ANAIS SEMINÁRIO CORPAS, SABERES E TERRITÓRIOS NAS ARTES E NA EDUCAÇÃO A MEMÓRIA da PRESENÇA Organização Auana Diniz Felínio Freitas Janaína Farias de Souza Ferreira Levi Fernando Lopes Vie ira Pinto Raquel Santos Anais do Seminário Corpas Saberes e Territórios nas Artes e na Educação realizado de forma remota entre os dias 04 e 07 de maio de 2022 Organização Auana Diniz Felínio Freitas Janaína Farias de Souza Ferreira Levi Fernando Lopes Vie ira Pinto Raquel Santos Projeto gráfico e diagramação Darwin Marinho Rodrigo Lopes Capa Rodrigo Lopes Revisão textual Jenifer Saska Concepção Grupo de Estudos e Pesquisas em Imagem, História e Memória , Mediação, Arte e Educação (GPIHMAE) e Grupo de Estudos Egungun / L íderes : R ita Luciana Berti Bredariolli e Rejane Galvão Coutinho Esta publicação foi produzida com verba da CAPES Ficha catalográfica desenvolvida pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da Unesp. Dados fornecidos pelo autor. Seminário Corpas Saberes e Territórios nas Artes e na Educação (1. : 2022 : São Paulo) A memória da presença / Organização Auana Diniz et. al. - São Paulo: SESC/UNESP, 2022. 230 p. : il. color. Evento realizado de 4 a 7 de maio de 2022 de forma remota ISBN: 978-65-88778-10-4 Programa de Pós Graduação em Artes. Trabalho do GPIHMAE: Grupo de Estudos e Pesquisas em Imagem, História e Memória, Mediação, Arte e Educação e Grupo de Estudos Egungun 1. Arte - Estudo e ensino. 2. Educação. 3. Feminismo e arte. 4. Memória na arte. I. Título. II. Diniz, Auana. III. Freitas, Felínio. IV. Ferreira, Janaína Farias de Souza. V. Lopes, Levi Fernando (Levi Fernando Lopes Vieira Pinto). VI. Santos, Raquel. S471m SESC – SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO Administração Regional no Estado de São Paulo PRESIDENTE DO CONSELHO REGIONAL Abram Szajman DIRETOR DO DEPARTAMENTO REGIONAL Danilo Santos de Miranda Superintendentes TÉCNICO SOCIAL Joel Naimayer Padula COMUNICAÇÃO SOCIAL Ivan Giannini ADMINISTRAÇÃO Luiz Deoclécio Massaro Galina ASSESSORIA TÉCNICA E DE PLANEJAMENTO Sérgio José Battistelli Gerentes ARTES VISUAIS E TECNOLOGIA Juliana Braga de Mattos ESTUDOS E DESENVOLVIMENTO Marta Raquel Colabone ARTES GRÁFICAS Rogerio Ianelli SESC AVENIDA PAULISTA Daniel Hanai SEMINÁRIO CORPAS, SABERES E TERRITÓRIOS NAS ARTES E NA EDUCAÇÃO UNESP - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” REITOR Pasqual Barretti VICE-REITOR Maysa Furlan PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRAADUAÇÃO Maria Valnice Boldrin IA-UNESP (Instituto de Artes) DIRETOR Wagner Francisco Araújo Cintra VICE-DIRETOR Maurício Funcia De Bonis COORDENADORA PPGA-IA Rosangella Leote COORDENADORA DO PROF-ARTES IA Rejane Galvão Coutinho Equipe Técnica IDEALIZAÇÃO Grupo de Estudos e Pesquisas em Imagem, História e Memória , Mediação, Arte e Educação (GPIHMAE) e Grupo de Estudos Egungun LÍDERES DO GRUPO DE PESQUISA Rita Luciana Berti Bredariolli Rejane Galvão Coutinho EQUIPE SESC Angélica de Paula Graziela Nunes João Evandro Biazotto Karina Musumeci Laís Jesus L il ian Sales Nilva Luz Roberta Della Noce Suellen Barbosa Tina Cassie COMISSÃO ORGANIZADORA (GPIHMAE/EGUNGUN) Auana Diniz Budga Deroby Nhambiquara Felínio Freitas Gilvania Santos S ilva Janaína Farias de Souza Ferreira Levi Fernando Lopes Vie ira Pinto Lucas Oliveira Moacir S implício Miriane Borges Priscila Leonel Raquel Santos Renata Maria Rodrigo Lopes Sarah de Castro COMISSÃO CIENTÍFICA (PPGArtes-IA e PROF-ARTES-IA) Andréa Luísa Frasão Silva Erick Henrique Santos Souza Felínio Freitas , Gabriela Luz Janaína Farias de Souza Ferreira Juliana Balduíno Levi Fernando Lopes Vie ira Pinto Lucas Oliveira Miriane Borges Valle Priscila Leonel Rainy Campos Raquel Santos Raul Felipe S ilva Rodrigues Renata Maria Costa Suzimara Batista Thabata Vecchio Thiago Nascimento IDENTIDADE VISUAL Darwin Marinho Rodrigo Lopes EIXO 01 Processos artísticos e saberes do corpo (dança, teatro e medicina ancestral) 126 Danças de Conexão com a Terra e os Quatro Elementos da Natureza Tamara Grigorowitschs 127 O Chamado da Floresta Bárbara Jacqueline Soares Milano 128 Corpas Travestis na Arte: Mapas de uma Cartografia de Saberes, Poeticidades e Transgressões Luís Massilon da Silva Filho Mário de Faria Carvalho 129 O Corpo na Escrita Anticolonial - Reflexões Sobre o Papel do Corpo na Oficina “Escrita Criativa Anticolonial” Caelí da Silva Gobbato 130 Educação pelo Corpo que [VIDEO]DANÇA: Uma Exploração Metodológica de Perto e de Dentro das Mídias Digitais Erika Kraychete Alves 131 Unindo Jogos Teatrais e Simulação de Consultas Médicas Letícia Rodrigues Frutuoso Nádia Moral Adilson Doniset Ledubino 132 CORPO-SANTO: O Sagrado no Processo Artístico Emmanuel Felipe de Araújo Amaral 133 Um Corpo que se Olha Através da Cerâmica - Discutindo Estruturas Sociais de Racismo Priscila Leonel PARTE DOIS: A PRESENÇA resumos apresentados nas Rodas de Conversa 26 Festa de Saberes: Um Ìtàn sobre o Seminário Corpas, Saberes e Territórios nas Artes e na Educação Levi Fernando Lopes Vieira Pinto Moa Simplício 42 Palavras que Mediam Tempos e Ancestralidade: O Encontro entre Vovó Cici e Leda Maria Martins Felínio de Sousa Freitas 58 Encontro das Águas e Suas Correntezas Gilvânia Santos Silva 70 Dos Afluentes que se Encontram Nesse Mar de Ritos e Corpas: Intimidades e Tensões Janaína Farias de Souza Ferreira 82 Desorientações de uma Embarcada: Recalculando a Rota Durante a Travessia Raquel Santos 92 Recomeçando Sempre! Rejane G. Coutinho 100 Do Amor e Outras Flores: Corpas, Saberes e Territórios nas Artes e na Educação Rita Luciana Berti Bredariolli SUMÁRIO PARTE UM: A MEMÓRIA escritas e vivências sobre o seminário 145 “Corpoético: Corpo, Poesia, Ética e Estética na Elaboração do Território escolar” Giuliana Trazzi Mazzu Gonçalves 146 Ìyá Àgbá Gèlèdé - O Traje Yorùbá e os Saberes Ancestrais na Cidade da Garoa José Roberto Lima Santos 147 Robótica Educacional na Educação Básica: Uma Proposta para o Ensino Fundamental I Ronaldo Araújo de Souza Eric Ribeiro Alves Fabiane Mondini 148 O Lado B dessas Histórias Featuring – Mulheres, Videoarte e a Artebiografia de Grouze e Priscila Leonel Iriane Du Aguiar Leme Regilene Aparecida Sarzi Ribeiro 149 “Cuidado com a Visão de Rapina das Gazela” – Caminhos Para um Inventário da Produção Artística de Pessoas Pretas Dissidentes de Gênero na Arte Contemporânea Brasileira Lau Graef Igor Simoes 150 O Ensino de Literatura na Rua: O Mapa Poético como Instrumento Educativo Daniel Rodrigo Viana 151 Nossa Senhora do Barro da Caximba Vanderlei Fraga Silveira 152 Quilombo da Parada - Arte, Cultura, Educação e Resistência Negra Juliana Balduíno 134 Performances Circenses Femininas em uma Perspectiva Histórica Bel Mucci 135 Enegrecendo/Empretecendo os Clássicos: Cor/Raça/Etnia na Cena Teatral Brasileira Contemporânea Mirian Almeida dos Santos 136-137 Onde os Mares se Encontram: ReORÌentando Nossa Música Coletivo Cartas de Bem Viver EIXO 02 Espacialidades e saberes em territórios diversos: teorias, sujeitos e epistemes 140 A Experiência (e a falta dela) no Espaço Escolar Angel Kay Homem de Mello Robinson 141 Movimento das Themônia: Singularidades Múltiplas em Produção e Fomento Artístico e Cultural na Cidade de Belém do Pará Gabriela Luz da Cunha 142 Desvendando Dramaturgias para um Corpo Afrodiaspórico Edicléia Plácido Soares 143 “Bora formar, Preta?”: Mentoria Científica Feminina e Afrocentrada Juliana Santos de Santana Lanna Katherine Leitão Conceição 144 Enquanto Dorme a Pátria Mãe tão Distraída: “Medida provisória” Mostra Racismo Como Cupim Entranhado no Caráter Nacional Aurora Almeida de Miranda Leão 163 Participação Feminina no Choro Paulistano Miriane Borges Valle 164 Bordados da Resistência: Paráfrases de Malhas e Nós Ana Elisa de Castro Freitas Vanessa Porfirio EIXO 04 Corpas, gêneros e sexualidades 168 Riscos, Rabiscos, Voltas e Revoltas: Pequeno Diário de uma Professora Monstra T. Angel 169 Esse Quilombo é Nosso: A Memória Ancestral no Corpo de Mulheres Negras na Capoeira Angola Letícia Menezes (Flor de Liz) Pedro Abib 170 O Teatro do Oprimido e a Performance como Bases para Discussão Sobre Violência de Gênero em Sala de Aula: Processos Criativos com Estudantes do Ensino Fundamental II de uma Escola Militar em Manaus/AM Aline Vasconcelos Barreto 171 Orixás do Orum ao Ayê: Representações Interseccionais no Quadrinho Escolar Raul Felipe Silva Rodrigues Valéria Aparecida Bari 172 (V)ENTRE: Produção Artística e Educacional Sobre Corpos com Vulvas Gláucia Gusmão Luz 173 “(IN)defina-se!”: Uma Corpa em Fuga no Campo da Educação Cláudia Madruga Cunha William Roslindo Paranhos 153 Cinema no Brejo: A Filmação como Brincadeira e Aventura com os Espaços Leonardo Mont’Alverne Câmara 154 A Árvore da Vida - Uma Contextualização de Identidade e Memória! Lindinalva Barboza de Souza 155 Na Roda dos Direitos: Corpos Femininos entre a Ginga pelo Direito de Existir e a Cultura Machista Amanda Silva de Paula EIXO 03 Feminismos, teorias e práticas 158 Kukuli Velarde entre o Feminino e Feminismo das suas (RE)construções Narrativas Contemporâneas da Ancestralidade Andina Simone Cristina Garcia 159 As Artes Literárias de Mulheres Negras Construindo Afromemórias Luzia Gomes Ferreira Jomara Ferreira Chaves Santos 160 Uma Revolucionária Amorosa: A Contribuição Intelectual de bell hooks à Teoria Feminista Marjorie Nogueira Chaves 161 Mulheres Transgressoras: Abordagem Teórico- Metodológica no Ensino-Aprendizagem das Artes Visuais a Partir de uma Perspectiva Intercultural e Feminista Liciane Ketty da Silva Braz 162 Na Rua Nossas Lutas se Encontram: Feminismos nos Lambes Produzidos por Mulheres Rossana Pires Sandro Ouriques Cardoso 184 Revista Digital: Raízes Linguísticas e Herança Cultural Suzimara Regina Batista Rizzo Marília Gabriela Rubio Elaine Cristina Siqueira 185 Quem Nomeia “Artes Brasileiras”? Relatos de Experiências de Estágio em uma Sala de Aula de Artes Marcus Turíbio 186 De África pra cá: Arte e Memória como (Re)Existência Amanda Harumi Falcão Manuela Machado Ribeiro Venancio Silvana Cotrim Moreira da Silva 187 O Rap Encena na Escola: Diálogos e Perspectivas Lorena Oliveira de Souza 188 A Potência em Ser Vista/o: Ensaios Fotográficos da Revista Empoderar Gilvânia Santos Silva 189 Jongo na Educação Infantil: Ancestralidade e Cultura Negra Maria Luiza Miranda Paulino da Silva Andresa Souza Ugaya 190 Educação Antirracista, Branquitude e Educação Infantil Matheus Henrique de Freitas Andresa Souza Ugaya 191 Formação Docente e Relações Raciais: Escrevivências de Professoras Negras do Ensino Médio da Rede de Ensino do município de São Paulo Débora Medeiros de Andrade 174 Teatre: Espaço de Criação, (RE)existência e Afeto Dolly Trindade de Araújo Madu Machado Ricardo Carvalho de Figueiredo 175 Revelar é um Mergulho Rumo à Escuridão de Perfume Avermelhado Rodrigo Lopes EIXO 05 O “chão de escola” - pedagogias não lineares e grafias antirracistas 178 Arte e Educação nas Necrópoles Paulistanas: Hoje a Aula é no Cemitério Marcos Roberto da Silva do Carmo 179 Texto, Jogo e Cena: Os Desafios e Encruzilhadas do Ensino de Teatro na Formação Étnico-racial do Educando e da Educanda Rubens dos Santos Celestino 180 Olhares Negros: Referências Periféricas na Escola Pública Janaína Farias de Souza Ferreira 181 Corpas - Coletivo de Rupturas, Potencialidades e Acolhimento das Subjetividades Thiago Nascimento 182 Educação das Relações Étnico-raciais na Educação Infantil: Projeto Qual a Minha História? Andresa de Souza Ugaya 183 O Pão que a Gente Compartilha: Experiências Significativas e Encantadas no Território Escolar Ana Paula da Silva Pena José Alfredo Oliveira Debortoli 202 Gritos Poéticos: Corpas Pretas na Encruzilhada entre Poesia e Resistência cajota 203 Denúncia e Crítica Social Através da Música de Capoeira Kennedy M. da Silva EIXO 07 Os saberes de terreiros de candomblé presente nas escolas e nos processos artísticos 206 Ojiji, Memória e Árvore Ancestral: Curadoria Fotográfica dos Arquivos da Família de Asè Mel Taynná Brito Araújo Andrade 207 Potencialidade das Narrativas Orais Presentes no Terreiro: Pensar o Corpo-Território Docente