UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Instituto de Geociências e Ciências Exatas Campus de Rio Claro O lugar do desenho e o desenho do lugar no ensino de geografia: O lugar do desenho e o desenho do lugar no ensino de geografia: O lugar do desenho e o desenho do lugar no ensino de geografia: O lugar do desenho e o desenho do lugar no ensino de geografia: contribuição para uma geografia escolar críticacontribuição para uma geografia escolar críticacontribuição para uma geografia escolar críticacontribuição para uma geografia escolar crítica Sérgio Luiz Miranda Orientador: Prof. Dr. Archimedes Perez Filho Tese de doutorado elaborada junto ao Programa de Pós-Graduação em Geografia – Área de Concentração em Organização do Espaço, para obtenção do título de doutor em Geografia. Rio Claro (SP) 2005 910.07 Miranda, Sérgio Luiz M672L O lugar do desenho e o desenho do lugar no ensino de geografia : contribuição para uma geografia escolar crítica / Sérgio Luiz Miranda. – Rio Claro : [s.n.], 2005 162 f. : il. Tese (doutorado) – Universidade Estadual Paulista, Instituto de Geociências e Ciências Exatas Orientador: Archimedes Perez Filho 1. Geografia – Estudo e ensino. 2. Geografia escolar. 3. Prática pedagógica. 4. Formação docente. 5. Vigotsky, L. S., 1896-1934. 6. Desenho infantil. I. Título. Ficha Catalográfica elaborada pela STATI – Biblioteca da UNESP Campus de Rio Claro/SP Comissão examinadora Prof. Dr. Archimedes Perez Filho - presidente Profa. Dra. Arleude Bortolozzi Prof. Dr. Antonio Carlos Pinheiro Profa. Dra. Bernadete Aparecida Caprioglio de Castro Oliveira Prof. Dr. João Pedro Pezzato Rio Claro, 04 de novembro de 2005. Resultado: Aprovado Dedicatória para todos (como o disco de Chico Buarque) Queremos saber, o que vão fazer Com as novas invenções Queremos saber notícia mais séria Sobre a descoberta da antimatéria E suas implicações Na emancipação do homem Das grandes populações Homens pobres das cidades Das estepes, dos sertões Queremos saber, quando vamos ter Raio laser mais barato Queremos, de fato, um relato Retrato mais sério do mistério da luz Luz do disco-voador Pra iluminação do homem Tão carente, sofredor Tão perdido na distância Da morada do Senhor Queremos saber, queremos viver Confiantes no futuro Por isso se faz necessário prever Qual o itinerário da ilusão A ilusão do poder Pois, se foi permitido ao homem Tantas coisas conhecer É melhor que todos saibam O que pode acontecer Queremos saber Queremos saber Todos queremos saber (Queremos saber - Gilberto Gil) Agradecimentos Ao meu orientador, Prof. Archimedes Perez FilhoProf. Archimedes Perez FilhoProf. Archimedes Perez FilhoProf. Archimedes Perez Filho, que só conheci pessoalmente já pela metade dessa jornada, a qual não teria concluído sem seu acolhimento, seu apoio, sua paz e sua calma para conduzir o trabalho com pensamento aberto. Pela confiança, pela segurança, pelo incentivo, minha gratidão. À Professora-colega Rosa Maria Gonçalves, a amiga RosinhaRosinhaRosinhaRosinha, e aos seus alunosalunosalunosalunos, pela colaboração e pela alegria da participação na pesquisa. Valeu! À LauriLauriLauriLauri, à SofiaSofiaSofiaSofia e ao CyroCyroCyroCyro, pela presença, pelo carinho, pela compreensão e, de novo, com pedido de desculpas pelo tempo que não compartilhei, pelos programas que não fiz, pela irritação cobrando “silêncio de biblioteca” para ler, pensar, escrever. À minha mãemãemãemãe, Zaira, que torceu com suas orações de mãe, ao meu paipaipaipai, Rubens, que partiu dez dias após a entrega da primeira versão desta tese, e aos meus irmãosirmãosirmãosirmãos, Silvana, Rubinho e Silmara, pelo incentivo e pelas alegrias e tristezas de nossas vidas inteiras compartilhadas. À MargareteMargareteMargareteMargarete, à DeniseDeniseDeniseDenise, à MoaciraMoaciraMoaciraMoacira, à RosaRosaRosaRosa, à JoelmaJoelmaJoelmaJoelma, à AdrianaAdrianaAdrianaAdriana, à FernandaFernandaFernandaFernanda, e a todos da EEEEscolascolascolascola “José Fernandes” “José Fernandes” “José Fernandes” “José Fernandes”, pelo