UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA JÚLIO DE MESQUITA FILHO CAMPUS DE SÃO JOSÉ DO RIO PRETO INSTITUTO DE BIOCIÊNCIAS, LETRAS E CIÊNCIAS EXATAS ANA CLAUDIA CASTIGLIONI Dicionário enciclopédico de topônimos do estado de Mato Grosso do Sul: uma proposta de modelo. São José do Rio Preto 2014 ANA CLAUDIA CASTIGLIONI DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE TOPÔNIMOS DO ESTADO DE MATO GROSSO DO SUL: UMA PROPOSTA DE MODELO. Tese apresentada ao Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista, Câmpus de São José do Rio Preto, para obtenção do título de Doutor em Estudos Linguísticos (Área de Concentração: Teoria e Análise Linguística – Linha de pesquisa: Descrição e Análise do Léxico Especializado). Orientador: Profa. Dra. Lidia Almeida Barros São José do Rio Preto – SP 2014 Castiglioni, Ana Claudia. Dicionário enciclopédico de topônimos do estado de Mato Grosso do Sul : uma proposta de modelo / Ana Claudia Castiglioni. -- São José do Rio Preto, 2014 233 f. : il. Orientador: Lidia Almeida Barros Tese (doutorado) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas 1. Linguística aplicada. 2. Análise linguística (Linguística) 3. Toponímia. 4. Mato Grosso do Sul – Hidrônimos. I. Barros, Lidia Almeida. II. Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho". Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas. III. Título. CDU – 41 Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca do IBILCE UNESP - Câmpus de São José do Rio Preto ANA CLAUDIA CASTIGLIONI DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE TOPÔNIMOS DO ESTADO DE MATO GROSSO DO SUL: UMA PROPOSTA DE MODELO. COMISSÃO EXAMINADORA Membros Titulares _____________________________________________ Profa. Dra. Lidia Almeida Barros UNESP – São José do Rio Preto (Orientadora) _____________________________________________ Profa. Dra. Aparecida Negri Isquerdo UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul _____________________________________________ Profa. Dra. Karylleila Andrade Klinger UFT – Universidade Federal do Tocantins _____________________________________________ Profa. Dra. Maria José Bocorny Finatto UFRGS - Universidade Federal do Rio Grande do Sul ____________________________________________ Profa. Dra. Paula Tavares Pinto UNESP – São José do Rio Preto Membros Suplentes Profa. Dra. Mariângela Araújo Prof. Dr. Odair Luiz Nadin da Silva São José do Rio Preto, 28 de julho de 2014 AGRADECIMENTOS À minha orientadora, Profa. Dra. Lidia Almeida Barros, por todo o apoio, orientações, sugestões e correções. Aos professores do Programa de Pós-graduação em Estudos Linguísticos, pelos conhecimentos transmitidos. À equipe do Projeto ATEMS, por disponibilizar os dados para a proposta do dicionário enciclopédico toponímico elaborada neste trabalho. Ao Prof. Dr. Celso Fernando Rocha e à Profa. Dra. Maria Cândida Trindade Costa de Seabra por fazerem parte da comissão examinadora no meu Exame Geral de Qualificação. Às professoras: Dra. Ana Paula Tribesse Patrício, Dra. Aparecida Negri Isquerdo e Dra. Maria Cândida Trindade Costa de Seabra, pelas sugestões feitas a este trabalho por ocasião do simpósio “O nome próprio em foco: estudos onomásticos – toponímicos” durante congresso ocorrido em Julho de 2013 na cidade de Goiânia. Aos funcionários da seção de pós-graduação do IBILCE, pela atenção sempre dispensada. Aos colegas da Universidade Federal do Tocantins, especialmente ao coordenador do Colegiado de Letras, Prof. Dr. José Manoel Sanches da Cruz, pela colaboração durante meu afastamento no período de novembro de 2013 a março de 2014 para conclusão deste trabalho. Ao amigo Agripino, pelo apoio de sempre, pelas conversas, pela companhia nas longas horas de estudo, à amiga Selma, por ter me acolhido em sua família quando cheguei à cidade de Araguaína – TO e a amiga Glória, pelo companheirismo e amizade nesse período de estudos. À Dalva, que me recebeu em sua casa durante o período que estive em São José do Rio Preto e às amigas Dona Isolda e Mirlene, Taísa, Daniela e Maria de Fátima. Ao pequeno Caetano, afilhado amado que enche a minha vida de alegria. À meus pais, Loreci e José, pelo exemplo de fé, coragem, perseverança e amor; à minha irmã Patrícia e ao meu cunhado Carlos pelo apoio de sempre. RESUMO Esta pesquisa tem como objetivo mais amplo elaborar uma proposta de formato de dicionário enciclopédico toponímico e, para isso, utilizamos como corpus o repertório das unidades léxicas que designam o nome dos elementos geográficos referentes à água, ou seja, os hidrônimos. Os hidrônimos que fazem parte de nossa pesquisa se referem aos elementos hidrográficos arroio, baía, cabeceira, cabo, cachoeira, canal, catarata, corixão, corixo, córrego, foz, lago, lagoa, nascente, represa, riacho, ribeira, ribeirão, rio, riozinho, salto, sanga, vazante, volta. Esses hidrônimos foram obtidos no banco de dados do projeto Atlas Toponímico do Estado de Mato Grosso do Sul – ATEMS. Para alcançar o objetivo principal da nossa pesquisa refletimos sobre o estatuto do mapa como texto fonte de pesquisa toponímica e como nele estão registrados os sintagmas toponímicos; analisamos alguns dicionários toponímicos brasileiros publicados para entender como funcionam e quais os objetivos de obras como essas; organizamos um sistema conceptual dos hidrônimos de Mato Grosso do Sul com base no amparo teórico da Terminologia, considerando as relações hierárquicas e não hierárquicas existentes entre as unidades léxicas que fazem parte de nosso corpus; propomos três modelos de microestrutura de verbetes: dois principais, um para verbetes cujas entradas designam conceitos relativos a elementos hidrográficos e a conceitos-chave do conjunto terminológico, outra para a constituição dos verbetes que têm como entradas os sintagmas toponímicos e uma terceira remissiva; organizamos um sistema de remissivas prevendo a presença de sintagmas toponímicos variantes e indicando ao consulente qual verbete deve procurar para encontrar a informação que deseja. Por fim, organizamos uma amostragem de verbetes como demonstrativo do que poderá vir a ser o dicionário. Desenvolvemos essas ações para chegar ao objetivo principal de apresentar uma proposta de modelo de dicionário para sintagmas toponímicos, no que se refere à superestrutura, à macroestrutura e à microestrutura e ao sistema de remissivas. Esperamos que nossa pesquisa possa contribuir com o avanço dos estudos toponímicos, particularmente no estado de Mato Grosso do Sul. PALAVRAS-CHAVE: Toponímia, Terminologia, Dicionário, Hidrônimos, Sintagmas toponímicos, Termos, Mato Grosso do Sul. ABSTRACT This research has broader objective to elaborate a propose of format of toponymic encyclopedic dictionary and for that we use as corpus the repertoire of the lexical units that designate the names of the geographical features related to water, i.e. hydronym. The hydronyms that are part of our research refer to elements hydrographic stream, bay, marsh, head, cape, waterfall, canal, cataracts, corixão, corixo, stream, estuary, lake, pond, spring, dam, creek, river, stream river, little river, jump, sanga, ebb back. These hydronyms were obtained at database toponymic of the State of Mato Grosso do Sul project – ATEMS. To achieve the main objective of our research we reflect on the status of the map as text source toponymic research and how in it is recorded the toponymic syntagma; we analyze some Brazilian toponymic dictionaries already published to understand how they work and what the goals of a work like this; we organize a conceptual system of hydronym of Mato Grosso do Sul based on theoretical support of Terminology considering the hierarchical and non-hierarchical relationships between the lexical units that are part of our corpus; we propose three microstructure models of headwords: two main, one for headwords whose entries describe concepts related to hydrographic elements and key concepts of terminology and another set for the establishment of the headword that have as inputs the toponymic syntagmas, and a third remitting; we organize a system of reference foreseeing the presence of the variant toponymic syntagmas and indicating to person who is consulting the dictionary which headword he/she should look for to find the information who wants. Finally, we organize a sampling of entries as demonstration of what it could come to be the dictionary. We develop these actions to reach the main goal of presenting a proposal of model of dictionary to toponymic syntagmas, as regards the superstructure, the macrostructure and microstructure and the remitting system, we hope our research may contribute to advancement of toponymic studies, especially in the state of Mato Grosso do Sul. KEYWORDS: Toponymy, Terminology, Dictionary, Hydronyms, Toponymic Syntagmas, Terms, Mato Grosso do Sul. LISTA DE QUADROS Quadro 1 – Taxionomias de natureza física Quadro 2 – Taxionomias de natureza antropocultural Quadro 3 – Hidrônimos Quadro 4 – Ficha toponímico-terminológica I Quadro 5 – Ficha toponímico-terminológica I preenchida Quadro 6 – Ficha toponímico-terminológica II Quadro 7 – Ficha toponímico-terminológica II preenchida Quadro 8 – Configuração do sistema conceptual Quadro 9 – Níveis 1, 2 e 3 do sistema conceptual Quadro 10 – Taxionomias de natureza física Quadro 11 – Taxionomia de natureza antropocultural Quadro 12 – Número de taxionomias e elementos geográficos do nível 2: águas lênticas Quadro 13 – Número de taxionomias e elementos geográficos do nível 2: águas correntes Quadro 14 – Número de taxionomias e elementos geográficos do nível 2: águas em queda Quadro 15 – Critérios para escolha dos sintagmas toponímicos da amostragem de nosso dicionário LISTA DE FIGURAS Figura 1 – Procedimento de busca no banco de dados do ATEMS Figura 2 – Localização de elementos hidrográficos destacados no mapa Figura 3 – Trecho do mapa ilustrando o Córrego Limoeiro ou Jatobá Figura 4 – Trecho do mapa ilustrando o Córrego Piquiciri/Piquiri Figura 5 – Trecho do mapa ilustrando o Rio Anhanduí/Rio Inhanduí SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 12 1. FUNDAMENTOS TEÓRICOS ........................................................................... 16 1.1 Toponímia ............................................................................................................. 16 1.1.1 A motivação na Toponímia ............................................................................ 16 1.1.2 A estrutura do sintagma toponímico .............................................................. 19 1.1.3 Classificação taxionômica dos topônimos ..................................................... 23 1.1.4 Modelo Taxionômico de Dick (1992) ............................................................ 25 1.2 O estudo do Léxico ............................................................................................... 28 1.2.1 A organização de repertórios léxicos ............................................................. 29 1.2.2 Os tipos de dicionários ................................................................................... 32 1.2.4 Dicionários onomásticos ................................................................................ 36 1.2.5 A fonte dos dados: o mapa como texto .......................................................... 38 1.2.6 Terminografia como amparo teórico-metodológico para a constituição do sistema conceptual de hidrônimos........................................................................... 41 2. METODOLOGIA DA PESQUISA...................................................................... 45 2.1 Análise dos dicionários toponímicos .................................................................... 45 2.2 Delimitação da nomenclatura ............................................................................... 46 2.3 Fonte dos dados .................................................................................................... 