com a Cultura Africana Eduardo Oliveira Miranda Pâmela dos Santos Porto 208 Memórias Sagradas: a Invisibilização da Umbanda nos Espaços Oficializados pela Perspectiva Museológica e Patrimonial Inia Bernadete Pantoja Costa 209 Dizer a Palavra na Mediação de Leitura a Partir dos Saberes de Terreiros de Candomblés Felínio de Sousa Freitas 192 O Jardim das Lagartas: Espaços de Vida e Conexão na Prática Docente Felipe Augusto Michelini da Silva 193 Tecendo Experiências Artísticas e Culturais com Estudantes de Hidrolândia-GO Miriany Maria da Silva 194 Outras Introduções ao Ensino de Arte: A Cultura Popular do Educando como Abordagem Decolonial em Sala de Aula Erick Henrique Santos Souza 195 Compartilhando Narrativas: A Contação de Histórias Negras como Percurso Formativo Docente Mariane Del Carmen da Costa Diaz 196 Pedagogias Afrodiaspóricas: Caminhos Para a Construção de Uma Arte/Educação Antirracista Monique Priscila de Abreu Reis 197 Na Gira dos Orixás com Crianças: Metodologia Afro- brincante, Epistemologias Lúdicas e Negras Lia Franco Braga EIXO 06 Oralidade: vozes de encantamento 200 Raízes Quilombolas do Sapê do Norte: Assentando a Identidade Ancestral no Quilombo São Cristóvão e Serraria (São Mateus – ES) Josiléia dos Santos do Nascimento Gilda dos Santos do Nascimento 201 Tiririca: O Que é O Que é? Marcos Alberto Simplicio RODAS DE CONVERSA 222-223 Eixo 01 - Processos Artísticos e Saberes do Corpo (Dança, teatro e medicina ancestral) 223 Eixo 02 - Espacialidades e Saberes em Territórios Diversos: teorias, sujeitos e epistemes 224 Eixo 03 - Feminismos, Teorias e Práticas 224 Eixo 04 - Corpas, Gêneros e Sexualidades 225 Eixo 05 - O “Chão de Escola” - Pedagogias Não Lineares e Grafias Antirracistas 225 Eixo 06 - Oralidade: Vozes de Encantamento 226 Eixo 07 - Os saberes de Terreiros de Candomblé Presente nas Escolas e nos Processos Artísticos MESAS 214 Mesa 01 - Conversas Sobre o Tempo com Ebomi Cici e Leda Maria Martins 215 Mesa 02 - Poéticas, Saberes e Memórias com Geni Núñez e Juliana dos Santos 216 Mesa 03 - Rito, Performance e Corporeidade com Castiel Vitorino Brasileiro e Eduardo Miranda 217-218 Mesa 04 - Criando Territórios para outros Saberes com Giselda Perê, Mirella Maria, Rejane Coutinho e Rita Bredariolli MINICURSOS 219 Na encruzilhada das línguas COM Moisés Patrício 220 Devolve o meu quadril COM Deise de Brito 220-221 O lugar do Saber Ancestral COM Márcia Kambeba PARTE TRÊS: A GIRA o arranjo do seminário 26 LEVI FERNANDO LOPES VIE IRA PINTO 1 MOA S IMPLÍCIO 2 PARTE UM: A MEMÓRIA / Escritas e vivências sobre o seminário 27 PARTE UM: A MEMÓRIA / Escritas e vivências sobre o seminário Na Travessia da Grande Seminário Corpas, saberes e territórios nas Artes e na Educação Calunga: Um Ìtàn Sobre o 1 Doutorando e mestre em arte e educação do Instituto de Artes da UNESP. 2 Moa Simplicio é Consultor em assuntos educativos. Analista de Projetos. Pesquisador. Atua desde 2001 com Produção, consultoria, palestras e atendimento para PCDs e formação de professores na AEP Produções em projetos culturais educativos e exposições. É professor, pesquisador, palestrante, ilustrador e artista. Foi Assistente de professores na USP - Universidade de São Paulo. Professor Universitário no curso de Artes Visuais na FMU/ SP; UNIBAN e PUC/MG. Coordenador pedagógico no Instituto Dottori de ensino. Docente de artes na ETEC Carlos de Campos. Atuou como Analista de projetos, Palestrante e facilitador para a Conferência nacional de Cultura e Mais Cultura nas Escolas no MINC - Ministério da Cultura. Ilustrou os livros Espumas flutuantes de Castro Alves; Lembranças de esquecer de Camilo Guimarães e Cidadela Ardente de Thelma Guedes, publicados pela Ateliê Editorial. Possui pesquisa pessoal em artes e práticas artísticas decolonial (está na base de dados da enciclopédia Itaú Cultural). Entre outras exposições, participou da Mostra Internacional de Mini Gravats, em Barcelona e do Projeto Novas Imagens (Meridiano-Meridian), em Milão. Expôs gravuras no Café do MAC-USP; no Projeto Gravura Paulista - Primeira Revisão da Gravura, na Universidade de Brasília; e no Museu da Gravura da cidade de Curitiba. É doutorando em Artes pela Unesp, SP, integra o grupo de estudos Egungun. É professor no Instituto de Artes da Unesp - SP e professor de artes na ETEC Carapicuíba 2928 PARTE UM: A MEMÓRIA / escritas e vivências sobre o seminário PARTE UM: A MEMÓRIA / escritas e vivências sobre o seminário LEVI FERNANDO LOPES VIEIRA PINTO MOA SIMPLÍCIO Uma floresta de um único tipo de árvore não é uma floresta, é um n’dima (pomar), não importa quão extensa seja, porque uma floresta é sempre um conjunto na diversidade. (MARTINS, 2021, p. 57). Foi numa tarde de sábado, ensolarada, bonita, na qual o mundo parecia reluzir a ouro quando cinco mulheres se encontraram, formaram uma roda de ìyábas e, pelo encantamento da palavra, fizeram o círculo girar, desfiar o tempo em pequenos fios que lembram o movimento das águas que fluem calmas. Assim foi o último encontro do Seminário Corpas, Saberes e Territórios, evento organizado pelo Egungun. Estas mulheres – Rejane, Rita, Giselda, Mirela, Raquel – já fiavam tantas histórias, memórias, àdúràs, oríkis, saberes e territórios com as espumas dos fios das águas que formavam o rio de palavras brotadas lá em tempos outros, antes mesmo do Seminário acontecer. NA TRAVESSIA DA GRANDE CALUNGA: UM ÌTÀN SOBRE O SEMINÁRIO corpas, saberes e territórios Um rio de palavras: imagem muito sensível compartilhada por Felínio na mesa/gira de abertura do evento. Um rio de palavras: esse mesmo rio que pode carregar consigo as folhas (ewé) de Ossaim. Folhas que podem curar e matar, como nos lembrou também Felínio. Folhas que, por sua vez, podem ser remédio ou veneno, tudo depende de como as despertamos e encantamos. Basta que se use a palavra certa. Um rio de palavras onde em suas águas podemos macerar as folhas e, ao mesmo tempo, despertar seu axé. É dessa água corrente que nos banhamos e nos curamos³. Um rio de palavras, enfim! Capaz de reflorestar terras antes descampadas pela violência colonial. Florestas esquecidas e reduzidas a monoculturas inférteis. Da mesma forma, é necessário que reflorestemos nossos afetos na pluralidade, segundo convite de Geni Nuñez em sua participação na segunda gira. Reflorestar uma vasta terra com um rio de palavras capaz de lavar as feridas de um Brasil esquizofrênico, como Castiel pontuou em nossa terceira gira. Foi nessa tarde dourada que as águas das ìyábas permitiram, mais uma vez, que a barqueira pudesse conduzir corpas e saberes, juntando outros tantos territórios que outrora pareciam cindidos pela grande calunga. Foi nesse rio de palavras que o nosso barquinho pode buscar outros territórios. E embora todas as giras que antecederam esse shirê das ìyábas envolvessem o refluir da mesma água curativa, escrevinharemos estas linhas iniciais a partir de uma fala de nossa mais velha do GPIHMAE. Com sua voz embargada e os olhos marejados – os cílios borbotando as lágrimas do grande rio que nos conduzia –, Rejane Coutinho nos compartilhou os esboços de seus começos, falas rascunhadas e que não encontraram um fim, pois “os começos se enroscam”. Talvez isso seja um pouco do tempo espiralar, pensou. Sim, é o tempo espiralar. Mas é também Èṣù e suas traquinagens. 3 Nos terreiros de candomblé existe um ritual chamado Sasáyín que “[...] consiste em despertar o poder mágico das ervas, isto é, a força dos elementos da natureza, contida nas plantas, e para isso as ewé serão reverenciadas através de cânticos e fórmulas sagradas com a função de trazer à tona esses poderes latentes nos vegetais de Ossaim, sendo sempre precedidas de uma saudação – Ewé ó – e de um oríki (louvação), que costuma sofrer modificações de ordem dialetal de uma casa para outra” (BARROS; NAPOLEÃO, 2022, p. 33). 3130 PARTE UM: A MEMÓRIA / escritas e vivências sobre o seminário PARTE UM: A MEMÓRIA / escritas e vivências sobre o seminário É também Èṣù e seu jeito de transformar a certeza em dúvida. É Èṣù e seu jeitinho de pegar a linha reta e transformá- la numa encruzilhada. É Èṣù também nos ensinando que somos começos: somos a palavra encantada no plural. Começos que não necessariamente exigem um fim. Assim como o rio ou como o mar, para aquelas/es que ficam e olham o barquinho desaparecer no horizonte, a travessia jamais terá um fim. Macumbaria. A expressão macumba vem muito provavelmente do quicongo kumba: feiticeiro (o prefixo “ma”, no quicongo, forma o plural). Kumba também designa os encantadores das palavras, os poetas. Macumba seria, então, a terra dos poetas dos feitiços, os encantadores de corpos e palavras que podem fustigar e atazanar a razão intransigente e propor maneiras plurais de reexistência pela radicalidade do encanto, em meio às doenças geradas pela retidão castradora do mundo como experiência singular da morte. (RUFINO; SIMAS, 2018, nota introdutória). Feitiços e macumba: as giras/mesas que reencantam a academia, a busca por outras travessias, novas encruzilhadas; inundar em profusão de outros saberes a universidade, poetizar em gestos o movimento de resistência. Macumbaria. Como começar, afinal? Há tantos timbres em nossas vozes – corpas ancestrais ainda resistentes parecem buscar espaço em nossas palavras. Questionamos: como não deixarmos nos inquietar pela insistência do silenciamento que a universidade promove em relação a outros saberes? Como não nos incomodarmos com a violenta perpetração desse dispositivo colonial nos territórios de nossos antepassados, concretando nossas memórias? Cheguei à teoria porque estava machucada - a dor dentro de mim era tão intensa que eu não conseguiria continuar vivendo. Cheguei à teoria desesperada, querendo compreender - apreender o que estava acontecendo ao redor e dentro de mim. Mais importante, queria fazer a dor ir embora. Vi na teoria, na época, um local de cura (hooks, 2017, p. 83). Encontrar na teoria um local de cura sempre pareceu muito desafiador. A própria bell hooks, neste mesmo texto que abre nossa voz, chama a atenção para a falsa dicotomia forjada entre teoria e prática. Herança de uma tradição filosófica e epistêmica eurocêntrica que, por séculos, procurou estabelecer limites entre os saberes. Todavia, há ainda um outro ponto de muita boniteza nisso tudo: bell hooks, neste e em outros trabalhos autorais, afirma sempre que seu encontro com a teoria ocorre num momento de profunda sede. No seu ensaio intitulado Paulo Freire, escreve: Encontrei Freire quando estava sedenta, morrendo de sede (com aquela sede, aquela carência do sujeito colonizado, marginalizado, que ainda não tem certeza de como se libertar da prisão do status quo), e encontrei na obra dele (e na Malcom X, de Fanon etc.) um jeito de matar essa sede (hooks, 2017, p. 71). hooks ainda nos convida a imaginar uma obra como “água que contém um pouco de terra” (hooks, 2017, p. 71). Nesse mesmo sentimento de desamparo, nos reconhecendo como corpas alijadas do sistema colonial pelo qual vivemos morrendo de sede, a obra de bell hooks foi justamente essa água potente que nos permitiu encontrar na teoria um local de cura. Dessa nossa voz, pretendemos verter palavras que fluem como águas. Águas que possam aplacar a nossa e a sua sede ou, ainda, de lavar nossas feridas coloniais, sempre inflamadas, mas em constante cicatrização. 