UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS YAN DOUGLAS ALVES TELES FAMÍLIAS HOMOAFETIVAS: O DIREITO À HOMOPARENTALIDADE ATRAVÉS DA ADOÇÃO E DA REPRODUÇÃO ASSISTIDA FRANCA 2022 YAN DOUGLAS ALVES TELES FAMÍLIAS HOMOAFETIVAS: O DIREITO À HOMOPARENTALIDADE ATRAVÉS DA ADOÇÃO E DA REPRODUÇÃO ASSISTIDA Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como pré-requisito para a obtenção do Título de Bacharel em Direito Orientadora: Profa. Dra. Kelly Cristina Canela Coorientadora: Me. Maiara Motta FRANCA 2022 YAN DOUGLAS ALVES TELES FAMÍLIAS HOMOAFETIVAS: O DIREITO À HOMOPARENTALIDADE ATRAVÉS DA ADOÇÃO E DA REPRODUÇÃO ASSISTIDA Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, para obtenção do título de Bacharel em Direito. BANCA EXAMINADORA _________________________________________________________ Profa. Dra. Kelly Cristina Canela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – FCHS – Unesp Franca _______________________________________________________________ Me. Maiara Motta Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – FCHS – Unesp Franca _______________________________________________________________ Marina Bonissato Frattari Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – FCHS – Unesp Franca Franca, 22 de junho de 2022. AGRADECIMENTOS Agradeço à minha mãe Kelly por ser o norte da minha vida, a bússola que sempre me orienta para a direção correta, por me demonstrar diariamente o significado de amor incondicional e por colocar meus sonhos e minhas vontades no topo da sua lista de prioridades sempre. Agradeço meu pai Douglas por ser o maior exemplo de determinação, força, compromisso e responsabilidade que eu poderia ter, por me amparar, me proteger e ser meu braço direito na vida. Ao meu irmão Enzo por ter chegado em minha vida e ter me ensinado a dividir, a pensar no próximo e a ser justo, mesmo com tão pouca idade ele é capaz de ensinar tanta coisa. Você vive me dizendo que é orgulhoso de mim mas a verdade é que eu que tenho muito orgulho de você, te amo e estarei com você por toda a vida. Vocês três são o motivo para eu ter chegado até aqui. Agradeço à minha avó Lelita por ser meu aconchego, minha mãe com açúcar, a pessoa que me tem o maior carinho e amor do mundo, a mulher mais forte e determinada que eu conheço e que não poupa esforços para me ver feliz. Agradeço ao meu avô Odilon por ser um ser tão amável e doce, por ser meu padrinho, sempre me receber com cantorias e com os braços abertos. Ao meu avô José por ser sempre presente e atencioso em minha vida e à minha avó Maria que, apesar de estar em outro plano, tenho certeza que vigia e zela por mim. Agradeço à República Creu por ser minha casa e minha família em Franca, em especial ao Bruno, Carla, Dalila, Henrique, Nathália e Wesley, por terem me recebido, me acolhido, estarem presentes em todos os momentos, terem me feito evoluir, crescer e amadurecer muito. Vivi momentos maravilhosos com vocês e jamais me esquecerei. Levarei a amizade de vocês para sempre. Agradeço também aos que me permitiram a experiência de ser veterano e que me presentearam com um laço de amizade e carinho verdadeiro: Lucas, Beatriz, Milena, Maicon e José. Agradeço às minhas amigas Beatriz, Hellen e Rafaela por serem minhas confidentes, estarem presentes comigo durante os cinco anos da graduação mesmo com quase quatrocentos quilômetros de distância entre nós, por não terem deixado o afastamento diminuir nosso vínculo e por serem amigas leais que estão comigo nos momentos bons ou ruins, pessoas que eu sei que posso sempre contar, seja para desabafar, chorar, rir, dançar, viajar ou simplesmente comer uma coxinha no parque. Agradeço ao meu amigo Bruno por ser um verdadeiro irmão, se fazer presente em minha vida, me acompanhar nos minhas conquistas e por sempre torcer por mim. Às minhas amigas Giovanna e Isabella por estarem comigo há tanto tempo e pela nossa amizade permanecer igual, com o mesmo carinho, não importa a distância ou tempo sem nos vermos. À minha prima Carol por ser minha gêmea de outra mãe, por nutrir por mim um amor puro e profundo que eu sei que nunca irá se apagar. Aos meus primos Lucas, Felipe, Pâmela, Larissa, Leonardo, Laís, Luan e Giulia por serem meus primeiros amigos, pela infância maravilhosa que passamos juntos e por termos cultivado nosso laço até os dias de hoje. Agradeço à minha amiga Lara por ser minha dupla em Franca, a pessoa que esteve presente comigo do primeiro ao último dia da minha graduação, que sorriu, chorou, vibrou, passou pelos melhores e piores momentos comigo. Tenho certeza que nós tivemos uma conexão de almas e que nossa relação será para a vida. À minha amiga Isadora por, transbordar carinho e amor a todo momento, por ter me demonstrado o verdadeiro significado de amizade, por me fazer sentir uma alegria genuína sempre que a vejo, por ser minha parceira, me apoiar e torcer por mim sempre. Ao César por ser um amigo tão sensível e carinhoso comigo em todos os momentos, à Luísa por ser minha parceira de marketing, por ter estado comigo em momentos de muita tensão e também de muita felicidade. Ao Leonardo Castigioni, Pedro Henrique, Ana Carolina, Maria Eduarda, Leonardo Rosa, Alexandra, Ananda, Kelly, Vinícius, Maria Antônia, Bárbara, Débora, Fabiana por terem feito da Turma XXXIV de Direito uma verdadeira casa para mim, onde achei pessoas incríveis, que me proporcionaram momentos inesquecíveis e que ocuparam, cada uma, um espacinho no meu coração. À Comissão da Turma XXXIV por ter me ensinado tanto, me feito progredir, me fortalecido e por terem me permitido contribuir fazendo uma atividade que eu gosto e que me faz bem, por terem sido além de parceiros de comissão, verdadeiros amigos. A nossa formatura foi a concretização do sonho que construímos juntos desde 2017. A minha professora de francês Valéria por ter me apresentado à língua e à cultura francesa durante três anos, me permitido sonhar e enxergar novas possibilidades para o meu futuro e por ser uma grande amiga, além de professora. Agradeço também às colegas que me acompanharam nessa caminhada: Sofia, Giovanna, Maria, Bruna e Amanda. À minha psicóloga Samanta por ter me recebido em um momento tão difícil que foi o início da pandemia e por possibilitar que eu me reerguesse, mudasse minha visão sobre mim mesmo, me enxergasse com mais amor próprio e por me encorajar a ver a vida com outros olhos. À EMEB Dr. Valeriano Gomes do Nascimento CAIC, por ter sido minha primeira experiência profissional, ter me permitido evoluir como profissional e como pessoa, em especial agradeço minha supervisora Márcia e minha colega Angela. Agradeço à Secretaria de Estado da Saúde DRS VIII por ter me apresentado ao mundo jurídico, em especial à minha supervisora Sirlene, por ter me dado a oportunidade de amadurecer nossa relação e permitir que eu aprendesse tanto, mesmo em tão pouco tempo. À Defensoria Pública do Estado de São Paulo por ter feito com que eu finalmente me encontrasse no Direito, e percebesse a minha vocação de ajudar quem precisa e entender que tenho capacidade para fazer aquilo que eu quiser. Aprendi muito nesse lugar e admiro demais essa instituição. Agradeço em especial à minha supervisora Dra. Joyce pelo apoio e por orientar sempre na melhor direção. À minha orientadora, Profa. Dra. Kelly Cristina Canela, que aceitou me orientar neste trabalho e pelas brilhantes aulas que ministrou durante a graduação, e por ter feito com que eu me encantasse pelo Direito das Famílias. Agradeço à minha coorientadora Me. Maiara Motta por todo o apoio e atenção despendidos. Por fim, agradeço à UNESP Franca, local que me permitiu que eu me tornasse quem eu realmente sou. Tenho a certeza que vivi os cinco melhores anos da minha vida nesse local, nessa cidade e cercado dessas pessoas maravilhosas. Definitivamente, ninguém é feliz sozinho e eu tenho o privilégio e a sorte de dizer que vivo cercado de todas essas pessoas incríveis citadas acima. “Amar e mudar as coisas me interessa mais”. Belchior TELES, Yan Douglas Alves. Famílias homoafetivas: o direito à homoparentalidade através da adoção e da reprodução assistida. 2022. 99 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharel em Direito) - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2022. RESUMO A família é entidade basilar da sociedade e merece proteção especial do Estado, com fundamento na Constituição Federal. A união entre pessoas do mesmo sexo passou por muitos obstáculos até ser reconhecida hoje como uma entidade familiar pelo Supremo Tribunal Federal. A Constituição de 1988 foi promulgada de modo a estabelecer o princípio da dignidade da pessoa humana como um fundamento da República Federativa do Brasil. Os princípios constitucionais implícitos e explícitos começaram a exercer forte influência na concretização dos direitos fundamentais, sobretudo em âmbito familiar, onde o afeto se tornou princípio norteador. O direito à paternidade homoafetiva enfrentou muito preconceito da sociedade, do Poder Judiciário e ainda enfrenta o duro descaso do Poder Legislativo. Foi feito um estudo do histórico da família nas constituições brasileiras, assim como foram analisados os pontos expostos pela doutrina que motivaram o reconhecimento das famílias homoafetivas e, consequentemente, o direito dos casais homoafetivos de terem filhos pelo instituto da adoção e da reprodução assistida. Os princípios constitucionais aplicáveis à família foram estudados e relacionados com o direito à homoparentalidade. A adoção homoparental e as famílias homoparentais ectogenéticas foram analisadas quanto aos seus históricos, formatos, direitos e desafios atuais. Para atender à finalidade de tais perquirições, fora utilizada a metodologia bibliográfica-dedutiva, com o uso de material doutrinário, decisões judiciais, atos normativos, resoluções e pesquisa bibliográfica, de modo a fomentar as ideias suscitadas. Por fim, foi realizada uma análise fática dos dados obtidos com o intuito de demonstrar a incidência das teorias nos casos concretos. Palavras-chave: Homoparentalidade; Família homoafetiva; Adoção; Reprodução assistida; União homoafetiva; Inseminação artificial; Gestação por substituição; Filiação socioafetiva. Afetividade; Homossexualidade. TELES, Yan Douglas Alves. Famílias homoafetivas: o direito à homoparentalidade através da adoção e da reprodução assistida. 2022. 99 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharel em Direito) - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2022. ABSTRACT Family is the foundation of society and deserves special protection from the state, according to Brazil’s Constitution. Same-sex union has gone through a lot of obstacles until being acknowledged nowadays as a form of family by Brazilian’s Supreme Court. The Constitution of the Federative Republic of Brazil 1998 was approved in order to establish a legal democratic state founded on the principle of the dignity of the human person. The explicit and implicit principles of the Constitution have begun to exert a strong influence on the realization of fundamental rights, especially in the family environment, where affection became a guiding principle. The right for gay people to have children has faced a lot of prejudice from society, the Judicial Power and still suffers with the negligence of the Legislative Power. The family history was researched under the perspective of the Brazilian’s Constitutions as well as it was analyzed the points exposed by the doctrine that motivated the recognition of homoaffective families and, consequently, the right of same-sex couples to have children through the institute of adoption and assisted reproduction. The principles of the Constitution applicable to family were studied and related to the right of homoparentality. The homoparental adoption and the ectogenetics homoparental families were analyzed by their histories, formats, rights and current challenges. To serve the purpose of such inquiries, doctrinal information, court decisions, normative acts and bibliographic research were utilized to foment the evoked ideas. Finally, a factual analysis of the obtained data was realized in order to demonstrate the incidence of the theories in the actual case. Keywords: Homoparentality; Homoaffective families; Adoption; Assisted reproduction; Same-sex union; Artifitial insemination; Surrogacy; Socio-affective parenting; Affectivity; Homosexuality. LISTA DE FIGURAS Figura 1 - A orientação sexual dos brasileiros.........................................................................29 Figura 2 - Diferentes parentalidades........................................................................................41 Figura 3 - Panorama da adoção no Brasil................................................................................52 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO…………………………………………………………………………… 11 2 FAMÍLIA: UNIÕES HOMOAFETIVAS E HOMOPARENTALIDADE……………...16 2.1 Conceito de família………………………………………………………………………16 2.2 A família nas Constituições brasileiras………………………………………………... 