acolhimento profissional carinhoso. Aos amigos, também colegas de pós-graduação, Lígia, ValérLígia, ValérLígia, ValérLígia, Valéria, Adrianoia, Adrianoia, Adrianoia, Adriano, pelos momentos compartilhados no caminho. Ao Prof.Prof.Prof.Prof. Miguel SanchezMiguel SanchezMiguel SanchezMiguel Sanchez e à Profa. Lívia de OliveiraProfa. Lívia de OliveiraProfa. Lívia de OliveiraProfa. Lívia de Oliveira, pelas contribuições na banca do exame geral de qualificação. Às Profas. Arleude BortolozziArleude BortolozziArleude BortolozziArleude Bortolozzi e Bernadete Aparecida Caprioglio de Castro Bernadete Aparecida Caprioglio de Castro Bernadete Aparecida Caprioglio de Castro Bernadete Aparecida Caprioglio de Castro OliveiraOliveiraOliveiraOliveira e aos Profs. Antonio Carlos PinheiroAntonio Carlos PinheiroAntonio Carlos PinheiroAntonio Carlos Pinheiro e João Pedro PezzatoJoão Pedro PezzatoJoão Pedro PezzatoJoão Pedro Pezzato, pelas contribuições na banca examinadora na defesa. Aos amigos, colegas, professores e funcionários da Unesp de Rio ClaroUnesp de Rio ClaroUnesp de Rio ClaroUnesp de Rio Claro, especialmente da Geografia, da Educação e da Biblioteca, por onde tenho andado e aprendido nos últimos quinze anos, por tudo isso. Ao CNPq, pelo apoio financeiro, sem o qual teria sido mais difícil. Ando devagar porque já tive pressa E levo esse sorriso Porque já chorei demais Hoje me sinto mais forte Mais feliz quem sabe Eu só levo a certeza de que muito pouco eu sei Nada sei Conhecer as manhas e as manhãs O sabor das massas e das maças É preciso amor pra poder pulsar É preciso paz para poder seguir É preciso chuva para poder florir Sinto que seguir a vida seja simplesmente conhecer a marcha, ir tocando em frente. Por um velho boiadeiro levando a boiada, Eu vou tocando os dias pela longa estrada eu vou, Estrada eu sou. Conhecer as manhas e as manhãs O sabor das massas e das maças É preciso amor para poder pulsar É preciso paz para poder seguir É preciso chuva para florir Todo mundo ama um dia Todo mundo chora, Um dia a gente chega E no outro vai embora Cada um de nós compõe a sua própria história E cada ser em si carrega o dom de ser capaz De ser feliz... (Tocando em frente – Renato Teixeira) I SUMÁRIO ÍNDICE ............................................................................................ II RESUMO ........................................................................................ III ABSTRACT .................................................................................... IV Introdução....................................................................................... 1 Capítulo 1 – Entradas e bandeiras ................................................ 18 Capítulo 2 – O lugar do desenho no ensino de Geografia .......... 53 Capítulo 3 – O desenho do lugar .................................................. 100 Considerações finais ...................................................................... 138 Referências ...................................................................................... 142 II ÍNDICE Introdução................................................................................................... 1 Capítulo 1 – Entradas e bandeiras ............................................................ 18 1.1 Primeiras palavras ......................................................................... 19 1.2 O contexto atual se chama neoliberalismo .................................... 34 1.3 Sobre a prática pedagógica e o ensino de Geografia .................... 46 Capítulo 2 – O lugar do desenho no ensino de Geografia ...................... 53 2.1 Desenhar é preciso ........................................................................ 56 2.2 Para uma Geografia Escolar Crítica... ........................................ 71 2.3 ...Piaget ou Vigotski ........................................................................ 85 Capítulo 3 – O desenho do lugar ............................................................... 