47 2.4 Ficha toponímico-terminológica de nossa pesquisa ............................................. 48 2.5 Organização do sistema conceptual de hidrônimos .............................................. 53 2.6 Revisão das taxionomias ....................................................................................... 53 2.7 Busca e tratamento dos dados de natureza geográfica .......................................... 54 2.8 Busca e tratamento dos dados histórico e contexto .............................................. 55 2.9 Amostragem de verbetes ....................................................................................... 57 3. ANÁLISE DAS OBRAS TOPONÍMICAS ......................................................... 58 3.1 Toponímia Carioca (Agenor Lopes de Oliveira, 1935) ........................................ 58 3.2 Dicionário reversivo de Topônimos e gentílicos (Luiz A. P. Victoria, 1954) ...... 59 3.3 Denominações Indígenas na Toponímia Carioca (J. Romão da Silva, 1966) ....... 60 3.4 Nomes da terra: história, geografia e toponímia do Rio Grande do Norte (Luís Câmara Cascudo, 1968) .............................................................................................. 62 3.5 O Dicionário Histórico Geográfico de Minas Gerais (Waldemar de Almeida Barbosa, 1971) ............................................................................................................ 65 3.6 Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa (José Pedro Machado, 1984) ......................................................................................................................... 69 3.6 Dicionário toponímico, histórico e geográfico do Nordeste (Marlio Fábio Pelosi Falcão, 2005) .............................................................................................................. 73 3.7 Dicionário toponímico de Belo Horizonte: memória de ruas (Leonardo José Magalhães Gomes, 2008) ........................................................................................... 75 4. NOSSA PROPOSTA DE DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO TOPONÍMICO 78 4.1 Considerações iniciais ........................................................................................... 78 4.2 Por que Dicionário “Enciclopédico” Toponímico? .............................................. 79 4.3 A superestrutura do nosso Dicionário Enciclopédico Toponímico ...................... 82 4.4 O funcionamento do sistema conceptual dos topônimos de nossa pesquisa ........ 83 4.4.1 Natureza dos hidrônimos ................................................................................ 84 4.4.2 O sistema conceptual ...................................................................................... 84 4.4.3 Critérios de organização do sistema conceptual .......................................... 172 4.4.4 Níveis 2 e 3 do sistema conceptual .............................................................. 173 4.4.5 Nível de abstração 4 e 5: categorias taxionômicas, topônimos não classificados e taxionomias ................................................................................... 175 4.4.6 Nível de abstração 6: os topônimos.............................................................. 177 4.4.7 Considerações sobre os dados apresentados no sistema conceptual ............ 179 4.5 Macroestrutura .................................................................................................... 184 4.5.1 Amostragem de verbetes .............................................................................. 185 4.5.2 Critérios para escolha das unidades léxicas que constituem entradas dos verbetes.................................................................................................................. 203 4.5.3 Algumas considerações ................................................................................ 206 4.6 Microestrutura dos verbetes ................................................................................ 207 4.6.1. Microestrutura dos verbetes cuja entrada é um termo que designa elementos geográficos ............................................................................................................ 207 4.6.2. Microestrutura dos verbetes cujas entradas são sintagmas toponímicos..... 210 4.7 O sistema de remissivas ...................................................................................... 217 4.7.1 Tipos de remissivas de nosso dicionário ...................................................... 217 4.7.2. Microestrutura dos verbetes remissivos ...................................................... 218 CONCLUSÕES ........................................................................................................... 224 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 228 ANEXOS ..................................................................................................................... 234 12 INTRODUÇÃO A Toponímia é o estudo dos nomes próprios de lugares, ou seja, os topônimos. Além do estudo linguístico de um nome, a pesquisa toponímica estabelece relações entre a cultura e a história do lugar, ou seja, realiza uma pesquisa abrangente em que se analisam aspectos geográficos, históricos, sócioeconômicos e linguísticos que permitam ao estudioso descobrir a origem e a motivação de determinado topônimo. A principal característica da Toponímia constitui-se no seu caráter interdisciplinar, o que possibilita o estudo de determinada realidade social, desvendando sua cultura, seus hábitos e seus interesses. Para Dick (1992), a Toponímia é o estudo dos designativos geográficos em sua bipartição física (rios, córregos, morros) e humana (aldeias, povoados, cidades, fazendas). Vários estudos têm sido desenvolvidos nas últimas décadas, tanto na perspectiva da toponímia rural, como na da urbana. A metodologia construída por Dick para os projetos Atlas Toponímico do Brasil (ATB) e Atlas Toponímico do estado de São Paulo (ATESP) tem orientado as pesquisas toponímicas no Brasil, tanto no âmbito de trabalhos de cunho acadêmico como de projetos de grupos de pesquisa. Nesse contexto, situa-se o projeto do Atlas Toponímico do estado de Mato Grosso do Sul (ATEMS), em desenvolvimento na UFMS sob coordenação da Profa. Dra. Aparecida Negri Isquerdo. Entre os objetivos do ATEMS está o desenvolvimento de um glossário de topônimos do estado, registrados no banco de dados do projeto. Como pesquisadora integrante do projeto e considerando o objetivo que buscamos alcançar, um questionamento principal motivou esta nossa pesquisa: qual o modelo de dicionário ideal para dados toponímicos? E, fragmentando essa questão, outras perguntas direcionaram nossa pesquisa: como a metodologia proposta por Dick, que orienta as pesquisas em toponímia no Brasil atualmente, poderia nortear a elaboração de um dicionário? Como elaborar uma superestrutura, entendida por nós como todas as partes da obra termiongráfica, desde o prefácio ou outros textos inicias até as referências e anexos ou textos finais, de dicionário toponímico? Um único modelo de microestrutura seria suficiente para dar conta dos sintagmas toponímicos de uma obra? 13 Iniciamos essas reflexões durante o período do mestrado quando nos propusemos a organizar um glossário dos topônimos de uma região à leste do estado de Mato Grosso do Sul, tratando, na ocasião, especialmente da microestrutura dos verbetes. Com o objetivo de ampliar e de dar continuidade a essa pesquisa, ao ingressar no doutorado recorremos à Terminografia para obter o arcabuço teórico e metodológico que desse sustentação ao desenvolvimento de um dicionário de sintagmas toponímicos. É procedimento comum nos estudos em Toponímia a escolha de determinada área geográfica para desenvolver a pesquisa sobre os nomes próprios de lugar. Em nosso caso, optamos por trabalhar com os dados de Mato Grosso do Sul por já termos realizado estudos em toponímia no estado. Mato Grosso do Sul é um estado jovem, que foi desmembrado de Mato Grosso no ano de 19771. A descoberta da região teve início por volta de 1520, quando alguns colonizadores partiam do litoral e passavam pela região da serra de Maracaju, pelo rio Miranda e pelo rio Paraguai buscando as minas do Peru. Aleixo Garcia é um dos europeus conhecidos por fazer esse percurso por volta de 1524. O espanhol Martinez de Irala teria fundado a colônia de Maracaju, em 1538. Este teria sucedido Álvaro Nunes Cabeça de Vaca que subiu o rio Paraguai até a foz do rio Miranda, atravessando boa parte do Pantanal, então conhecido como mar dos Xaraés, para alcançar Assunção. Até o final do século 16, o território pertencente à bacia do rio Paraguai já era todo conhecido. As primeiras aglomerações urbanas surgiram em 1580, quando João de Guaraí, então governador de Assunção, teria enviado Rui Dias Melgarejo para fundar, às margens do rio Aquidauana, uma povoação denominada Santiago de Xerez e, a partir de 1630, quando os jesuítas passaram a fundar povoações indígenas para catequização nas margens ao norte do rio Miranda, ao sul do rio Apa, ao oeste do rio Paraguai e ao leste da serra de Maracaju. Por volta de 1650, Antônio Raposo Tavares e outros bandeirantes alcançaram essas povoações com o objetivo de caçar e escravizar indígenas. A povoação do leste do estado ocorreu aproximadamente em 1720 quando o sertanista Antônio Pires de Campos (o Pai Pirá) chegou ao rio Paraná e depois ao rio Pardo pelo rio Tietê, colonizando assim a área pertencente à bacia do rio Paraná. Este bandeirante teria sido contratado pelo governo de Goiás para liderar o enfrentamento 1 Todas as informações geográficas e históricas sobre o estado de Mato Grosso do Sul dos parágrafos a seguir foram encontradas nas obras de GLESSLER; VASCONCELOS (2005), CAMPESTRINI; GUIMARÃES (2002) e ALMEIDA; SILVA (2011). 14 aos índios da etnia Caiapó que viviam na região e atrapalhavam o trânsito das caravanas que seguiam pela região em busca de riquezas minerais. A região Centro-oeste, onde Mato Grosso do Sul está localizado, configura-se como uma área extensa do território brasileiro, conhecida também por suas riquezas naturais, devido especialmente por ser nessa região geográfica brasileira que se encontra a maior planície inundável do planeta: o Pantanal. Como explicitamos, a entrada de seus colonizadores se deu principalmente por meio dos cursos de água. Na fronteira com o estado de São Paulo isso ocorreu a partir do rio Paraná, por meio do rio Iguatemi, rio Amambaí, rio Pardo, rio Verde, rio Sucuriú e rio Aporé, este na divisa com Goiás. Já na região do Pantanal, na fronteira com Paraguai e Bolívia, a entrada se deu por meio do rio Apa, rio Miranda, rio Aquidauana, rio Negro, rio Taquari até alcançar o rio Paraguai. Os demais cursos de água de Mato Grosso do Sul são, direta ou indiretamente, afluentes desses dois principais: rio Paraguai e rio Paraná. Desse modo, notamos que, de fato, a riqueza hídrica do estado determinou as descobertas do território e sua povoação. Essa riqueza reflete-se na diversidade de tipos de elementos hidrográficos encontrados, peculiares ao estado como corixo, vazante, baía ou mais comuns em outras regiões do país, como sanga e arroio. Além da diversidade de elementos hidrográficos, a importância das correntes hídricas também pode ser depreendida nos topônimos propriamente ditos, uma vez que há uma forte recorrência de nomes que fazem referência aos diversos tipos de elementos hidrográficos, como ocorre como lagoa Bonita, corixo Corixão, córrego Lagoa Grande entre outros. Para a proposta de dicionário desta nossa pesquisa utilizamos como corpus o repertório das unidades léxicas que denominam elementos geográficos referentes à água, ou seja, os hidrônimos, registrados no banco de dados do projeto ATEMS, dados estes catalogados em mapas do IBGE com escala 1:100.000 e 1.250.000, de todos os municípios do estado2. Os hidrônimos configuram-se, conforme Dick (2004, p. 124- 125) como “os nomes dos elementos hidrográficos em geral”. Embora na Toponímia “hidrônimo” signifique o nome próprio que denomina um elemento geográfico relativo à água, no âmbito de nossa proposta utilizaremos esse termo em uma acepção genérica que recobre termos que designam elementos hidrográficos tais como, baía, cabeceira, cabo, cachoeira, canal, corixão, corixo, foz, lago, lagoa, nascente, represa, riacho, 2 Todos os mapas estão no CD no anexo desse trabalho. 