetivo era audacioso: oferecer aos brasileiros um panorama literário e cultural da Europa para o Brasil. Apesar de muitos pesquisadores já se terem debruçado sobre os escritos queirosianos, no Brasil essa é a primeira pesquisa que se dedicou a reunir todas as informações a seu respeito e a realizar um processo de restauração dos textos através de sua digitalização e digitação. Apresentaremos, portanto, alguns dados interessantes descobertos através da pesquisa realizada com este corpus, a fim de que se possa ampliar a divulgação deste trabalho de Eça de Queirós como jornalista. ABSTRACT The “Suplemento Literário” is a special supplement of Literature directed by Eça de Queirós and it was published in one of the most important newspaper in Rio the Janeiro at the last decade of the nineteenth century, the Gazeta de Notícias. Its objective was audacious: to provide an overview of European Literature and culture to Brazil. Although some researchers have already been studied the Eça de Queirós writings and books, in Brazil this is the first study that was dedicated to collect all the information about the “Suplemento” and to accomplish a detailed process of restoration of its texts through its scanning and digitizing. Therefore we will present some interesting facts discovered through the observation and analysis of this corpus, in order to make known the writer Eça de Queirós in the journalist function. PALAVRAS-CHAVE “Suplemento Literário”; século XIX; Eça de Queirós; Gazeta de Notícias. KEYWORDS “Suplemento Literário”; the Nineteenth Century; Eca de Queirós, Gazeta de Notícias. Introdução Atualmente, muitos pesquisadores de diversas áreas têm-se voltado ao estudo de importantes periódicos publicados nos séculos XIX e XX. Isto se justifica pela enorme diversidade de assuntos abordados nas páginas destes veículos jornalísticos que por TRICEVERSA Revista do Centro Ítalo-Luso-Brasileiro de Estudos Linguísticos e Culturais ISSN 1981 8432 www.assis.unesp.br/cilbelc TriceVersa, Assis, v.4, n.1, jul.-dez.2010 CILBELC TriceVersa, Assis, v.4, n.1, jul.-dez.2010 29 vezes acrescentam ou mesmo confirmam informações que se encontram em suas páginas. Os estudiosos da área de história, por exemplo, encontram nestes periódicos informações sobre fatos marcantes, personalidades em evidência e dados que auxiliam na formação de parâmetros cronológicos, entre outros. No caso dos pesquisadores da área de Letras, o resgate dos textos impressos nessas páginas por vezes propicia a recuperação de dados muito importantes para o entendimento da formação da Literatura Brasileira, da história de seus principais literatos e, sobretudo, de textos literários escritos por estas grandes personalidades que permanecem desconhecidas até o momento em que se tornam objeto de estudo e pesquisa. Este é o caso do “Suplemento Literário” da Gazeta de Notícias, que foi, durante os seis primeiros meses de 1892, um encarte de cultura e literatura publicado num dos mais importantes jornais cariocas do final do século XIX e que tinha como diretor o escritor português José Maria Eça de Queirós. O estudo deste periódico iniciou-se da observação de que, no Brasil, apenas Elza Assumpção Miné, profunda pesquisadora do escritor José Maria Eça de Queirós, havia feito menção a este periódico. A estudiosa reúne algumas informações sobre a obra jornalística do autor em sua obra, intitulada Textos de Imprensa IV, na qual ainda recupera os textos queirosianos. Partindo da constatação que este “Suplemento” não só trazia em seu interior textos de Eça, mas também era por ele dirigido e que todo o seu conteúdo se voltava à propagação de textos da área de Literatura, decidimos explorar detalhadamente este trabalho do escritor como jornalista, ou melhor, como diretor de um jornal. 1. O “Suplemento Literário” A princípio, tínhamos a informação de que constavam deste “Suplemento” alguns textos de Eça de Queirós. Conforme fomos adentrando seu conteúdo, pudemos compreender que, embora o autor se dedicasse à escritura dos editoriais, que levavam sua assinatura, seu papel enquanto diretor também revelava um considerável conhecimento da área jornalística. No primeiro editorial, o escritor se remete ao tipo TriceVersa, Assis, v.4, n.1, jul.