100 3.1 A pesquisa de volta para a sala de aula ........................................ 108 3.1.1 Atividades com a terceira série .............................................. 112 3.1.2 Atividades com a segunda série ............................................ 114 3.1.3 Episódios selecionados ......................................................... 117 3.1.4 Discussão dos resultados ...................................................... 127 3.1.5 As nossas fotos ...................................................................... 133 Considerações finais ................................................................................. 138 Referências ................................................................................................. 142 III RESUMO Este trabalho é orientado para a compreensão das abordagens do desenho no ensino de geografia, buscando possibilidades didáticas do desenho para abordar conteúdos curriculares nas séries iniciais da escola fundamental, tomando o conceito geográfico de lugar como eixo estruturador do currículo e a perspectiva crítica marxista como referencial na Geografia e na Educação, tendo em vista uma Geografia Escolar Crítica. Caracteriza-se como um estudo de caso com enfoque da dialética materialista histórica em que o pesquisador-professor volta-se para sua própria prática no ensino e na pesquisa enquanto práxis, considerando o processo de pesquisa como processo de conhecimento-aprendizagem numa perspectiva dialógica. Nos estudos e propostas para o ensino de geografia, identifica o lugar do desenho limitado a um lugar de passagem para o mapa, como um caminho “natural” balizado pelos estudos piagetianos. Reduzindo o desenho aos aspectos geométricos do espaço gráfico e orientando-se pelo construtivismo piagetiano, o ensino de geografia reproduz uma orientação conservadora da Educação. O estudo de outras abordagens do desenho e do ensino e a vivência experimental em sala de aula com o desenho do lugar apontaram para as contribuições de Vigotski para se rever e se ampliar a atividade do desenho em aula e o ensino como um todo, na perspectiva de uma Geografia Escolar Crítica. Palavras chave: geografia escolar crítica – formação docente – prática pedagógica – Vigotski – desenho infantil. IV ABSTRACT This study is oriented towards the comprehension of the drawing approaches in teaching geography, finding didactic possibilities to deal with the contents of the initial grades of primary education, taking the geographic concept of place as structural axle of the curriculum and the marxist critical perspective as reference in Geography and Education, aiming at a critical scholastic geography. It’s characterized by a Case Study, with a focus of the historical materialistic dialectic, in which the teacher-researcher uses his own teaching experience and research as praxis, considers the research process as knowledge/learning process and as dialogue. In the studies and proposals for the teaching of geography, the place of the drawing is limited to a passage way to the map, a natural way regulated by piagetian studies. Reducing the drawing to the geometric aspects of the graphical space and orienting itself by Piaget’s constructivism, the geography teaching it reproduces a conservative orientation of the Education. The studies of other drawing and teaching approaches and the classroom experience with the drawing, indicated the Vigotski’s contributions to reconsider and increase the activity of the drawing in class and the teaching as a whole, in the perspective of a critical scholastic geography. Key-words: critical scholastic geography – teacher formation – pedagogical practice – Vigotski – infant drawing. 