3332 PARTE UM: A MEMÓRIA / escritas e vivências sobre o seminário PARTE UM: A MEMÓRIA / escritas e vivências sobre o seminário Difícil desenhar as bonitezas dessas giras. Como narrar o que aparentemente é inenarrável? Talvez, de fato, estejamos nos privando de uma habilidade que Benjamin levantara há muito tempo: “[...] a faculdade de intercambiar experiências” (BENJAMIN, 1994, p. 198). Mas escrever sobre este seminário é um compromisso e uma responsabilidade que assumimos, pois “[...] escrever é um ato de descolonização no qual quem escreve se opõe a posições coloniais tornando-se a/o escritora/or ‘validada/o’ e ‘legitimada/o’ e, ao reiventar a si mesma/o, nomeia uma realidade que fora nomeada erroneamente ou sequer fora nomeada” (KILOMBA, 2019, p. 28). Assim, transformamos estas palavras escritas como folhas/ewé de Ossaim que deixam se levar pelas águas, encantam-se e se espalham pelo mundo. Apresentaremos, portanto, alguns relatos e trabalhos desenvolvidos durante o Seminário Corpas, Saberes e Territórios nas Artes e na Educação, idealizado pelo Grupo de Estudos Egungun. Trata-se de um Seminário que nasceu nesse esforço de buscar a cura e de encontrar locais onde houvesse água para que pudéssemos saciar nossa sede. Mas antes gostaríamos de começar abrindo esta gira contando a vocês um ìtàn, ou seja, uma história de Ọṣùn e do nosso bàbá Òṣálá. Ìtàn é uma palavra iorubá que pode ser traduzida aproximadamente como “relato”. Todavia, o que se relata? As histórias, as memórias, enfim... os feitos dos òrìṣàs. Os ìtàns nos ajudam a lembrar. São as pegadas de nossos ancestrais, histórias que fazem parte de nossa vida. Os ìtàns permitem que nossos antepassados possam viver entre nós. O tempo espirala no bailar das corpas em transe no chão do terreiro, ao som dos atabaques – mas é também na palavra que o tempo se desvia da cronologia. Ọ̀rọ̀ – palavra –pode se tornar Ọfọ̀ – versos recitados que, nos ìtàns, encantam nossas corpas no tempo ancestral. Os ìtàns, as palavras, os versos, fluem entre nós como as águas de Ọṣùn. E é por essas águas que gostaríamos de começar e convida-les a se banhar! Ora yèyé o ìyá mi Ọṣùn! Há muito tempo, ao pé de um rio, o velho Ọbàtálá 4 chorava e suspirava. Havia uma ferida enorme em sua perna que lhe doía e o impedia de seguir seu caminho. Ao ouvir os lamentos, Ọya – a mãe dos ventos – apareceu e perguntou ao pai do pano branco a razão de seu pranto. Ọbàtálá então mostrou-lhe a ferida, inconsolável. Contou-lhe que seu doloroso machucado o impedia de caminhar. Assim, Ọya preparou um emplastro de pimenta, sal e cinza – os tabus de Ọbàtálá, ou seja, tudo aquilo que lhe faz mal – e colocou essa mistura em sua ferida, causando ainda mais dor no pobre Ọbàtálá. Ọya, a senhora das tempestades, foi-se embora. Ọya, contam-nos, era má com o velho Òṣálá. Ao pé de um rio, o velho Ọbàtálá chorava e suspirava. As águas do rio seguiam seu curso, murmurando docemente a sua tristeza e dor. E chorou como se dos seus olhos brotasse uma cachoeira. Pôs-se então a cantar uma cantiga. Era uma canção que ninava as águas e consolava as mágoas. Ará wa omi wa Ará wa omi wa Ó yèyé Ọ̀ṣùn omi olowo Ará wa omi wa 5 Ọṣùn, a senhora das águas doces, surgiu então diante do pai do àlà, reluzindo como ouro, segurando sua moringa d’água e lavando pacientemente a ferida de pai Òṣálá enquanto cantava com ele a mesma cantiga que agora lembravam o embalar das águas no amanhecer. Ọṣùn cantou com Òṣálá. Ọṣùn lavou-lhe as feridas. Ọṣùn banhou o machucado de Òṣálá com ervas curativas colhidas no pé do rio. Ọṣùn cobriu o machucado de Òṣálá com um pano branco em respeito ao òrìṣà funfun6. Òṣálá logo se curou. 4 Obàtálá é o mesmo que Òṣálá. Na diáspora africana, Obàtálá que, segundo vovó Cici, é composta por uma família de 451 òrìṣàs, divide-se basicamente em dois títulos, a saber: Oxaguiã, ou seja, o Òṣálá mais novo, guerreiro, pai do pilão; e temos o Oxalufã, o mais velho de todos os òrìṣàs, aquele que nos shirê aparece por último carregando seu opaxorô para conseguir caminhar entre todos. Obàtálá aqui é usado como sinônimo do Oxalufã, o òrìṣà mais velho. 5 Nosso corpo nossa água / Nosso corpo nossa água / Mãe Oxum a venerável senhora das águas / Nosso corpo nossas águas. 6 Funfun significa “branco”. Os Obàtálá são conhecidos como orixás funfun por usarem apenas branco. Para o povo iorubá, o branco é a síntese de todas as cores. Representa a vida e a morte. 3534 PARTE UM: A MEMÓRIA / escritas e vivências sobre o seminário PARTE UM: A MEMÓRIA / escritas e vivências sobre o seminário Pelas águas de Ọṣùn, a ferida do nosso avô ancestral se cicatrizou. Assim, com este ìtàn, Ọṣùn nos mostra que as águas curam. As águas têm sabedoria. As mesmas águas que podem nos afogar podem também lavar uma ferida. As águas do mesmo rio revolto podem apaziguar um corpo que tem sede. Ọbàtálá é o nosso avô ancestral. Pai do pano branco, Ọbàtálá “dorme no branco do branco. De dentro do branco rebrilha. Ilumina o rumo do rumo” (RISÉRIO, 2012, p. 157). Manifesta-se em seus éléguns 7 com o corpo curvado – idoso, carrega o peso da idade, mas também o peso da criação. Não à toa é representado por um ìgbín (caracol): o casco do caramujo é espiralar. Devagar, devagar – como canta um dos vários de seus ensinamentos – carrega consigo a espiral do tempo. Por isso, Ọbàtálá é associado à sabedoria ancestral. A paz, a harmonia. Mas especialmente a sabedoria e a criação. Convido-os a pensarmos juntes a boniteza de um dos vários saberes que este ìtàn nos sugere: as águas de Ọṣùn são capazes de curar a sabedoria ferida de bàbá Òṣálá! A sabedoria que sangra ferida, magoada. Como não nos lembrarmos das sombras dos nossos dias de hoje? Onde nossas vozes ancestrais cada vez mais são silenciadas, sufocando o pranto de saberes outros que não se cicatrizam, pois mais do que uma recusa a olhar, recusamos ouvir. O Seminário Corpas, Saberes e Territórios nas Artes e na Educação – gestado pelo Grupo de Estudos Egungun – nasce quase como uma reencenação não ensaiada deste gesto delicado de Ọṣùn para Òṣálá. Ou ainda, como a própria bell hooks, que desamparada na solidão de quem tem sede antiga, busca verter água das palavras. Todavia, não podemos falar do Seminário sem antes contarmos um pouco da história do Grupo de Estudos Egungun. O Egungun nasce num cenário de terror, quando o ar estava em falta. Quando o Covid-19 nos aterrorizava. Foi neste contexto também que vimos a violência racial se multiplicar, com o assassinato brutal de George Floyd nos Estados 7 Assim são chamados as devotas e os devotos dos Orixás que nas casas de candomblé entram em transe. Unidos. Egungun é um grupo que emerge num momento em que os encontros das águas eram urgentes para nos alentar da ferida colonial. Egungun é um grupo de estudos que surge em agosto de 2020 e é integrante do GPIHMAE – Grupo de Estudos e Pesquisa em Imagem, História e Memória, Mediação, Arte e Educação –, que faz parte do Programa de Pós-Graduação em Artes do Instituto de Artes da UNESP, sob a coordenação das Profas. Dras. Rejane Galvão Coutinho e Rita Luciana Berti Bredariolli. A necessidade de um “subgrupo”, por assim dizer – como um braço de um longo rio –, surgiu devido às inquietações partilhadas por algumas pesquisadoras e pesquisadores do GPIHMAE que ansiavam por expandir suas metodologias e epistemologias numa perspectiva decolonial e antirracial nas artes, na educação, na pesquisa, na academia etc. Trabalhos como os de Moa – a benção! – convidam a nos re-Orí-entarmos dentro de nossas pesquisas, a buscarmos a encruzilhada como um lugar possível para essas re-Orí-entações 8. Tantos contextos, feridas, potências, bonitezas e aproximações foram essenciais para fomentar uma discussão que ultrapassa questões que se reduziam apenas ao letramento racial – buscava-se compreender a forma pela qual o pensamento decolonial ocorria de fato em nossos trabalhos – como dito anteriormente, que não se reduzia à academia, mas que abarcava os territórios da arte e da educação, por exemplo. Nesse sentido, o GPIHMAE tornou-se um espaço poderoso de encantamento, mandinga e magia para que a palavra pudesse desenfeitiçar os carregos que sofríamos. Era o início de uma gira. Uma abertura. Um ensaio. Assim, desta grande gira é que pode nascer outra: o Grupo de Estudos Egungun. Com longas vestes tecidas em panos coloridos que cobrem todo Ara (corpo), do Orí aos pés, o corpo bailarina. Não enxergamos o rosto, mas ao olhá-lo, vemos apenas um pequeno orifício que serve de comunicação com o sujeito encoberto. O corpo dança embalado pelo oco e grave paó9 que também serve para marcar o ritmo da cantiga alegre e celebrativa que sai estridente das gargantas entumecidas daquelas e aqueles que assistem ao rodopio dos pés que no 8 Orí (cabeça) é o nosso orixá mais importante. Todes temos cabeça, logo, todes somos assentamento de orixá Orí. Sem Orí, nossos pés não andam, nossas mãos não trabalham, nossos ouvidos não escutam, nossos olhos não veem. Se Orí não quer, nenhum orixá consegue fazer nada por nós. Um Orí saudável é uma vida próspera. Um Orí saudável se permite mudar quando necessário, pois Orí busca sempre o que é melhor para nós. Um Orí saudável sabe que as re-Orí-entações são necessárias... 9 Batidas de palmas. 3736 PARTE UM: A MEMÓRIA / escritas e vivências sobre o seminário PARTE UM: A MEMÓRIA / escritas e vivências sobre o seminário zigue-zague costuram uma história no chão de terra batida. A pele do atabaque vibra. No culto tradicional africano, nossos ancestrais também encontram sua representação em bàbá Egungun – um òrìṣà que é nosso próprio antepassado. Trata-se de uma filosofia complexa o culto ao Egungun, mas ele é a base para que a cultura afro diaspórica traga consigo a essência da importância de se cultuar nossos ancestrais. Ikú – a morte – nos ensina que ela não é o fim em si, mas uma continuidade do que somos no Aiyé – terra – numa outra essência. A verdadeira morte, na verdade, é o esquecimento: Embora ninguém consiga evitar a vinda de Ikú, ele não é invencível. Todos sobrevivem à morte e podem tornar-se imortais na memória dos que o amaram, pelos seus feitos positivos em vida e no ìpọ̀ri de seus descendentes. E, ainda que Ikú ceife a vida, só ele pode abrir caminho para uma nova existência. A reencarnação (àtúnwá) só advém após a morte. E, se o fim da vida encerra um ciclo, imediatamente reabre a possibilidade do início de outro, com a vida posterior (JAGUM, 2015, p. 168). Ninguém vê o rosto dos Eguns. Alguns dizem que estes temem sua própria face. Outros dizem que eles sequer têm uma aparência. Por isso mesmo, ao ser cultuado devidamente aqui no Aiyé, os corpos dos éléguns são inteiramente cobertos. Conta-se que Ọbàtálá, muito desejoso em saber os mistérios dos Eguns – estes que sempre permaneceram sob as ordens de Nanã, nossa avó ancestral, senhora da lama e do lodo – um dia adentrou secretamente em seus domínios, burlando assim todas as restrições impostas por Nanã. Ao atravessar o portal observou, porém, que seria impossível se comunicar com os Eguns, uma vez que eles não tinham face. Ọbàtálá então tirou do saco da criação uma bola de carvão e dela fez uma cabeça/Orí e soprou-lhe o Ẹ́mi. Assim, os Eguns puderam se comunicar com o pai do pano branco e, finalmente, Ọbàtálá passou a dominar os segredos da morte. Enquanto um coletivo, ao assumirmos discussões que buscam o aprofundamento no debate decolonial, aos poucos entendemos a importância de epistemologias ancestrais silenciadas que começaram a adquirir vozes, timbres – direito a (re)existir em nosso programa. Talvez arriscássemos a reencenar a mesma atitude de pai Òṣálá ao adentrar os domínios dos Eguns e dar-lhes uma voz… mas aqui, ao contrário, as vozes apareciam como uma urgência de escuta necessária e, por isso, nomeamos o grupo como Egungun, em homenagem também à nossa própria ancestralidade. Ao longo de nossos encontros, começamos a sentir necessidade de convidar educadoras/es e pensadoras/es dispostas/os a dialogar conosco. Referências também para as nossas pesquisas, pois assim seria possível começar a estabelecer cruzos profícuos entre o que pesquisávamos, líamos e debatíamos. Nesse processo, nos deparamos com a importância de mais aprofundamento em nossas pesquisas, tanto pessoais quanto coletivas, e percebíamos a necessidade de algo que fosse além de nossas pequenas giras, a fim de ser suficientemente capaz de mapearmos os entendimentos e desejos de nossos estudos. Diz-se que um bom Orí faz de um homem rei. Entretanto, complementamos: o encontro de bons Orís faz um reino, uma egbé (comunidade) próspera. O GE Egungun, enquanto uma pequena comunidade reunida – enquanto Orís dispostos a abrir novos caminhos – começa a conversar sobre possíveis nomes que poderiam vir a somar em nosso shirê¹0. Nomes que viriam a contribuir significativamente para nossos trabalhos, temas e urgências. Foi assim que começou a ser gestado o seminário Corpas, no qual outros Orís, outros saberes, outras egbés vieram somar à nossa gira, transformando-se numa grande festa que, quando acaba, faz desejarmos a próxima. Cabe destacar que as aproximações com a filosofia religiosa afro diaspórica é essencial para o sentido de nossos encontros. A tradição hegemônica colonial eurocêntrica ampara-se fortemente na perspectiva judaico-cristã – essa mesma que legitimou os processos de violência que transplantaram para cá a cultura africana. Não existem, para nós, limites entre saberes míticos/ancestrais e acadêmicos/ epistemológicos – assim como nesses saberes hegemônicos não existe, de fato, uma distinção entre o sacro e o profano, 10 Shirê é o nome dado às giras de candomblé. 