-dez.2010 30 de notícias que viriam a ser publicadas nos números posteriores, de modo bastante irônico e usando metáforas: [O “Suplemento”] É a própria representação condensada em meia folha de jornal, com uma seleção cuidadosa dos seus episódios mais atraentes, dos seus personagens mais característicos, das suas decorações mais vistosas e ricas. Neste “Suplemento” vai o resumo de uma civilização. E toda ela deste modo se goza no que tem de mais belo ou de mais fino, sem a desconsolação de perpetuamente se surpreender a rude fealdade do seu avesso. Se a Europa, como disse não me lembro que afetado poeta alemão, é no mundo o “Jardim da Inteligência” — nós remetemos para aí, Brasil ditoso, um ramalhete das suas flores melhores, de modo que tu te possas regalar com o encanto das cores e a harmonia dos perfumes, sem teres de descer ao jardim e sofrer-lhe a umidade, os espinhos, as lagartas e os estrumes. (“Suplemento Literário”, n.1, p.1) Neste trecho retirado da parte final do primeiro editorial do “Suplemento Literário”, podemos notar que o autor ironiza a imagem que os estrangeiros possuem da Europa e dialoga com seu leitor de modo a dizer que a realidade na Europa não é tão bela quanto se pode pensar; porém, o leitor não precisa se preocupar em viajar até o Velho Mundo para saber todos os acontecimentos bons ou ruins naquele continente, porque o “Suplemento” “seleciona cuidadosamente seus episódios mais atraentes” sem que se tenha de “sofrer a umidade, os espinhos, as lagartas e os estrumes”, isto é, sem que se tenha de conhecer a cruel realidade europeia. O trecho revela visão pessimista em relação à Europa, mas também deixa transparecer a tarefa de escolha e seleção das notícias que estavam por ser publicadas. Após a leitura de todos os textos, não só queirosianos, mas também de autores como Jaime Batalha Reis, Domício da Gama e até mesmo do diretor da Gazeta de Notícias, Ferreira de Araújo, pôde-se concluir que o “Suplemento Literário” era um encarte autônomo composto de informações gerais sobre a cultura, a Literatura, a música, as personalidades, a moda, as peças teatrais em cartaz, isto é, um encarte literário no sentido amplo da palavra, ou seja, voltado a resumir todos os aspectos culturais relativos à Europa. A partir desta constatação, tentamos entender algumas questões relativas ao contexto de composição, ou seja, ao entendimento do momento histórico, social e cultural por que passava a Europa no final do século XIX e, ainda, passamos a tentar TriceVersa, Assis, v.4, n.1, jul.-dez.2010 31 entender como era a realidade brasileira também neste período, isto é, o contexto de recepção destas notícias oriundas da Europa. 2. A sociedade europeia e a brasileira no final do século XIX: a origem do “Suplemento Literário” Na época de publicação do “Suplemento Literário” (última década do século XIX), Brasil e Europa passavam obviamente por processos de desenvolvimento social, histórico, político e cultural bastante diferentes: de um lado havia uma Europa desenvolvida e modernizada em decorrência de um período de transformações tecnológicas denominado Revolução Científico-Tecnológica ou Segunda Revolução Industrial que havia começado a ocorrer em torno do ano de 1870; de outro, o Brasil estava num momento de transição política, iniciado com a mudança do regime governamental através da Proclamação da República, e num momento de importantes mudanças sociais como o surgimento de uma classe burguesa com voraz interesse nas novidades europeias. Na Europa, podemos dizer que o século XIX foi um período de intensas transformações no modo de vida dos europeus, decorrentes de um longo período de expansão da economia industrial europeia, vivenciado no século XVIII com a Revolução Industrial, iniciada em torno de 1780. Estas duas importantes Revoluções foram longos períodos de intensas mudanças que, paulatinamente, acrescentaram novos sentidos e novos valores a todos os aspectos culturais como a vida social, política e econômica, entre outros. No curso do desdobramento da Revolução Industrial, inúmeras foram as descobertas, as inovações e os aprimoramentos. Desses, merecem destaque a criação dos veículos automotores, dos transatlânticos, do telégrafo, do telefone, a iluminação elétrica, de vários eletrodomésticos, da fotografia, do cinema, dos arranha-céus, dos elevadores, das escadas rolantes, dos metrôs, das montanhas-russas, da anestesia, do estetoscópio, do medidor de pressão arterial, dos vasos sanitários com descarga automática e do papel higiênico. Criaram-se, ainda, as escovas de dente, as comidas enlatadas, os refrigerantes, o fogão a gás, as cervejas engarrafadas, a aspirina e a TriceVersa, Assis, v.4, n.1, jul.