1 Introdução Sugerindo formas, tempos e ritmos diferentes de envolvimento com alguma busca de respostas, todos os dias convivemos com as perguntas que em cada momento de atenção ou de estudo buscamos solidária ou solitariamente, quando lemos um livro para saber “alguma coisa” ainda não sabida ou conhecida de maneira insatisfatória. Ninguém lê nada impunemente. E bem sabemos que quando levada a sério, toda leitura é uma aventura. Porque o simples abrir as páginas de um livro é um convite a que o saber de uma outra pessoa seja também minha [sic], ou venha a ser um modo de pensar contrário aos dos meus. É quando corro o risco de que perguntas que ele fez, agora sejam também as minhas dúvidas. Perguntas que aprendo a fazer com ele, em busca de respostas que pensei que conhecia até começar a descobrir que ainda não sabia. Perguntas cujas respostas poderão remeter, em pequena, média ou grande escala, a alguma alternativa de investigação científica, filosófica, espiritual, artística. Carlos Rodrigues Brandão (2003, p. 73-74) 2 Como sabemos, recomenda-se que a apresentação ou introdução de um texto-trabalho acadêmico se escreva por último, depois de finalizado o trabalho para que, só então, possa ser apresentado ao leitor e à leitora, dizendo-lhes do que se trata e lhes dando uma idéia geral do que encontrarão nas páginas seguintes. Desse modo, o que se coloca aqui no início é, na verdade, o final do trabalho, o último do trabalho realizado. Portanto, o que se coloca neste início não deve em nada ser tomado como “a prioris” da pesquisa realizada, pois uma preocupação central na composição do texto deste trabalho foi justamente recompor os movimentos do processo real de pesquisa em suas linhas gerais para apresentá-la tal como se deu, com todos os percalços do caminho, os desvios necessários no percurso, deliberados ou involuntários, e a que se chegou ao final como tese. É essa trajetória tortuosa, depois de realizada, que começo a apresentar aqui como introdução. Esse trabalho me levou, no processo de sua realização, a voltar-me para minha prática no ensino e na pesquisa em ensino de Geografia para recuperar, analisar, rever e redefinir, em outras bases, convicções, concepções e fundamentos que nortearam o meu fazer e o meu pensar o ensino e a pesquisa em ensino de Geografia. Portanto, neste texto acadêmico, com a finalidade de apresentar a pesquisa realizada para elaboração e defesa da tese de doutorado, trago uma parte importante de minha história desde que optei pela licenciatura em Geografia e iniciei minha trajetória profissional nessa disciplina como aluno de graduação, professor, pós-graduando. Desse modo, fragmentos da história do pesquisador, da história recente da Geografia, do ensino e da pesquisa sobre o ensino desta disciplina no contexto sócio-político e educacional do país nas últimas décadas, se imbricam, se complementam, se contrapõem na produção da história desta pesquisa e, portanto, nos seus resultados. O tema deste trabalho é o desenho no ensino de Geografia, mais especificamente, a atividade do desenho na abordagem de conteúdos geográficos nas séries iniciais do ensino fundamental. A problemática envolvida neste tema, em torno da qual se desenvolveu a pesquisa, consiste em compreender as abordagens do desenho infantil em geral e das produções gráficas dos alunos no ensino de Geografia, buscando ampliar as possibilidades didáticas da atividade do desenho para abordar conteúdos curriculares de Geografia nas séries iniciais do ensino fundamental, considerando o conceito geográfico de lugar como eixo estruturador do 3 currículo e tomando a perspectiva marxista como orientação teórico-metodológica na Geografia e na Educação. Assim, pretende-se empreender uma análise crítica das abordagens do desenho buscando elementos que contribuam para o delineamento teórico-metodológico de uma abordagem didática que permita ampliar os conteúdos do ensino de Geografia tratados pela e na atividade do desenho, articulados pelo conceito geográfico de lugar e na perspectiva de uma Geografia Escolar Crítica1. Mas, em um mundo cada vez mais tecnológico e sob o império das imagens produzidas-reproduzidas artificialmente, veiculadas mundialmente, editadas, manipuladas, usadas, consumidas, carregadas de valores simbólicos, ideológicos, mercadológicos, haveria ainda lugar para a atividade do desenho no ensino de Geografia? O desenho tem uma relação histórica