15 ribeira, ribeirão, rio, riozinho, salto, sanga, vazante e volta e também os topônimos propriamente ditos. Para responder aos questionamentos que motivaram este trabalho, buscamos alcançar os seguintes objetivos específicos: investigar sobre o estatuto do mapa como texto fonte de pesquisa toponímica; analisar alguns dicionários toponímicos brasileiros; organizar um sistema conceptual dos hidrônimos de Mato Grosso do Sul; propor modelos de microestrutura para abrigar os hidrônimos; organizar uma amostragem de verbetes como demonstrativo do dicionário. Desenvolvemos essas ações para chegar ao objetivo principal de elaborar uma proposta de modelo de dicionário para sintagmas toponímicos, no que se refere à superestrutura, à macroestrutura e à microestrutura e ao sistema de remissivas. Após a introdução, nosso trabalho se estrutura em quatro capítulos: o primeiro reúne os fundamentos teóricos que embasaram a pesquisa, tratando da questão da motivação na Toponímia, da estrutra dos sintagmas toponímicos, da classificação taxionômica dos topônimos, da organização de dicionários e sua tipologia, de como podem ser classificados os dicionários onomásticos. Também nesse capítulo discorremos sobre o mapa como principal fonte de coleta de dados toponímicos e sobre a contribuição da Terminografia para constituição de um dicionário toponímico. O segundo capítulo aborda os procedimentos metodológicos realizados para a execução da pesquisa: os dicionários toponímicos que foram analisados, como foi feita a delimitação da nomenclatura, qual a fonte dos dados, a elaboração das fichas utilizadas para a confecção dos verbetes, como se deu a organização do sistema conceptual, quais obras foram utilizadas para a revisão das taxionomias e como fizemos a busca e o tratamento dos dados de natureza geográfica, do histórico e do contexto. O terceiro capítulo traz a análise que fizemos a alguns dicionários toponímicos brasileiros. No quarto capítulo apresentamos nossa proposta de modelo de dicionário, explicando a razão de o denominarmos de ‘enciclopédico’, o formato da superestrutura, a organização e o sistema conceptual propriamente dito, a macroestrutura, os modelos de microestrutura o sistema de remissivas e a amostragem de verbetes. Como últimas partes do nosso trabalho, apresentamos nossas conclusões, as referências e o anexo. 16 1. FUNDAMENTOS TEÓRICOS 1.1 Toponímia Segundo Dick (1990, p. 15) a variedade de nuances significativas que compõe um nome de lugar e a diversificação das informações que podem ser retiradas após a análise de um topônimo resultou na dificuldade de situar a ciência Toponímia em um ramo do saber, pois, para muitos poderia estar filiada aos estudos de História, Geografia, Ciências Sociais. Contudo, nenhuma dessas posições tomadas isoladamente poderá dar conta de análises toponímicas em seus mais diversos aspectos, uma vez que, conforme explicitado por Dick (1990, p. 16) “é lícito considerar-se a Toponímia, antes de tudo, como um complexo língua-cultural, em que os dados das demais ciências se interseccionam necessariamente e, não, exclusivamente.”, constituindo, desse modo, a Toponímia, como uma ciência interdisciplinar. Nos capítulos que seguem trataremos dos aspectos principais que envolvem o estudo dos topônimos: motivação, estrutura e classificação taxionômica. 1.1.1 A motivação na Toponímia O ato de nomear é, pois, influenciado pelas características físicas, reais, objetivas do lugar e da impressão, da imagem que o denominador tem daquele lugar, ou seja, o motivo que o impeliu a referir-se de uma ou de outra forma a um determinado local, atribuindo-lhe um nome. Esse momento de associação entre um signo linguístico de natureza arbitrária e um novo referente é que transforma esse signo em topônimo. Formular uma idéia e escolher elementos denominativos que estejam agregados a um novo referente, nesse caso a um lugar, transforma os signos linguísticos arbitrários em signos motivados, ou seja, em signos toponímicos. A respeito do estudo da motivação dos topônimos Isquerdo (1996, p. 90) pondera que o signo toponímico se nos apresenta como um dos aspectos do léxico, particularmente complexo, no que se refere a sua motivação designativa. A diversidade de influências culturais na formação étnica da população, como também as especificidades físicas de cada região 17 tornam dificultosa toda tentativa de explicação das fontes geradoras dos nomes de lugares e de elementos geográficos. (ISQUERDO, 1996, p. 90) Os topônimos que surgem de forma espontânea são também chamados por Dick (1992), de vocábulos toponímicos básicos. São aqueles que servem para definir um espaço, um ambiente. É a forma de um morro, é o curso do rio, sendo ele acidentado, suave, raso, com corredeiras, com saltos, sem peixes. Segundo a autora, esses nomes são incorporados de forma natural aos usos linguísticos de um grupo: [...] a aparente indefinição resulta, geralmente, ou de sua própria unicidade na área ou da maior familiaridade com o elemento em si. O chamamento espontâneo torna supérflua naquele momento, qualquer outra referência, só aconselhada para uma melhor identificação, quando preciso for. (DICK, 1996, p. 65) No caso da toponímia do Brasil, os nomes que surgiram de forma espontânea são em sua maioria de procedência indígena, especialmente os voltados para a nomeação de elementos físicos, ocorrida na época anterior ao descobrimento, “denominações que confirmam a admirável justeza e absoluta precisão do nosso ameríndio ao traduzir no batismo dos elementos, a realidade geográfica” (CARDOSO, 1961, p. 192). Há também a origem sistemática ou oficial da nomeação, atribuída aos descobridores, aos dirigentes ou ao poder de mando, legitimamente constituído ou não (DICK, 1992, p. 49). A motivação é que permite ao pesquisador a busca da explicação da escolha do nome, a causa denominativa, e no caso do estudo dos topônimos, muitas vezes apenas a etimologia da palavra não é suficiente para explicar sua motivação. O topônimo configura-se como um elemento do léxico que é escolhido para melhor definir a ideia que um indivíduo tem de um espaço. Por essa razão é que os estudos toponímicos buscam em outras ciências subsídios que colaborem na descoberta da história de um nome. Os fatores extralinguísticos são relevantes durante a análise de um topônimo e, sobretudo, quando se trata da motivação. Nesse particular, Isquerdo (1996, p. 85) ressalta que um topônimo além de determinar a identidade de um lugar, a análise de sua estrutura pode fornecer elementos para esclarecer muitos aspectos referentes à história política, econômica e sócio-cultural de uma região. Desta forma, o papel do signo toponímico ultrapassa o 18 nível apenas da identificação, servindo, pois, de referência para o entendimento de aspectos da realidade em que está inserido. (ISQUERDO, 1996, p. 90) No Brasil os estudos toponímicos se deparam com nomes não apenas de origem portuguesa, como também com designativos provenientes da língua dos outros povos que existiram no País, desde o início da sua história: os indígenas, os africanos, e os europeus. Para Dick (1987, p. 99), “há em cada uma dessas camadas línguo- toponomásticas, uma tendência motivadora própria pode ser apontada, característica do elemento humano que as define”. A população indígena tinha uma tendência motivadora bastante objetiva para nomear os elementos, haja vista o contato direto desses grupos com a natureza, o que lhes facilitava a descrição do elemento geográfico. Cardoso (1961, p. 92-93) traz muitos exemplos que ilustram essa capacidade ameríndia, entre eles, os casos de lago Jaciuaruá, espelho da lua, gruta Capóimutá, boca da lua, Uêi-tepê, serra do Sol. A nomeação feita pelos indígenas, de fato, ocorreu antes da colonização, já que com a chegada dos portugueses ao Brasil os nomes começaram a ser substituídos por palavras lusitanas ou por palavras em tupi que era a língua de prestígio entre os primeiros habitantes do território brasileiro. Os elementos que motivavam a nomeação indígena geralmente estavam relacionados à natureza. Os portugueses que chegaram ao continente americano tinham como principal objetivo a exploração econômica e a catequização dos povos ditos ‘selvagens’, daí o fator extralinguístico que mais os motivava no ato de nomear o novo espaço era a demonstração de avanço em terras brasileiras. Os elementos físicos ainda não nomeados ou elementos humanos que começaram a surgir recebiam nomes especialmente de santos de devoção católica e de localidades portuguesas em homenagem à terra natal dos colonizadores, como nos exemplos citados por Dick (1992, p.81): rio de São Francisco, angra de Todos os Santos, cabo de Santo Agostinho. O mesmo aconteceu com os demais imigrantes europeus que também nomeavam os seus povoados com nomes de cidades européias, evidenciando o saudosismo da terra natal, como as cidades Nova Milano, Nova Vicença, Nova Veneza (DICK, 1992, p. 101), diferente dos portugueses, que denominavam os lugares fazendo referência a Portugal por uma questão de dominação, de afirmação de posse por meio da língua. Já topônimos de origem africana, como Mocambo, Cabaça, Cacimba, Caxambu, Marimbondo, buscam inspiração nos vocábulos referentes à cultura espiritual, à 19 culinária, às danças, aos utensílios utilizados pelos africanos. A quantidade de elementos nomeados que fazem referência a esses povos é pouco expressiva e o processo de nomeação é, em grande parte, feita pelo colonizador (DICK, 1992, p. 148). Pondera, ainda, a mesma toponimista que, enquanto a denominação indígena, por uma necessidade de identificação do próprio habitat, é preexistente ao branco, que a aceitou, geralmente promovendo, ele também, a criação de novos vocábulos dessa origem, o negro ocupou, no país, um papel secundário em relação ao processo denominativo. (DICK, 1992, p. 153) A nomeação geralmente é causada por influências externas, pela realidade que cerca o designador, mas nem sempre é assim, pois o denominador pode se afastar dessa tendência. Nesse particular Dick (1999, p. 133) ressalta que não há um compromisso real do denominador nem uma imposição do processo de nomeação quanto a representar fidedignamente a paisagem; num contexto físico como o brasileiro, dominado pela geomorfologia exuberante, o denominador pode resistir a esse cenário [...] Em seu livre arbítrio, o sujeito pode optar por injunções de diversas ordens afastando-se de qualquer tendência objetiva, presa às condições do meio. (DICK, 1999, p. 133) É nessa perspectiva que os topônimos se estruturam, assunto que será tratado a seguir. 1.1.2 A estrutura do sintagma toponímico Em relação à estrutura, “ao designar, o nome próprio de lugar, o topônimo, em sua formalização na nomenclatura onomástica, liga-se ao elemento geográfico que identifica, como ele constituindo um conjunto ou uma relação binômica” (DICK, 1992, p. 10) e, conforme a autora, essa estrutura pode ser seccinada para melhor distinguir seus termos formadores, basicamente: o genérico e o específico. O termo genérico indica o elemento a ser nomeado (rio, serra, córrego, ribeirão) e o termo específico refere-se ao denominativo, o topônimo e, conforme Dick, (1992, p.100) “atuam ambos no sintagma toponímico, ou seja, no conjunto formado pela nomenclatura onomástica e pelo elemento identificado, de forma justaposta (rio das Amazonas) ou aglutinada (Parauna, ‘rio Negro’)”. 