3938 PARTE UM: A MEMÓRIA / escritas e vivências sobre o seminário PARTE UM: A MEMÓRIA / escritas e vivências sobre o seminário embora os discursos forjem incessantemente uma cisão –, uma vez que entendemos o processo decolonial no interior da academia como um movimento sísmico de ruptura que começa pela própria noção de existência de nossas corpas que ocupam instituições legitimadas pela barbárie colonial¹¹. Contamos nossas histórias, lemos imagens, compartilhamos nossas vidas em comunidade sob a égide cristã. Nossa existência se assenta na falsa ideia de que somos parte de uma cultura que é fruto de uma docilização oriunda da educação cristã. Todavia, subvertemos essa lógica porque ela é infundada e violenta. Entendemos o encontro do nosso mundo físico com o espiritual como uma articulação de significados e construções de sentidos existenciais que se (re)fazem sempre a cada nova gira/reunião. Ao entendermos que esses limites, na verdade, não existiam para nós, os nomes que borbotaram de nossos anseios tornaram-se mais possíveis. Dessa forma, tornou- se viável tentarmos uma aproximação com vovó Cici, mas também com nomes que se inscrevem na academia, oferecendo outras possibilidades de saberes, como a professora Leda Martins, Eduardo Miranda, Castiel Vitorino, Geni Nuñez. Sentimos o desejo de criarmos um espaço no qual os saberes não tivessem distinções de lugares considerados legitimados pela academia ou não. Um espaço onde todas as vozes pudessem encontrar seu local, onde pudessem ser escutadas, lidas, entendidas, compreendidas, ressignificadas. Um lugar onde todas as vozes pudessem ser acolhidas e oferecessem a nós, sedentas e sedentos por outras epistemologias, uma possibilidade de nos curarmos das nossas feridas coloniais. Assim como num terreiro de umbanda e candomblé, cada corpa do GE Egungun exerceu papéis relevantes para que o encantamento dessa grande gira pudesse ocorrer. Desde a produção de artes aos contatos com as nossas mais velhas e mais velhos que participaram do seminário, assumimos lugares de cambones a ekedis: buscamos e executamos as tarefas de forma harmônica, numa amálgama de cruzamentos. O Seminário Corpas, Saberes e Territórios nas Artes e na Educação foi pensado num tripé: mesas, rodas de conversa 11 Gostaríamos de destacar também que não encapsulamos os saberes afrodiaspóricos em uma definição religiosa e esotérica, como insiste a tradição eurocêntrica. Entendemos esses saberes como um corpo filosófico complexo que ultrapassa a noção rasa de religiosidade empregada pelos colonizadores. e minicursos. Essa tríade só foi possível graças à parceria e ao apoio do PPG Artes do IA UNESP, à CAPES e ao SESC Avenida Paulista – este último sempre aberto aos reencantamentos. O Seminário Corpas, Saberes e Territórios nas Artes e na Educação foi uma iniciativa do GPIHMAE e do Grupo de Estudos Egungun, ambos vinculados ao Programa de Pós-Graduação em Artes (PPGArtes) da Unesp, realizado em conjunto com o Sesc São Paulo, CAPES PROAP/AUXPE, ProfArtes-IA e PPGArtes-IA. O objetivo do Seminário foi criar espaços de diálogo entre acadêmicos e não acadêmicos que têm em suas práticas pessoais, pedagógicas e de pesquisa, vivências encantadas de estar no mundo que abracem um ou mais de um de nossos pilares de investigação: Corpas, Saberes e Territórios. Contamos, no total, com quatro mesas, a saber: Mesa 1: Conversas sobre o Tempo, com vovó Cici e profa. Dra. Leda Maria Martins, sob mediação de Moa Simplício. Mesa 2: Poéticas, saberes e memórias, com Juliana Santos e Geni Nuñez, sob mediação de Budga Deroby Nhambiquara. Mesa 3: Ritos, performance e corporeidade, com Eduardo Miranda e Castiel Vitorino, sob mediação de Sarah Castro Mesa 4: Criando territórios para outros saberes, com Rejane Coutinho, Rita Bredariolli, Giselda Perê e Mirella Maria, sob mediação de Raquel Santos. Em relação aos minicursos, contamos com: Minicurso 1: Na encruzilhada das línguas, com Moisés Patrício. Minicurso 2: Devolve o meu quadril?, com Deise de Brito. Minicurso 3: O lugar do saber ancestral, com Márcia Kambemba. 4140 PARTE UM: A MEMÓRIA / escritas e vivências sobre o seminário PARTE UM: A MEMÓRIA / escritas e vivências sobre o seminário Por fim, as Rodas de Conversa foram organizadas em sete eixos temáticos que buscavam aproximar trabalhos, pesquisas e timbres acadêmicos (ou não) que dialogassem de alguma forma com os nossos objetivos. Os eixos temáticos de apresentação são: 1) Processos artísticos e saberes do corpo (dança, teatro e medicina ancestral) 2) Espacialidades e saberes em territórios diversos: teorias, sujeitos e epistemes 3) Feminismos, teorias e práticas 4) Corpas, gêneros e sexualidades 5) O “chão de escola” – pedagogias não lineares e grafias antirracistas 6) Oralidade: vozes de encantamento 7) Os saberes de terreiros de candomblé presentes nas escolas e nos processos artísticos As pesquisas e relatos de experiência foram realizados em locais como escolas, instituições culturais, terreiros de candomblé e outros espaços de religiões de matriz afro- brasileira, aldeias indígenas, comunidades, quilombos, dentre outros territórios de resistência e de produção de saber. Este trabalho congrega em seu corpo os relatos – ìtàns – de pesquisadoras e pesquisadores do grupo que assistiram às mesas, assim como os resumos das pesquisas e diálogos apresentados nas rodas de conversas. Apresenta- se, também, as narrativas de pessoas encantadas, movidas pela experiência das giras/mesas que compuseram este Seminário. O que é nosso não será tomado pela chuva (Provérbio de São Tomé e Príncipe)¹². Que o feitiço da macumbaria presente nestas folhas/ ewé encantadas e embaladas pelo rio de palavras vertidas profusamente de nossos encontros possa nos permitir 12 Presente no encerramento no livro de Grada, citado neste texto. atravessar a grande calunga, sempre na luta – de forma que talvez possamos contemplar um horizonte em que o apocalipse não seja o destino derradeiro, mas um lugar onde o fim do colonialismo seja possível (como reivindica o Manifesto Anti-futurista indígena¹³). Assim como Ọṣùn curou as feridas de Òṣálá com suas águas, esperamos que estas palavras sejam, igualmente, um Omi tutù (água fresca) para aquelas e aqueles que buscam um refresco e uma cura. [BIBLIOGRAFIA] BARROS, José Flávio Pessoa; NAPOLEÃO, Eduardo. Ewé Òrisà: uso litúrgico e terapêutico dos vegetais nas casas de candomblé jêje-nagô. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2022. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994. hooks, bell. Ensinando a Transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2017. JAGUM, Márcio de. Orí: a cabeça como divindade. Rio de Janeiro: Litteris, 2015. KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019. MARTINS, Leda Maria. Performances do Tempo Espiralar: poéticas do corpo-tela. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021. PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. Companhia das Letras, 2001. RISÉRIO, Antonio. Oriki Orixá. São Paulo: Perspectiva, 2012. RUFINO, Luiz; SIMAS, Luiz Antonio. Fogo no Mato: a ciência encantada das macumbas. Rio de Janeiro: Mórula, 2018. 13 Repensando o Apocalipse: um manifesto anti-futurista indígena. Disponível em: https:// www.glacedicoes.com/ post/repensando- o-apocalipse-um- manifesto-anti-futurista- indigena-indigenous- action. Acesso em: 22 ago. 2022. 42 PARTE UM: A MEMÓRIA / Escritas e vivências sobre o seminário 43 PARTE UM: A MEMÓRIA / Escritas e vivências sobre o seminário Felínio de Sousa Freitas 14 PALAVRAS QUE MEDIAM O ENCONTRO ENTRE VOVÓ CICI E LEDA MARIA MARTINS TEMPO E ANCESTRALIDADE - 14 É mediador de leitura e mestrando (bolsista CAPES) pelo IA – UNESP, sob orientação da Profa. Dra. Rita Luciana Berti Bredariolli. Pesquisa as poéticas e as relações entre Exu e mediação/ mediador de leitura, além do espaço em que acontece a mediação, interpretado a partir dos saberes de terreiros de candomblés. É Ndumbi (o não iniciado) do Nzó Kyloatala, casa de candomblé de nação congo-angola, localizada em Embu-Guaçu (SP). 4544 PARTE UM: A MEMÓRIA / escritas e vivências sobre o seminário PARTE UM: A MEMÓRIA / escritas e vivências sobre o seminário Felínio de Sousa Freitas “Que tempo é esse Meu Deus Que tempo é esse, senhor Que tempo é esse Meu Deus Que tempo é esse, senhor É tempo que engana Zambi Oia o tempo, iôiô...” A mesa “Conversas sobre o tempo”, com participação de Vovó Cici e Leda Maria Martins (peço a benção e reverencio as minhas duas mais velhas) e mediação de Moa Simplício (também peço a sua benção!) foi um banho de sabedoria. Em uma das falas durante a Mesa, a professora Leda, ressaltou que a sabedoria é o acúmulo de tempo. Entretanto, cabe pensar que esse tempo não deve ser medido na escala/ escola ocidental: Para os ocidentais, o tempo é uma variável contínua, uma dimensão que tem realidade própria, independente dos fatos, de tal modo que são os fatos que se justapõem à escala do tempo. É o tempo da precisão, que objetiva o cálculo, que viabiliza a projeção e fundamenta a racionalidade – tempo da ciência histórica e da modernidade. Nessa escala ocidental do PALAVRAS QUE MEDIAM TEMPO E ANCESTRALIDADE - O ENCONTRO ENTRE VOVÓ CICI E LEDA MARIA MARTINS tempo, os acontecimentos são enfileirados uns após outros, em sequências que permitem organizá-los como anteriores e posteriores, uns como causa e outros como consequência, construindo-se uma cadeia de correlações e causações que conhecemos como história. (PRANDI, 2001, p. 48). Para algumas pessoas, pensar em tempo é automaticamente lembrar do Nkisi Kitembo, divindade do candomblé angola, relacionada ao tempo. Outras pensam em Irôko, orixá do candomblé da nação Ketu, evocado por Moa no começo do diálogo. Ambos Kitembo e Irôko estão relacionados à memória dos que já se foram. Diante disso, pode-se pensar em ancestralidade, e que para existir é preciso tempo, mas não como um espaço/local pré-definido, porém, com várias temporalidades dentro de outros tempos, como espirais ou labirintos seguindo em planos diferentes. Todavia, as junções e alargamentos poéticos das falas de Vovó Cici e Leda Maria Martins, mesmo dentro da existência do relógio/tempo de um evento acadêmico, extrapolaram a noção de linearidade ocidental cartesiana de entendimento. São palavras gestadas por saberes que escapam a qualquer tipo de conceituação efêmera e que para existirem/serem faladas é necessário passar pelos tempos e pelo coração/ memória, pensados, aqui, a partir do poeta, educador, músico e filósofo Tiganá Santana (2018, p. 119): [...] memória, em kikongo, é ntima – mesma palavra empregada para coração; do mesmo modo como, nos desenhos etimológicos latinos, ‘saber de cor’ é ‘saber de coração’. Deste modo, toda memória pulsa no tempo, sangra, dilata-se, comprime-se e é emblema de afeto e interioridade. As palavras, as frequências, a sonoridade, as quais vibram na nossa escuta, conduzem-nos a um lugar, esteticamente, insondável; tão tangível e imagético, quanto imaterial, longínquo, antepassado [...] 