19 2.3 A interpretação do artigo 226 da CRFB/88…………………………………………… 22 2.4 Família no Código Civil de 2002………………………………………………………..24 2.5 O reconhecimento das uniões homoafetivas…………………………………………... 25 2.6 Princípios constitucionais aplicáveis ao Direito das Famílias………………………... 30 2.6.1 Princípio da dignidade da pessoa humana………………………………………………….. 32 2.6.2 Princípio da liberdade…………………………………………………………………………..33 2.6.3 Princípio da igualdade…………………………………………………………………………. 34 2.6.4 Princípio da afetividade………………………………………………………………………...35 2.6.5 Princípio do melhor interesse da criança e do adolescente………………………………..36 2.6.6 Princípio do pluralismo das entidades familiares………………………………………….. 37 2.7 Homoparentalidade…………………………………………………………………….. 38 2.7.1 Monoparentalidade……………………………………………………………………………...39 2.7.2 Biparentalidade homoafetiva………………………………………………………………….. 40 3 ADOÇÃO…………………………………………………………………………………..43 3.1 Contexto histórico………………………………………………………………………. 43 3.2 Adoção homoparental…………………………………………………………………...45 3.2.1 Adoção unilateral……………………………………………………………………………….. 47 3.2.2 Adoção conjunta………………………………………………………………………………… 50 3.3 Argumentos favoráveis à adoção homoparental……………………………………… 54 3.4 Adoção homoparental e registro público……………………………………………… 57 3.5 Decisões judiciais acerca da adoção homoparental……………………………………59 3.6. A adoção homoparental por uma perspectiva social ………………………………… 61 4 HOMOPARENTALIDADE ECTOGENÉTICA………………………………………...63 4.1 Conceito geral de reprodução assistida………………………………………………...63 4.2 Reprodução assistida homóloga e reprodução assistida homóloga post mortem……67 4.3 Reprodução assistida heteróloga………………………………………………………. 71 4.4 Gestação por substituição……………………………………………………………….77 4.5 Bioética e biodireito: avanços e desafios………………………………………………. 83 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS…………………………………………………………….. 85 REFERÊNCIAS…………………………………………………………………………….. 89 11 1 INTRODUÇÃO A família, base da sociedade, é uma instituição tão antiga quanto o direito e que remonta aos primórdios da humanidade. Pode-se dizer que não existe sociedade sem família e não existe civilização sem o direito (PEREIRA; FACHIN, 2021, p. 3). O estudo das famílias foi, durante muitos anos, diretamente atrelado ao casamento, de forma que os vínculos adquiridos dentro do matrimônio eram tidos como legítimos, e os de fora, ilegítimos. A família até então era exclusivamente heterossexual, patriarcal e matrimonial, e tinha como base a defesa do patrimônio e a proteção dos vínculos consanguíneos. Na forma que expõe Paulo Lôbo: “A família patriarcal, que a legislação civil brasileira tomou como modelo, desde a Colônia, o Império e durante boa parte do século XX, entrou em crise, culminando com sua superação, no plano jurídico, pelos valores introduzidos na Constituição de 1988” (LÔBO, 2022, p. 17). No Brasil, o conceito de família evoluiu muito até chegar à Constituição Federal de 1988, que inovou trazendo ao ordenamento jurídico uma nova ordem de valores, centralizado na defesa do princípio da dignidade da pessoa humana. O artigo 266, §§3º e 4º da Constituição Federal traz que a família é a base da sociedade e possui especial tutela do Estado. Há, enfim, o reconhecimento da união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento, e o reconhecimento da família monoparental, constituída por qualquer um dos pais e seus descendentes. O princípio da afetividade é norteador do atual Direito das Famílias, que se distancia cada vez mais da concepção de família estreitamente ligada ao laço sanguíneo e de viés patrimonialista, e defende o reconhecimento do vínculo familiar fundado no amor, no afeto e no cuidado recíproco. Desta forma, leciona Maria Berenice Dias: o afeto não é fruto da biologia. Os laços de afeto e de solidariedade derivam da convivência familiar, não do sangue. Assim, a posse de estado de filho nada mais é do que o reconhecimento jurídico do afeto, com o claro objetivo de garantir a felicidade, como um direito a ser alcançado (DIAS, 2020 apud SANTOS, 2021, n.p.). A homossexualidade também é um fenômeno que remonta das épocas mais distantes da humanidade, moldando-se sempre à realidade histórica em que está presente, chegando a ser parte de rituais religiosos e lida como forma de passagem de conhecimento. O primeiro casal homoafetivo que se tem registro seria Khnumhotep e Niankhkhnum, dois egípcios que viveram por volta de 2.400 a.C. (ESTEFAM, 2016, p. 80). Na Antiga Grécia, a 12 homossexualidade era aceita e respeitada, na Roma antiga era tolerada e praticada em algumas ocasiões. Com a ascensão dos dogmas judaicos e dos códigos sociais que enxergavam a sexualidade apenas como uma finalidade de procriação, a homossexualidade passou a ser rechaçada, proibida e punida, muitas vezes até com a pena de morte (CHAVES, 2015, p. 53-61). Essa discriminação fez com que indivíduos homossexuais fossem invisibilizados, marginalizados e desconsiderados como sujeitos de direitos durante um longo tempo. No século XX, mudanças passaram a ocorrer em volta do globo, principalmente a partir dos anos 60 e 70. As posturas negativas passaram a ser rebatidas e as atitudes segregatórias quanto aos homossexuais passaram a ser vistas como violentas e obscurantistas, não devendo ser admitidas. Nas palavras de Maria Berenice Dias: “os homossexuais formam atualmente um grupo coerente, ainda marginal, mas que tomou consciência de sua própria identidade. Reivindicam seus direitos contra uma sociedade dominante que ainda não os aceitam” (DIAS, 2006, p. 30). Família homoafetiva é a família conjugal constituída por pessoas do mesmo sexo, seja por meio da união estável ou por casamento. Até o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal da ADI nº 4277 e da ADPF nº 132, em 05/05/2011, os tribunais estaduais tinham posições oscilantes sobre o reconhecimento dessa formação familiar. Baseando-se na inexistência de textos normativos que regulassem as uniões entre pessoas do mesmo sexo, constantemente o Judiciário cometia toda sorte de injustiça com essa parcela da sociedade que, não raras vezes, tinha seu processo extinto por impossibilidade jurídica do pedido (CHAVES, 2015, p. 202). As uniões entre homossexuais já foram consideradas como sociedades de fato e julgadas pelo direito obrigacional, não vistas como forma de família. Tais dúvidas foram sanadas após a histórica decisão do STF que, baseando-se nos princípios constitucionais e direitos fundamentais (analisados com mais afinco no capítulo 2 deste trabalho), reconheceu a união entre pessoas do mesmo sexo como união estável, entidade familiar reconhecida e protegida pelo Estado (TEPEDINO, 2020, p. 66). Família homoparental é a decorrente da parentalidade, sendo essa, paternidade ou maternidade, exercida por casal homoafetivo, decorrente de adoção, reprodução assistida, útero de substituição (barriga solidária) ou demais formas de reprodução assistida. A família homoparental pode estar contida (pai ou mãe homossexual e filho), ou ser decorrente da família conjugal homoafetiva, e também decorrente da coparentalidade (PEREIRA; FACHIN, 2021, p. 35). Em vista da infertilidade natural que acomete casais homoafetivos, estes têm que se socorrer, habitualmente, de métodos diferentes do natural para exercer seu direito de 13 reprodução e parentalidade. Este trabalho traz como foco a adoção e as técnicas de reprodução assistida. A adoção é um dos institutos mais antigos da história, estando presente na maioria das civilizações. Segundo Tânia de Silva Pereira, a ação de adotar ocorria entre os povos antigos como uma forma de se perpetuar o culto doméstico, em vista do medo de extinção da espécie (PEREIRA, 2019 apud GOMES, 2021, p. 66). Hodiernamente, as noções quanto ao instituto passaram a privilegiar os princípios do melhor interesse da criança, da afetividade e da paternidade responsável, de forma que a adoção é considerada uma modalidade de filiação construída no amor (DIAS, 2020 apud GOMES, 2021, p. 70). A CRFB/88 legitimou as famílias monoparentais, de modo que o indivíduo homossexual já tinha possibilidade de ser pai ou mãe desde a promulgação da Carta. A adoção conjunta do casal, no entanto, esbarrou durante anos no requisito do casamento e da união estável, que só foram reconhecidos uniformemente e admitidos para casais homoafetivos a partir de 2011. A utilização da reprodução assistida representa uma demanda crescente, que se estabelece em vista dos avanços técnico-científicos dos últimos anos, que permitiram o nascimento de crianças sem a prática de nenhum ato sexual. As técnicas de reprodução assistida vieram como uma opção a mais para o pleno exercício do direito de livre planejamento familiar e são realizados de forma homóloga ou heteróloga, respectivamente, quando se utiliza o próprio material genético do casal ou quando é necessária a doação de gametas de terceiros (GOMES, 2021, p. 85). Ainda se inclui nessa toada a gestação por substituição, cessão temporária de útero popularmente conhecida como “barriga de aluguel”. A codificação privada não tratou propriamente dos procedimentos e técnicas de reprodução assistida, prevendo somente que a sua realização tem a capacidade de gerar presunção de paternidade em relação ao marido da mulher que a planejou. A presunção se estende aos casos de união estável também, de acordo com o Enunciado nº 570, aprovado na VI Jornada de Direito Civil. Sobre a regulação dos procedimentos, esta se dá pelo Conselho Federal de Medicina, que editou em 15 de dezembro de 2010 a resolução nº 1.957, alterando a antiga resolução nº 1.358/1992, utilizada por quase vinte anos e que restou insuficiente diante dos avanços médicos e sociais. Posteriormente, muitas normas deontológicas surgiram, como em 2013 (Resolução nº 2.013), que trouxe incontáveis aperfeiçoamentos à matéria, como a inclusão dos casais homoafetivos e pessoas solteiras no rol de pessoas autorizadas a utilizar das técnicas. Houve, ainda, resoluções nos anos de 2015, 2017 e 2021, sendo esta a mais atual. No entanto, é importante perceber que nenhuma dessas disposições têm caráter de lei, são apenas 14 normas deontológicas que existem para suprir a demanda causada pela omissão legislativa (TARTUCE, 2021, n.p.). Ainda existem muitas lacunas e obscuridades relativas aos direitos das famílias homoparentais, uma vez que a constante mutação da sociedade e a evolução da bioética e do biodireito fazem com que casos novos cheguem ao judiciário todos os dias, trazendo desafios jurídicos cada vez mais relevantes. Nas palavras de Pedro Henrique Feliciano: A multiplicidade das formas de família permite que as pessoas de orientação homossexual possam expressar sua existência na sociedade e o desejo de formar famílias parentais. As decisões judiciais que reconheceram a família homoafetiva foram o primeiro passo, uma vez que estabelecem uma chancela de valor simbólico a esses sujeitos. As barreiras que ainda persistem no campo social, e que não podem ser transpassadas por vias unicamente jurídicas, permanecem como obstáculos ao direito de igualdade dessas famílias, para que possam ser, como todas as outras, iguais na possibilidade de estabelecer sua forma única de ser e existir (FELICIANO, 2020, p. 205). Quanto à metodologia a ser empregada para a realização dessa pesquisa científica, cabe