20 Dependendo da natureza da língua, quando os termos estão aglutinados, o termo genérico exerce a função de topônimo, como no exemplo citado por Dick, Parauna, ‘rio negro’, gerando a necessidade de complementação com um novo elemento, já que o genérico perdeu a sua função própria porque foi integrado ao termo específico como no caso de Capói-tepê, ‘serra da Lua’, Saueriná, ‘rio do Papagaio’ (CARDOSO, 1961, p. 100). Pode ocorrer o fato de o elemento ser muito importante e único em uma comunidade, então, o nome do rio não é aproveitado para designar um povoado, uma localidade, uma estrada, permitindo, dessa forma, que os falantes se refiram a ele sendo compreendidos mesmo sem utilizar o termo genérico. Elementos físicos geralmente se definem pelo próprio termo comum, ou seja, o termo genérico do conjunto toponímico incorpora o mesmo sentido do termo específico. Dessa forma ‘rio’ e ‘mar’ geraram topônimos como Paraná e Pará. (DICK, 1992, p. 99). Essa ocorrência de aglutinação é mais frequente em topônimos de base indígena, mas também pode ocorrer com a nomenclatura portuguesa, apesar de esse fato ser menos recorrente. Esse fenômeno é ilustrado por Dick (1992, p. 12) com o topônimo ‘porto seguro’, citado por Caminha, que hoje nomeia, além da baía, vários elementos humanos no Brasil. Partindo da afirmação de Dick (1992, p. 10) para quem, quando um sintagma toponímico atua de forma tanto aglutinada quanto justaposta, os termos que o compõem constituem um bloco único em torno dos dois elementos, observamos a partir da análise do corpus formado por hidrônimos de todo o estado de Mato Grosso do Sul, que, quando se trata de um enunciado toponímico, entendemos que há um significado que depende de significantes distintos, porém, compondo um mesmo sintagma. É deste modo que visualizamos os topônimos que nomeiam elementos físicos de nossa pesquisa: eles só produzem sentido e atribuem significado enquanto enunciado toponímico, formado por um termo genérico e um termo específico. O termo genérico, entendido sempre um termo de uma área de especialidade, no caso de nossos dados, a hidrografia, complementa semanticamente o termo específico, uma vez que, dentro de textos toponímicos, como os mapas e os dicionários, não verificamos ser possível o desmembramento. Não há no contexto do mapa cursos de água identificados somente por um ou outro termo. Os enunciados aparecem completos: “rio da Quitéria”, “córrego do Cupim”, “cabeceira do Mimoso”. Dick (1992, p. 10) chama esta relação entre o termo referente ao elemento geográfico e seu nome de “relação binômica” e “simbiose” formada por uma “entidade geográfica que irá receber 21 a denominação e o outro, o topônimo, que particularizará a noção espacial, identificando-a e singularizando-a entre outras semelhantes” (DICK, 1992, p. 10). Quando o elemento físico é representativo, como o rio Paraguai, o rio Paraná, o rio Taquari, o rio Sucuriú, pode ocorrer oralmente a referência somente ao topônimo “Paraguai”, “Paraná”, “Taquari”, “Sucuriú”, contudo, há que acontecer em uma situação comunicativa onde os interlocutores especifiquem que trata-se do rio e não do país, do estado, da cidade, dos saltos ou assentamentos cujos nomes receberam a homenagem aos rios. Embora notemos que especificar qual é o elemento geográfico citando o sintagma toponímico completo é o que oportuniza atribuir-lhe significado especialmente por que assim o nome terá seu referente bem delimitado, a colocação de uma preposição em um sintagma toponímico indica mais evidentemente a tentativa do nomeador expressar aspectos particulares e diferenciadores dos outros elementos nomeados. Estes nomes caracterizam-se por serem mais descritivos e haver a necessidade de manutenção do sintagma completo. Desse modo as preposições promovem a união entre o termo genérico e o termo específico. Nada mais natural, uma vez que, encontramos tanto em dicionários como em gramáticas a definição das preposições justamente com a função de indicar subordinação, pertencimento, procedência. Podemos observar que os sintagmas toponímicos dessa natureza são formados então por dois (ou mais) elementos lexicais e por um elemento gramatical. Ou seja, duas ou mais palavras que remetem ao mundo exterior configurando uma representação da realidade extralinguística e uma palavra com significação interna, que tem a função de estabelecer relações no contexto restrito do enunciado, já que, conforme Neves (2000, p. 601) “as preposições pertencem à esfera semântica das relações e processos e atuam especificamente na junção dos elementos do discurso, isto é, ocorrem num determinado ponto do texto indicando o modo pelo qual se conectam as porções que se sucedem”. No mesmo sentido da explicação da autora, encontramos em Borba (2003, p. 286) a afirmação de que as preposições “estabelecem relações semânticas de subordinação sintática entre as palavras, tornando-as dependentes umas das outras”. Bechara (2009, p. 313-314) desenvolve a explicação de que podemos supor a existência da preposição estabelecendo uma relação de pertencimento entre o elemento geográfico e o nome próprio, ainda que esta esteja omitida na nomeação, não sendo inserida junto ao elemento geográfico. Podemos perceber essa ocorrência em sintagmas toponímicos como “Arroio Glória”, “Cabeceira Rio Branco”, “Cabeceira Sucuri”. Desse modo, 22 visualizamos que a significância dos topônimos depende do seu contexto no enunciado. Um nome próprio isolado do lugar nomeado não apresenta significado completo. Embora acreditemos que essa característica esteja presente em todos os topônimos de elemtnoss físicos, especialmente pelo contexto onde estão inseridos (mapas, por exemplo), isso é observado mais claramente por meio de sintagmas toponímicos preposicionados quando a relação se dá no nível sintático, conforme explicitado acima. Nesse particular, Dick não analisa a soldadura do elemento geográfico ao nome próprio a partir de preposições, mas admite que em alguns tipos de nomeações isso pode acontecer: as expressões onomásticas exerceriam referidas funções desde que seus elementos constitutivos evidenciassem a existência de um vínculo entre elas e o seu referente. Em tais circunstancias o signo linguístico em função toponímica representaria uma projeção aproximativa do real, tornando clara a natureza semântica ou transparência do seu significado. Haveria, por assim dizer, uma relação unívoca entre os termos implicados quando traduzam referências de cor, forma, tamanho, constituição natural. (DICK, 1992, p. 18-19) Apesar de afirmar que “ao designar, o nome próprio de lugar, em sua formalização na nomenclatura onomástica, liga-se ao elemento geográfico que identifica, com ele constituindo um conjunto” (DICK, 1992, p. 10), para melhor distinguir seus termos formadores, a autora (1992, p. 13 e 14) separa este enunciado toponímico e classifica somente o nome próprio em simples, composto e híbrido. Então, em relação à composição morfológica, o termo específico, ou seja, o topônimo, pode ser simples, composto ou híbrido. Um termo específico simples é formado por um só vocábulo, que pode estar acompanhado ou não de sufixações ou também estar acrescido de terminações, como lândia, pólis, burgos (DICK, 1992, p. 13). Um elemento específico composto é formado por mais de um elemento, não importando a língua de origem. Os elementos indígenas mirim (pequeno) e guaçu (grande), por exemplo, colaboram com a formação de topônimos compostos como o nome das cidades Ituguaçu (salto grande) e Itumirim (salto pequeno). Há também as formações compostas que envolvem os nomes sagrados, não necessariamente da mesma natureza religiosa, formações bastante comuns na toponímia brasileira como os elementos humanos Santo Antonio das Trepes, Santo Antonio do Rio Abaixo, São Pedro de Ratos (DICK, 1992, p. 14). 23 Já os elementos específicos híbridos que compõem o enunciado toponímico se formam pela colocação de unidades lexicais provenientes de línguas diferentes em um mesmo designativo. Segundo Dick (1992, p. 15), a formação que mais se generalizou no Brasil foi a composta pela seguinte estrutura: indígena + portuguesa ou portuguesa + indígena e ilustram isso os topônimos de elementos humanos, Lambari do Meio e Maraba Paulista, dentre muitos outros. Ao tratar dos topônimos híbridos, a pesquisadora recupera a teoria canadense para essa modalidade de topônimos, segundo a qual os dois elementos formadores das duas línguas devem ter o mesmo significado. Um nome brasileiro que corresponderia a essas formações defendidas pelos canadenses é o do antigo município paulista de Salto de Itu, que apresenta dois elementos de mesmo significado, ou seja, ‘salto’, ‘cachoeira’ (DICK, 1992, p. 15). A estrutura do topônimo, particularmente a natureza linguística do termo específico, abordado no plano sincrônico, dá suporte à investigação das causas motivadoras, organizadas em categorias taxionômicas, dentre outras, a formulada por Dick (1992). 1.1.3 Classificação taxionômica dos topônimos O objeto de estudo da Toponímia são os topônimos, visto sob diferentes perspectivas, como a sua origem, a significação e a transformação de nomes próprios, a categorização. Para tanto, os pesquisadores que se ocupam dos estudos toponímicos, buscando meios para a sistematização dos topônimos, elaboraram modelos teórico que possibilitaram o estudo dos designativos de lugar. Dentre esses estudiosos, destacam-se os trabalhos elaborados por Dauzat, Backheuser, Stewart e Dick. Dauzat (1947), por exemplo, abordou os estudos toponímicos considerando dois aspectos principais, a questão lógica, que diz respeito ao ato designativo como espontâneo e motivado de forma mais ou menos inconsciente por um grupo nomeador e a questão dos sentidos intrínsecos dos nomes, classificados a partir de aspectos sociais, históricos e geográficos. Backheuser (1952) divide os topônimos a partir de categorias gramaticais (substantivo comum, substantivo abstrato e adjetivos) e, no âmbito do ‘substantivo comum’, o autor classifica os topônimos a partir de critérios geográficos: topônimos relativos a elementos de geografia física e topônimos relativos a elementos de geografia humana. Já George Stewart (1954) apresentou uma classificação que procurava sistematizar os nomes de lugares em nove categorias descritivas baseadas nos 24 mecanismos de nomeação: Descriptive names, Incident names, Euphemistic names, Shift names, Mistake names, Possessive names, Commemmorative names, Manufactured names, Folk etimologies. Neste trabalho será adotada a metodologia proposta por Dick (1992, p. 31-34) porque é a taxionomia que melhor se aplica à realidade da toponímia brasileira. Em seu modelo Dick elabora uma taxionomia que considera o topônimo do ponto de vista sincrônico, deixando a busca dos mecanismos de nomeação e o levantamento histórico para estudos isolados acerca de cada nome. Para Dick (1980, p. 34), a própria existência dos nomes geográficos, desvinculada de qualquer procedimento diacrônico, é o que dá suporte às taxes sugeridas. A autora ressalta que a existência desorganizada desses nomes, que constitui a tessitura propriamente dita de um território, deve sofrer, por sua vez, uma ordenação ou catalogação a partir, agora, não do doado, e sim do gerado. Num primeiro momento é, pois, o homem quem preside a escolha do nome, permitindo a averiguação de todos os impulsos que sujeitaram o ato nomeador; num segundo momento, é a denominação que irá condicionar e determinar os rumos dos estudos toponímicos. (DICK, 1980, p. 34) O modelo de Dick (1992, p. 31-34) se divide em onze taxionomias de natureza física, e dezesseis de natureza antropo-cultural. A terminologia técnica utilizada pela autora é formada pelo termo que justifica a escolha do elemento denominativo e pelo vocábulo que identifica a ciência específica. Assim, por exemplo, nomes relativos às formas topográficas foram denominados geomorfotopônimos (geomorfo = elemento designativo; topônimo = identificação da ciência específica), como Montanhas (AH RN), Monte Alto (AH SP), Morro Azul (AH3 RS) (DICK, 1992, p. 26 e 31). Ou então nomes relativos a elementos hidrográficos são classificados como hidro + topônimo, como córrego Açude, córrego Água Limpa. Na sequência serão apresentadas todas as categorias que integram o modelo em destaque. 