4746 PARTE UM: A MEMÓRIA / escritas e vivências sobre o seminário PARTE UM: A MEMÓRIA / escritas e vivências sobre o seminário A proposta da mesa foi trazer duas mestras e sensíveis observadoras de acontecimentos, poesias e saberes afro- brasileiros que constituem as raízes do Brasil. O tempo, elemento fundamental da constituição do ser humano e da criação de suas poéticas, foi o norte para a fala das convidadas. No entanto, o que caberia dentro desse tempo de fala? O que seria gestado pela palavra oriunda das memórias e experiências dessas duas mestras/rainhas? No rio de palavras gerado por elas, surgiram histórias sobre mitos, provocações, conhecimentos paridos pelo fazer/estar de diversos povos, tanto bantus quanto iorubás. Nasceram apontamentos sobre as argolas, roupas, comidas, poesias, sobre a palavra, sobre Exu, sobre o tempo e a ancestralidade presentes na memória da pele. Se a memória, como pensa Tiganá, sangra e pulsa no tempo, as afetividades das falas de Vovó Cici e Leda trazem, por meio da oralidade, os gestos e as experiências, ora tecidas individualmente, ora vividas em grupo. Os saberes de ambas estão dentro de uma teia que envolve pertencimento e continuidade, o que pode ser lido como uma Pedagogia da Ancestralidade. Essa Pedagogia borda as raízes temporais de quem somos (sempre em movimento e transformação), ou seja, a nossa identidade ou identidades. Dentro das páginas e poesias dessa Pedagogia, segundo a reflexão da educadora Patrícia Adjokè¹5: Lá encontraremos nossa ancestralidade. Quando percebemos quem somos, de onde viemos, passamos a fazer parte do mundo enquanto sujeitos históricos, (re) construindo territórios existenciais. Essas memórias estão escritas em nossos corpos, através de vivências organizadas e mantidas individual e coletivamente. O que pretendemos com a pedagogia da ancestralidade é perceber, de forma encantadora, identidades reveladas ao abrirmos o baú de nossas memórias. A música, a imagem, o cheiro, o gosto, possibilitam re-sentir sem ressentimentos. É no coletivo que nos construímos e fortalecemos a nossa essência vital no mundo, pois somos porque o Outro é e essa 15 O pensamento de Patrícia Adjokè está presente na tese Saberes ancestrais femininos na filosofia africana: poéticas de encantamento para metodologias e currículos afrorreferenciados, da pesquisadora Adilbênia Freire Machado. relação de reciprocidade é que nos faz pertencer e aprender o sentido do SER. (ADJOKÈ apud MACHADO, 2019, p. 193). Os saberes enunciados por Vovó Cici e Leda Maria Martins não devem ser pensados por meio do conceito ocidental, ou seja, com começo, meio e fim, mas como começo, meio e começo para recomeços dentro de uma infinidade de tempos que extrapolam uma concepção linear de vida. As palavras emitidas por elas podem ser pensadas como palavra-Exu ou palavra-Pambu Njila – ambas respectivamente divindades dos candomblés Kêtu-nago e Angola –, pois propiciam movimento e vivem nas encruzilhadas e caminhos. O meu primeiro contato com Vovó Cici foi em uma sexta-feira de Oxalá, orixá de quem também é filha. Ao ser convidada para o Seminário, Vovó disse: “Eu só sei contar histórias, meu filho [...] se você acreditar que eu tenho algo para contribuir, a gente conversa novamente!”. Apenas escutava as palavras que ela me dizia durante essa ligação e, assim, queria morar dentro da fala/acalanto de “Vó Cici”, por sua ternura e cuidado com o que me contava. O “só” saber contar histórias de Cici faz um giro ou uma pirueta com o nosso pensamento. São aberturas para outras realidades ou passagens para a reafirmação de saberes nossos. As suas palavras nos levam para outros países e lugares, trazem cheiros e reminiscências de África e de diversas culturas negras oriundas da diáspora que gestaram as raízes do solo brasileiro junto às diversas etnias dos povos originários que eram os cuidadores/moradores da terra, antes da invasão, dos roubos e dos estupros praticados pelos colonizadores portugueses. O contar histórias de Vovó Cici enche o ouvido de beleza e, com isso, cria paisagens e imagens poéticas. Um exemplo dessa poética oral está presente, por exemplo, em sua fala sobre os orixás e sua relação com a dança: 4948 PARTE UM: A MEMÓRIA / escritas e vivências sobre o seminário PARTE UM: A MEMÓRIA / escritas e vivências sobre o seminário Xangô é o coreógrafo. É aquele que vai fazer gestos em uma dança que vai contar uma história e que vai lhe encantar pela beleza. Ele vai falar de guerras, de mágicas, de amores dentro do alujá, que é a dança sagrada dele. O seu tambor sagrado é o batá¹6. Se Cici nos embala pelas palavras e nos transporta para outros lugares e tempos/encruzilhadas imemoriais, a professora Leda Maria Martins, em uma de suas falas no Seminário, nos recorda sobre a encruzilhada como dispositivo conceitual presente na cultura afro-brasileira. A partir da encruzilhada e das palavras ecoadas na mesa, penso na palavra/língua e nas memórias particulares e coletivas como encruzilhadas/caminhos de afetos, saberes, tensões, corpos que inscrevem e escrevem poesias, corpos tensionados, corpos que grafam e contam histórias, ou seja, são afrografias. Para Leda: [...] na verdade o que nós estamos falando é que os saberes não se escrevem apenas pelas letras alfabéticas, mas se inscrevem por várias outras grafias do conhecimento e por vias das corporeidades. [...] Quer dizer, nas corporeidades têm esse papel, esse lugar que é um dos princípios básicos de formulações dos saberes africanos, que é o princípio do movimento. As vozes de Cici e Leda cadenciam essas afrografias poéticas e sensíveis. De um lado, Vovó faz referência aos saberes presentes na cultura iorubá e afirma: “[...] eu sou tradicional e não afro-contemporâneo”. Como a raiz de uma gameleira branca, árvore associada a Irôko, o seu pensamento penetra o solo do pertencimento e conhece de onde vem, isto é, a linha da qual faz parte/pertence, ou seja, do Terreiro Casa Branca do Engenho Velho, fundado em 1830, depois do Terreiro do Gantois, fundado em 1835 como fruto da Casa Branca; e do fato de ser bisneta da terceira casa, ou seja, o Ilê Axé Opo Afonjá. 16 Os trechos das falas de Vovó Cici e Leda Maria Martins presentes nesse texto fazem parte da Mesa: “Conversas sobre o tempo”, realizada no dia 04 de maio de 2022 como abertura do Seminário Corpas, Saberes e Territórios nas Artes e na Educação. Disponível em: https:// www.youtube.com/ watch?v=sqEYz1AlRrM Com isso, a palavra de Vovó Cici grafa no ar a sua certidão ancestral/raiz de conhecimento proveniente desses três espaços sagrados, religiosos, filosóficos, políticos e culturais. Logo, vê-se que estes territórios (e quem veio antes) deixaram uma herança nos seus ditos: Para o africano em geral e para o Banto em particular, o ancestral é importante porque deixa uma herança espiritual sobre a terra, tendo contribuído para a evolução da comunidade ao longo da sua existência, e por isto é venerado. Ele atesta o poder do indivíduo e é tomado como exemplo não apenas para que suas ações sejam imitadas, mas para que cada um de seus descendentes assuma com igual consciência as suas responsabilidades. (LOPES, 2011, p. 166). Voltando ao “não afro-contemporâneo” da fala de Vovó Cici, particularmente, leio essa demarcação de tradicionalidade como uma crítica às desvirtuações, deturpações, modismos, apagamentos e apropriações que as religiões e elementos das culturas negras brasileiras sofrem indevidamente, uma vez que não há respeito e, em algumas situações, há apenas uma expoliação capitalista/oportunista, e sempre ou: [...] De vez em quando Um abre a boca Sem ser oriundo Para tomar pra si O estandarte Da beleza, a luta e o dom Com um papo Tão infundo [...] (CIRILLO; FRANÇA, 2017, s/n). Por outro lado, Leda Maria Martins nos recorda sobre a sabedoria do povo bantu, porém, a professora conclui que embora sejam saberes de matrizes culturais diferentes dos iorubás, alguns elementos que fazem parte dessas duas culturas as aproximam e estão presentes antes da formulação 5150 PARTE UM: A MEMÓRIA / escritas e vivências sobre o seminário PARTE UM: A MEMÓRIA / escritas e vivências sobre o seminário dessas matrizes. Em outras palavras, o que as une são o tempo curvo; e como pensou a professora Martins, essa ligação também ocorre via : “[...] esses saberes que transitam pelo e no corpo e no corpo, a voz, a dança.” Ouvir Vovó Cici e Leda Maria Martins é perceber a importância das gestualidades entremeadas de reverências, olhares e risos. Outro aspecto principal do diálogo entre ambas é a escuta, algo tão raro nos tempos atuais, pois o ato de escutar envolve um diálogo entre a espera e silêncio. Não se trata, porém, de uma escuta mecânica, há um respeito, acolhimento e ressonância com a palavra e com os saberes. Na escuta praticada por elas, há interesse e o silêncio permeia o intervalo da palavra. Todavia, o silenciar está relacionado ao nascimento e à valorização da espera do dizer, questões que podem ser lidas a partir do pensamento de Cecilia Bajour (2020, p. 34, tradução nossa). A escuta a que faço referência não tem a ver nem com a que se estabelece em uma relação terapêutica nem com a que se dá em trocas marcadas pela amizade, mas está além destes casos, já que também se leva em conta a palavra dos outros. Tampouco tem a ver com aquelas formas de escuta que somente se constituem com uma fachada marcada por uma suposta correção das formas ou pela relação cordial de quem respeita os tempos de uma conversa, mas sim onde se busca exercer algum tipo de controle sobre os outros ¹7. No diálogo de Vovó Cici há uma demarcação da importância da raiz, pois árvore sem raiz qualquer vento derruba e é importante saber de onde viemos. Por outro lado, ao falar sobre o Exu e sobre os modos pelos quais as culturas negras foram pensadas, interpretadas e reduzidas simbolicamente e violentamente pela colonização – mostrando como o sincretismo é invocado desse processo para reduzir a complexidade social, cultural, poética, política e filosófica dessas culturas, seja dentro das tradições bantu, seja dos iorubás – Leda Maria Martins traz a importância de: 17 “La escucha a la que me refiero no tiene que ver ni con la que se establece en una relación terapéutica ni con la que se da en intercambios marcados por la amistad, más allá de que en estos casos también se tenga en cuenta la palabra de los otros. Tampoco tiene que ver con aquellas formas de la escucha que solo constituyen una fachada marcada por una supuesta corrección de las formas o por la relación cordial de quien respeta los turnos de conversación, pero donde se busca ejercer algún tipo de control sobre los otros.” [...] resgatar de certa maneira esses princípios de cognição porque os modos e aproximação das divindades africanas com as divindades cristãs muitas vezes foi um modo forçado pelo próprio sistema colonizador. O sistema colonizador ele quer catequizar. Ele quer impor os valores filosóficos, linguísticos, sociais, políticos que o formatam. É muito interessante porque quando você pensa que quase todas as divindades, particularmente as iorubás vão ser associadas a uma divindade cristã, apesar de ter, vamos dizer assim uma imagem que está próxima apenas perifericamente. [...] Eu sempre falo que é muito fácil quando as pessoas dizem que: “tudo no Brasil que diz respeito a cultura negra é sincretismo”. Não, o sincretismo é apenas uma das derivações das encruzilhadas. Há outros modos muito mais sofisticados e complexos que derivam dessas encruzilhadas de encontros não amistosos de conhecimentos e de saberes e este princípio ele é tão poderoso, que é este princípio do movimento que é uma das qualidades, das inúmeras de Exu como linguista do sistema. Assim, voltamos ao começo da mesa. Depois de falar e se enveredar pelos caminhos, correntezas e estradas da palavra, Vovó Cici retoma a pergunta feita por Moa: “A senhora poderia me contar uma história sobre Irôko?”