informar que ela será elaborada a partir do método dedutivo, que “parte de princípios reconhecidos como verdadeiros e indiscutíveis e possibilita chegar a conclusões de maneira puramente formal, isto é, em virtude unicamente lógica” (GIL, 2008, p. 9), de modo a estabelecer o liame entre os casos de homoparentalidade trazidos pela mídia e pela jurisprudência e qual foi o critério de legitimidade que os reconheceu, com base nos estudos da doutrina e da pesquisa científica. Com o objetivo de auxiliar na definição de objetivos e levantar informações sobre o assunto objeto de estudo, empregar-se-á pesquisa bibliográfica, doutrinária, documental, em artigos científicos e jornalísticos, na legislação brasileira, resoluções do CFM, provimentos do CNJ e enunciados das Jornadas de Direito Civil, aprovados pelo Conselho da Justiça Federal, de modo que seja possível verificar como o ordenamento jurídico brasileiro tem apreciado os casos relativos aos direitos das famílias homoafetivas e homoparentais, sobretudo desde a promulgação da CRFB/88, e quais são as demandas crescentes referente ao assunto. Além disso, será realizada a coleta e levantamento de dados, qualitativa e quantitativamente, por meio dos órgãos oficiais brasileiros, como o CNJ e o IBGE, além de dados coletados por pesquisas em universidades, do Brasil e do exterior, publicadas em revistas e jornais científicos. Por fim, efetuou-se levantamento por meio de técnica de pesquisa jurisprudencial qualitativa junto aos sites oficiais do Superior Tribunal de Justiça (https://processo.stj.jus.br/SCON/) e do Supremo Tribunal Federal 15 (https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search), como meio de expor os julgados relativos ao reconhecimento das entidades familiares homoafetivas, e o exercício do direito delas à parentalidade pelo instituto da adoção e pelas técnicas de reprodução assistida. Justifica-se a escolha destes Tribunais considerando a relevância que eles possuem na temática relacionada ao Direito das Famílias, pelas suas decisões repercutirem nos demais tribunais e na sociedade como um todo e pela posição ativista dos mesmos, no tocante ao reconhecimento dos direitos da população LGBTI, sobretudo diante da lacuna legislativa que assombra essa parcela da sociedade. Foi feito o levantamento das decisões de 2011 até dezembro de 2021. A data de início se justifica pela histórica decisão do Supremo Tribunal Federal, que reconheceu a união estável entre pessoas do mesmo sexo. A busca se deu junto ao repositório eletrônico jurisprudencial do STJ e do STF, utilizando-se das palavras-chave: homossexual; mesmo sexo; união homoafetiva; união estável homossexual; família homoafetiva; homoparentalidade; adoção homoparental; adoção homoafetiva; adoção unilateral; adoção conjunta; reprodução assistida; inseminação artificial; heteróloga; homóloga; gestação por substituição; barriga de aluguel. Após o levantamento, os dados foram filtrados, descartando os resultados que não se relacionavam com o foco deste estudo. 16 2 FAMÍLIA: UNIÕES HOMOAFETIVAS E HOMOPARENTALIDADE 2.1 Conceito de família Tanto a história do Direito quanto a história do Direito das Famílias se misturam com a própria história da humanidade, tendo em vista que a civilização só existe graças ao Direito. Surge o Direito, então, para propiciar a convivência social, limitando e colocando regras nesse convívio. É possível afirmar que o Direito é uma requintada forma de controlar as pulsões. O Direito das Famílias remonta desde sempre também, visto que não há sociedade sem família, observando que a organização jurídica escrita é a que provém de um período mais recente. Conforme afirmam Rodrigo da Cunha Pereira e Edson Fachin: A família é a célula básica de toda e qualquer sociedade, desde as mais primitivas até as mais contemporâneas. Mas seu conceito transcende sua própria historicidade. Para entendê-la hoje é preciso revisitar alguns conceitos para que possamos pensar melhor sua organização jurídica, e para onde ela aponta neste século XXI (PEREIRA; FACHIN, 2021, p. 3). No que tange ao patriarcalismo, não existiam grandes dúvidas na hora de se definir o que é família. Grandes juristas do século XX, como Clóvis Beviláqua, traziam a definição de família no seguinte sentido: Um conjunto de pessoas ligadas pelo vínculo da consanguinidade, cuja eficácia se estende ora mais larga, ora mais restritamente, segundo as várias legislações. Outras vezes, porém, designam-se, por família, somente os cônjuges e a respectiva progênie (BEVILÁQUA, 1903 apud PEREIRA; FACHIN, 2021, p. 3). Orlando Gomes dizia que: “somente o grupo oriundo do casamento deve ser denominado família, por ser o único que apresenta os caracteres de moralidade e estabilidade necessários ao preenchimento de sua função social” (GOMES, 1968 apud PEREIRA; FACHIN, 2021, p. 3). As famílias sempre foram estudadas pelo Direito através do instituto do casamento, que as tornavam legítimas ou ilegítimas perante os parâmetros de legalidade impostos pelo Estado ou até mesmo pela Igreja. Pela história, um grande número de juristas misturou o conceito de família com o do casamento. Até mesmo hodiernamente, no Século XXI, quando se fala em constituir família, o casamento é a primeira coisa que vem na cabeça de uma grande maioria de pessoas, mesmo já sendo conhecido que se trata de algo muito mais abrangente (PEREIRA; FACHIN, 2021, p. 3). A Declaração Universal dos Direitos do Homem, em seu art. XVI, §3º, estabeleceu: “A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da 17 sociedade e do Estado” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1948). No ano de 1969, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, também conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, em seu artigo 17, expôs os elementos conceituais do período: “A família é o elemento natural e fundamental da sociedade e deve ser protegida pela sociedade e pelo Estado” (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, 1969). De um jeito ou de outro, a ideia de família é algo tão antigo quanto o tempo e se prolonga aos cantos mais remotos do mundo, de forma a tentar demarcar seus limites para estabelecer direitos. A família é um instituto de reinvenção constante, razão pela qual ela excede sua própria historicidade. A cada instante, novos modelos parentais e conjugais se moldam, encarando de frente obstáculos morais e culturais. Há variação constante entre a concepção da família como um organismo mais amplo ou mais reduzido. Em praticamente todos os países ocidentais o modelo familiar herdou-se da família romana como o padrão de organização institucional (PEREIRA; FACHIN, 2021, p. 4). Segundo o estudo do jurista Clóvis Beviláqua, a figura mais ampliada de família tem como origem a gens dos romanos, e a figura mais reduzida relaciona-se a genos dos gregos. Apesar disso, foram os romanos que estabeleceram a organização familiar como se conhece no mundo ocidental hoje em dia, e o ordenamento jurídico brasileiro se pautou neles como referência básica, num modelo centrado no patriarcalismo, ainda que esteja se alterando aos poucos (BEVILÁQUA, 1951, p. 56). A família para o Direito brasileiro sempre foi vista como uma união de pais e filhos, pais estes que se uniram através do casamento, ordenado pelo Estado. A Constituição Cidadã de 1988 diversificou esse sentido, vez que legitimou expressamente “como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”, assim como a união estável entre homem e mulher (BRASIL, 1988, art. 226). Isso foi o veículo de uma evolução no conceito de família, que se abriu, rumando a um conceito mais real e plural (TEPEDINO, 2020, p. 4). De acordo com Rodrigo da Cunha Pereira e Edson Fachin: A história do Direito de Família é uma história de exclusões. Filhos e famílias fora do casamento eram excluídos da proteção do Estado e recebiam o selo da ilegitimidade. Filhos e famílias fora do casamento sempre existiram, desde o Brasil colônia, mas não se podia reconhecê-los, tinham que ser ignorados pelo aparato jurídico. Tudo isto em nome da moral e bons costumes. Portanto, a moral sexual e religiosa sempre foi, e continua sendo, um dos fios condutores da regulamentação dessas relações jurídicas (PEREIRA; FACHIN, 2021, p. 4). Paulo Lôbo compila a história do Direito das Famílias no Brasil, de modo a dividi-lo em três períodos: 1) Da colônia ao Império – 1500 a 1889 – Direito das Famílias de viés canônico, com forte influência da igreja católica; 2) Da Proclamação da República (1889) até 18 a Constituição Cidadã – redução paulatina do modelo exclusivamente patriarcal; 3) De 1988 até os dias de hoje – Direito das Famílias plural, diverso, que prestigia a igualdade e a solidariedade. Apenas no último período citado foi que surgiram novos valores jurídicos para o Direito das Famílias, em especial o afeto, que evoluiu ao patamar de princípio norteador das relações familiares (LÔBO, 2021, p. 19). Promulgada a Constituição Federal de 1988, se dá o início de notáveis mudanças no sistema jurídico brasileiro, considerando que a família é reconhecida não somente pela formação de relações de âmbito material e extrapatrimonial, mas solidificando a ideia da família ser o núcleo que forma a sociedade, de onde surge todos os outros laços afetivos, a transmissão da cultura, das tradições, da linguagem, traduzindo-se num importante significado jurídico, social e psicológico (MÜLLER, 2017, n.p.). Sobre o tema, dissertam Gagliano e Pamplona Filho (2012, p. 38): “A família é sem sombra de dúvida, o elemento propulsor de nossas maiores felicidades e, ao mesmo tempo, é na sua ambiência em que vivenciamos as suas maiores angústias, frustrações, traumas e medos”. Vai de encontro com o pensamento dos doutrinadores supracitados a ideia de que a influência familiar é substancialmente relevante, considerando que, em parte, os problemas atuais de grande parcela de indivíduos têm origem no passado, na formação familiar, problemas que, inclusive, podem condicionar as escolhas e organizações afetivas dessas pessoas. A Constituição Federal (BRASIL, 1988), em seu artigo 1º, traz que a República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constituída pelo Estado Democrático de Direito, destaca como seus principais fundamentos: a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho, a livre iniciativa e o pluralismo político. Por esse novo viés emergiu a Constituição da República como uma carta de princípios na definição de Maria Berenice Dias (2015, p. 39 apud MÜLLER, 2017), que diz que os princípios não mais servem somente de orientação ao sistema jurídico infraconstitucional, sem possuírem força normativa. Subiram ao patamar de indispensáveis, de modo a agregar eficácia imediata ao sistema positivo, segundo a autora, deixando para trás o estado virtual e de dependência. Desse modo, complementa Dias (2015, p. 40 apud MÜLLER, 2017): Assim, os princípios constitucionais passaram a informar todo o sistema legal de modo a viabilizar o alcance da dignidade humana em todas as relações jurídicas. A Constituição no que respeita às relações estritamente familiares imputa deveres fundamentais ao Estado, à sociedade e à família [...]. 