3 A abreviatura AH se refere a elemento humano (cidades, ruas, fazendas, etc) e AF a elemento físico (rios, morros, etc). 25 1.1.4 Modelo Taxionômico de Dick (1992) O modelo taxionômico de Dick (1992) é adotado por grande parte dos pesquisadores em toponímia. No modelo o objetivo é agrupar os nomes próprios a partir de suas motivações. A autora destaca que a compreensão da existência de um vínculo estrito entre o objeto denominado e o seu denominador é que remeterá a toponímia taxionômica ao estudo das motivações da nomenclatura geográfica. Dessa forma, os fatores ambientais, em sua dicotomia física e antropo- cultural, conforme a teorização de Sapir (1961), constituem o cenário propício ao jogo dos interesses humanos, em que as percepções sensoriais e as manifestações psíquicas brotam como fontes geradoras dos nomes. (DICK, 1992, p. 25) Todos esses fatores que determinam a motivação dos nomes são ordenados em categorias, organizadas por meio de uma terminologia técnica formada pela unidade léxica “topônimo” e pelo elemento que contem o campo de estudo específico. Como exemplo, podemos citar a categoria dos zootopônimos, que abarca os nomes que fazem referência a animais. Nos quadros que seguem detalhamos cada uma das taxionomias propostas por Dick (1992). Quadro 1 – Taxionomias de natureza física Astrotopônimos: topônimos relativos aos corpos celestes em geral. Ex.: rio da Estrela4 (AF ES). Cardinotopônimos: topônimos relativos às posições geográficas em geral. Ex.: ribeirão do Meio (AF MS). Cromotopônimos: topônimos relativos à escala cromática. Ex.: cachoeira Branca (AF MS). 4 Com exceção dos exemplos apresentados nas taxes astrotopônimos, geomorfotopônimos, morfotopônimos, corotopônimos, dirrematotopônimos e sociotopônimos que foram extraídos de Dick (1992, p. 31-34), os exemplos recuperam designativos de elementos físicos de Mato Grosso do Sul. 26 Dimensiotopônimos: topônimos relativos às características dimensionais dos elementos geográficos. Ex.: córrego Fundo (AF MS). Fitotopônimos: topônimos de índole vegetal. Ex.: ribeirão do Café (AF MS). Geomorfotopônimos: topônimos relativos às formas topográficas. Ex.: Monte Alto (AH SP). Hidrotopônimos: topônimos resultantes de elementos hidrográficos em geral. Ex.: córrego Cachoeirinha (AF MS) Litotopônimos: Topônimos de índole mineral, relativos também à constituição do solo, representada por indivíduos. Ex.: córrego Brejo Comprido (AF MS). Meteorotopônimos: topônimos relativos aos fenômenos atmosféricos. Ex.: córrego do Raio (AF MS) Morfotopônimos: topônimos que refletem o sentido de forma geométrica. Ex.: vila lagoa Redonda (AF BA). Zootopônimos: topônimos de índole animal, representados por indivíduos domésticos. Ex.: córrego Formiga (AF MS). Fonte: Dick (1992, p. 31-34) Quadro 2 – Taxionomias de natureza antropocultural Animotopônimos ou Nootopônimos: topônimos relativos à vida psíquica, à cultura espiritual, abrangendo todos os produtos do psiquismo humano, cuja matéria prima fundamental, e em seu aspecto mais importante como fato cultural, não pertence à cultura física. Ex.: rio Bonito (AF MS). Antropotopônimos: topônimos relativos aos nomes próprios individuais. Ex.: córrego Farias (AF MS). Axiotopônimos: topônimos relativos a títulos e a dignidades de que se fazem acompanhar os nomes próprios individuais. Ex.: córrego Rainha (AF MS). 27 Corotopônimos: topônimos relativos aos nomes de cidades, países, estados, regiões e continentes. Ex.: Amazonas (AH BA). Cronotopônimos: topônimos que encerram indicadores cronológicos representados, em toponímia pelos adjetivos novo/nova, velho/velha. Ex.: córrego Velho (AF MS). Ecotopônimos: topônimos relativos às habitações de um modo geral. Ex.: córrego do Ranchinho (AF MS). Ergotopônimos: topônimos relativos aos elementos da cultura material. Ex.: córrego Espora (AF MS). Etnotopôninmos: topônimos referentes aos elementos étnicos, isolados ou não (povos, tribos, castas). Ex.: serra do Caiapó (AF MS). Dirrematotopônimos: topônimos constituídos por enunciados lingüísticos. Ex.: córrego do Espicha-Couro (AF RS). Hierotopônimos: topônimos relativos aos nomes sagrados de diferentes crenças. Os Hierotopônimos podem ser divididos em: a) Hagiotopônimos: relativos aos santos e santas do hagiológio romano. Ex.: Santa Rita do Pardo (AH MS). b) Mitotopônimos: elativos às entidades mitológicas. Ex.: córrego Tamandaré (AF MS). Historiotopônimos; topônimos relativos aos movimentos de cunho histórico-social e aos seus membros, assim como às datas correspondentes. Ex.: Inconfidentes (AH MG). Hodotopônimos: topônimos relativos às vias de comunicação rural ou urbana. Ex.: córrego Ponte Velha (AF MS). Numerotopônimos: topônimos relativos aos adjetivos numerais. Ex.: Três Lagoas (AH MS). Poliotopônimos: topônimos constituídos pelos vocábulos vila, aldeia, cidade, povoação, arraial. Ex.: córrego da Vila (AH MS). Sociotopônimos: topônimos relativos às atividades profissionais, aos locais de trabalho e aos pontos de encontro dos membros de uma comunidade. Ex.: córrego do Engenho 28 (AF MG). Somatotopônimos: topônimos empregados em relação metafórica a partes do corpo humano ou do animal. Ex.: córrego Joelho (AF MS). Fonte: Dick (1992, p. 31-34) Optamos por incluir a contribuição de Isquerdo (1996, p. 118), que acrescentou à classe dos animotopônimos do modelo de Dick, duas subcategorias, eufóricos e disfóricos, que, segundo Isquerdo, “têm a função de especificar a natureza do estado anímico”. Dessa forma, os animotopônimos eufóricos referem-se à impressão agradável/otimista do denominador frente ao elemento nomeado - córrego Vista Alegre (AF MS) - e os animotopônimos disfóricos recuperam a impressão desagradável/pessimista sentidas pelo nomeador - córrego Invejoso (AF MS). No próximo tópico trataremos da evolução dos dicionários, suas tipologias, da principal fonte de dados para a pesquisa toponímica e da Terminografia, teoria que subsidiou a organização da proposta de dicionário enciclopédico toponímico apresentado neste trabalho. 1.2 O estudo do Léxico O estudo científico do léxico é orientado pela Lexicologia, a ciência que estuda o universo de todas as palavras de uma língua, [...] palavras vistas em sua estruturação, funcionamento e mudança, cabendo-lhe entre outras tarefas: examinar as relações do léxico de uma língua com o universo natural, social e cultural; conceituar e delimitar a unidade lexical, bem como elabora modelos teóricos subjacentes às suas diferentes denominações. (ANDRADE, 2001, p. 191) A Lexicologia ocupa-se do estudo do componente lexical geral, enquanto a Terminologia que, embora estabeleça relação com a Lexicologia privilegia o estudo do componente lexical especializado. Enquanto os estudos da primeira abrangem todo o léxico de uma língua, os vinculados à segunda enfocam os termos especializados de determinadas áreas. A Lexicologia é uma ciência bastante complexa, pois seus 29 interesses no estudo do léxico são muito abrangentes e integrados. Essa complexidade acontece porque “o léxico está situado em uma intersecção linguística que absorve informações providas de caminhos diversos” (LORENTE, 2004, p. 20), caminhos esses que podem enveredar para o estudo de fenômenos de fonologia, da morfologia, da sintaxe, da semântica e da pragmática, segundo essa mesma autora. A Terminologia, por sua vez, está voltada para o léxico especializado, ou seja, para as denominações técnicas que permitem ao homem nomear os objetos, os conceitos, no âmbito das diferentes áreas profissionais e especiais. Krieger e Finatto (2004, p. 17) ponderam que “[...] a história de uma ciência se resume na de seus termos específicos. Uma ciência só começa a existir ou consegue se impor na medida em que faz existir e em que impõe seus conceitos, através da sua denominação”. Partindo dessa consideração, podemos perceber a interface entre a Terminologia e a Toponímia, já a metodologia de Dick (1992)5, utilizada como parâmetro para as pesquisas toponímicas no Brasil, utiliza uma terminologia técnica para elaborar o seu modelo taxionômico, formado por 27 taxes, cada uma delas “definida por um termo específico, que explicita o sentido semântico dos elementos componentes ou dos grupos assim formados” (DICK, 2004, p. 126). Ressaltando o fato de os termos transmitirem conteúdos próprios de cada área científica, Krieger e Finatto (2004, p. 17) afirmam que os termos realizam duas funções essenciais: a de representação e a de transmissão do conhecimento especializado. Ao circunscreverem conteúdos específicos, as terminologias auxiliam também a elidir ambigüidades, contribuindo para uma desejada precisão conceitual. (KRIEGER E FINATTO, 2004, p. 17) No próximo tópico trataremos de aspectos que envolvem a elaboração de dicionários. 1.2.1 A organização de repertórios léxicos A redação de dicionários, glossários, vocabulários de língua geral é uma prática de grande tradição. Hernández (1989, p. 6), ao tratar da teoria lexicográfica, esclarece que o caráter utilitário do produto lexicográfico deixou a atividade lexicográfica à margem dos avanços da linguística moderna, 5 Conferir no tópico 1.1.4 deste trabalho. 30 localizando a lexicografia na órbita das tarefas artesanais. A prova disso é que muitos linguistas - alguns deles inovadores tanto na teoria quanto na prática lexicográfica - consideram a lexicografia como uma arte 6. (HERNÁNDEZ, 1989, p. 6) Muitos autores concebem o fazer lexicográfico como arte, ao considerarem que sua finalidade prática torna-se obstáculo para admitir que a elaboração de obras dicionarísticas precisem passar pelo conhecimento científico da linguagem, desenvolvendo teoria e metodologias próprias, que surgem pela síntese da lexicografia prática com a linguística teórica. Fernández-Sevilla (1974) defende que se a constituição de dicionários for entendida como arte, requer inspiração, aptidões especiais inatas e sensibilidade artística e sendo assim, não poderia ser ensinada nem aprendida e tampouco ser chamada de ciência. O autor pondera que a lexicografia é uma técnica científica encarregada de estudar os princípios que que a preparação de repertórios léxicos de todos os tipos devem seguir, não só dicionários mas também vocabulários, inventários, etc. Na elaboração de um dicionários se difundem as ideias e os métodos de investigação linguística em um determinado momento.7 (FERNÁNDEZ-SEVILLA, 1974, p. 15) Partindo desse ponto de vista, para conseguir cumprir o papel de subsidiar a elaboração de dicionários, a Lexicografia e a Terminografia devem estar em contato com as outras ciências da linguagem, já que são disciplinas que se encarregam dos problemas teóricos e práticos da produção de dicionários. Estas ciências contemplam uma teoria geral, que cuida da investigação crítica acerca dos dicionários, e uma dimensão prática, que orienta a confecção de dicionários propriamente ditos. A produção lexicográfica mais comum é o dicionário geral da língua. Ele é o instrumento para sistematização do léxico, registrando-o na sua maior totalidade possível. O dicionário ideal é aquele que registra a língua em seu uso padrão 6 “El carácter utilitario del producto lexicográfico ha hecho que la actividad lexicográfica haya permanecido al margen de los avances que ha llevado a cabo la lingüística moderna, situando a la lexicografía en la órbita de las tareas artesanales. Prueba de ello es que incluso muchos lingüistas – algunos de ellos innovadores tanto de la teoría como de la práctica lexicográficas – consideran la lexicografía como una arte”. (TN). 