-dez.2010 32 caixa registradora, entre outros. A última década do século XIX engloba os anos em que mais ocorrem descobertas nos países mais desenvolvidos da Europa, como a Inglaterra, a França e a Alemanha. Considerando-se que os reflexos das transformações ocorridas com o advento da Revolução Industrial atingiram a vida dos europeus por completo até mesmo no final do século, na literatura e nas artes não poderia ser diferente. Por conta de todas as ideias de modernidade, de transformação da realidade, isto é, do modo de vida naquela época, nas obras literárias começa a haver uma mudança de tendência, notando-se um afastamento do âmbito emotivo e um favorecimento das ideias relativas à representação da realidade, usando dessa forma a razão como ponto de partida. Assim, o Romantismo, tendência literária preconizada durante o século anterior pelos escritores europeus, é lentamente esquecido enquanto começa a surgir uma nova fase para a literatura que leva em consideração todo o processo de modernização por que passava a Europa. Essa nova fase — o Realismo — gradativamente invade os romances aliada a uma outra tendência, atrelada aos avanços científicos, o Naturalismo. Essas duas tendências farão parte da maior parte da produção literária deste momento, principalmente nos romances franceses de Emile Zola e dos ingleses de Charles Dickens e Thomas Hardy. Na Alemanha, o Realismo era apreciado nas obras de Thomas Mann e do norueguês Henrique Ibsen. Na Rússia, o realismo mostra-se presente nas obras de Ivan Turgueniev, Feodor Dostoiévski e Leon Tolstoi. O espaço dedicado ao Romantismo ficava restrito a poesias e pinturas. Rudyard Kipling e Jean François Millet são, respectivamente, os ícones de cada uma destas áreas no final do século. O mesmo acontece nas outras manifestações artísticas como pintura, escultura e até mesmo na música, que tem em Richard Wagner sua mais notável representação realista. É portanto inegável que as mudanças advindas com a Revolução Científico- Tecnológica foram percebidas em todos os meios artísticos. Com o surgimento das indústrias e das inovações tecnológicas e científicas, as artes, assim como todos os outros setores, — a exemplo a economia e a política, — iniciaram um processo de TriceVersa, Assis, v.4, n.1, jul.-dez.2010 33 adaptação ao novo contexto sócio-cultural e modificaram-se drasticamente ao ritmo das inovações técnico-científicas. No âmbito da estrutura social europeia, neste momento ocorre uma grande transformação que tem como origem o surgimento das grandes indústrias: o surgimento de duas novas classes sociais — o proletariado, formado pelos trabalhadores assalariados das indústrias e das minas; e a burguesia industrial, formada pelos donos das novas indústrias, donos de minas e por alguns profissionais como banqueiros e advogados. Juntamente com a fixação e consolidação das indústrias e, portanto, da modernização da vida dos europeus, desenha-se gradativamente uma nova sociedade, composta por membros assalariados, — os trabalhadores das indústrias, — e uma classe formada por membros que haviam enriquecido com o lucro gerado pelas indústrias. Esta estrutura se consolida e se fixa em toda a Europa. No que concerne à economia, setor que afeta diretamente a vida da sociedade europeia, também é regida por uma tendência surgida no decorrer das Revoluções Industriais — o capitalismo. A necessidade de gerar e obter cada vez mais lucro faz com que ocorra o crescimento do número de indústrias, fato que propicia a criação de novas oportunidades de trabalho e acelera o processo de urbanização da sociedade. Na última década do século XIX, países como a Alemanha e a Inglaterra encontram-se em ritmo da urbanização acelerado, aumentando o número de cidades e a concentração populacional, pois as cidades passam a oferecer melhores condições de sobrevivência. Assim, pode-se dizer que o final do século XIX na Europa foi um momento de consolidação das mudanças ocorridas durante todo o processo da Revolução Científico- Tecnológica. Já no Brasil, as mudanças advindas da implantação das indústrias, e, portanto, da Revolução Científico-Tecnológica ainda estavam apenas em seu início. É somente a partir da Proclamação da República em 15 de novembro 1889 que podem ser notadas transformações culturais mais intensas. Através dela, inicia-se um processo de instauração de uma política republicana bastante conturbado. Instaura-se no país uma TriceVersa, Assis, v.4, n.1, jul.