19 Na forma que expõe a Constituição Federal (BRASIL, 1988), no caput do artigo 226, se estabelece que: Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 1º O casamento é civil e gratuita a celebração; 2º O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei; § 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento; § 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes; § 5º Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher; § 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio; § 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas; § 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. Clara é a magnitude atribuída à família, considerada como o pilar principal de toda a sociedade, impondo ao Estado, por força constitucional, em suas três esferas: federal, estadual e municipal, de acordo com Gagliano e Pamplona Filho, a “cuidarem de, prioritariamente, estabelecer, como metas inafastáveis, sérias políticas públicas de apoio aos membros da família, especialmente a criança, o adolescente e o idoso” (2012, p.40). Outro marco importante para o Direito das Famílias no Brasil foi a criação do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, em 1997, entidade que congrega os juristas e doutrinadores contemporâneos do Direito das Famílias, e que traz novos valores, princípios e paradigmas para a organização jurídica familiar. O célebre jurista mineiro João Baptista Villela afirma que: “O amor está para o Direito de Família, assim como a vontade está para o Direito das Obrigações” (VILLELA, 1979 apud PEREIRA, 2020, p. 5). Esta afirmação pode trazer a ideia definidora do Direito das Famílias contemporâneo 2.2 A família nas Constituições brasileiras A família, base da sociedade, é uma célula que antecede o próprio Direito. A dinamicidade de suas formações é visível e acompanha a evolução social acarretando em mudanças que afetam diretamente o mundo jurídico. Por essa razão, o assunto deve receber cuidado específico por parte do Estado. As Constituições Brasileiras, cada uma em seu modo, trataram da família nas mais diversas formas possíveis, desde a Constituição Imperial até a Constituição de 1988, objetivando verificar a regulamentação de direitos, sua efetividade e evolução (CASTANHO, 2012, p. 181). 20 A igualdade das famílias, princípio constitucional de grande importância contemporânea, se distancia bastante do modelo autoritário anterior. O consenso, a solidariedade, o respeito à dignidade das pessoas que integram a família são alguns dos fundamentos estampados nos artigos 226 a 230 da CRFB/88 e que trouxeram grande mudança paradigmática ao assunto. As constituições brasileiras são espelhos dos momentos históricos que o país viveu, em relação às famílias, no trânsito do Estado liberal para o Estado social. As Constituições de 1824 e 1891 são visivelmente liberais e individualistas, de modo a nem mesmo tratar das relações familiares. Há um único dispositivo na Constituição de 1891 (art. 72, §4º) com o seguinte enunciado: “A República só reconhece o casamento civil, cuja celebração será gratuita”. A exclusividade do casamento civil se deu pelo desejo dos republicanos de concretizar a política de secularização da vida privada, controlada até então pela igreja e pelo direito canônico (LÔBO, 2021, p. 14). Por outro lado, as Constituições do Estado social brasileiro, de período democrático ou autocrático, expressaram em seus textos normas relativas às famílias. A Constituição democrática de 1934 traz em um capítulo inteiro disposições a respeito da família, trazendo pela primeira vez referência expressa à proteção especial do Estado, disposição que vem a ser repetida nas demais constituições. Na Constituição autocrática de 1937 é colocada a educação dos filhos como dever dos pais, os filhos naturais se igualam aos legítimos e o Estado assume a tutela das crianças abandonadas pelos genitores. A Constituição Federal de 1946 estimulou o grande número de filhos e garantiu o amparo às mães, crianças e adolescentes (LÔBO, 2021, p. 15). Estabelecido no século XX, o Estado social configura-se por adentrar nas relações particulares e pelo domínio estatal nos poderes econômicos, de modo a objetivar a proteção dos mais carentes. A sua característica mais marcante é a solidariedade e a promoção da justiça social. A família também é alcançada pelo intervencionismo na medida em que há a redução dos poderes domésticos (poderes marital e paternal), e uma maior igualdade de direito entre seus membros. Sobre a família na Constituição de 1946, narra Carlos Alberto Maluf e Adriana Maluf: A Constituição de 18 de setembro 1946, elaborada na fase pós-ditatorial do Estado-Novo, e surgida numa fase na qual mais se acentuaram as ideias e princípios de natureza econômico-social que vinham modificando a estrutura jurídico-política do mundo ante o surto de reformas e progressos que assinalaram a idade contemporânea de direito, configurou uma evolução jurídica que já iniciara seu traçado básico nas Constituições de 1934 e de 1937. Recuperou com decisão o princípio federativo, as liberdades e garantias individuais, reiterando seu 21 compromisso com a tradição liberal. No que tange à proteção da família, renovou os direitos a ela concedidos, adicionando a vocação hereditária de brasileiros em relação a bens deixados por estrangeiros no País (MALUF; MALUF, 2021, p. 63). A Emenda nº 1, de 1969, conservou a indissolubilidade do matrimônio, o que se alterou com a Lei do Divórcio de 1977, que determinou que o casamento poderia ser dissolvido após passados três anos de separação judicial, conforme dispõe o seu art. 175, §1º. Posteriormente, a Emenda nº 2 de 1977 autorizou o divórcio direto, para separações de fato por mais de cinco anos. A Constituição do Estado social de 1988 foi a que se referiu de maneira mais direta e abrangente sobre as relações familiares e a que mais as libertou. A CRFB/1988 expressa que a família é a base da sociedade, e é aí onde há a principal limitadora do Estado. As famílias não podem ser atacadas, discriminadas ou desprotegidas pelo Estado, eis que assim o Estado estaria atacando a própria base da sociedade. Nas palavras de Miguel Reale, “a expressão Estado Democrático de Direito traduz uma opção para a democracia social, na qual o Estado é compreendido e organizado em essencial correlação com a sociedade civil, sem prejuízo do papel criador atribuído aos indivíduos” (REALE, 2005, p. 43). E, ainda, elucida Carlos Alberto Maluf e Adriana Maluf: A Constituição Federal de 1988 refletiu a ânsia da sociedade brasileira pela normalização do Estado Democrático de Direito, baseando-se na experiência constitucional europeia, em que o predomínio do social encontra evidência, uma vez que ocupa papel de destaque o respeito aos valores mais elevados da natureza humana.[...] Assim, a Carta de 1988 introduziu uma radical mudança no panorama da família, com a nova conceituação de entidade familiar, para efeitos de proteção do Estado, passando a família a ser concebida de forma mais ampla, em decorrência de sua origem no direito natural, com reflexos no âmbito civil e penal (MALUF; MALUF, 2021, p. 65). Caio Mário da Silva Pereira adverte que o novo sistema de interpretação do Direito das Famílias destaca os princípios constitucionais e os direitos fundamentais, que se colocam em patamar superior aos interesses particulares, de modo a primar pela constitucionalização do Direito Civil. Segundo o autor, simultaneamente, enquanto os direitos fundamentais passaram a ser dotados do mesmo sentido nas relações públicas e privadas, os princípios constitucionais ficaram sobrepostos à posição anteriormente adotada pelos Princípios Gerais do Direito (PEREIRA, 2005 apud LÔBO, 2022, p. 35). A Constituição Cidadã consagrou em seu texto a proteção à família (artigo 226), esta formada pelo casamento civil ou religioso com efeitos civis (§§1º e 2º), pela união estável entre o homem e a mulher, que deve ter sua conversão em casamento facilitada (§3º) e pela família monoparental, entidade familiar formada por qualquer dos genitores e seus filhos 22 (§4º). A Magna Carta ampliou o reconhecimento de entidade familiar, alterando a visão tradicional que legitimava apenas a família proveniente do casamento. Sedimentou a igualdade de direitos e deveres entre o homem e a mulher na sociedade conjugal (§5º), e também a possibilidade de dissolução do casamento pelo divórcio, estabelecendo a forma direta passados dois anos de separação de fato, e a conversão da separação judicial em divórcio após um ano de ruptura da união (§6º). Em 2010, a Emenda Constitucional nº 66 alterou o parágrafo sexto do dispositivo supracitado, possibilitando o divórcio direto, sem a necessidade de que se transcorra um prazo de tempo para a dissolução do vínculo. A CRFB/88 ainda estabeleceu que, embasado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, é de livre arbítrio do casal o seu planejamento familiar, sendo que o Estado deve fornecer os recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito (§7º), responsabilizou ao Estado assegurar assistência à família na pessoa de cada integrante, de forma a buscar métodos que desencorajam a violência no âmbito das relações familiares. Foi expressa ainda ao garantir o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (CRFB/88, artigo 3º, IV), e impôs a igualdade entre os filhos, sem importar se foram havidos dentro ou fora de relação conjugal ou por adoção, sendo vedadas quaisquer discriminações em matéria de filiação (art. 227, §6º) (MALUF; MALUF, 2021, p. 65). 2.3 A interpretação do artigo 226 da CRFB/88 A Constituição Federal de 1988 é formada, além de demais espécies normativas, de vários princípios jurídicos. Segundo Mendes, Coelho e Branco (2009 apud SOUTO et al, 2021, p. 53), os princípios podem ser caracterizados por serem mais abstratos em relação às normas, por sua aproximação da ideia de direito e por sua natureza normogenética, o que quer dizer que são a base das regras. Sendo assim, a CRFB/88 traz consigo princípios e regras que devem ser aplicados no Direito das Famílias e executados também em prol das famílias homoafetivas. O art. 226 da CRFB/88 traz que “[...] a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado” (BRASIL, 1988). Nos parágrafos que seguem, o artigo explica o conceito de “entidade familiar” que, de acordo com Paulo Lôbo (2021, p. 37), independente do seu formato, se caracterizam pela afetividade, estabilidade e ostensibilidade, explicadas da seguinte forma: a) afetividade, como fundamento e finalidade da entidade, com desconsideração do móvel econômico; b) estabilidade, excluindo-se os relacionamentos casuais, episódicos ou descomprometidos, sem comunhão de vida; 23 c) ostensibilidade, o que pressupõe uma unidade familiar que se apresente assim publicamente. (LÔBO, 2021, p. 37). Exemplificativamente, a previsão expressa da família monoparental na Constituição (art. 226, §4º) traria maior proteção para essa formação familiar, sem que as demais famílias perdessem a sua proteção, até porque o texto do artigo não traz um rol taxativo, e sim exemplificativo, de modo a não esgotar as formas de convívio e de entidades familiares que devem ser tuteladas pelo Estado. Assim, verificados os requisitos da afetividade, estabilidade e ostensibilidade em qualquer configuração familiar, deve esta ser protegida (DIAS, M. B. 2021, p. 587). O caput do art. 226 não discrimina proteção direta a qualquer espécie de família, como acontecia na Constituição Federal de 1967 e na Emenda Constitucional nº 1 de 1969, que previam a proteção do Estado apenas para a família “constituída pelo casamento”. Retirando essa expressão, quis o Poder Constituinte revelar a sua vontade de englobar as diversas formas de família. Pelo fato de ser uma norma abrangente, a exclusão de qualquer entidade familiar só poderia ser considerada se estivesse expressamente prevista na CRFB/88, já que não pode haver interpretação excludente pela supressão. Assim sendo, “[...] a interpretação de uma norma ampla não pode suprimir de seus efeitos situações e tipos comuns, restringindo direitos subjetivos” (LÔBO, 2004, p. 6 apud SOUTO et al, 2021, p. 54). Outro motivo para compreender o artigo 226 como uma norma abrangente é a transformação do seu objeto. O § 8º do referido dispositivo traz que, “[...] o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um que a integra, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações” (BRASIL, 1988). O objeto tutelado então não é a família como um valor autônomo, e sim, os membros integrantes da família. As antigas constituições visavam deslegitimar as formas de família que não se enquadravam no modelo fixo do casamento, e essa “família” tutelada era vista como um bem em si mesmo, uma instituição que deveria ser exaltada. Logo, o caput do artigo 226 é, por consequência, cláusula geral de inclusão, de forma que não é permitida a exclusão de qualquer entidade que preencha os critérios de família. Outro argumento para considerar o artigo 226 da CRFB/88 como uma cláusula de inclusão é o texto do seu §4º, pelo qual “[...] entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes” (BRASIL, 1988). O termo “também” possui caráter de inclusão, o que demonstra que os tipos de entidade familiar explicitados nos parágrafos do artigo são exemplificativos. A ideia de “família” presente no caput do art. 226 é indeterminada e abrangente, de forma que demais espécies de famílias não 24 elencadas expressamente no dispositivo, chamadas de implícitas, também merecem proteção do Estado. As entidades familiares não expressas no corpo do texto constitucional são tipos implícitos incluídos pela abrangência do conceito, por ser ele amplo e indeterminado, “[...] depende de concretização dos tipos, na experiência da vida, conduzindo à tipicidade aberta, dotada de ductilidade e adaptabilidade” (BRASIL, 1988, artigo 226). A família homoafetiva seria então somente mais uma espécie implícita de entidade familiar abarcada pelo conceito de família do art. 226 da CRFB/88. Trazendo como exemplo, é como as sementes de uma fruta, que mesmo não estando explícitas, imediatamente visíveis, continuam sendo parte da fruta, as famílias homoafetivas, embora não estejam explícitas ou expressas no rol exemplificativo do art. 226, ainda são entidade familiar, “uma semente da fruta família” (SOUTO et al, 2021, p. 54). O pensamento vai de encontro com a reflexão de Paulo Lôbo: A interpretação de uma norma ampla não pode suprimir de seus efeitos situações e tipos comuns, restringindo direitos subjetivos. A referência constitucional é norma de inclusão, que não permite deixar ao desabrigo do conceito de família - que dispõe de um conceito plural — a entidade familiar homoafetiva. E, na inexistência de regra restritiva, é de ser reconhecida a união estável homoafetiva como entidade familiar. Ainda que não haja expressa referência às uniões homoafetivas, não há como deixá-las fora do atual conceito de família (LÔBO, 2021, p. 39). Ainda, sem se considerar todos os fundamentos trazidos, os direitos fundamentais resguardam a existência jurídica e a tutela estatal da família homoafetiva. O art. 5º da CRFB/88 expõe os direitos e garantias fundamentais; dentre eles, considera-se a liberdade, a igualdade, a inviolabilidade da vida privada e a dignidade da pessoa humana como razões que legitimam as famílias homoafetivas como entidades familiares de natureza constitucional: “Art. 5º: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade” (BRASIL, 1988). Nota-se, nesse dispositivo, a menção expressa da Constituição dos direitos fundamentais à liberdade e à igualdade. 2.4 Família no Código Civil de 2002 Com a vigência da CRFB/88 o horizonte futuro no que tange à família tinha tudo para ser multifacetado e plural. A diversidade foi anexada juridicamente e axiologicamente no ordenamento jurídico brasileiro. Ocorre, porém, que o Código Civil de 2002 seguiu o exemplo do antigo diploma de 1916 e não ousou. O Código que seguiu a Constituição Cidadã manteve em seu texto os elementos da família patriarcal e matrimonializada. Marianna Chaves afirma que: “Há quem aponte que houve uma displicência do legislador que se limitou 25 a copiar os dispositivos do código anterior” (CHAVES, 2015, p. 134). Sobre o assunto, aponta César Fiúza: “Não se nega que o Código Civil atual nasceu de costas para seu tempo, sendo muito mais sensato e célere ter-se efetuado uma reforma paulatina do Código de 1916, à semelhança do que se fez com o Código de Processo Civil” (FIÚZA, 2006 apud COSTA, 2011, p. 333). Há de se analisar que houve a inclusão tímida da união estável ao longo dos dispositivos, no entanto, não há menção expressa das famílias monoparentais. As famílias homoafetivas inexistem no seu texto. As determinações da Lei Maior foram respeitadas em relação a não discriminação de filhos e o termo “pátrio poder” foi trocado para “poder familiar”, no entanto, Denise Damo Comel afirma que houve a falta de “uma atualização de fundo, conceitual e principiológica” (COMEL, 2003, p. 52-53). A lei nº 11.698 de 2008 trouxe uma modificação para o Código Civil brasileiro, nos seus artigos 1.583 e 1.584. Com a lei, a guarda compartilhada se tornou padrão, de modo que a guarda unilateral deve ser considerada como ultima ratio, devendo ser justificada com o princípio do melhor interesse da criança (CHAVES, 2015, p. 245). O atual Código Civil reconhece de maneira expressa apenas o parentesco natural ou civil, na forma do texto presente no artigo 1.593, sem mencionar sobre o afeto, a base do vínculo parental: “O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem” (BRASIL, 2002). No entanto, a expressão “outra origem” permite uma interpretação mais ampla da norma. 2.5 O reconhecimento das uniões homoafetivas Pela história, a família sempre foi vista como a relação entre um homem e uma mulher, formada pelos “sagrados laços do matrimônio”. Tal perspectiva é enraizada a ponto da Constituição de 1988, ao versar sobre a proteção especial à família e ao casamento, nada dizer sobre a diversidade sexual do par (CRFB, art. 226, §1º). Igualmente, o Código Civil de 2002, ao tratar de maneira reiterada sobre o casamento, sua validade e eficácia e impedimentos, nada diz sobre a necessidade do casal ser constituído de pessoas de sexos opostos (CC arts. 1.511 a 1.570). Logo, ausentes impedimentos constitucionais ou infraconstitucionais, não há óbice jurídico ao casamento homoafetivo, tendo em vista a virada jurisprudencial que deu nova interpretação ao §5º do art. 226 da CRFB/88. A origem da homossexualidade e da transexualidade é desconhecida, assim como a origem de muitas orientações e comportamentos naturais do ser humano. A busca por uma origem pouco importa ao Direito 26 pois não há necessidade de cura ou remédio para a homossexualidade, tendo, inclusive, a Classificação Internacional das Doenças (CID 11) retirado os transtornos de identidade de gênero do capítulo de doenças mentais, passando a chamar de incongruência de gênero, inserto no capítulo de saúde sexual. Da forma que disserta Maria Berenice Dias: A homossexualidade sempre existiu. Não é crime nem pecado; não é uma doença nem um vício. Também não é um mal contagioso, nada justificando a dificuldade que as pessoas têm de conviver com lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e intersexuais, identificados pela sigla LGBTI. São simplesmente - nada mais, nada menos — do que outras formas de viver, diversa do padrão majoritário. Mas nem tudo o que é diferente merece ser discriminado. Muito menos ser alvo da exclusão social (2021, p. 629). De acordo com a perspectiva de Giselda Hironaka: “as verdades inteiras são perigosas exatamente porque querem fechar suas muralhas sobre o construído de molde a não permitir reorganizações, remodelações, rearranjos” (apud DIAS, M. B. 2021, p. 630). Considera-se mais seguro não alterar as coisas ou as ideias, uma vez que tudo que apresenta um formato aparentemente imutável costuma aparentar ser mais "correto''. É daí que se origina a ideia de segurança jurídica, modelo de convicções, como um denominador comum de repetição, paradigmático e imutável. Tal pensamento é o impeditivo de se pensar no novo ou em algo que se adequa ao seu tempo. Da forma que assevera Maria Berenice Dias: Em face do repúdio social, fruto da rejeição de origem religiosa, as uniões de pessoas do mesmo sexo receberam, ao longo da história, um sem-número de rotulações pejorativas e discriminatórias. A igreja fez do casamento uma forma de propagar a fé cristã: crescei e multiplicai-vos. A infertilidade dos vínculos homossexuais foi uma das causas de marginalização da entidade familiar que constituem. Só que agora, conforme regulamentação do Conselho Federal de Medicina, homossexuais podem ter filhos, fazendo uso das técnicas de reprodução assistida (2021, p. 630). Os parlamentares e representantes do Poder Legislativo, temendo desagradar seu eleitorado, negligenciam sua função legiferante e preferem não aprovar leis que tratem sobre os direitos das minorias vítimas de discriminação e preconceito. Não há outra razão plausível que justifique a exclusão da pauta das uniões homossexuais no ordenamento jurídico por tanto tempo. Em 2019, visando assegurar a aplicação plena do art. 5º, XLI e XLII da CRFB/88, por maioria, o STF julgou parcialmente procedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) nº 26/DF, que reconheceu a mora inconstitucional do Congresso Nacional em editar leis que criminalizem os atos de LGBTfobia e, subsidiariamente, equiparou os atos de homofobia aos de racismo, com a aplicação das sanções previstas na Lei nº 7.716/1989. Com isso, tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 672/2019 que 27 busca modificar a Lei do Racismo, incluindo nela os crimes de discriminação por razão de orientação sexual e identidade de gênero. Ainda, existe o Projeto de Lei do Senado nº 515/2017, pretendendo alterar a Lei nº 7.716/1989 e o Código Penal para que sejam definidos os crimes de preconceito de gênero, sexo, orientação sexual e identidade de gênero. Porém, as últimas ações relacionadas a ambos os projetos foram em 2019, demonstrando mais uma vez a desídia e descaso (já declarado inconstitucional) do Poder Legislativo com as causas LGBTI (OLIVEIRA; CASTRO, 2021, p. 55). “No entanto, a ausência de lei não significa inexistência de direito” (DIAS, M. B. 2021, p. 630). Tem o Estado a função de mediador dos conflitos sociais, logo, é sua incumbência analisar a transformação da sociedade, com o objetivo de pacificação pelo amoldamento ao novo contexto apresentado pela sociedade contemporânea, por meio do Direito. O ato de deixar de reconhecer as novas formas de famílias que existem na atualidade é um retrocesso e um desrespeito à Constituição Cidadã e ao Direito das Famílias, que atualmente se pauta na inclusão e no afeto. Muito embora não haja de forma específica uma regulamentação que reconheça as famílias homoafetivas, deve-se interpretar a legislação de maneira inclusiva, uma vez que não há normas proibitivas (LÔBO, 2021, p. 41). Ainda afirmam os juristas, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2010, p. 427-509) que: “[...] o reconhecimento da união homoafetiva dentro do Direito de Família é imperativo constitucional, não sendo possível violar a dignidade do homem, por apego absurdo a formalismos legais”. Salienta-se que, a falta de legislação regulamentadora dessa união não é um impeditivo para sua existência, eis que as normas do artigo 226 são autoaplicáveis, independentemente de regulamentação. A união homoafetiva possui proteção constitucional, por sua própria natureza. As regras da união estável são aplicáveis por analogia às uniões homoafetivas, por força do artigo 4º da Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro, pelo fato de ser a entidade familiar que mais se assemelha à estrutura, nomeadamente quanto às relações pessoais, e que possui as mesmas características de lealdade, respeito, assistência, alimentos, filhos, adoção, regime de bens e impedimentos. Ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI nº 4.277, proposta pela Procuradoria Geral da República - PGR, em conjunto com a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF nº 132, proposta pelo governo do Rio de Janeiro, por conta das duas ações abordarem o mesmo tema central, este sendo o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, pretendiam as ações, em seus pedidos, a legitimação dessa entidade familiar baseando-se na interpretação do art. 1.723 do Código 28 Civil, conforme a Constituição, para que fossem atendidos os princípios da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CRFB/88), da igualdade (art. 5º, caput, CRFB/88), da vedação de discriminação odiosa (art. 3º, V, CRFB/88), da liberdade (art. 5º, caput, CRFB/88) e da proteção à segurança jurídica (art. 5º, caput, CRFB/88). Esse julgamento marcou uma conquista inédita para as uniões homoafetivas e para o Direito das Famílias, pois a decisão do Supremo Tribunal Federal ensejou o reconhecimento constitucional das relações entre pessoas do mesmo sexo pela Corte máxima do Brasil, eliminando qualquer divergência de interpretação ou polêmica que pudesse existir dentro do Poder Judiciário, até porque, a decisão teve eficácia geral e efeito vinculante para todos os órgãos judiciais e administração pública. Sobre a histórica decisão, assevera Marianna Chaves: O julgamento do STF em 2011 sobre as uniões homoafetivas constituiu uma verdadeira ruptura de paradigmas, de consagração da igualdade, do pluralismo, da diversidade, da liberdade. Nunca é demais relembrar que a decisão da ADI 4277 e da ADPF 132 possui efeito vinculante e eficácia erga omnes. Ali, naquele dia, naquele momento, a Corte Maior do Brasil reconheceu – de forma unânime – as uniões homoafetivas como entidades familiares, em uma decisão que vincula todos os aplicadores das leis e operadores do Direito, assim com o legislador infraconstitucional. Naquele dia, toda e qualquer ideia de que uma união homoafetiva poderia não conformar uma entidade familiar foi dissipada (CHAVES, 2015, n.p.). Na prática, essas decisões fizeram com que a união homoafetiva deixasse de ser classificada como uma entidade familiar autônoma, de modo a transferir a ela, por analogia, os direitos aplicáveis à união estável. Após tais julgamentos, ao invés de união homoafetiva, há casamento ou união estável, podendo ser tanto de casais heterossexuais quanto de casais homossexuais. Não há casamento ou união estável com efeitos jurídicos diferentes ou especiais em razão da sexualidade dos cônjuges, sendo os direitos e deveres jurídicos decorrentes do casamento ou da união estável iguais para o casal hetero ou homoafetivo, na relação entre os cônjuges ou companheiros e entre os pais e filhos. Isso resguarda o acesso a muitos direitos familiares, especialmente quanto aos filhos, ao regime de bens, aos alimentos e à sucessão hereditária (LÔBO, 2021, p. 41). O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou, pela primeira vez, em 25 de maio de 2022, o percentual relativo à orientação sexual da população brasileira. Os dados divulgados pelo IBGE foram coletados em 2019 pela Pesquisa Nacional de Saúde (PNS). Aproximadamente 2,9 milhões de pessoas se declararam homossexuais ou bissexuais no país, e 94,8% se declararam heterossexuais. 3,6 milhões de pessoas (que representam 2,3% do total dos entrevistados) não quiseram ou souberam responder. Percebe-se que o número de pessoas que se recusaram ou não souberam responder é superior ao número de pessoas 29 abertamente gays e bissexuais. Da forma que expõe a coordenadora da pesquisa, Maria Lucia Vieira: O número de pessoas que não quiseram responder pode estar relacionado ao receio do entrevistado de se autoidentificar como homossexual ou bissexual e informar para outra pessoa sua orientação sexual. Diversos fatores podem interferir na verbalização da orientação sexual, como o contexto cultural, morar em cidades pequenas, o contexto familiar, se sentir inseguro para falar sobre o tema com uma pessoa estranha, a desconfiança com o uso da informação, a indefinição quanto a sua orientação sexual, a não compreensão dos termos homossexual e bissexual, entre outros (VIEIRA, 2022 apud BARROS, 2022, n.p.). Ainda, de acordo com a pesquisa, o maior número de pessoas que se declararam homossexuais possuem de 18 a 29 anos (4,8%) e o menor número de pessoas abertamente gays ou bissexuais são idosos de mais de 60 anos (0,2%). Ainda, os homossexuais assumidos costumam possuir nível superior completo (3,2%) e ter uma renda mensal de mais de cinco salários mínimos (3,5%). Os dados da pesquisa sugerem que a auto aceitação de brasileiros com sua própria orientação sexual é crescente, mas ainda baixa, e que indivíduos de classes sociais mais privilegiadas possuem mais condições de assumir plenamente sua sexualidade com menos temor quanto à homofobia e ao preconceito (BARROS, 2022, n.p.). A Figura 1 ilustra os dados apresentados: Figura 1 - Orientação sexual dos brasileiros Fonte: (IBGE). 30 O combate à discriminação contra os LGBTI e a tutela dos seus direitos não devem ser entendidos como a criação de novos direitos, e sim sob a visão da aplicação dos direitos humanos a todos, sem disparidade. É necessária uma aplicação prática dos princípios fundamentais atrelados aos direitos humanos: a igualdade, o respeito à intimidade, à liberdade de todos os cidadãos. É necessária a promoção de políticas públicas na área da educação, que incentivem o respeito às diferenças desde a escola, e nas áreas da segurança e da saúde, para que os indivíduos LGBTI, tão expostos à violência de todos os tipos, possam ter sua integridade física e psicológica protegidas. 2.6 Princípios constitucionais aplicáveis ao Direito das Famílias O Direito das Famílias está cada vez mais se afastando de concepções tradicionais e fechadas, de modo a enxergar a convivência familiar com uma visão mais ampla, com uma perspectiva eudemonista, mais solidária e igualitária, já que um dos deveres da legislação é o de acompanhar a variedade das formações familiares e o respeito à dignidade da pessoa humana. Cada entidade familiar tem o direito de se organizar pela sua livre vontade, movida, principalmente, pelo afeto de seus membros, mesmo que saiam da estabilidade da “família padrão”. Os artigos 226 a 229 da CRFB/88 mostram que o cerne da tutela constitucional não é mais o matrimônio (como era antes considerado) e sim, as relações familiares, de uma forma mais abrangente, de modo a tutelar antes de tudo a dignidade dos membros da família. Logo, a Constituição Federal de 1988 transformou a "família-instituição" em "família-instrumento", voltada para o desenvolvimento da personalidade de seus integrantes, sendo um núcleo de fulcral importância para a preservação das estruturas psíquicas dos sujeitos, o que se relaciona com a "garantia de convívio com aqueles que lhe representam afeto" (FRAGA, 2005, p. 45 apud OLIVEIRA, 2008, n.p.). De acordo com a visão positivista clássica, a última referência do ordenamento jurídico tinha que ser uma norma fundamental abstrata, moldada pelo pensamento jurídico fictício. Essa visão do Direito se originou no século XX, justificada por Hans Kelsen pelo desfalecimento da firmeza jurídica causada pelo fortalecimento da jurisprudência de interesses e da Escola de Direito Livre. A única forma de remediar isso seria através da interpretação lógica das regras normativas a priori, o que garantiria que o Direito ficasse mantido em um terreno lógico bastante rigoroso. Esse campo era chamado de Ciência do Direito, em termos kelsenianos (WERNER, 2021, n.p.). 31 Considerando que o positivismo formal nega as lacunas existentes no ordenamento jurídico, todas as causas que não estiverem perfeitamente expressas no sistema são afastadas e ignoradas, acarretando num verdadeiro afastamento da realidade. A falha desse modelo excessivamente formal fez com que surgisse na doutrina uma necessidade de um novo sistema, que enxergasse os valores materiais que pedem uma interpretação justa da norma constitucional, visando a resolução de questões da realidade de fato, não predispostas no texto normativo (WERNER, 2021, n.p.). Os princípios constitucionais positivos são caracterizados por princípios traduzidos em normas da Constituição ou que dela diretamente se inferem (SILVA, 2008, p. 92 apud PENNO, 2010, p. 477). Luciana Faísca Nahas elucida que a normatização constitucional se diferencia entre princípios e regras. Enquanto os princípios necessitam de critérios e serem analisados no caso concreto, além de precisarem ter uma mediação aplicadora, as regras aplicam-se de imediato e diretamente (2008 apud PENNO, 2010, p. 477). Nesse cenário, afirma José Gomes Canotilho: “que os princípios constitucionais são basicamente de duas categorias: os princípios político-constitucionais e os princípios jurídico-constitucionais” (CANOTILHO, 2003, p. 243-245). José Afonso da Silva elucida que: Os princípios políticos-constitucionais são aqueles decorrentes de decisões políticas fundamentais concretizadas em normas conformadoras do sistema constitucional positivo, e são normas-princípios. Por outro lado, os princípios jurídico-constitucionais são os informadores da ordem jurídica nacional, decorrem, portanto, de certas normas constitucionais e, não raramente, constituem desdobramentos ou princípios derivados dos princípios fundamentais (SILVA, 2008, p. 93 apud PENNO, 2010, p. 477). Existe uma ligação entre princípios constitucionais e direitos fundamentais, eis que os princípios são o axioma de todo um sistema, enquanto os direitos fundamentais são o oxigênio das Constituições democráticas. Sheila Maria Penno ainda afirma que é necessário se fazer uma análise sobre esses princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade e os relacionados à família – proteção da família e proteção à criança (adotando) –, interpretados diante da premissa “afetividade” (PENNO, 2010, p. 478). Daniela Bodago de Oliveira afirma que, referente aos princípios, deve ser analisado de antemão o princípio da dignidade da pessoa humana pelo fato deste princípio representar um núcleo de valores, é capaz de conferir uma unidade teleológica a todos os demais princípios e regras constitucionais e infraconstitucionais (OLIVEIRA, 2008). 32 2.6.1 Princípio da dignidade da pessoa humana A dignidade da pessoa humana não é apreciada como uma criação constitucional, considerando que se trata de um dado já existente a toda tentativa especulativa, bem como o próprio ser humano. As Cartas Magnas brasileiras e portuguesas, reconhecendo sua importância, adicionaram ela como um dos fundamentos das repúblicas citadas. Afirma Marianna Chaves que: para aclarar o significado da dignidade da pessoa humana, assevera a doutrina portuguesa que se trata do reconhecimento do indivíduo como limite e fundamento do domínio político da República, em virtude de ocorrências históricas de tentativa de extermínio do ser humano, tais como: genocídios étnicos, escravatura, inquisição, nazismo, entre outras (CHAVES, 2015, p. 76). Deve-se discorrer, a princípio, que logo no primeiro artigo da CRFB/88 é dito que a República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados, Municípios e do Distrito Federal, é um Estado democrático de direito e tem como fundamentos: a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político (BRASIL, 1988). Logo, percebe-se que muito além de um princípio norteador da ordem jurídica brasileira, a dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil. Canotilho afirma que uma República fundada na dignidade da pessoa humana “toma em consideração o princípio material subjacente à ideia de dignidade da pessoa humana” (CANOTILHO, 2003 apud PENNO, 2010, p. 479). Na temática em questão, o princípio tem relevância como princípio informador das relações entre as pessoas que compõem a sociedade, assim como ao Estado, sendo ele o responsável pela ordem jurídica. Entende-se que, o fato de não colocar a dignidade da pessoa humana entre os direitos fundamentais do cidadão, expressos no extenso rol do art. 5º da CRFB/88, mas considerá-lo um dos fundamentos da República, torna claro a meta constitucional de demonstrar o princípio como uma finalidade da sociedade. Definir o princípio da dignidade da pessoa humana é tarefa difícil, ante ao seu significado abstrato e amplo, mas chegou-se a um consenso de que o princípio considera o homem um “ser em si mesmo” e não como um “instrumento para um fim” (PENNO, 2010, p. 481). O princípio da dignidade da pessoa humana pode ser visto como um limite para a atuação do Estado, que não pode invadi-lo, e como uma obrigação prestacional do mesmo, que tem a obrigação de assegurar que todo cidadão tenha sua dignidade honrada perante a sociedade. Na estruturação da individualidade de cada pessoa, a sexualidade representa uma medida basilar da formação subjetiva da personalidade humana (CHAVES, 2015. p.79). A 33 problemática emerge, principalmente em relação à homossexualidade, levando-se em consideração o “caráter heterossexista e mesmo homofóbico que caracteriza quase a totalidade das complexas sociedades contemporâneas” (RIOS, 2001 apud CHAVES, 2015, p. 79). Através do seu voto no histórico julgamento da ADI nº 4.277 que legitimou e reconheceu os direitos da união estável homoafetiva, o Ministro relator Ayres Britto fez diversas vezes menção direta ao princípio da dignidade da pessoa humana nos seus fundamentos: Óbvio que, nessa altaneira posição de direito fundamental e bem de personalidade, a preferência sexual se põe como direta emanação do princípio da “dignidade da pessoa humana” (inciso III do art. 1º da CF), e, assim, poderoso fator de afirmação e elevação pessoal. De auto-estima no mais elevado ponto da consciência. Auto-estima, de sua parte, a aplainar o mais abrangente caminho da felicidade, tal como positivamente normada desde a primeira declaração norte-americana de direitos humanos (Declaração de Direitos do Estado da Virgínia, de 16 de junho de 17768) e até hoje perpassante das declarações constitucionais do gênero. Afinal, se as pessoas de preferência heterossexual só podem se realizar ou ser felizes heterossexualmente, as de preferência homossexual seguem na mesma toada: só podem se realizar ou ser felizes homossexualmente. [...] IV – essa liberdade para dispor da própria sexualidade insere-se no rol dos direitos fundamentais do indivíduo, expressão que é de autonomia de vontade, direta emanação do princípio da dignidade da pessoa humana e até mesmo “cláusula pétrea”, nos termos do inciso IV do §4º do art. 60 da CF (cláusula que abrange “os direitos e garantias individuais” de berço diretamente constitucional) (BRASIL, Supremo Tribunal Federal, 2011, grifo nosso). Assim, em nome do princípio da dignidade da pessoa humana e de outros narrados a seguir, direitos igualitários precisam ser outorgados aos homossexuais, como o de contrair matrimônio, o direito à parentalidade e o direito de assumir de forma livre sua orientação sexual sem o medo de discriminação e exclusão social (CHAVES, 2015, p. 81). 