7 “la lexicografia es una técnica científica encaminhada a estudiar los princípios que deben seguirse em la preparación de repertórios léxicos de todo tipo, no solo diccionarios sino también vocabulários, inventários, etc. Na elaboración de um diccionario se vierten las ideas y métodos de investigación linguística em una época dada” (TN) 31 e coloquial, porque dessa forma torna-se um objeto de registro da linguagem de uma sociedade. Nesse sentido, Biderman (1982, p. 166) observa que numa sociedade muito diversificada socialmente como a nossa, estratificada em classes sociais, coexistem variedades diastráticas diversas. Embora o dicionário privilegie a língua escrita, ele deve descrever também os diferentes níveis de linguagem, os registros sociais e, assim, não só identificar o vocabulário e os usos marcados como típicos da linguagem culta e formal, mas também o da linguagem coloquial, apontando os itens lexicais característicos de um uso popular, vulgar, chulo, as gírias e palavras e expressões obscenas. (BIDERMAN, 1982, p. 166) É nesse contexto que ressaltamos a importância de um dicionário toponímico, obra que registra, além dos nomes próprios de uma região e sua respectiva localização, causas que levaram os designadores a escolherem determinada palavra para nomear uma localidade, contribuindo, dessa forma, para o resgate social, histórico e cultural da região. A análise de um dicionário, confrontando-se, comparando-se o conteúdo de seus verbetes, analisando-se as suas diferenças, evidencia que os verbetes, de certa forma, constroem uma imagem da sociedade, pois registram o momento histórico em que foram elaborados. As condições de produção de um dicionário revelam a situação sócio-histórica do momento da construção da obra. Se olharmos um dicionário sob o prisma da análise do discurso, por exemplo, veremos nele um texto com a intenção de produzir sentidos. Isso acontece porque seus mecanismos de elaboração, ou seja, a definição, a exemplificação, as marcações, a etimologia, os comentários enciclopédicos são organizados para produzirem um determinado discurso e “como todo discurso, o dicionário tem uma história, ele constrói e atualiza uma memória, reproduz e desloca sentidos, inscrevendo-se no horizonte dos dizeres historicamente constituídos” (NUNES, 2002, p. 18). No caso de um dicionário de hidrônimos, como o que propomos nesse trabalho, o que é revelado de antemão, especialmente por meio da elaboração do sistema conceptual a partir da recorrência das motivações toponímicas estruturadas em taxionomias, são os aspectos do meio ambiente que influenciam na vida dos sujeitos que promovem a nomeação dos lugares são expressos no dicionário. 32 Biderman (2001, p. 131) pondera que “os dicionários constituem uma organização sistemática do léxico, uma espécie de tentativa de descrição do léxico de uma língua”. A autora também ressalta que um dicionário é uma obra comercial, além de cultural, e nele é preciso registrar a língua em uso da sociedade a qual ele será destinado. Organizar um dicionário então é descrever, documentar o léxico de uma língua. Todavia, com a velocidade dos avanços culturais e tecnológicos considera-se algo inatingível o registro da totalidade do léxico. Segundo Lara (2004, p. 134), o paradigma linguístico predominante costuma desprezar o dicionário por algumas características que ele apresenta: a) O dicionário não é uma descrição fiel de uma realidade verbal metódica e estatisticamente estudada em uma determinada população; b) o dicionário tem um cunho normativo explícito ou implícito, que modifica totalmente esta realidade; c) o dicionário é uma obra de caráter utilitário e mercantil. (LARA, 2004, p. 134) O mesmo autor argumenta que os autores de dicionários não se preocupavam em reclamar sua prática como uma disciplina linguística, e muito menos em considerar sua obra como um fenômeno verbal digno de teorização. A partir dos anos 70 do século XX é que começou a ser desenvolvida e questionada como uma disciplina da Linguística que embasasse a elaboração de dicionário. Lara (2004, p. 134) ressalta ainda que, apesar da divulgação dessa ciência nos Estados Unidos e na Europa, especialmente por teóricos espanhóis, o dicionário e as ciências que amparam sua constituição ainda não foram situados no lugar que merecem entre as disciplinas da Linguística. Ele acredita que o dicionário é visto apenas como o resultado da aplicação dos métodos, de acordo com certos costumes e com certas restrições editoriais, quando deveria ser considerado em sua realidade, como um produto linguístico, com toda a sua complexidade, e a sua especificidade, ou seja, considerando a quem ele é destinado, em que vocabulário se baseia, como o autor pensa a língua, que aspectos procuram resolver em determinada obra, como foi o procedimento para a sua construção etc. 1.2.2 Os tipos de dicionários Classificar os dicionários existentes não é uma tarefa fácil. Primeiro porque existem inúmeros tipos e, segundo, porque os dicionários são produtos heterogêneos, suas tipologias muitas vezes se misturam, pois a criação de uma obra lexicográfica ou 33 terminográfica pode ser influenciada por fatores históricos e culturais, além dos linguísticos. Borba (2003, p. 16), por exemplo, ressalta que um exame, mesmo superficial, em nossos dicionários mais correntes mostra que, em sentido estrito, eles não são nem de língua nem enciclopédicos, ou seja, muitas obras são a combinação de características pertencentes a categorias diferentes de dicionários. Biderman (1984, p. 11 a 16), apresenta a seguinte tipologia: 1) dicionário padrão da língua ou dicionário de uso da língua; 2) dicionário ideológico; 3) dicionário histórico; 4) dicionário especial; 5) dicionário inverso. O tipo mais comum é o dicionário geral da língua ou o dicionário padrão da língua, do qual seriam exemplos alguns bem conhecidos da língua portuguesa como o Morais, o Aulete, o Cândido de Figueiredo, o Aurélio, o Houaiss. A autora (2001, p. 132) ressalta que [...] o ideal de elaborar um dicionário geral da língua é sempre inatingível, já que o léxico cresce em progressão geométrica, hoje sobretudo, em virtude da grande aceleração das mudanças socioculturais e tecnológicas. A rigor nenhum dicionário por mais volumoso que seja, dará conta integral do léxico de uma língua de civilização. (BIDERMAN, 2001, p. 132) Na verdade, a diferença entre as obras dicionários, glossários e vocabulários é bastante tênue. Geralmente a terminologia é definida com base na extensão da obra. Os glossários e os vocabulários, por exemplo, são definidos pela extensão da nomenclatura - número menor de entradas -, pela dependência de outros textos - aparecem como listas curtas de palavras no final de certas obras. Já os dicionários são obras que pretendem abranger boa parte do léxico de uma língua. Com relação ao número de entradas das obras, enquanto um dicionário padrão da língua tem aproximadamente 50.000 verbetes, um dicionário infantil tem 5.000 e um escolar tem 10.000, em média, segundo Biderman (2001, p. 131 e 132). Para explicar os tipos de repertórios léxicos, Barros (2004, p. 143) propõe a seguinte classificação: dicionário de língua; dicionário terminológico; glossário (bilíngue ou multilíngue); dicionário enciclopédico; léxico (apêndice de uma obra). Para a autora (2004, p. 145 a 149), alguns elementos contribuem para a caracterização de cada um: o número de línguas, o tipo da unidade lexical tratada, a extensão da nomenclatura, a ordem alfabética ou sistemática, precisões terminológicas. Segundo a pesquisadora, é importante “estabelecer um número reduzido de tipos básicos e, de 34 acordo com a combinatória de elementos assim, cada obra poderá assumir características particulares” (BARROS, 2004, p. 150). Ainda dentro das possibilidades de classificação dos repertórios léxicos há o dicionário analógico ou ideológico que organiza as palavras por campos semânticos e não por ordem alfabética. Ao focalizar esse tipo de dicionário, Biderman (1984, p. 11) menciona um dos maiores dicionários dessa categoria, o Dicionário Ideológico de la Lengua Española, de Casares (1942), citando a posição do autor acerca da obra: os dicionários ordenados com este critério têm duas partes: a primeira é a propriamente ideológica, a segunda é a alfabética, ordenada exatamente como um dicionário semasiológico. Na parte ideológica as palavras se estruturam segundo seu enquadramento em colunas básicas que correspondem à divisão do universo em categorias fundamentais. Na parte sinótica se encontra o plano geral da classificação, no caso do Dicionário Ideológico de la Lengua Española a divisão do universo lexical foi estabelecida em trinta e oito classes, das quais Deus compõe uma classe e o universo, trinta e sete classes (BIDERMAM, 1984, p. 11) Dentre os tipos de dicionários situa-se também o dicionário histórico que, segundo Biderman (1984, p. 12) pode ser de duas modalidades, o que se baseia na língua de uma determinada época histórica e o etimológico. O primeiro é muito útil na leitura de obras datadas das épocas históricas a que ele se refere, enquanto o segundo, o etimológico, segundo Biderman (1984, p. 13), é elaborado a partir da perspectiva da língua contemporânea, ele se ocupa dos estágios anteriores do idioma, remontando à origem das palavras; tenta acompanhar a evolução histórica dos vocábulos, assinalando os diferentes valores semânticos por eles assumidos no decorrer do tempo, indicando pari passu as datações de cada um deles. (BIDERMAN, 1984, p. 13) Já os dicionários do tipo especial tratam de aspectos particulares da língua, como os dicionários de linguística, de gramática, de gíria. Na opinião de Ezquerra (1989), na modalidade dos dicionários especiais, situa-se a enciclopédia que, de acordo com o autor, dá conta de signos não necessariamente linguísticos que englobam tudo aquilo que configura a realidade de uma época ou de uma civilização. Haensch (1982, p. 163) ressalta que é comum elementos dos dicionários de língua se misturarem aos pertencentes às enciclopédias, criando assim o que ele chama de dicionários enciclopédicos: 35 [...] ocorre com frequência que aparecem mescladas no artigo de uma enciclopédia, indicações enciclopédicas, semasiológicas ou onomásiológicas e outras indicações linguísticas (etimológicas, fonéticas e até estilísticas). Quando se combinam em um dicionário a descrição enciclopédica e a descrição lingüística, se pode falar de ‘dicionários enciclopédicos’. (HAENSCH, 1982, p. 163) 8 Muitos autores já propuseram classificação tipológica a partir de diferentes enfoques específicos de cada obra. O Tesouro de la lengua castellana o española, de Sebastian de Covarrubias (1611), por exemplo, foi destacado por Hernández (1989, p. 38) como a obra lexicográfica de maior mérito e alcance na lexicografia espanhola de sua época. Trata-se de uma obra de caráter enciclopédico, que dá conta não apenas do léxico, mas também de frases feitas, de provérbios, de nomes próprios (topônimos e antropônimos), enfim, dos saberes e da cultura de seu tempo. Hernández (1989, p. 25) discute ainda a tipologia apresentada por outros autores, como Malkiel (1962), que organiza os dicionários levando em conta a classe, ou seja, o tamanho do corpus de acordo com o número de entradas, o número de línguas e as informações léxicas; a perspectiva do dicionário, que leva em conta a limitação do corpus, a diacronia/sincronia, a ordenação convencional/semântica/arbitrária e o caráter objetivo ou normativo; a apresentação das definições, documentação verbal, ilustrações. O autor (HERNÁNDEZ, 1989, p. 25) também retoma os critérios de Quemada (1968), para a definição da tipologia dos dicionários, nas categorias de monolíngues e plurilíngues. Os monolíngues podem ser dicionários de língua, enciclopédicos, gerais ou especializados, neste último se enquadrando os dicionários de nomes próprios. E os plurilíngues que podem ser homoglosos (de dialetos, de jargões, da língua antiga) e heteroglosos (bilíngues de línguas vivas ou mortas e multilíngues). A melhor maneira de investigar a tipologia dos dicionários é observar os critérios de sua organização, quais os fatores que motivaram a sua elaboração: linguísticos, históricos ou culturais. Por meio dos dados contidos em um dicionário é que se pode enquadrá-lo em uma ou em outra categoria tipológica, ou classificá-lo como obra mista, quando há interferência de dados de uma ou de outra categoria. 