com a Geografia através dos croquis, esboços de paisagem, esquemas gráficos de localizações, distribuições e extensões espaciais feitos em observações de campo ou através da memória. Essa tradição do desenho nos estudos geográficos tem se perdido com o surgimento de novos instrumentais tecnológicos, principalmente as fotografias e, mais recentemente, as imagens de satélite, além da maior facilidade de acesso aos mapas, cuja produção aumentou em quantidade e qualidade graças às novas tecnologias, como o sensoriamento remoto e a informática. Por outro lado, nas últimas décadas o desenho ganhou nova centralidade no ensino de Geografia através de pesquisas e orientações curriculares que apontam a importância da cartografia para os estudos geográficos e apresentando propostas metodológicas para o ensino do mapa partindo do desenho como representação do espaço. Nesses estudos e propostas, fundamentados principalmente na teoria piagetiana sobre a representação do espaço pela criança em seu desenvolvimento cognitivo geral, há o consenso de que é mapeando que a 1 Emprego esse termo aqui para designar o ensino da Geografia, como disciplina escolar, na perspectiva da Geografia Crítica, como corrente ou escola do pensamento marxista na Geografia, que também foi chamada Geografia Radical. O termo Geografia Crítica é questionável pelo fato de que a crítica às outras correntes da Geografia, de orientação positivista, no movimento de renovação da disciplina na segunda metade do século XX, principalmente a partir da década de 70, não foi apenas dos geógrafos marxistas, mas também dos geógrafos humanistas, da corrente fenomelógica. Entretanto, Geografia Crítica é como ficou conhecida a corrente marxista da Geografia no Brasil e assim que ainda é chamada. 4 criança aprende a ler mapas. Daí as propostas para uma iniciação ou alfabetização cartográfica através do desenho no ensino de Geografia2. Desde meu ingresso no magistério como professor de Geografia, antes mesmo de concluir a graduação em licenciatura, o desenho em minha prática pedagógica esteve ligado ao ensino de cartografia fundamentado na teoria de Piaget, que comecei a aprender na universidade e continuei aprendendo em minhas aulas, no trabalho de conclusão de curso, no mestrado, e ensinando em cursos para professores de Geografia3. Para a dissertação de mestrado4, defendida em 2001, desenvolvi uma pesquisa sobre a noção de curva de nível na representação do relevo por alunos de uma quinta série do ensino fundamental, empregando o desenho em situações de ensino com procedimentos de campo, uma maquete do entorno da escola e abordando a relação entre morfologia e drenagem da área. Para essa pesquisa, além da obra clássica de Piaget e Inhelder (1993), me ajudaram muito os estudos de Telmo (1986), sobre a terceira dimensão em desenhos de casas feitos por crianças portuguesas, e de Goodnow (1979), que apresenta diferentes estudos sobre desenhos infantis que têm em comum a busca da delimitação, descrição e caracterização de etapas do desenvolvimento do grafismo infantil comuns para todas as crianças. A partir das contribuições desses estudos, principalmente os de Telmo e Goodnow, defini o emprego da linha de base e a indicação da variação de altitude como critérios de análise dos desenhos dos alunos. Ao concluir aquela pesquisa, uma das possibilidades que vi e que considerei talvez a mais importante para continuar investigando foi a de realizar um estudo para identificar uma possível ordem de sucessão nas formas como a criança representa a variação de altitude do relevo na perspectiva vertical para identificar e situar nesse processo a gênese da noção de curva de nível. Pensava, então, que a noção de curva de nível surgiria 2 Não há consenso ainda quanto a qual dos termos – “iniciação”, “alfabetização” ou “educação” cartográfica – seria mais adequado para designar o processo de ensino-aprendizagem da linguagem cartográfica na escola fundamental. Alguns autores, como Simieli (1999) e Passini (1994) empregam “alfabetização cartográfica”, e Almeida (2001) prefere “iniciação cartográfica”. As professoras Elza Passini e Rosângela Doin de Almeida e o professor Marcello Martinelli escreveram sobre essa questão no Boletim de Geografia (ano 17, n. 1, 1999) do Departamento de Geografia da Universidade Estadual de Maringá. 