2.6.2 Princípio da liberdade Pode-se considerar que o princípio da liberdade individual se traduz, nos dias de hoje, em uma visão de privacidade, intimidade e de livre exercício da vida privada. O princípio se prova cada dia mais como a faculdade de poder realizar, sem interferências de qualquer natureza, os próprios desejos individuais, o próprio planejamento de vida, exercendo-os da forma que julgar mais viável (CHAVES, 2015, p. 81). Paulo Dourado de Gusmão traz em sua assertiva que “o homem é, por essência, liberdade” (GUSMÃO, 2006, p. 127). No que trata sobre as relações conjugais, o princípio da liberdade afirma uma obrigação de respeito ao livre poder de escolha e autonomia, garantindo a livre formação 34 familiar em relações tanto heteroafetivas, como homoafetivas, e a livre dissolução delas também (divórcio ou dissolução de união estável), assim como a liberdade para estabelecer de novo tais vínculos. Também é assegurado ao casal o livre planejamento familiar, limitando o Estado a tornar possível o alcance desses planos através de meios financeiros e de educação (CHAVES, 2015, p. 83). A liberdade é um direito fundamental que atinge pessoas em diversas dimensões. Em âmbito familiar, no rol dos direitos da criança, o direito à liberdade se expressa, por exemplo, sendo indispensável a concordância do menor, quando este tem doze anos ou mais, em ser adotado por determinada pessoa ou casal, sendo possível que o filho impugne a paternidade/maternidade levada a efeito após a maioridade. O próprio Estatuto da Criança e do Adolescente dispõe como direito fundamental: a liberdade de opinião e de expressão e a liberdade de participar da vida familiar e da comunidade sem discriminação (GOMES, 2021, p. 51). Baseando-se no princípio estudado, Ana Paula Peres, ainda em 2006, quando o assunto não estava sedimentado pelo judiciário, disse que diante do cenário pós-moderno onde a família se apresenta de forma plural e diversificada, sobre laços afetivos e com o apoio constitucional que privilegia a inclusão, tendo a dignidade da pessoa humana como princípio basilar, concluiu que há espaço no ordenamento jurídico para legitimar a adoção por homossexuais, quer seja realizado de modo conjunto entre os companheiros, quer separados (PERES, 2006 apud PENNO, 2010, p. 481). 2.6.3 Princípio da igualdade A CRFB/88 garante o tratamento isonômico e a proteção igualitária a todos os cidadãos no cenário social. O cerne da questão é garantir a igualdade, em que pese ao Direito, pois a igualdade está diretamente ligada à noção de justiça. Os ideais de igualdade e justiça mudaram bastante. Hoje se tem a visão da igualdade formal, que significa conceder aos indivíduos de uma mesma categoria um idêntico tratamento. Mas não é suficiente que a lei venha a reger a todos da mesma maneira. Daí que surge a busca pela igualdade material, justamente porque existem desigualdades históricas na sociedade. Deve-se falar também na igualdade como reconhecimento, que propõe o respeito devido às minorias, sua identidade e suas diferenças (DIAS, M. B. 2021, p. 68). Quando se fala em igualdade, insta lembrar a importante frase de Rui Barbosa: “tratar iguais com desigualdade ou desiguais com igualdade não é igualdade real, mas flagrante desigualdade” (BARBOSA apud DIAS, M.B. 2021, p. 68). 35 O referido princípio transformou significativamente o Direito das Famílias, principalmente no que tange à igualdade entre homem e mulher, entre os filhos e no direito das entidades familiares. Ao legislativo, o princípio tem a função de impedir a sanção de leis que promovam desigualdades, devendo trabalhar para superar as desigualdades sociais através de políticas públicas (GOMES, 2021, p. 51). Na sua dimensão formal, o princípio da igualdade é o que promove a aplicação do mesmo direito a todos e o tratamento igualitário do Estado perante a sociedade. Nas palavras de Roger Raupp Rios: “Pode-se discutir se uma pessoa pelo fato de ter uma determinada orientação sexual está ou não impedida de adotar uma criança? Do ponto de vista do princípio da igualdade formal, essa questão não se coloca. Não há nenhuma distinção legal que proíba, por exemplo, um heterossexual de adotar uma criança” (RIOS, 2003 apud GOMES, 2021, p. 52). No tocante às questões de sexualidade e gênero, tal princípio é importante para um tratamento igual dos indivíduos perante a lei, autorizando que exista um tratamento diferenciado apenas quando houver motivo para tal. Se não existir motivo para a aplicação de um tratamento desigual, então o tratamento igual é obrigatório (ALEXY, 2008 apud GOMES, 2021, p. 52). Disso se retira que, somente a igualdade formal, por vezes, não é capaz de tornar acessível aos socialmente desfavorecidos os mesmos direitos já consagrados aos mais favorecidos. Desse modo, a igualdade hodiernamente deve ser vista como um princípio dinâmico, utilizado para sanar desigualdades históricas (GOMES, 2021, p. 52). A ideia de tratamento jurídico isonômico para heterossexuais e homossexuais verifica-se pela transformação da igualdade formal, da tolerância e do respeito à diversidade, do juízo de direito de uma minoria para a igualdade de direitos de todos os cidadãos (CHAVES, 2015, p. 88). 2.6.4 Princípio da afetividade A afetividade é o princípio que dá a base do Direito das Famílias contemporâneo, na estabilidade das relações socioafetivas e na comunhão de vida, visto com importância superior aos ideais de patrimônio ou estritamente biológicos (DIAS, M. B. 2021, p. 74). Após a promulgação da Constituição de 1988 e a efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana como um pilar fundamental da República, o valor humano tomou importância acima de qualquer outra disposição do Direito. Tal fenômeno proporcionou a legitimação de novos interesses jurídicos que não possuíam relevo jurídico até então, a exemplo do afeto. O princípio do afeto está muito próximo do princípio da dignidade 36 da pessoa humana, uma vez que é o princípio norteador das relações familiares e da solidariedade no âmbito da família (GOMES, 2021, p. 54). Não importa se a CRFB/88 não cita expressamente as palavras afeto ou afetividade, pois o princípio segue sendo visto como a essência de diversos outros princípios, sobretudo o maior deles, o da dignidade da pessoa humana. Caso preste atenção no extenso rol de direitos individuais e sociais elencados como meio de assegurar a dignidade de todos, percebe-se que ali se firma o primeiro obrigado a garantir o afeto por seus cidadãos: o próprio Estado (DIAS, M. B. 2021, p. 75). A constitucionalização do afeto se deu, por exemplo, com o reconhecimento da união estável como entidade familiar, sendo, consequentemente, protegida pelo Estado e considerada como base da sociedade, por força do art. 226, caput, da CRFB/88. O afeto recebeu status jurídico e, como consequência, elevou-se ao patamar de princípio como resultado de uma caminhada histórica que possui grande responsabilidade do discurso da psicanálise. O desejo e o amor são reconhecidos como bases das relações conjugais e parentais. As relações de família devem ser orientadas de modo a promover a felicidade de seus entes (PEREIRA, 2018 apud GOMES, 2021, p. 55). Com fundamento no art. 1.511 do Código Civil, a relação do matrimônio gira em torno do afeto (plena comunhão de vidas). De forma mais profunda, considera-se o afeto como o núcleo que qualifica as relações entre companheiros, notadamente quanto à informalidade da relação que existe entre tais. Dessa forma, considera-se que o afeto também norteia os laços de amor entre pessoas do mesmo sexo, tendo em vista que, cabalmente, tais relações em nada se diferem das relações entre pessoas de sexo distinto (CHAVES, 2015, p. 92). No âmbito parental, vislumbra-se o afeto como uma ação que consiste no dever de cuidado, proteção e assistência dos genitores quanto aos seus filhos menores, e dos filhos maiores quanto aos genitores idosos. Tal princípio é fundamental para o pleno desenvolvimento psíquico, físico, emocional e social de um ser humano (GOMES, 2021, p. 55). 2.6.5 Princípio do melhor interesse da criança e do adolescente O referido princípio está expresso no caput e nos demais parágrafos do artigo 227 da Carta Magna, interpretado de maneira conjunta ao princípio da parentalidade responsável e da dignidade da pessoa humana. Observa-se que o cuidado imprescindível e absoluto da criança e do adolescente passou a receber status constitucional. Com isso, nota-se uma inversão de valores, tendo em vista que o filho deixa de ser visto como uma figura de segundo plano na 37 relação familiar e alcança posto de sujeito de direitos, que merece total atenção e cuidado, considerando que ainda é um ser humano em processo de desenvolvimento intelectual, físico, espiritual, moral e social (GAMA, 2003 apud GOMES, 2021, p. 56). É possível fazer um paralelo entre o referido princípio e o princípio da igualdade na medida em que foi assegurado aos filhos os mesmo direitos e qualificações, com vedação a designações discriminatórias, por força do art. 226, §4º da CRFB/88. Não há mais que se falar em filho ilegítimo, legítimo, natural, incestuoso, espúrio, biológico ou adotivo. Filho é apenas filho (DIAS, M. B. 2021, p. 71). A Convenção Internacional dos Direitos das Crianças, aprovada em 1989 pela Assembleia Geral das Nações Unidas, foi ratificada pelo Brasil por meio do Decreto nº 99.710 de 1990. Dele pode se retirar a defesa do melhor interesse da criança como guia de todas as ações relacionadas aos infantes, de modo a proporcionar absoluto amparo à criança e ao adolescente. Na assertiva de Paulo Lôbo, o princípio da proteção integral não é apenas uma recomendação ética, mas uma diretriz determinante nas relações de crianças e adolescentes com seus pais, com a sociedade e com o Estado. A maior fragilidade dos cidadãos menores de dezoito anos, natural de pessoas que ainda estão se desenvolvendo, faz com que os destinatários sejam sujeitos de direito especial (LÔBO apud DIAS, M. B. 2021, p. 72). O princípio do melhor interesse da criança tomou posição de extrema importância na jurisprudência. Fazendo a análise pela ótica temática, o princípio já motivou o deferimento da dupla maternidade/paternidade até mesmo antes do reconhecimento da união homoafetiva pelo STF e segue motivando decisões relacionadas aos interesses de menores até os dias de hoje. Referente a isso, traz o seguinte julgado do STJ de relatoria do Ministro Ricardo Villa Bôas Cuevas: “A observância do cadastro de adotantes não é absoluta porque deve ser sopesada com o princípio do melhor interesse da criança, fundamento de todo o sistema de proteção ao menor” (BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, 2017). Verifica-se que o princípio já foi considerado como de maior importância até mesmo quando comparado com as normas técnicas do processo de adoção, presentes no ECA, devendo ser sopesado com as normas apresentadas no dispositivo. 