8 “Ocurre con frecuencia que aparecen mezcladas en el artículo de una enciclopedia, indicaciones enciclopédicas, semasiológicas u onomasiológicas y otras indicaciones lingüísticas (etimológicas, fonéticas, gramaticales y hasta estilísticas). Cuando se combinan en un diccionario y la descrition enciclopedia e la descrition lingüística, se suele hablar de ‘diccionarios enciclopédicos” (Tradução Nossa). 36 Welker (2004, p. 43) propõe uma classificação em três tipos distintos. Para esse autor, a primeira diferenciação deveria ser aquela entre obras de consulta em formato de livro e as computadorizadas; a segunda grande distinção a ser estabelecida seria entre dicionários monolíngues e dicionários bilíngues/multilíngues e a terceira entre dicionários gerais e especiais. Nesse último caso, apenas um tipo de dicionário seria considerado “geral” e todos os outros seriam classificados como especiais. O dicionário geral, nessa concepção, se caracteriza por ser alfabético, sincrônico, da língua contemporânea, arrolando, sobretudo, o léxico da língua comum. Os que não se encaixam na sua totalidade nessas características seriam, para o autor, os especiais, como os históricos, onomasiológico, terminológicos, os onomásticos, etc. O tópico seguinte é dedicado à categoria dos dicionários onomásticos. 1.2.4 Dicionários onomásticos O fazer dicionarístico, no que se refere à língua geral é muito antigo, mas a organização de dicionários do tipo toponímicos é recente. Observamos que os dicionários onomásticos são geralmente classificados dentro da categoria de dicionários enciclopédicos. Welker (2004, p. 35 a 54), por exemplo, focaliza algumas tipologias de obras, dentre elas a proposta de Scerba (1940), que defende a tese de que os nomes próprios deveriam aparecer tanto em dicionários como em enciclopédias, apesar de trazerem informações diferentes em uma e em outra obra. Uma classificação que não fornece tipos nitidamente separados é a de Malkiel (1962), já mencionada, que aponta para os dicionários de nomes próprios o critério da abrangência, que também abriga dados enciclopédicos e comentários, além das definições propriamente ditas. Já Haensch (1982) estabelece duas grandes divisões para definir a tipologia das obras: a primeira é pautada no ponto de vista da linguística teórica e abriga os glossários e vocabulários de obras literárias, Atlas lexicais, dicionários de regionalismos, de pronúncia, de construção, de colocações, de dúvidas, de fraseologismos, de neologismos, dicionários inversos, bilíngues, enciclopédicos e onomasiológicos. A segunda, por sua vez, se sustenta em critérios práticos da obra, como o formato e a extensão, o caráter linguístico ou enciclopédico, o número de línguas e as finalidades específicas da obra. Para o autor, os dicionários onomásticos situam-se dentre esses últimos tipos. Já Martinez de Souza (1995) inclui os dicionários onomásticos no item 37 critério terminológico, onde também estão os dicionários de abreviaturas e os gramaticais. Os dicionários onomásticos a que tivemos acesso seguem os mesmos métodos de elaboração dos dicionários gerais, no que se refere à superestrutura, ou seja, à forma de organização do dicionário, desde a apresentação/prefácio/introdução, a lista de abreviaturas, o arranjo das entradas em ordem alfabética, a bibliografia. Todavia, diferem quanto à microestrutura, o conjunto das informações ordenadas de cada verbete após a entrada. A informação contida na microestrutura que melhor caracteriza os dicionários gerais é a definição, elemento que desempenha um papel fundamental no texto do verbete. Concordamos com Krieger e Finatto (2004, p. 160), quando ressaltam que “a importância da definição é proporcional ao número de dificuldades envolvidas em seu estudo, pois diferentes fatores e condições perpassam sua formulação, constituindo um tema de elevada complexidade”. Welker (2004, p. 118), por sua vez, esclarece que, embora se costume distinguir as definições lexicográfica, enciclopédica e terminológica, não há marcas precisas que permitam a distinção entre um e outro tipo. Já Krieger e Finatto (2004, p. 167) diferenciam esses três tipos de definição da seguinte forma: [...] definições lexicográficas caracterizam-se pela predominância de informações lingüísticas, tratando mais de palavras; definições enciclopédicas se ocupam mais de referencias e de descrição de coisas; definições terminológicas trazem predominantemente conhecimentos formais sobre ‘coisas’ ou fenômenos. (KRIEGER E FINATTO, 2004, p. 167) Barros (2004, p. 158), por sua vez, explica que a definição é o enunciado que descreve o conteúdo semântico-conceptual de uma unidade lexical ou terminológica em posição de entrada de um verbete. Consiste em uma paráfrase sinonímica que exprime o conceito designado pela unidade lexical ou terminológica por meio de outras unidades linguísticas; é um conjunto de informações que são dadas sobre a entrada. (BARROS, 2004, p. 159) Vale ressaltar que os dicionários onomásticos não incluem na microestrutura a definição, por serem compostos de nomes próprios. Especificamente no caso dos dicionários de topônimos, as entradas configuram-se como signos linguísticos que normalmente já receberam uma definição num dicionário geral de língua, antes de 38 passar à categoria de topônimo. Nesse particular, não é demais lembrar que um signo, na qualidade de topônimo, é enriquecido pela funcionalidade de seu emprego, adquirindo uma dimensão maior e sendo marcado, no ato do batismo de um lugar, como um signo essencialmente motivado (DICK, 1992, p. 12), e é o registro da possível motivação de um topônimo uma das informações que mais caracteriza e diferencia a microestrutura de um verbete de um dicionário toponímico da de um dicionário geral da língua. Logo, o público-alvo de um dicionário toponímico deixa de ser o consulente apenas interessado em descobrir o significado das palavras, e passam a ser os pesquisadores de Linguística, de Etnologia, de Antropologia, de História, de Geografia, dada a interdisciplinaridade que caracteriza a Toponímia, pois, por registrar possíveis causas motivadoras de um nome próprio de lugar, um repertório léxico-toponímico aborda itens como a nomenclatura geográfica oficial do IBGE com seus respectivos nomes próprios, sua localização, a etimologia dos termos com especial atenção aos de origem indígena, a classificação taxionômica, além de informações históricas, enciclopédicas e registros escritos nos quais os sintagmas toponímicos estejam inseridos. Baseando-nos na tipologia proposta do Barros (2004, p. 144) citada anteriormente, nomeamos a nossa proposta de dicionário de “dicionário enciclopédico toponímico”, por este conter dados de natureza extralinguística além de informações relacionadas à língua, como etimologia, informação gramatical e taxionomia. No próximo tópico abordaremos o mapa, principal fonte de pesquisas toponímicas e que, entendido aqui como texto, determina o formato das entradas da macroestrutura e o amparo teórico da Terminografia para constituição do sistema conceptual da nossa proposta de dicionário enciclopédico toponímico. 1.2.5 A fonte dos dados: o mapa como texto Aspecto relevante a ser levantado a respeito da opção pelo amparo teórico da Terminografia para a constituição do sistema conceptual de hisdrônimos deste trabalho é em relação ao contexto onde os nomes próprios de lugar ocorrem. Todos os dados toponímicos tratados neste trabalho foram retirados de mapas oficiais do IBGE, que, por sua vez, podem ser considerados textos especializados, pois, além de apresentar sintagmas toponímicos, também se constitui por recursos linguísticos como os símbolos apresentados na legenda, cujos significados são 39 determinantes para reconhecimento de sua área de pertencimento, no caso, ao âmbito da comunicação da Geografia. Este sentido atribuído à fonte do corpus dicionarizado, é que nos faz visualizar os sintagmas toponímicos contextualizados como unidades de uma área específica e, deste modo, estabelecendo um ponto de intersecção com os termos especializados. Encontramos em Barros (2004, p. 40) a explicação de que “o termo também é uma palavra ou uma unidade lexical” e o que o torna termo é o contexto especializado. Concordamos também com Bevilaqua e Finatto (2006, p. 50), quando as autoras explicam que de acordo com nossa concepção de Terminologia, de viés comunicativo e textual, a qual dirige e modela a apresentação da informação para o usuário, acreditamos que o estatuto terminológico de uma unidade é dado por sua pertinência a um determinado tipo de texto. Isto é, nenhuma unidade lexical é a priori um termo, mas sim, torna-se um termo à medida que essa condição é ativada em um ambiente textual e discursivo. (BEVILAQUA E FINATTO, 2006, p. 50) A consideração do mapa como um texto onde o sintagma toponímico ganha sentido é defendida por Dick (1999, p. 128) que explica: Por de inserirem os topônimos, funcionalmente, em uma carta geográfica, qualquer que seja seu endereçamento, foi que sentimos a necessidade de procurar conceituar esse fundo material como um texto, à semelhança de outros, resultantes dos discursos enunciativos, construindo uma base textual articulada a partir dos sintagmas ou enunciados toponímicos. (DICK, 1999, p. 128) Desse modo, conforme a autora (1999, p. 130), a Toponímia é um conjunto lexical ordenado, um sistema de significação completo, em que a distribuição das denominações é o resultado de uma reflexão e de uma escolha realizada no eixo paradigmático da linguagem. É esta formação de nomes que estabelece uma relação entre o denominador e o designativo, o que se encontra revelado no nome são as influências que este sujeito nomeador sofreu em relação à cultura e ao ambiente e projetou no ato da nomeação. Sapir (1969, p. 43 a 62) explica que os aspectos do ambiente em que vive o povo falante influenciam na morfologia, na sintaxe, no sistema fonético de uma língua, mas, segundo o autor, o ponto que mais sofre influência é o léxico. Para o autor não basta o ambiente 40 físico para fazer surgir um símbolo linguístico, é necessário que haja influência da parte social no ambiente. Ou seja, que exista interesse da comunidade naquele aspecto físico. Sobre o caso do léxico especializado, Sapir (1969, p. 46) explica que “não são propriamente a fauna e os aspectos topográficos da região, em si mesmos, que a língua reflete, mas o interesse da nação nesses traços ambientais”. Cada um dos sintagmas toponímicos inseridos no texto, no caso, o mapa, indica um referente distinto e a análise do todo que compõe este texto oportuniza depreender as representações simbólicas das paisagens e as possíveis características sociais que envolvem uma região geográfica. Em relação a este aspecto, à semelhança do sintagma toponímico, o termo, segundo Cabré (1999, p. 21) se relaciona fundamentalmente com outros termos no sentido de conceitos, estabelecendo assim uma rede completa de relações lógicas e ontológicas diversas que pretendem representar o conhecimento interiorizado que temos da realidade. (CABRÉ, 1999, p. 21) Observamos esta rede de relações nos termos geográficos que compõem os sintagmas toponímicos da hidronímia no estado de Mato Grosso do Sul, objeto de nossa pesquisa. A relevância dos cursos de água para o desenvolvimento da região e a vasta diversidade de componentes naturais é ilustrada, entre outras formas, também pela diversidade de termos que identificam os elementos nas cartas topográficas. Encontramos, além de córregos, rios e ribeirões, mais comuns na geografia nacional, particularidades como os termos corixo, corixão, vazante, arroio e baía. Só é possível ler as representações simbólicas do mapa porque os sintagmas toponímicos são enunciados que produzem sentidos. A esse respeito, Guimarães (2002, p. 63) explica que “o nome não é um selo para o objeto, mas é de algum modo, a construção de um objeto pelo que o nome designa” e o mapa se faz texto não em relação à coesão e coerência, mas com enunciações