3 Tive a oportunidade de participar como professor convidado, em 1997-98, de alguns cursos de educação continuada oferecidos pela Unesp de Rio Claro, sob responsabilidade da professora Rosângela Doin de Almeida, através de convênio com a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo e Diretorias de Ensino de Rio Claro, Pirassununga, Bebedouro e Taquaritinga, além de outros oferecidos pelo Laboratório de Ensino de Geografia da Unesp de Rio Claro (Depto. de Educação). 4 Miranda, S. (2001). 5 “naturalmente” no pensamento da criança sobre a representação do relevo na perspectiva vertical, pressupondo uma ordem universal no desenvolvimento da representação do relevo pela criança e que culminaria na abstração das curvas de nível como planos superpostos que secionam o relevo em diferentes níveis de altitude. Pensava assim de acordo com o referencial teórico-metodológico e os resultados da pesquisa. Ao ingressar no doutorado, no início de 2002, pretendia dar continuidade no estudo das representações cartográficas do relevo no ensino de Geografia, mas mudaria o foco para os saberes e práticas de professores na abordagem de temáticas ambientais envolvendo a drenagem e a morfologia em escala local no ensino com atlas municipais escolares. Realizaria a pesquisa com professores de escolas públicas municipais e estaduais dos municípios de Rio Claro e Ipeúna que participavam de uma outra pesquisa sobre o ensino com atlas escolares municipais5. Como professor efetivo de Geografia da Educação Básica (PEB II) da rede pública estadual, minha participação nesse grupo era na condição de “professor-tutor” de Geografia que atuaria colaborando com “professores-pesquisadores”, sem formação superior em Geografia e que atuavam nas séries iniciais do ensino fundamental, no desenvolvimento de atividades de ensino com os atlas. Após um semestre de atividade do grupo, no início de 2003, no planejamento realizado pelos professores para aquele semestre letivo, não vi possibilidades para o desenvolvimento de atividades envolvendo representações cartográficas do relevo que me permitissem investigar o que e como os professores sabiam sobre as mesmas e sua utilização no ensino para tratar de temáticas ambientais. Apenas uma professora já havia abordado o relevo e a hidrografia do Município de Rio Claro com sua classe de terceira série, cujas aulas não pude acompanhar em virtude do horário de trabalho em minha escola, que coincidia com as aulas da professora6. 5 “Integrando universidade e escola por meio de uma pesquisa em colaboração: atlas escolares municipais – fase 2”. A pesquisa, concluída em 2004 e financiada pelo Programa Ensino Público da Fapesp (proc. 02/00117-0), era coordenada pelos Professores Drs. Rosângela Doin de Almeida (pesquisadora responsável), Samira Peduti Kahil, Dalva Maria Bianchini Bonotto e Álvaro Tenca, da Unesp de Rio Claro, e Wenceslao Machado de Oliveira Jr., da Unicamp. Além desses pesquisadores e de professores de escolas públicas de Rio Claro e Ipeúna, integravam também o grupo alguns alunos da graduação e da pós-graduação em Geografia da Unesp de Rio Claro. 6 Através dos relatos e dos registros de aula da professora e do material que utilizou, cheguei a escrever sobre sua experiência no ensino do relevo e do mapa hipsométrico do município (MIRANDA, S., 2003b). 