2.6.6 Princípio do pluralismo das entidades familiares A Lei Maior, ao consagrar o afeto como base da organização familiar, pluralizou o conceito de família que não se restringe mais à entidade proveniente do casamento. O art. 226 da CRFB/88 deve ser visto como uma cláusula geral de inclusão, de forma a não deixar de 38 abarcar qualquer entidade familiar que satisfaça os critérios de afetividade, estabilidade e ostensibilidade (LÔBO, 2022, p. 86). Por razão das uniões extramatrimoniais não serem consideradas entidades familiares, viam como abrigo o direito obrigacional, como se fossem sociedades de fato. Ainda que não indicadas expressamente, as uniões homoafetivas foram reconhecidas como entidades familiares pela Justiça (DIAS, M. B. 2021, p. 71). A distância entre a realidade social de fato e o direito positivo faz surgir um debate sobre qual o verdadeiro papel do operador do Direito na busca de soluções para os casos concretos. As entidades familiares, cada vez mais plurais e diversificadas, reclamam reconhecimento e proteção específica do Estado (GOMES, 2021, p. 53). Como aduz Marianna Chaves, a forma plural de se constituir família representa uma grande ruptura com a noção única de família, instituída pelo matrimônio. Aceitar que formações familiares que rompem os padrões tradicionais merecem a mesma proteção jurídica do Estado é o que simboliza o princípio do pluralismo familiar e o princípio da liberdade e da igualdade, todos importantíssimos na sociedade atual (CHAVES, 2015, p. 92). 2.7 Homoparentalidade Apesar do modelo tradicional da família patriarcal, não é exigência específica que uma família seja formada por um homem, uma mulher e seus filhos. Em fato, esse pensamento vai justamente contra o princípio do pluralismo das entidades familiares, já visto acima. É inegável que casais homoafetivos se constituem da mesma forma que casais heteroafetivos: por um vínculo de afeto. Outro paradigma que deve ser quebrado é a ideia que casais homoafetivos, por não possuírem capacidade reprodutiva, não podem ter filhos, ideia já superada pelos institutos da adoção e da reprodução assistida (DIAS, M. B. 2021, p. 229). No Brasil, a promulgação da CRFB/88 reconhecendo expressamente a família monoparental demonstra a completa dissociação do estatuto jurídico do casamento e união estável, do estatuto jurídico da filiação. Na verdade, a Carta Maior reconheceu que todos os indivíduos podem exercer seu direito ao projeto parental livremente, independentemente de laços matrimoniais. Garante, ainda, que o planejamento familiar se baseia nos princípios da dignidade da pessoa humana e na paternidade responsável, vedando ao Estado a interferência no exercício desse direito. Desse entendimento, pode-se retirar que há um direito fundamental à reprodução e consequente formação familiar (CHAVES, 2015, p. 305). Caso haja a negativa do direito à parentalidade, em razão da homossexualidade de um indivíduo ou casal, se 39 configura violação aos seus direitos fundamentais à igualdade e à não discriminação, liberdades fundamentais de todos os cidadãos (CHAVES, 2015, p. 306). São variadas as formas que constituem famílias homoparentais. O genitor que possui a guarda dos filhos pode assumir a orientação homossexual após um período mais tardio de sua vida. Nesse caso, ele e seu companheiro passam a exercer juntos funções parentais, possibilitando que ocorra, através da convivência, a posse de estado de filho do parceiro do genitor com o filho. É cediço que os vínculos de afinidade e afetividade são o que originam a filiação socioafetiva (DIAS, M. B. 2021, p. 230). Inclusive, a filiação socioafetiva é o fundamento da chamada adoção unilateral, fenômeno que será exposto mais profundamente no decorrer deste trabalho. O laço socioafetivo é um dos critérios que dispensa o cadastramento do adotante, segundo o art. 50, §13, I, do ECA. Os modernos procedimentos médicos para a reprodução assistida romperam a ligação, até então, indissociável, entre procriação e sexo, possibilitando a reprodução humana sem a realização de nenhum ato sexual. Ainda, as técnicas avançaram de modo a tornar viável um ato que até então só seria possível para um casal heteroafetivo, de modo que agora, uma mulher pode gestar uma criança sem que tenha que se unir, de maneira física ou emocional, com um homem (CHAVES, 2015, p. 307). Considerando a lacuna legislativa brasileira referente à homoparentalidade, é nítido que os efeitos gerados pela formação do vínculo homoparental acabam enfrentando obstáculos, cabendo ao julgador usar de analogias e aplicar princípios gerais na apreciação dos casos concretos (GOMES, 2021, p. 60). 2.7.1 Monoparentalidade A família monoparental define-se como a entidade familiar que é integrada por um dos pais e seus filhos menores. Tal formação familiar pode ser formada por vontade do genitor ou genitora ou por variadas causas circunstanciais, como: viuvez, separação de fato, divórcio, relação extraconjugal ou adoção de filho por um indivíduo só. Não importa qual seja o motivo, os efeitos jurídicos são os mesmos quanto à autoridade parental e o estado de filiação (LÔBO, 2022, p. 91). Expressa a CRFB/88 em seu art. 226, §4º que a família monoparental é a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes (BRASIL, 1988). Salienta-se que não há nenhuma regulamentação específica no Código Civil ou lei especial para essa formação familiar (TARTUCE, 2022, p. 62). De igual maneira, Maria Berenice Dias expõe 40 que a família monoparental é a constituída pela relação que existe entre um dos genitores com seus filhos, no âmbito de especial proteção estatal (2021, p. 455). Eduardo de Oliveira Leite julga melhor utilizar a expressão “famílias monoparentais”, refletindo que uma família é definida como monoparental quando a pessoa considerada (homem ou mulher) encontra-se sem cônjuge ou companheiro, e vive com uma ou várias crianças. No Brasil, a Constituição falou apenas em descendentes, de forma a nos levar a crer que o vínculo de responsabilidade genitor x filho dissolve-se de forma natural com a maioridade de dezoito anos, conforme o art. 5º do Código Civil (LEITE, 2003 apud TARTUCE, 2022, p. 62). Importante frisar que as funções parentais não se confundem com a orientação sexual do indivíduo, isso quer dizer que, independentemente de a formação familiar ser monoparental, homoparental, biparental ou multiparental, o aspecto da parentalidade diz respeito ao exercício de direito e deveres dos genitores quanto aos cuidados com seus filhos (GOMES, 2021, p. 39). É fato que, somente após o reconhecimento das uniões homoafetivas como entidades familiares pelo Judiciário é que casais homoafetivos puderam realizar a parentalidade em conjunto. Porém, um indivíduo homossexual, desde a promulgação da Constituição de 1988 já pôde ser pai ou mãe, pelo fato de a Carta Magna reconhecer a família monoparental, podendo exercer esse direito, por exemplo, através da adoção. 2.7.2 Biparentalidade homoafetiva Segundo Christiano Cassettari, a bipaternidade ou a bimaternidade é a “hipótese de se ter duas mães ou dois pais no registro de nascimento, presente nos casos de homossexuais que querem ter filhos” (CASSETTARI, 2015, p. 160). O fenômeno também é chamado de “biparentalidade homoafetiva”, tendo em vista que o sentido tradicional de biparentalidade é a presença de um pai e uma mãe. A Figura 2 a seguir ilustra o entendimento: 41 Figura 2 - Diferentes parentalidades Fonte: (CASSETTARI, 2015, p. 160). Cassettari afirma que a dupla maternidade ou paternidade passou a surgir no Brasil no momento em que os tribunais começaram a autorizar a adoção conjunta para casais homoafetivos (2015, p. 160). De acordo com Carlos Alberto Maluf e Adriana Maluf: “A biparentalidade, que indica a presença do pai e da mãe, inclui na atualidade o estabelecimento de elos de filiação também nas famílias formadas por pessoas do mesmo sexo ou nos estados intersexuais” (MALUF; MALUF, 2021, p. 478). O Conselho Federal de Medicina autorizou de forma expressa o uso das técnicas de reprodução assistida aos casais homoafetivos. Como a escolha de gerar prole é do casal, é impreterível que se garanta aos indivíduos LGBTI o direito de registrar os filhos no nome de ambos ou ambas. O Provimento nº 63 do CNJ regulamenta o registro de nascimento dos filhos gerados por reprodução assistida, diretamente junto ao Cartório do Registro Civil, de forma que não é necessária ação judicial. Importante ressaltar que a bimaternidade e a bipaternidade não são sinônimos de multiparentalidade, tendo em vista que esta necessita da presença de três ou mais genitores no registro de nascimento do menor, ao passo que a dupla meternidade/paternidade é representada pela situação de se ter dois pais ou duas mães na certidão de nascimento (CASSETTARI, 2015, p. 160). A filiação é um dos mais importantes parentescos dentro do organismo familiar. É conceituada como a relação jurídica advinda do parentesco por consanguinidade ou outra origem, estabelecida entre pais e filhos. O fortalecimento da verdade afetiva em vista da verdade biológica fez com que fosse ampliada as possibilidades de filiação. A filiação, nos dias atuais, passou a ser reconhecida perante a existência de um vínculo de afeto paterno-filial 42 e, consequentemente, também a parentalidade, derivada do estado de filiação, sendo possível afirmar que toda parentalidade é, necessariamente, socioafetiva (GOMES, 2021, p. 61). 43 3 ADOÇÃO 3.1 Contexto histórico A origem da adoção é longínqua e remonta a um período anterior ao direito romano. Os Códigos de Manu e de Hamurabi já traziam referências ao que viria a ser o instituto, que foi recebido também na Grécia Antiga, onde muitos consideravam que traria o fim da família e o via como uma grande desgraça, demonstrando que a preocupação com a consanguinidade não é uma questão atual na sociedade. Até então, a adoção era vista apenas em âmbito sucessório, com o intuito de nomear um filho adotivo no caso de o sujeito ter morrido sem deixar um filho homem (TEPEDINO, 2020, p. 261). Em Roma, os imperadores Tibério, Calígola, Nero, Trajano e outros eram filhos adotivos, um dos fatos que trouxe à adoção formas mais complexas. Conforme expõe Gustavo Tepedino: O Direito Romano previa três tipos de adoção: a adoptio per testamentum, derivada de ato de última vontade do testador, destinando-se a produzir efeitos post mortem; a ad rogatio, formada pela manifestação de vontade do adotante e do adotado; e a datio in adoptionem, que consistia na entrega de um incapaz em adoção (TEPEDINO, 2020, p. 261). Na Idade Média, houve um certo repúdio quanto à adoção em vista do fortalecimento do direito canônico que prezava pelo sacramento do matrimônio. Foi, no entanto, no primeiro Código Civil da França de 1804 (o Código de Napoleão) que a adoção veio a alcançar um maior status de direito, tendo se assemelhado à filiação oriunda do casamento. Josefina, esposa de Napoleão Bonaparte, era estéril e impossibilitada de dar um herdeiro ao imperador, que motivou este a conferir no Código Civil os mesmos direitos dos filhos biológicos aos filhos adotivos, objetivando perpetuar seu domínio (PEREIRA, 2020, p. 453). Enfim, no Brasil, a adoção foi prevista nas Ordenações Filipinas, Manuelinas e Afonsinas, seguindo-se, as normas aplicáveis ao direitos civis (inclusive a adoção) foram sistematizadas pela “Consolidação das Leis Civis” de Teixeira de Freitas, adquirindo notável destaque no Código Civil de 1916. A adoção prevista entre os artigos 368 e 378 do referido texto legal pouco se diferenciava da família natural, eis que era insuscetível de estabelecer vínculo de parentesco entre o adotando e os parentes do adotante (CC/1916, art. 376), podia se constituir apenas por ato jurídico consensual (CC/1916, art. 375) e não e