. Após discorrer sobre diversos outros assuntos, a griot retoma o questionamento e diz: “Eu conheço Irôko, mas não conheço o tempo”, e explica que Irôko é Jeje-Nagô e possui alguns nomes como Loko, Irôko e Roko. Do lado iorubá é considerado da família de Xangô, ou seja, da família do Rei, e é “[...] um orixá ligado à espiritualidade, que faz parte das sete árvores que são os pilares da cultura iorubá [...] O Irôko é uma árvore onde os ancestrais ficam...” No bailar e nas coreografias orais feitas pelas palavras, as falas das convidadas se cruzam e “dançam” por meio de alguns temas como, por exemplo, Exu. Vovó Cici recorda que Èsù Àkesán é o dono da feira, ou seja, das trocas. Pode-se pensar que, dentro de um diálogo, a palavra é uma troca e, nessa transação, a palavra é tempo (FREITAS, 2021) e “traz” o tempo passado para o presente. Logo, os saberes e as memórias são como costuras dialógicas de conhecimento, questões praticadas por Leda Maria Martins e por Vovó Cici 5352 PARTE UM: A MEMÓRIA / escritas e vivências sobre o seminário PARTE UM: A MEMÓRIA / escritas e vivências sobre o seminário durante todo o encontro. Diante de duas mestras e rainhas do saber e da poética ancestral, o canto de Leda Maria Martins, rainha de Nossa Senhora das Mercês da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário do Jatobá, reverencia a outra rainha, ou seja, Vovó Cici. Importante destacar que, a partir dessa sutileza de Leda com uma outra mais velha, conclui-se que sem os mais velhos não existiria o mais novo: há um continuum nessa performance do tempo e das vivências/da vida. A voz de Leda agracia, agradece, acolhe e embala a presença e a sabedoria de Cici com um Cântico de Reinado: Oi, com licença Oi, com licença Entre tambores e gunga Iáiá Quero pedir sua benção Oi, com licença Oi, com licença Entre tambores e gunga Iáiá Quero pedir sua benção. Rainhas! Enquanto Vovó Cici falava, Leda escutava e concluía: “Ouvir a Vovó Cici é habitar o lugar mais sagrado da ancestralidade que é o tempo como acúmulo de saber. Portanto, eu me sinto muito privilegiada de estar exercitando o que é muito precioso para as culturas negras, que é a escuta.” O ato de escutar nas culturas africanas é um gesto de entrega para o aprendizado, para o refinamento dos sentidos, das memórias e da ancestralidade. O/a narrador/a se transforma na palavra, ou seja, ele/ela encarna a história. As palavras ditas na Mesa se constituíam como uma encruzilhada e, sendo assim, um lugar de encontros. Cici afirma: “Sempre que eu posso desmistifico essa história de chamar o meu Exu de diabo. Ora, meu velho, o que é isso? Que falta de respeito com o que é meu ou nosso... Agora respeite o que é meu!”. Quando dirige estas palavras a Moa, a fala de Cici aproxima quem escuta, cria um ambiente de intimidade, acolhimento e provocação. Por meio da fala/“recado” de Cici de que Exu não é diabo, pode-se pensar e refletir sobre o racismo religioso sofrido pelas religiões de matriz afro-brasileira. Em recente entrevista, o professor Kabengele Munanga (ALMA PRETA, 2022, s/n) questiona: “Quantos terreiros de candomblé estão sendo incendiados em alguns lugares clandestinamente? Incendiados de colocar fogo e fugir, como a KKK fazia nos EUA. Quantos são caçados no seu território?” Cici, portanto, enfatiza a importância de Exu, menino andante que brinca com as palavras por estradas diversas. Ainda sobre o orixá, Leda afirma que: [...] ele é o linguista do sistema, o grande princípio de cognição, do movimento, da diversidade, o grande princípio da transformação [...] e ele manuseia mil e uma possibilidades de existir. [...] Ele exerce esse papel de linguista do sistema. Então, ser o senhor das encruzilhadas, é assim, ser o senhor das metamorfoses, o senhor do movimento, o senhor de uma sabedoria que não se absolutiza. Dessa forma, a partir do pensamento de Leda Maria Martins e de Vovó Cici, para afirmar e riscar o ponto, vale lembrar que Exu não é diabo e que ele não existe dentro da concepção de mundo das religiões de matriz afro-brasileira. As encruzilhadas e os saberes afro-brasileiros ganharam visibilidade nas últimas décadas no espaço acadêmico. A arte presente na costura, nos bordados, nas argolas, nos cantos e corpos – aspectos mencionados na fala de Vovó Cici – é tema de teses e dissertações. Há multiplicidade e complexidades nesses saberes, pois como afirmou a professora Leda: “As narrativas sobre o nosso povo são muitas!”. Logo, reverenciar quem veio antes, quem abriu caminhos ou brechas para a entrada desses saberes na 5554 PARTE UM: A MEMÓRIA / escritas e vivências sobre o seminário PARTE UM: A MEMÓRIA / escritas e vivências sobre o seminário academia é essencial para a circularidade do conhecimento. Na fala da professora, voltamos ao começo da década de 1980: [...] No comecinho dos anos 80 pela primeira vez eu estava propondo o conceito de encruzilhada. No conceito de encruzilhada vinha pela sabedoria iorubá, o Exu, mas também a encruzilhada como cosmograma, que é um cosmograma muito significativo das culturas bantu [...] Lá atrás, no começo dos anos 80, o que eu tentava mostrar é que Exu não tem nada a ver com o demoníaco...a associação que o sistema colonizador faz entre Exu e o signo do mal é completamente aleatória. As palavras de Vovó Cici e de Leda Maria Martins performam histórias e, entre os dizeres das duas há encontros, costuras de afetos de diferentes matrizes culturais, de olhares e vivências múltiplas. Segundo a professora Leda, nas histórias contadas por Cici durante o encontro há uma performance por meio da oralidade, na qual as palavras se movimentam e vão se “[...] encaixando umas nas outras, desencaixando, fazendo-as voltear, trançando as palavras no ar, voleando o tempo. O que ela fez conosco foi isso: é uma síntese das espirais do tempo, do tempo que eu tenho chamado de espiralar.” No “encerramento” da conversa – ou no recomeço de tudo –, o mediador Moa Simplício destaca que: Eu espero que essa “foto” que eu estou vendo aqui agora permaneça gravada na minha memória por muito tempo para eu poder contar isso também como uma história. Trazer isso como uma experiência. Experiência estética, de afeto, e experiência de saber... Nas casas de candomblé da nação angola, o mastro com uma bandeira branca simboliza a presença do Nkisi Kitembo. O tremular do tecido também indica a direção do vento, sempre em diferentes posições a cada fração de segundo. Por meio do movimentar da bandeira, pode-se refletir que o tempo como acontecimento não se repete; e, voltando à Mesa, que o encontro entre Vovó Cici e Leda Maria Martins foi um acontecimento, um “tempo vivo” reverberando saberes em muitas direções. Segundo a reflexão da professora Martins: “[...] de tempos somos, disse também Exu!” 5756 PARTE UM: A MEMÓRIA / escritas e vivências sobre o seminário PARTE UM: A MEMÓRIA / escritas e vivências sobre o seminário [BIBLIOGRAFIA] ALMA PRETA. Em entrevista para a Alma Preta, Kabengele Munanga avaliou o Brasil e o movimento negro nacional. Acessado em julho de 2022: https://almapreta.com/sessao/ politica/os-terreiros-estao-sendo-incendiados-como-a-kkk- fazia-nos-eua-diz-kabengele-munanga BAJOUR, Cecilia. Literatura, imaginación y silencio: desafíos actuales en mediación de lectura. Lima (PE): Biblioteca Nacional del Perú, 2020. Disponível em: https:// repositoriodigital.bnp.gob.pe/bnp/recursos/2/html/literatura- imaginacion-y-silencio/4/. Acesso em: jun. 2022. BORGES, Pedro. “Os terreiros estão sendo incendiados como a KKK fazia nos EUA”, diz Kabengele Munanga. Alma Preta. 08 de junho 2022. Disponível em: https://almapreta.com/sessao/ politica/os-terreiros-estao-sendo-incendiados-como-a-kkk- fazia-nos-eua-diz-kabengele-munanga CIRILLO, Lucas; FRANÇA, Xênia. Pra que me chamas?. Xenia. Agogô: São Paulo (SP), 2017. 4min.43s. FREITAS, Felínio de Sousa. Reinventar a fala e a escuta da palavra a partir da poética de Exu. Partilhas Sensíveis: diálogos sobre imagem, história e memória, mediação, arte e educação. Vol. 2. Universidade Estadual “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes, 2021. Disponível em: https:// www.academia.edu/82703240/Partilhas_Sens%C3%ADveis_ d i%C3%A1 logos_sobre_ imagem_hist%C3%B3r ia_e_ mem%C3%B3r ia_media%C3%A7%C3%A3o_arte_e_ educa%C3%A7%C3%A3o_Vol_2. Acesso em: jul. 2022: LOPES, Nei. Bantos, malês e identidade negra. Belo Horizonte (MG): Autêntica, 2006. MACHADO, Adilbênia Freire. Saberes ancestrais femininos na filosofia africana: poéticas de encantamento para metodologias e currículos afrorreferenciados. 2019. 268f. - Tese (Doutorado) - Universidade Federal do Ceará, Programa de Pós-graduação em Educação, Fortaleza (CE). Disponível em: https://repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/51976/5/2019_ tese_afmachado.pdf. Acesso em: jul. 2022. PRANDI, Reginaldo. O candomblé e o tempo: concepções de tempo, saber e autoridade da África para as religiões afro- brasileiras. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 16, p. 43-58, 2001. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/ BZgDYKY47Nn3gdPDwRTzCLf/abstract/?lang=pt. Acesso em: jul. 2022. SANTANA, Tiganá. Brevíssimas considerações sobre línguas bantu; em particular, a língua kikongo: memórias afro- brasileiras. Palimpsesto-Revista do Programa de Pós- Graduação em Letras da UERJ, v. 17, n. 28, p. 104-120, 2018. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/ palimpsesto/article/view/36999. Acesso em: jul. 2022. 58 PARTE UM: A MEMÓRIA / Escritas e vivências sobre o seminário 59 PARTE UM: A MEMÓRIA / Escritas e vivências sobre o seminário ENCONTROS DAS E SUAS CORRENTEZAS ÁGUAS GILVÂNIA SANTOS S ILVA 18 18 Mestranda pelo Instituto de Artes da UNESP sob orientação da Profª Drª Rita Luciana Berti Bredariolli. Artista das danças populares e afro- brasileiras, professora na Rede Pública Estadual em Osasco, mãe e pernambucana. 6160 PARTE UM: A MEMÓRIA / escritas e vivências sobre o seminário PARTE UM: A MEMÓRIA / escritas e vivências sobre o seminário GILVÂNIA SANTOS SILVA Não é uma tarefa fácil escrever sobre a mesa “Poéticas, Saberes e Memórias” – integrante da programação do Seminário Corpas, Saberes e Territórios – composta por Geni Núñez, Juliana dos Santos e mediada por Budga Deroby Nhambiquara. Digo não ser tarefa fácil, pois essa composição potente me atravessou com intensidade e delicadeza. Evidentemente, é preciso nos acostumar a ver e ouvir pessoas indígenas e negras em mesas de seminários acadêmicos, mas não somente. É preciso entender e reconhecer de fato essas populações como parte da nossa sociedade. Ailton Krenak, uma das mais importantes referências indígenas, escreveu uma obra com o título Ideias para adiar o fim do mundo. Diante de tantas barbaridades que ocorrem diariamente com as populações indígenas e negras no Brasil, eu me questiono se é realmente possível adiar o fim do mundo. Esta obra brilhante de Krenak, adaptada de seus discursos e entrevistas ao longo de dois anos em Portugal, me fez pensar sobre essa impossibilidade, mesmo transitando entre a esperança e desesperança ao longo da leitura do livro, que possui trechos sensíveis como “Quando você sentir que o céu está ficando muito baixo, é só empurrá-lo e respirar. (AILTON KRENAK, 2019, p. 28)” A fala inicial de Juliana dos Santos nos abre caminho à discussão sobre a importância do acesso à universidade pública para todas as pessoas. Ao longo da história, este lugar se tornou exclusivo de uma parcela da população, mas hoje, após muita resistência, insistência e briga por políticas públicas, tem recebido pessoas com a cara de toda a sociedade, como deve ser: diversa e múltipla. ENCONTRO DAS ÁGUAS E SUAS CORRENTEZAS A pergunta que Juliana nos faz em relação ao ensino da arte é, de fato, provocadora, pois é necessária uma disposição para que consigamos movimentar a estrutura e dinamizá-la. O questionamento faz pensar sobre de que forma queremos e/ou desejamos um ensino de arte no Brasil, em processo de transformação, mas ainda muito distante de atender a real demanda de uma sala de aula de escola pública, por exemplo. Atualmente, a/o artista-docente/docente-artista, vivencia desafios diários dentro desses espaços no que diz respeito à efetivação de um ensino da arte numa perspectiva antirracista e/ou decolonial. Ao assistir aos debates da mesa, não seria possível não pensar no poder que ela traz, a começar pelo próprio nome: POÉTICAS, SABERES, MEMÓRIAS. E foi pensando nessa força, inscrita desde o título da mesa, que concluo também ser inviável não