6 Tomando como princípio ético de minha pesquisa para a tese o respeito aos interesses e necessidades dos professores como sujeitos, comecei a pensar em redefini-la para colocá-la em função das necessidades e interesses reais apresentados pelos professores para que minha pesquisa se constituísse de fato uma contribuição significativa para os mesmos, considerando as questões da ética e das relações de poder como uma preocupação central nas pesquisas educacionais, conforme aponta Marli André (1997). Assim, apoiando-me na concepção da “pesquisa qualitativa” com abordagem etnográfica apresentada por Lüdke e André (1986, p. 16), segundo as quais, “diversamente de outros esquemas mais estruturados de pesquisa, a abordagem etnográfica parte do princípio de que o pesquisador pode modificar os seus problemas e hipóteses durante o processo de investigação”, decidi redefinir minha pesquisa para a tese. Como havia sido planejado para o semestre no grupo, começou-se a desenvolver atividades de iniciação cartográfica e os professores começaram a trazer os desenhos feitos por seus alunos para serem discutidos nas reuniões do grupo, solicitando orientações sobre o que e como analisar naqueles desenhos. Surgiu-me então como objeto de pesquisa os saberes e práticas dos professores em relação ao desenho no ensino de Geografia, propondo-me a investigar o papel atribuído pelos professores ao desenho como linguagem gráfica na aula e que dificuldades apresentavam para propor e analisar as produções gráficas dos alunos na abordagem de conteúdos que envolvem o espaço local no ensino de Geografia. Enfocaria os saberes e práticas dos professores com base na epistemologia da prática, de Tardiff (2002), e na perspectiva do professor intelectual crítico e reflexivo que Selma Garrido Pimenta (2002) propôs a partir da análise critica da apropriação neoliberal do conceito de professor reflexivo, de Donald Schön. Nesta altura, pelo regulamento do programa de pós-graduação, já precisava começar a escrever e entregar o relatório para o Exame Geral de Qualificação, realizado em junho de 2003. Quando escrevi o relatório, tinha acabado de redefinir o problema de pesquisa e ainda não tinha outras leituras sobre o desenho infantil além daquelas realizadas até o final do mestrado. Tinha como pressuposto, a partir dos estudos de Piaget e dos piagetianos, como o que eu havia realizado, que o desenho podia ser empregado no ensino de Geografia para aproximar progressivamente as representações gráficas dos alunos dos mapas. 7 Assumi também como pressuposto que, se o construtivismo piagetiano é bem caracterizado, solidamente fundamentado em grande quantidade de dados empíricos e tem sido o mais consistente fundamento a contribuir para o ensino do mapa, por outro lado, o interacionismo neste referencial, seguindo a tradição filosófica clássica, é centrado na relação entre o sujeito e o objeto físico, não tratando, no mesmo plano, do objeto social e da contribuição do meio no desenvolvimento de conhecimentos (LEITE, L., 1991). Partindo desses pressupostos e considerando que as novas orientações curriculares (PCNs) para a geografia escolar no país7 inserem como conteúdos de ensino as representações gráficas e cartográficas como linguagens e o lugar como um dos conceitos básicos da Geografia e, sendo que esse conceito geográfico não comporta mais apenas uma associação com a escala local dos fenômenos – “[...] pelo menos no âmbito da Geografia, lugar não é tratado como mera questão de escala, traduzindo todo um contexto social de interação e significado” (HAESBAERT, 2002, p. 139) – defini como hipóteses de trabalho: o desenho como linguagem gráfica poderia ser empregado também na aproximação entre conteúdos curriculares envolvendo a localidade e os conhecimentos e representações dos alunos sobre o lugar ; o enfoque sócio-interacionista contribuiria com a perspectiva da intersubjetividade na abordagem das representações gráficas e cartográficas como linguagens e do lugar como espaço vivido no ensino de conteúdos curriculares de Geografia. A idéia de “enfoque sócio-interacionista” trazia implícito o pressuposto de que poderia conciliar e combinar o construtivismo interacionista de Piaget e aspectos da teoria de Vigotski8 para tratar da intersubjetividade e da linguagem nas situações 7 Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) para o ensino de Geografia, instituídos pelo governo federal a partir de 1997, juntamente com os das demais disciplinas