-dez.2010 34 grave crise financeira. Socialmente, a abolição da escravatura em 1888 afetava principalmente o Rio de Janeiro, a capital do país na época, pois muitos dos ex- escravos procuraram ali encontrar um meio de sobreviver. Por outro lado, a imprensa brasileira desenvolvia-se e consolidava-se. Durante o século XIX surgem inúmeros periódicos no país, dentre eles, a Gazeta de Notícias, que, no último decanato do século, se torna um dos periódicos mais importantes da imprensa brasileira. Eram, pois, visíveis as diferenças no desenvolvimento entre Brasil e Europa, porque cada um se transformava à medida que novos acontecimentos surgiam. Esta disparidade entre o Brasil e a Europa e as origens coloniais do país, que desde o princípio interligavam estas duas estruturas geográficas, faziam com que brasileiros e imigrantes europeus que compunham a sociedade da época valorizassem a cultura, a literatura, a educação e até mesmo outros aspectos como o vestuário, os penteados e os grandes alfaiates, entre outros, que fossem europeus. Dessa forma, todos aqueles que possuíam uma condição econômica privilegiada no país, procuravam manter contato com o que ocorria do outro lado do continente, assinando jornais e revistas europeus, visitando os diversos países, entre outros. Muitos brasileiros preferiam educar seus filhos nas melhores universidades europeias da época para obterem uma completa formação não só educacional mas também cultural. Toda essa admiração dos brasileiros em relação à cultura europeia fez com que surgissem, em dezenas de jornais, seções especificamente voltadas ao relato das principais notícias que ocorriam na Europa. No caso da Gazeta de Notícias, que já mantinha correspondentes estrangeiros no “Velho Mundo”, decide-se ampliar ainda mais o espaço destinado a estas notícias, surgindo desta forma, o “Suplemento Literário”. 3. A carreira do jornalista Eça de Queirós na Gazeta de Notícias Ferreira de Araújo, o diretor da Gazeta de Notícias naquele período, era um homem de ótima reputação e com ideais bastante modernos com relação à imprensa. De acordo com Nelson Werneck Sodré, Araújo era um “homem de iniciativas, tendo TriceVersa, Assis, v.4, n.1, jul.-dez.2010 35 reformado a imprensa do seu tempo, para dar espaço à literatura e às grandes preocupações, com desprezo pelas misérias e mesquinharias da política”. (SODRÉ, 1993, p.257) Na realidade, o diretor da Gazeta entendia que a literatura deveria estar acessível a todos, mas isso não era possível por conta dos altos preços que se deviam pagar pelas obras literárias, que eram, geralmente, impressas em outros países. Perspicaz, decidiu então publicar trechos de romances nas páginas do periódico e optou por preços mais acessíveis que os dos concorrentes, facilitando a simpatia dos leitores pelo jornal e o lucro gerado com a venda dos exemplares da Gazeta. Além de criar esta novidade, Ferreira de Araújo usou uma outra estratégia para alavancar as vendas do periódico: escolhia criteriosamente seus colaboradores, dando preferência aos escritores que possuíam maior renome na sociedade brasileira. Muitos eram os escritores brasileiros que compunham a redação do jornal, dentre eles, o mais famoso da época — Machado de Assis. Todavia, não somente de brasileiros se compunha a Gazeta. Escritores de prestígio de outros países, assim como médicos, advogados e economistas, entre outros, também tinham seu espaço. Dentre os escritores portugueses o mais famoso no Brasil neste momento é José Maria Eça de Queirós Antes de começar a escrever na Gazeta, Eça de Queirós se torna conhecido por suas obras ficcionais e não ficcionais que rapidamente caíram no gosto dos literatos brasileiros. O romancista passa a ser um dos escritores que mais influenciam a Literatura local, devido ao seu estilo e