pensar em todas as atrocidades que a população negra e indígena sofrem. Todas as formas de perseguição e genocídio dessas populações, fazem com que tenhamos mais dificuldade de levar aos espaços educacionais e culturais as experiências/vivências, o ensino e o fazer artístico relacionados a esses povos. Desta forma, é essencial pensar sobre essa grave situação que causa inquietação em todas as pessoas preocupadas com um ensino decolonial e, portanto, é urgente que tenhamos cada vez mais pessoas escrevendo e ensinando sobre todas as formas de manifestações culturais destes povos. É preciso ocuparmos todos os lugares, garantindo a presença efetiva na história e no ensino da arte, garantindo as poéticas, os saberes e as memórias tão importantes para a formação da nossa sociedade. Afinal, não há possibilidade de entender o Brasil sem conhecer as presenças indígenas e negras em todos os seus aspectos. Trata-se do sonho que Juliana dos Santos (2022) menciona, “aquele que mobiliza a gente, o sonho que faz a gente seguir adiante, acreditar”. Quando Juliana compartilha conosco suas experiências na arte, trata-se de um respiro coberto de possibilidades. Mesmo que ela diga, por vezes, que se via como corpo estranho ocupando lugares aos quais não se sentia pertencente 63 RECOMEÇANDO SEMPRE! Agradeço o convite para compor a publicação com este texto e evoco o microclima no qual estivemos imersas en- tre os dias 4 e 7 de maio, deste ano de 2022, no Seminário Corpas, Saberes e Territórios nas Artes e na Educação. Todo o ambiente criado, com seus espaços/tempos cuidadosa- mente temperados com afetos e dedicação de gente com- petente e valente, que tem trazido novos ventos para a aca- demia. Ventos fortes com cheiro de chuva em terras batidas, ventos leves e constantes como brisa de mar, ventos que açoitam fogueiras e esquentam tambores, ventos que can- tam e encantam. Ventos que varrem histórias únicas e criam climas propícios para se ver, rever e contar outras histórias sobre arte e educação. Para começo de conversa, peço licença à Vovó Cici, a mais velha, que abriu a roda de conversa na mesa de abertu- ra. Quando ouvi e me embebi em sua fala, me dei conta de que no quintal de nosso grupo de pesquisa, o GPIHMAE, eu sou a mais velha! Me dei conta deste lugar que ocupo e da responsabilidade que carrego por isso, entendendo que a po- sição de mais velha é relativa. Talvez por isso somente agora eu esteja me dando conta dessa relação em meio ao grupo de pesquisa. Mas o que quero remarcar é que o conceito de mais velha/o, com todo o respeito e responsabilidade que ele carrega, tenho aprendido com vocês, os mais jovens, que estão trazendo para dentro da academia os ventos e saberes das culturais ancestrais indígenas e africanas. Nos quatro dias do Seminário, passeei entre vários co- meços e, aqui, experimento retomar o rascunho de minha fala na mesa final, além de compartilhar alguns (re)começos, num processo espiralar, conceito trazido por Leda Maria Mar- tins e Geni Nuñez. REJANE G. COUTINHO 62 # recomeço 1. O título da mesa “Criando territórios para outros saberes” e impregnada pelas potentes provocações de Eduardo Miranda sobre as responsabilidades da academia na expansão dos territórios, compartilho as reflexões de Rita Segato no seu texto Bre- chas decoloniais para uma universidade da Nossa América (2021), que reflete o que evidenciam as palavras que circu- laram nesse Seminário. Rita Segato foi coautora da primeira proposta de cotas para estudantes negros e indígenas no ensino superior do Brasil, e nesse texto rememora um episó- dio de 1998 que ocorreu no Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UnB e deu origem ao movimento, refletindo sobre as mudanças necessárias. Essa luta abriu a reflexão sobre diversos temas: a importância de se pensar o direito humano à educação; a dificuldade e a resistência que o meio acadêmico apresenta à sua democratização em termos raciais; o caráter conservador do meio acadêmico; as formas de discriminação e a violência moral, intelectual e psicológica – ou seja, o racismo – praticadas em seus claustros. Tocamos várias fibras do músculo da desigualdade (...). Tocamos também em outras, como as da universidade que, sendo fatalmente eurocêntrica, não suporta ver-se negra, não branca, indígena, contaminada pela aparência geral de nossas maiorias porque isso representa, aos olhos da comunidade acadêmica mundial, a perda de prestígio, modernidade e autoridade, sempre associados a uma visão estereotipada do Norte. (SEGATO, 2021, p. 329). A autora segue sua reflexão e demonstra o quanto este imaginário dominante em nossas universidades é equivoca- do, e como o nosso trabalho de desconstrução e reconstru- ção precisa seguir adiante. Ela apresenta “quatro brechas de- coloniais”, nas quais identifico nossas práticas atuais, como direitos: 1. direito à educação, ou seja, ao acesso e à permanência; 2. à educação em direitos humanos como parte inseparável de seus conteúdos; 3. à adesão ao pluralismo e respeito aos direitos dos PARTE UM: A MEMÓRIA / escritas e vivências sobre o seminário PARTE UM: A MEMÓRIA / escritas e vivências sobre o seminário Figura 01 - “Entre o azul e o que não me deixo/ deixam esquecer”, Juliana dos Santos, 2022 6564 PARTE UM: A MEMÓRIA / escritas e vivências sobre o seminário PARTE UM: A MEMÓRIA / escritas e vivências sobre o seminário socialmente, suas experiências trazem aberturas para discussões sobre o pensamento e a ocupação desses lugares por/para/pela população negra. Assim, espaços e instituições – tais como o Museu Afro Brasil – tornam-se extremamente necessários. De maneira brilhante, Juliana contextualizou sobre a presença significativa e direta, sobretudo das mulheres negras, no processo de educação e letramento de crianças, visto que essas mulheres eram suas amas de leite e, depois, as babás. Isto nos lembra de Lélia Gonzalez e sua abordagem em relação ao pretuguês, e de Maria Firmina, além de outras mulheres importantíssimas para a construção e organização do saber. As experiências de dor que atravessam a pessoa negra, originam toda uma produção artística e intelectual, talvez até mesmo pelo desejo de justiça e reparação, mas como bem colocou Juliana, também me questiono: Será esse nosso único lugar do fazer artístico? Quais outras possibilidades existem para o fazer da pessoa negra? Por outro lado, no início de sua fala, Geni Nuñez nos traz uma provocação em relação ao fazer artístico relacionado às culturas indígenas. Desta maneira, também apresento uma reflexão instigante do poeta e líder político Aimé Césaire, e, desta maneira, desejo também provocar. Uma civilização que se mostra incapaz de resolver os problemas que seu funcionamento provoca é uma civilização decadente. Uma civilização que opta por fechar os olhos para seus problemas mais cruciais é uma civilização doente. Uma civilização que se esquiva diante de seus princípios é uma civilização moribunda. (AIMÉ CÉSAIRE, 2020, p. 09) Em um âmbito mais específico, perante a pergunta: Qual a diferença entre arte e artesanato? o que você responderia? Ou ainda: o que é arte e o que é artesanato? ARte ARtesa ARtesanato ARtesanato ARte AR 6766 PARTE UM: A MEMÓRIA / escritas e vivências sobre o seminário PARTE UM: A MEMÓRIA / escritas e vivências sobre o seminário Nesse sentido, opto por brincar com as palavras ARTE e ARTESANATO, iniciadas com a pequena e poderosa sílaba AR, em referência à uma substância que entra por nossas narinas e que não pode ser tocada, formada por diversos gases, para dizer que existe vida. AR: o que nos move, coloca em trânsito e possibilita experienciar outros lugares e outros saberes. Na sequência, Geni nos inquieta em relação à lógica colonial que insiste em dividir corpo e mente, criando uma relação binária. De certa forma, há um discurso segundo o qual as artes indígenas não requerem aprofundamento e processo de criação. O chamado artesanato narrativo que Geni propõe com seu companheiro de luta e movimento, Natanael, traz uma abertura para repensar o ensino da arte, sobretudo nas escolas públicas. Assim, vale pensar: O que se ensina sobre arte e cultura indígena nos espaços escolares? Quais são e como são as abordagens feitas? Pensando nas abordagens e no que se apresenta sobre os povos originários, Geni também fala sobre o uso da palavra herança para se referir a algo que nos foi deixado. No entanto, a herança normalmente é oriunda da morte de alguém, e a população indígena está viva e presente, logo, não há herança, mas história viva e pertencente. Atravessada por essa provocação, faço um apontamento em relação à palavra resgatar. No dicionário, a palavra resgatar está relacionada a livrar, libertar e, ainda, à quitação de dívidas. Sendo assim, vale questionar: De qual dívida, livramento e/ ou liberdade estamos falando, considerando que o fazer dos povos indígenas integra nossa estrutura e organização social? Geni fala da importância do acesso às universidades pelos povos indígenas, além de enfatizar que não há inserção, tampouco troca de saberes, sobretudo dos hegemônicos. Assim, deve-se disputar e apresentar uma forma de existir nesses territórios. Em sua fala sobre as questões de Arte e Artesanato, Geni nos ensina, portanto, que não há uma separação entre esses dois ARES, que são a apresentação do modo de vida por meio do qual se expressa. Geni continua sua discussão e diz que é “por saber de onde a gente veio, que a gente se orienta pra onde a gente vai.” Com esta citação, logo me lembrei de uma frase em Yorubá que nos diz: o rio que esquece da fonte, seca. O mesmo ocorre por meio da música, que são cantos sagrados; da dança, que são rituais; e das vestimentas e várias outras formas de existir dentro da comunidade, que se reafirmam e constituem a memória. Portanto, “o cocar que o parente está usando agora, o adorno que eu estou usando agora, não é um objeto. É algo que a gente é”. Nesse sentido é importante pensar no processo de apropriação e objetificação que Geni nos apresenta. Assim, considero urgente, dentro dos espaços educacionais, a disposição para repensar/rever as formas de ensino. O esforço deve ser compromisso diário para que estudantes/crianças/jovens e adolescentes ressignifiquem seus modos de pensar e agir diante dessas discussões. Ao longo da fala de Geni Nuñez, me chama a atenção a questão do pertencimento e a relação com a Terra, pois estes aspectos se interligam e existem em ambas as populações indígenas e negras. Afinal, tudo é natureza, inclusive nós, em meio ao. AR que respiramos e à TErra que pisamos e nos sustenta. É possível uma não separação entre as coisas, uma vez que tudo está e/ou pode estar no fazer, no que somos. Por fim, pensando sobre a presença, Juliana traz um breve relato de sua estrutura familiar e sobre como entender a estrutura em que se está inserida/o para se mobilizar e criar/abrir caminhos para outras pessoas: “Tão necessário quanto o feijão é o sonho pra gente caminhar.” (GENI NUÑEZ, 2022) Pode-se dizer, dessa forma, que o senso de coletividade é saber que não se está só. Vale pensar e criar ideias- ações para adiar o fim do mundo entre a desesperança e a esperança. Sendo assim, que nós não nos esqueçamos das nossas fontes, para sempre lembrarmos de onde viemos. Caminhemos! 6968 PARTE UM: A MEMÓRIA / escritas e vivências sobre o seminário PARTE UM: A MEMÓRIA / escritas e vivências sobre o seminário prólogo no céu: vou me mergulhar nas águas turvas da(o) capital porque hoje em dia amar é um erro, como se perder nu num shopping de acolá. e agora rima... reza porque se o verso for bom eu posso musicar menino, rima... reza porque se o gesto agradar entre o feijão e o sonho: o amor mora em mim, mora em ti mas nós moramos em algum lugar; que é pago e agora? as contas do amor, quem vai pagar com osso e valsa? as contas do amor, quem vai pagar? é osso e valsa: dança perigosa! prepara o bolso amor, prepara! pois quanto mais for ido, flor; com mais jura ou menos, juro que os vasos eu cuido esta sacada é divinal devagar com o andor, atenção! dá preguiça e dá vontade de fazer careta e agora a ordem é presidir, conciliar feijão e sonho a ordem é dividir, compartilhar feijão e sonho mas no fim das contas prepara o bolso, amor, prepara! pois quanto mais for ido, flor… (Feijão e Sonho - François Muleka, 2014) [BIBLIOGRAFIA] SILVA, Gilvânia Santos. Encontro das águas e suas correntezas. Seminário: Corpas, Saberes e Territórios, 2022. CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. São Paulo: Editora Veneta, 2020. KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo:Companhia das Letras, 2019. 