distribuídas separadamente que só podem ser compreendidas quando há o entendimento do que significa cada designação, significados estes que são parte da denominação do sintagma toponímico no mapa, que os apresenta como enunciados de um texto. Assim, cada um deles, manifesta a memória do enunciador. Guimarães (2002, p. 67), ao tratar do mapa de uma cidade defende que Os nomes no mapa, mesmo que apareçam aí como meras etiquetas de espaços urbanos, são, enquanto nomes, o mapa (linguagem) que relaciona esta cidade com sua história, sem a qual ela não é uma 41 cidade. E estes nomes, inclusive o nome da cidade, são, enquanto sentido (designação), o que produz incessantemente uma identificação dos espaços da cidade e da cidade consigo mesma. E assim constitui estes espaços como espaços de identificação de sujeitos. (GUIMARÃES, 2002, p. 67) Nesse sentido, Dick (1999, p. 132) defende que, embora para os estudiosos em geral não se deva falar em texto toponímico pela ausência de coordenação entre os vários enunciadores identificadores de lugares, para o toponimista, em particular, se o enunciado é um produto ou uma resultante da manipulação intelectual do nomeador, valendo por si só, deve ser estudado também em função dos demais, num esquema de articulação linguística. É ela que permitirá alcançar a verdade do nome no conjunto da nomenclatura, sua inscrição num esquema de coordenadas tempo-espaciais, sua contextualização e a sintonia entre o tempo da enunciação e o tempo real da produção do designativo. (DICK, 1999, p, 132) Interpretando, então os sintagmas toponímicos a partir de sua inserção em mapas, que, por sua vez configuram-se como um texto documental de uma área de especialidade, acreditamos que a Terminografia também oferece amparo para a constituição de um dicionário enciclopédico toponímico, no caso de nossa proposta, ampara a organização do sistema conceptual. No tópico a seguir trataremos da contribuição da Terminografia para a elaboração da nossa proposta de dicionário enciclopédico toponímico. 1.2.6 Terminografia como amparo teórico-metodológico para a constituição do sistema conceptual de hidrônimos A Terminografia configura-se como uma área de conhecimento que oferece respaldo teórico-metodológico para a elaboração de obras dicionarísticas de áreas de especialidade, refletindo sobre os componentes que devem integrar esse tipo de obra e outros aspectos da elaboração de dicionários especializados. Krieger e Finatto (2004, p. 51) explicam que esse aporte teórico-metodológico deve orientar o tratamento a ser dado aos elementos constituintes do universo de informações que integram os instrumentos terminográficos, cujas estruturas variam conforme o conteúdo de um glossário, um dicionário monolíngue, bi 42 ou multilíngue ou ainda um banco de dados de terminologias. (KRIEGER E FINATTO, 2004, p. 51) Embora os sintagmas toponímicos não constituam o tipo de unidades terminológicas que costumam ser tratados em repertórios terminológicos, optamos neste trabalho pelo subsídio teórico da Terminografia considerando alguns aspectos desses sintagmas que os aproximam e estabelecem alguns pontos de intersecção com os termos especializados. Há dois aspectos principais que observamos e queremos salientar para justificar o amparo da Terminografia neste trabalho. O primeiro diz respeito à fonte de dados para as pesquisas em Toponímia, afinal, o mapa configura-se como um texto especializado da área da Geografia e sintagmas toponímicos são integrantes desse texto. O segundo ponto refere-se à própria estrutura dos sintagmas toponímicos inseridos em mapas: os nomes próprios sempre vinculados aos elementos geográficos, ou seja, vinculados aos termos de uma área de especialidade, a hidrografia. Explicitamos anteriormente que isso é mais claro quando o sintagma toponímico ocorre ligado por uma preposição, mas, ainda sem este conectivo, para que produza sentido, o topônimo precisa de alguma forma estar ligado ao seu referente, no caso dos dados de nossa pesquisa, um termo especializado da área da hidrografia. Também ressaltamos como característica própria de propostas terminográficas as informações que compõem os textos dos verbetes que se restringem a oferecer dados específicos ao repertório léxico escolhido, ao contrário do que acontece com a Lexicografia, que busca oferecer no verbete o maior número de informações e significações possíveis para uma unidade léxica. Nesse sentido, os verbetes toponímicos também não pretendem ser exaustivos e, sim, oferecer informações relativas aos nomes em relação a seus aspectos motivacionais e enciclopédicos. Este elemento constitutivo encontra suporte nas palavras de Krieger e Finatto (2004, p. 53) quando as autoras manifestam que “como as obras terminográficas privilegiam as informações sobre o conhecimento especializado, e como tal de natureza extralinguística, diz-se que elas se aproximam das enciclopédias”. Partindo desses pontos de vista, buscamos respaldo teórico na Terminografia, por constatarmos oferecer subsídios produtivos para a constituição do sistema conceptual de hidrônimos de um dicionário enciclopédico toponímico. 43 A elaboração de um sistema de conceitos é baseada em critérios estabelecidos conforme o domínio a ser organizado. Para Barros (2004, p. 108) toda característica que serve ao estabelecimento de um sistema de conceitos (mapa conceitual) é chamada característica de classificação. Em um mesmo sistema de conceitos, essas características devem ser do mesmo tipo, entretanto, a natureza e o tipo da característica empregada podem variar segundo a necessidade de organização do sistema em diferentes campos conceituais. (BARROS, 2004, p. 108) No caso da nossa proposta de sistema conceptual de hidrônimos, a característica que prevalece é a classificação taxionômica dos topônimos, estabelecida conforme a motivação de cada designação: nomes cujos conceitos fazem referência à aspectos de natureza física (rios, fauna, flora, relevo) e de natureza humana (pessoas, cidades, sentimentos, bens materiais). A autora supracitada explica que A organização das unidades terminológicas que compõem a nomenclatura de um vocabulário em um conjunto estruturado de termos permite a identificação precisa das relações conceptuais estabelecidas entre eles. A análise semântico-conceptual dessas unidades linguísticas permite igualmente a identificação da zona de intersecção semântica existente entre elas e dos traços específicos de cada um. (BARROS, 2004, p. 122) No sistema conceptual dos hidrônimos que propomos, o ponto de intersecção semântica entre os sintagmas toponímicos é a motivação, o que os aproxima para um mesmo subconjunto delimitado levando em conta a taxionomia. O sistema conceptual é elaborado considerando as relações hierárquicas e não hierárquicas dos termos. As relações hierárquicas são estruturadas a partir dos conceitos mais genéricos para os mais específicos, já as relações não-hierárquicas mantêm relações de coordenação conceptual (BARROS, 2004, p. 115-118). Situamos a nossa proposta de sistema conceptual como mista, por abarcar esses dois tipos de relações: hierárquica no que se refere a relação entre os hidrônimos e os tipos de elementos e a recorrência das taxionomias e não-hierárquicas na relação entre os próprios sintagmas toponímicos dentro da divisão taxionômica, onde todos estão no mesmo nível semântico. Outro elemento fornecido pela Terminografia para a elaboração de dicionários é a consideração do contexto como fator determinante para exprimir as características que compõem um termo. O contexto é definido por Barros (2004, p. 109) como o enunciado 44 onde o termo estudado encontra-se atualizado. Para a constituição do dicionário toponímico aproveitamos o que a autora citada explica como sendo o contexto enciclopédico, essencial para a elaboração de dicionários enciclopédicos e caracterizado como elemento que “veicula dados de natureza extralinguística, referencial, histórica, sem agregar definição” (BARROS, 2004, p. 11). Para nossa proposta de dicionário este é um dado fundamental, uma vez que, tomamos os sintagmas toponímicos a partir de sua inserção em mapas e o contexto onde os elementos ocorrem determina as informações geográficas que compõe a microestrutura. No próximo capítulo tratamos da metodologia de trabalho para o desenvolvimento desta pesquisa. 45 2. METODOLOGIA DA PESQUISA Neste capítulo relatamos todas as etapas que envolveram o desenvolvimento de nossa pesquisa: a análise de obras toponímicas, a delimitação da nomenclatura de nossa pesquisa, a fonte dos dados, a ficha toponímico-terminológica, a organização do sistema conceptual e a busca e tratamento dos dados. 2.1 Análise dos dicionários toponímicos Este trabalho tem como objetivo principal propor um modelo de dicionário enciclopédico toponímico. Nesse sentido, realizamos como procedimento inicial para o desenvolvimento desta pesquisa um estudo acerca dos dicionários toponímicos que já foram publicados no Brasil. As sete obras foram: OLIVEIRA, Agenor Lopes de. Toponímia Carioca. Rio de Janeiro: Secretaria Geral de educação e Cultura da prefeitura do Distrito Federal, 1935. VICTORIA, Luiz A. P. Dicionário Reversivo de Topônimos e Gentílicos. Rio de Janeiro: Organização Simões, 1954. SILVA, J. Romão da. Denominações Indígenas na Toponímia Carioca. Rio de Janeiro: Livraria Editora Brasiliana, 1966. CASCUDO, Luís da Câmara. Nomes da Terra: história, geografia e toponímia do Rio Grande do Norte. Rio de Janeiro: Fundação José Augusto, 1968; MACHADO, José Pedro. Dicionário onomástico etimológico da língua portuguesa. Lisboa, Editorial Confluência, 1987. FALCÃO, Márlio Fábio Pelosi. Dicionário Toponímico, Histórico e Geográfico do Nordeste. Fortaleza: Artlaser Editora e Gráfica, 2005. GOMES, Leonardo José Magalhães. Memória de Ruas: Dicionário Toponímico de Belo Horizonte. Belo Horizonte: Crisálida, 2008. Todas essas obras foram analisadas em relação à superestrutura, à macroestrutura, à microestrutura e ao sistema de remissiva, objetivando, assim, observar as características de cada uma e nelas nos basearmos para a elaboração do nosso modelo de dicionário. 46 2.2 Delimitação da nomenclatura Em nossa pesquisa de mestrado trabalhamos com os topônimos do Bolsão Sul- mato-grossense, região localizada no leste de Mato Grosso do Sul, tantos os elementos humanos (cidades, distritos e localidades) quanto os elementos físicos (rios, córregos, serras, morros). Em nossa pesquisa em nível de doutorado decidimos delimitar a nomenclatura estudada aos hidrônimos do estado de Mato Grosso do Sul. Para tanto, recorremos ao banco de dados do ATEMS para buscar informações referentes a esses hidrônimos, ou seja, elementos geográficos referentes a água, para elaborar a nossa proposta de dicionário. O banco de dados do projeto ATEMS conta atualmente com 8.808 topônimos e destes, 6.560 caracterizam-se como elementos hidrográficos, que são os a seguir: Quadro 3 – Hidrônimos 1- Arroio 6- Canal 10- Córrego 15- Represa 20- Riozinho 2- Baía 7- Catarata 11- Foz 16- Riacho 21- Salto 3- Cabeceira 8- Corixo 12- Lago 17- Ribeira 22- Sanga 4- Cabo 9- Corixão 13- Lagoa 18- Ribeirão 23- Vazante 5- Cachoeira 14- Nascente 19- Rio 24- Volta Fonte: Autoria própria Delimitamos, assim, o objeto de estudo de nossa pesquisa aos termos que designam conceitos de elementos geográficos ligados à água e aos respectivos topônimos, ou seja, aos nomes próprios que denominam os elementos geográficos que se enquadram em cada uma dessas 24 categorias, ou melhor, 24 termos-chave. Esclarecemos que muitos nomes próprios se repetem no banco de dados, como ocorre, por exemplo, com o sintagma toponímico Córrego Açude que o ocorre nove vezes e, para nossa pesquisa, apenas um “Córrego Açude” é registrado nove vezes no banco de dados, e a recorrência de nomes e sua produtividade não é o foco deste nosso trabalho, de modo que dos 6560 sintagmas toponímicos, reunimos 3.487 que integram o sistema conceptual. Essa é, assim, a nomenclatura de nossa pesquisa. 47