ao seu talento ligado ao bom uso da ironia e da observação crítica. De acordo com o estudioso da história e da literatura brasileira, Brito Broca, Eça “não foi somente uma grande influência na literatura brasileira, foi também moda literária” (1956, p.122), por conta de sua grande popularidade entre os intelectuais da época. A notoriedade do escritor no Brasil é observada por Ferreira de Araújo que o convida a colaborar em uma seção de notícias estrangeiras que aparecia no interior do periódico. Se Eça foi admirado por suas obras literárias pelos intelectuais da época, com textos jornalísticos não poderia ser diferente. Se observarmos a quantidade de tempo TriceVersa, Assis, v.4, n.1, jul.-dez.2010 36 em que o jornalista trabalha na Gazeta, constatamos que não foi um breve período. Eça escreve na Gazeta de Notícias por aproximadamente vinte anos e é possível que tenha sido um dos colaboradores que mais tempo permaneceu neste periódico. Dentre as funções por ele desempenhadas durante estes vinte anos, podem ser citadas as de cronista, correspondente estrangeiro e diretor, ao gerenciar o “Suplemento Literário”. São publicados ainda com sua autoria trechos de romances e trecho das cartas de Fradique Mendes. Sua carreira é, portanto, bastante extensa e variada, iniciando-se com a colaboração como correspondente estrangeiro e pouco a pouco ampliando-se até se tornar diretor do “Suplemento”. Após o término do contrato como diretor deste informativo cultural em 1892, Eça assume mais uma vez o papel de correspondente estrangeiro, permanecendo na Gazeta até 1895. 4. O “Suplemento Literário”: breve descrição Todas estas informações sobre o contexto do “Suplemento Literário” e ainda sobre a carreira de Eça de Queirós na Gazeta de Notícias auxiliam na compreensão do contexto de produção desta folha de cultura e literatura. Através da análise destes dados, pudemos adentrar em seu conteúdo, para observar que tipo de informações nele estavam contidas. Mas antes mesmo que explorássemos o conteúdo, percebemos que tipo de estrutura foi utilizada para distribuir as notícias em suas duas páginas. Primeiramente, notamos que o formato adotado era textual, isto é, o “Suplemento” era composto por muitas crônicas, notícias e notas. Estavam ausentes quaisquer charges, ilustrações, anúncios comerciais, fotos ou qualquer tipo de manifestação não-verbal. Era uma folha totalmente preenchida por informações, provavelmente porque não era muito fácil concentrar todos os acontecimentos europeus que fossem relevantes em apenas duas páginas. Observamos, com isso, que se optava por uma estrutura fechada e bastante séria, destinada à leitura e à informação. TriceVersa, Assis, v.4, n.1, jul.-dez.2010 37 Fig. 1 — Página 1 e 2 (frente e verso) do primeiro número do “Suplemento Literário” da Gazeta de Notícias Com relação à parte gráfica, o “Suplemento” seguia o mesmo padrão em todos os números: compunha-se sempre de 16 colunas,1 isto é, duas páginas com 8 colunas cada, como é possível observar na figura 1. O conteúdo, por sua vez, confirmava essa seriedade observada na visualização da estrutura do “Suplemento”, voltando-se à apresentação das notícias com uma linguagem bastante formal. Para compreender melhor de que tipo de conteúdo se compunha o “Suplemento Literário”, apresentaremos brevemente seu primeiro número, publicado em 18 de janeiro de 1892. 1 Cada uma das divisões verticais, geralmente padronizadas, de uma página (...) ou de uma tabela, separadas por fio de coluna ou linha de branco. (RABAÇA, 1978, p.102) TriceVersa, Assis, v.4, n.1, jul.-dez.2010 38 5. O número inaugural do “Suplemento Literário” Em seus textos jornalísticos, assim como em seus romances, Eça procurava manifestar sua opinião e lançava suas ousadas críticas aos fatos que julgava dignos de questionamento. Como dissemos anteriormente, ao “Suplemento Literário” cabia a tarefa de escrever sobre a realidade europeia, dando um panorama geral sobre moda, livros, cultura, arte e notícias de caráter científico. Como jornalista, então, Eça de Queirós exercitava sua criticidade e ironia nos editoriais ou nas colunas iniciais da folha literária e, no papel de diretor, mantinha todas as seções sob controle através de algumas regras que impunha a seus colaboradores, dentre os quais Jaime Batalha