70 PARTE UM: A MEMÓRIA / Escritas e vivências sobre o seminário 71 PARTE UM: A MEMÓRIA / Escritas e vivências sobre o seminário Dos Afluentes que se DE Ritos e Corpas: Intimidades e Tensões Encontram Nesse Mar Janaína Farias de Souza Ferreira 19 19 Mãe, arte-educadora do município de Osasco e mestranda do Prof-Artes pelo Instituto de Artes da Unesp com pesquisa que aborda questões decoloniais no currículo de Arte. 7372 PARTE UM: A MEMÓRIA / escritas e vivências sobre o seminário PARTE UM: A MEMÓRIA / escritas e vivências sobre o seminário Janaína Farias de Souza Ferreira Castiel Vitorino Brasileiro nasceu no Brasil e pertence à linhagem da família AfroBantu. É artista visual, escritora, psicóloga e mestre em psicologia clínica. Conhecer. É preciso uma pequena pesquisa sobre quem é Castiel para mergulhar em seu território de experiências e construir um diálogo em torno de “ritos, performance e corporeidade” proposto por este seminário. Ao juntá-la nesta mesa de conversa com Eduardo Miranda, sob mediação de Sarah Castro, o terreno foi sacudido por um pequeno terremoto, o que nos trouxe muitas perguntas e poucas respostas. E, nesse caso, as respostas pouco importavam, pois tudo o que foi dito, foi jogado em terreno fértil. A civilização brasileira menospreza os nomes dos povos de civilizações africana -aqui enraizados há quase 500 anos- e prefere o sofismo de chamá-los pelo nome da commodity transportada em navios negreiros: os negros. Cria-se assim, em tese, um círculo vicioso de racismo institucional e sistêmico que retroalimenta o racismo estrutural no Brasil. A brasilidade alcança cotidianamente seu objetivo de matar as almas africanas brasileiras, e assim segue especializando a civilização brasileira num africanicídio (Mestre Renato Santos). Essa citação de Mestre Renato Santos, da tradição AfroBantu, na qual Castiel foi iniciada desde sua infância, está Dos Afluentes que se Encontram Nesse Mar de Ritos e Corpas: Intimidades e Tensões em seu livro Quando o sol aqui não mais brilhar: a falência da negritude. O trecho já nos tira do lugar quando questiona a relação com o nosso território e nós mesmos, enquanto sociedade, e nos lança questões: O que é o Brasil? Qual é a relação do Brasil com a África? Como podemos criar outros territórios? A presença de vida em um outro espaço tem o poder de instaurar outro território? Como a presença de uma vida (vegetal, mineral, invisível) consegue transfigurar, transmutar, modificar um espaço e instaurar uma outra situação geográfica, um outro espaço? Assim, Castiel nos sacudiu e fez refletir, enquanto sociedade brasileira, sobre como nos relacionamos dentro de um sistema que é construído sem memória, sem conhecimento. Ela diz que o Brasil é um grande museu que desconhece sua própria história. Conhecemos aquilo que nos foi contado sob uma perspectiva eurocêntrica, colonial, que enraíza dentro de cada um de nós uma história que, quase sempre, não nos pertence. Questões como essas trazem a importância de se olhar para trás, assim como no ensinamento do SANKOFA²0, e aprender com os que vieram antes de nós e trouxeram sua memória para o Brasil, valorizando esse conhecimento. “A história do Brasil é esquizofrênica” (Beatriz Nascimento) Essa frase de Beatriz Nascimento a acompanha em seu trajeto de mestrado e de vida, e responde a muitos de seus questionamentos. A ideia de esquizofrenia que Castiel aborda com Beatriz Nascimento se relaciona à uma visão deturpada da realidade. Em outras palavras, no Brasil, as informações em que acreditamos e as histórias que nos contaram partem, na verdade, de uma visão modificada dos fatos, com eventos manipulados e mentirosos, tornando a branquitude sinônimo de violência. Assim, criou-se um dos 20 Sankofa é um provérbio tradicional entre os povos Akan que significa, segundo o dicionário de símbolos, a volta para adquirir conhecimento do passado, a sabedoria e a busca da herança cultural dos antepassados para construir um futuro melhor. Disponível em: www. dicionariodesimbolos. com.br. Acesso em: 16 ago. 2022 7574 PARTE UM: A MEMÓRIA / escritas e vivências sobre o seminário PARTE UM: A MEMÓRIA / escritas e vivências sobre o seminário grandes desafios da nação brasileira: entender realmente os eventos que nos construíram até aqui. Para esse entendimento, Castiel nos coloca diante de fatos e estudos que provam o quanto somos violentados pelas nossas diferenças: Quem são os que mais são assassinados no Brasil? Os que estão encarcerados? Os que vivem na pobreza? Ela cita o exemplo do trabalho no Instituto Marielle Franco²¹ que cataloga os dados da violência no Brasil e, como apontam as pesquisas, menciona que em nosso país: Existe racismo, ainda que digam que não, Pessoas brancas tornam-se racistas, ainda que digam que não. Esses fatos apontam um pacto feito pela branquitude que deixa pelas frestas grande parte da nossa população. Um país que foi construído em cima de mortes e violências. Defender esse modelo de nação é viável? Para Castiel, precisamos destruir o Brasil. Não o território brasileiro, mas essa ideia de Brasil que foi construída. A branquitude é um adoecimento, e traz consigo uma visão deturpada que faz com que os brasileiros ignorem tais questões. Aponta-se, ainda, que desde a infância, quando nos deparamos com violências raciais dentro do ambiente escolar, escolhemos dizer que o racismo não existe, que é bullying, transformando esse tipo de diálogo em fatos invisíveis, não existentes: Como lidar com o que não existe? Questões como essas nos acompanham desde que nos forçaram a estar aqui neste território, evidenciando que 21 Cf http://www. institutomariellefranco.org essa luta pela liberdade é algo que tem sido construído há tempos. Na continuação das perguntas, Castiel ressalta: E como é possível viver as nossas liberdades? O que é Liberdade? Para responder, ela descreve cenas da performance de muSa Michelle Mattiuzzi: “experimentando o vermelho em dilúvio”²², de 2016, e nos coloca em uma experiência poética na qual a relação com o sangue não precisa envolver dor, sofrimento e violência, pois é possível ser de prazer, felicidade e liberdade. Estas são imagens lindas para Castiel, pois trazem a conexão com a liberdade, como um momento perecível, possível através da obra de arte e viabilizador da intimidade com outras histórias que não as da branquitude. Sobre liberdade e intimidade, Castiel cita o primeiro capítulo de seu livro, que aqui destaco um trecho: A liberdade para uma pessoa destinada à certeza de seu pertencimento na negritude é uma questão de intimidade. A liberdade para pessoas retintas, que cotidianamente são traduzidas na mitologia moderna da raça negra, trata-se também das dobras que fazem neste fato violento que nos contam como destino inevitável: tornar-se negra/o. (BRASILEIRO, 2022, p. 13). Assim, nos faz refletir sobre o letramento racial, ou seja, sobre o que pessoas brancas contaram e contam sobre nós. Diz, ainda, que as palavras “índio” e “negro” são uma invenção branca. E, quando nos aprofundamos no verdadeiro significado dessas palavras, descobrimos que negro vem de necro = podre. Castiel prossegue: Quais seriam os nossos outros nomes? Qual, de fato, são nossos verdadeiros nomes? 22 Cf www.studiomusa.art/ performance. Acesso em 18 ago. 2022. A roupa branca, a máscara, a perfuração e o sangue são elementos de uma caminhada ritual até a estátua do líder resistente à escravidão Zumbi dos Palmares, no centro do Rio de Janeiro. Criação: muSa Michelle Mattiuzzi e Elton Panamby. Rio de Janeiro, Brasil, 2016. 23 O princípio da Intimidade, primeiro capítulo do livro de Castiel Vitorino Brasileiro, Quando o sol aqui não mais brilhar: a falência da negritude, 2022. 7776 PARTE UM: A MEMÓRIA / escritas e vivências sobre o seminário PARTE UM: A MEMÓRIA / escritas e vivências sobre o seminário E nos instiga com possibilidades: Como ensinar nossas crianças a nossa verdadeira história sem se resumir a palavras tão simples como negro ou índio e que pouco dizem o que realmente significamos? Por exemplo, Castiel nos inquieta quando diz não existir o significado de negritude em tupi²4 ou em quimbundo²5. Entretanto, a não existência de um significado não quer dizer que negritude não existe, mas que há uma abertura de possibilidades e outras explicações para nossas vidas que não são orientadas apenas pelos discursos de raça e gênero. Por meio da reflexão sobre a arte como possibilidade de criar espaços de liberdade, Castiel cita as obras de Jaider Esbell²6, Ailton Krenak²7 e Tiganá Santana²8, pois estes deslocam nossos pensamentos para refletir sobre a nossa existência, respeitando o caráter efêmero da vida. Efemeridade que também está presente em sua produção artística, na qual cria espaços perecíveis de liberdade. Assim, a vida e a liberdade estão relacionadas à essa transformação/ transmutação. Nessa esteira, pode-se dizer que nossa cultura é algo que se perpetua, é viva, é livre. E sobre essa liberdade, Castiel diz: Ir para onde eu quiser, modificar minha presença, fincar minha presença de várias formas e assim construir outras origens. nasci no Brasil, (...) não, nasci no morro da Fonte Grande. a nação brasileira, não me quis e nem eu a quis… pretendo ser livre, (…) vou construir outras origens, isso é liberdade. (BRASILEIRO, 2022) Para trazer essas experiências para nossa realidade, Castiel traz referências das nossas verdadeiras histórias que, por sua vez, estão nos terreiros, nos centros de umbanda, no candomblé, em nossos relacionamentos com nossas singularidades, nossa forma de andar, vestir, comer, nossa música, e conclui que tudo isso deve fazer parte do nosso cotidiano para que integre nosso ser/estar neste mundo. 24 Tupi-guarani: uma das quatro grandes famílias linguísticas da América do Sul tropical e equatorial; indígenas pertencentes a essa família. Cf http:// biblioteca.funai.gov.br/ media/pdf/Folheto43/ FO-CX-43-2739-2000.pdf. Acesso em 22 ago. 2022. 25 Segundo o dicionário Oxford Languages, quimbundo é a língua da família banta, falada em Angola pelos ambundos. 26 Cf http://www. jaideresbell.com.br/site/ sobre-o-artista/ 27 Cf https://www. instagram.com/_ ailtonkrenak/ 28 Cf hhttps://www. instagram.com/ tiganasantanaoficial/ 24 Muniz Sodré de Araújo Cabral nasceu na cidade de São Gonçalo dos Campos - BA, em 12 de janeiro de 1942. Passou sua infância em Feira de Santana. Mais tarde, na cidade de Salvador, iniciou sua vida profissional como colaborador do Jornal da Bahia, exercendo também a função de tradutor, no Departamento de Turismo da Prefeitura. Transferiu-se anos depois para o Rio de Janeiro, onde ganhou notoriedade como professor e ensaísta. Cursou mestrado em Sociologia da Informação na Universidade de Paris III – Sorbonne, Doutorado em Letras na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Pós-doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales, na França. É membro, entre outros, da Sociedade de Estudos da Cultura Negra no Brasil (SECNEB) e da Associação Brasileira de Nossa memória também deve trazer essas experiências que tornam o conhecimento possível. Dessa forma, cita os terreiros de umbanda e candomblé como locais de memórias importantes, e a obra de Leda Maria Martins, Afrografias da memória. Como memória, Castiel se emociona ao ser questionada sobre sua relação com a água, por ser um elemento muito importante, uma vez que Castiel pertence às divindades e orixás da água. Para ela, água é força vital, transformação, força uterina, gestação. Em seus estudos sobre o universo, acredita que há vida em outros planetas