Reis e Domício da Gama, que deveriam, por exemplo, respeitar limites na extensão de seus artigos: Como este artigo já está muito estirado, e o Eça de Queirós quer o “Suplemento” muito variado, não posso desenvolver o caso; mas há uma tal penúria de peças em Paris, dignas de atenção, que é possível que para o próximo número eu me ocupe desta, não pelo que ela vale, mas para tornar saliente a injustiça relativa de Sr. Sarcey, em relação ao autor de Mar. (Gazeta de Notícias, p.3, 18 jan 1892) Esse trecho, que faz menção a essa responsabilidade de respeitar a extensão máxima dos textos, acrescenta o real motivo de o diretor se preocupar com o respeito a esta regra: a necessidade de melhor aproveitar as pequenas duas páginas de notícias do “Suplemento” e, dessa forma, mantê-lo “muito variado”, ou seja, com a maior quantidade de assuntos que se pudesse nele publicar. Além da busca por notícias interessantes para manter o “Suplemento” bastante completo, um outro fato relativo à sua elaboração chama a atenção: Eça procurava convidar escritores de seu círculo pessoal para colaborarem com textos criativos, originais e se mostrava muito responsável em seu papel de diretor: [...] Eu porém tenho agora, não um jornal, mas um suplemento literário para a Gazeta de Notícias (do Rio de Janeiro) de que sou Diretor, ou pelo menos o organizador. A Gazeta é, como V. sabe, um dos primeiros jornais do Brasil. O suplemento comporta, e até necessita, um resumo do movimento de Portugal — literário, científico, social, mundano, etc. Se V. vir que esta necessidade do jornal concorda com seu plano de trabalho — mande dizer e ao mesmo tempo as TriceVersa, Assis, v.4, n.1, jul.-dez.2010 39 condições. Em todo caso V. tem jornal — diga pois que trabalho quer dar e em que período, e por quanto. Com um grande [jornal?] como a Gazeta é necessário tratar assim as coisas praticamente. E eu por mim não tenho [senão que?] esfregar as mãos de alegria, pela sua boa ideia de trabalhar para nós. (BERRINI, v.4, p.943) Todos esses interesses, — “movimento de Portugal, literário, científico, social e mundano”, — descritos por Eça nesta carta a Teixeira de Queirós, de 29 de dezembro de 1891, são trabalhados nas diversas seções e artigos encontrados no “Suplemento” como “A Europa em Resumo”, “Livros Novos”, “Bellas Artes”, “Pessoas e casos”, entre outras. Adentrando as páginas do “Suplemento”, notamos que o primeiro número da publicação compunha-se de onze seções, com temas que abordavam, desde assuntos corriqueiros, a temas científicos e literários. Este número de seções demonstra que a tentativa de manter o informativo “variado” se consolidou e que o objetivo de Eça de Queirós foi alcançado em relação a este primeiro periódico. As seções que compõem este número do “Suplemento” são: “A Europa em Resumo”; “Notas de um Curioso”; “Livros Novos”; “Ciências”, “Belas Artes”, “Histórias Singulares”, “Os Teatros”; “Pessoas e Casos”; “O Dinheiro”; “A elegância e a moda” e “O Brasil na Europa”. Explorando ainda mais profundamente estas seções, podemos perceber que dentro delas, por vezes, existiam mais de um artigo, cada um versando sobre uma notícia diferente. Em “A Europa em Resumo” temos apenas o editorial. Em “Notas de um Curioso”, são publicadas três notas sobre a ciência da época, denominadas no exemplar de “Curiosidades científicas”. A seção “Livros Novos”, traz o texto “Memoires du Général Baron de Marbet”. A seção “Ciências” é formada por três pequenos textos sob o título “A medicina contada aos doentes”. Em “Belas Artes” são seis notas sob o título “A Música na Europa”. No rodapé, “Histórias singulares” traz a crônica “Quatrocentos contos de jóias”, único texto. A seção “Os Teatros” possui apenas um artigo, sem título, mas com um breviário de assuntos a serem abordados (“La Mer; A convenção no teatro e o Sr. Francisque Sarcey; Les Sobards”). Em “Pessoas e Casos”, podemos notar dois textos: “Emilio Castellar” e “As recepções no Vaticano”. Na seção “O Dinheiro” há apenas um texto, sem título. “Elegância e moda” TriceVersa, Assis, v.4, n.1, jul.-dez.2010 40 possui quatro artigos, também sem título. Por fim, aparece a seção “O Brasil na Europa”, que traz três textos. São, portanto, vinte e seis artigos, versando sobre temas como ciências, cultura, economia, atualidades e assuntos variados. Logo abaixo, pode ser observado um quadro em que foram organizadas todas as seções constantes neste exemplar em sua ordem de aparição, bem como o número de artigos e o tema de cada um deles. Todos foram classificados de acordo com os temas acima citados. Seções Artigos Temas A Europa em Resumo 1 Atualidades Notas de um Curioso 3 Ciências Livros Novos 1 Cultura Sciencias 3 Ciências Bellas Artes 3 Cultura Os Theatros 1 Cultura Pessoas e Casos 2 Assuntos variados O Dinheiro 1 Economia A Elegância e a Moda 4 Assuntos variados O Brasil na Europa 3 Atualidades Historias Singulares 1 Cultura Como dissemos anteriormente, Eça de Queirós não só dirigiu mas também escreveu alguns artigos dentro do “Suplemento”, embora deixasse seu estilo registrado apenas na primeira seção de cada exemplar. Neste primeiro volume, o texto de autoria de Eça é “A Europa em Resumo”. Analisando os textos pertencentes a esta seção, notamos que o intuito do artigo inicial do periódico era o de relatar os objetivos do “Suplemento”, semelhantemente ao que se faz em um editorial. Ao ler este “editorial”, o leitor estava diante de um texto que continha informações preciosas sobre o “Suplemento Literário”, as quais dirigiam-se principalmente aos letrados, aos estudiosos e aos desejosos de cultura, daquele tempo. Veja-se a passagem retirada do referido texto: Ora, foi para que o Brasil pudesse realizar ideal tão cômodo, que nós criamos este “Suplemento”. Ele é o compte rendu desta famosa representação que se dá no teatro da Europa, mandado cada semana pelo paquete, para que o enredo e os actores possam ser conhecidos sem o cansaço, a despesa, o tempo consumido em TriceVersa, Assis, v.4, n.1, jul.-dez.2010 41 atravessar as águas e vir ao teatro, que não é confortável, nem bem ventilado, e está cheio de lazaretos. Melhor ainda! É a própria representação condensada em meia folha de jornal, com uma selecção cuidadosa dos seus episódios mais atraentes, dos seus personagens mais característicos, das suas decorações mais vistosas e ricas. Neste “Suplemento” vai o resumo de uma civilização. E toda ela deste modo se goza no que tem de mais belo ou de mais fino, sem a desconsolação de perpetuamente se surpreender a rude fealdade do seu avesso. (Gazeta de Notícias, p.2, 18 jan. 1892) 6. “A Europa em resumo: o nosso ‘Suplemento’” — o texto de Eça de Queirós e a recuperação deste e dos demais textos presentes nos números desta folha literária Uma das peculiaridades de Eça enquanto escritor, como se sabe, é o humor empregado, especialmente, por meio da ironia, em seus romances. Esta marca estilística também está presente na maior parte de seus textos jornalísticos. É válido dizer que dentro do Suplemento seus textos sempre apareciam com linguagem e forma diferentes das esperadas para um texto de imprensa. “A Europa em resumo” revela um autor que justifica o aparecimento do periódico, mas que emprega grandes metáforas e compõe quase um conto literário para esboçar uma Europa que merece (ou não) ser apreciada pelos leitores brasileiros. O primeiro editorial do “Supplemento Litterario” — “A Europa em Resumo: ‘O Nosso Suplemento’” — traz essa marca estilística da ironia com grande evidência, como pode ser notado. Pode ser percebido ainda que a estruturação e o tom usados em sua composição fazem jus ao tipo de escrita de Eça. O tom irônico está presente durante o decorrer de toda a exposição de ideias. Eça escreve sobre o porquê da escrita do “Suplemento”, e quebra a estrutura de um texto puramente informativo, pois opta por alegoria, uma imagem que faz referência à Europa. Como um palco de um teatro, ela é o cenário para que as pessoas nele atuem. Sua argumentação em torno dessa figura torna-se muito interessante quando se percebe estar diante de um jornalista-artista, ou seja, um autor que escreve com efeitos de um escritor de romances. Notamos neste texto o alto padrão da linguagem e de referências culturais quando o autor faz menção a nomes de cidades tanto europeias, como americanas e mesmo africanas (somente conhecidas por aqueles que tinham algum conhecimento TriceVersa, Assis, v.4, n.1, jul.-dez.2010 42 cultural) e, ainda, quando se refere a escritores memoráveis da literatura como Virgílio. É, portanto, de extrema importância que consideremos não só este, mas também os demais textos de Eça publicados no “Suplemento” como parte de um trabalho de verdadeiro valor, seja histórico, seja literário ou mesmo cultural, que o autor deixou à posteridade. São textos que merecem um maior cuidado e um maior conhecimento do público, pois são fontes ricas da marca estilística do escritor, de fontes históricas e de inúmeras espécies de conhecimento e de questões que podem surgir a partir de sua leitura. A pesquisa com o corpus “Suplemento Literário” englobou, além da descrição e análise de seus textos, uma recuperação física, com a finalidade de re-disponibilizar esses textos a todos aos quais possa interessar. Para tanto, preocupamo-nos com a digitalização e a digitação de todos os textos presentes nos seis números do “Suplemento Literário”. Abaixo, inserimos uma pequena amostra do processo de digitalização/digitação efetuada com um pequeno trecho do texto queirosiano “A Europa em Resumo — o Nosso Suplemento”: TriceVersa, Assis, v.4, n.1, jul.-dez.2010 43 Considerações finais O estudo de fontes históricas na área de Literatura vem sendo ampliado nas últimas décadas, desde que se percebeu a relevância de alguns textos escritos por autores consagrados e se reconheceu que a imprensa jornalística brasileira foi exercida por muitos literatos que ajudaram no desenvolvimento da literatura nacional. Não são poucos os textos da Gazeta de Notícias que vêm sendo cada vez mais procurados com o intuito de agregar valores à literatura brasileira. O estudo do “Suplemento Literário” faz com que este atravesse os séculos e esteja novamente disponível para a sua leitura e para o seu entendimento, através das análises que foram realizadas sobre seus textos. A recuperação do conteúdo traz, ainda, a possibilidade de se entrar em contato com a literatura e a cultura europeia do final do século XIX; o conhecimento sobre a atuação de Eça de Queirós, autor canônico, como diretor na Gazeta de Notícias; e, ainda, a facilidade de se observar e analisar as crônicas e artigos presentes neste suplemento, por meio da disponibilização dos textos no formato digital. Corpus: GAZETA de Notícias. Rio de Janeiro, 18 jan.; 08 fev.; 29 fev.; 21 mar.; 26 abr.; 13 jun., 1892 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABDALA JUNIOR, Benjamin (org.). Ecos do Brasil: Eça de Queirós, leituras brasileiras e portuguesas. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2000. BROCA. Brito. A vida literária no Brasil-1900. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1956. ______. Horas de leitura. Rio de Janeiro: MEC, INL, 1957. CARONE, Edgar. A Primeira República (1889-1930): texto e contexto. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1969. FAUSTO, Boris. O Brasil republicano. Rio de Janeiro: Difel, 1977. tomo 3, v.2. FREITAS, Affonso de. A imprensa periódica de São Paulo: os seus primórdios em 1823 TriceVersa, Assis, v.4, n.1, jul.-dez.2010 44 até 1914. São Paulo: Typografia do “Diário Oficial”, 1915. MATOS, A. Campos (org. e coord.). Dicionário de Eça de Queiroz. 2.ed. Lisboa: Caminho, 1993. ______. (org. e coord.). Suplemento ao dicionário de Eça de Queiroz. Lisboa: Caminho, 2000. MENESES, Raimundo de. Dicionário literário brasileiro ilustrado. São Paulo: Saraiva, 1969. 5 v. MINÉ, Elza. Eça de Queirós jornalista. 2. ed. Lisboa: Livros Horizonte, 1986. ______. Páginas flutuantes: Eça de Queirós e o jornalismo no século XIX. Cotia: Ateliê Editorial, 2000. PEREIRA, Lúcia Miguel; CÂMARA REYS (orgs.). Livro do centenário de E.Q. Lisboa/Rio de Janeiro: Edições Dois Mundos, 1945. QUEIRÓS, Eça de. Obra Completa: Organização geral, introdução, fixação dos textos autógrafos e notas introdutórias de Beatriz Berrini. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2000. v. 3-4. (Biblioteca Luso-Brasileira-Série Portuguesa) SANTANA, Maria Helena. Introdução. In: Idem. Textos de imprensa.VI (da Revista de Portugal). Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1995. p.15-48. (Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós: textos de imprensa). SARAIVA, António José; LOPES, Oscar. História da literatura portuguesa. 17. ed. Porto: Porto Editora, 1996. SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966. TENGARRINHA, José. História da imprensa periódica portuguesa. Lisboa: Portugália, 1966.