escolares, estabelecem as orientações curriculares que devem ser tomadas como referência para a Educação Básica em todo o território nacional. Há publicações dos PCNs em diferentes formatos, inclusive digital, o que por vezes dificulta localizar citações do documento em edições diferentes. Para o ensino de Geografia especificamente, são quatro publicações dos PCNs, sendo duas para o ensino fundamental: 1.a a 4.a séries, juntamente com História (BRASIL, 1997), e 5.a a 8.a séries (BRASIL, 1998a); e duas para o ensino médio, com as disciplinas da área de Humanas, sendo que após o primeiro documento (BRASIL, 1999), publicou-se um segundo com orientações complementares (BRASIL, 2002). 8 Nas publicações brasileiras há várias grafias para o sobrenome do autor, conforme as diferentes versões (principalmente inglesas e espanholas) de seus textos utilizadas nas traduções para o português: Vigoskii, Vygotsky, Vigotsky e Vigotski. Emprego esta última, que aparece nas publicações mais recentes das obras de Vigotski pela editora Martins Fontes, como a versão integral de Pensamento e linguagem traduzida por Paulo Bezerra diretamente do russo e publicada pela editora com o título A construção do pensamento e da linguagem. Nas referências bibliográficas e na citações literais de outros autores mantenho as diferentes grafias conforme as publicações utilizadas e os autores citados. Assim, por exemplo, quando me referir no texto a Vigotski (1996), 8 de ensino envolvendo a atividade do desenho e o lugar como conceito geográfico. De Vigotski, eu havia apenas começado a ler A formação social da mente (1998) há alguns anos, sem terminar e nem estudar de fato aquela coletânea de textos e nem outras obras do autor. Mas a concepção do construtivismo no ensino, sobre o qual eu lia e ouvia desde a graduação na universidade, nas escolas, em cursos, textos e falas para professores, reúne contribuições tanto de Piaget como de Vigotski. E o construtivismo é a concepção pedagógica assumida e proposta pelos Parâmetros Curriculares Nacionais. No Exame Geral de Qualificação, dentre outras contribuições, a banca me sugeriu que pensasse sobre algumas questões e especificasse melhor: de quais desenhos geográficos trataria; o que consideraria como o lugar, se a casa, o bairro onde os alunos moram ou onde se situa a escola...; o que esperava dos desenhos do lugar feitos por alunos das séries iniciais; se abordaria o lugar através dos desenhos da paisagem local; como interpretaria traços e cores considerando a subjetividade nos desenhos e nas relações dos alunos com o lugar. Essas contribuições da banca foram de grande importância para o delineamento teórico- metodológico da pesquisa, quando esta tomaria outro rumo, logo mais adiante. A “delimitação” do lugar no ensino de Geografia era uma questão que eu também vinha me colocando desde a experiência em um projeto interdisciplinar desenvolvido em minha escola e que também me motivou para esta pesquisa. Ao iniciar o doutorado, trabalhava como professor efetivo de Geografia na Escola Estadual “Prof. José Fernandes”, localizada na vila do Distrito de Ajapi, distante cerca de oito quilômetros da cidade, na porção norte do Município de Rio Claro. No início de 2001, iniciamos, toda a equipe pedagógica da escola, o desenvolvimento de um projeto interdisciplinar de ensino-pesquisa sobre a história da escola em Ajapi, buscando a integração das ações educacionais e dos conteúdos curriculares de todas as disciplinas. O projeto foi articulado em torno da produção de um livro sobre a escola em Ajapi, o que levou a uma pesquisa sobre o lugar, sobre como cada disciplina poderia contribuir para esse estudo e sobre o que e como seria tratado nas aulas daquilo que se ia descobrindo na pesquisa sobre o lugar, tendo em trata-se da obra em espanhol que nas referências bibliográficas deste trabalho aparece como Vigoskii, cuja grafia também empregarei quando colocar o sobrenome entre parênteses após transcrição literal, assim: (VIGOSKII, 1996); quando fizer transcrições literais de outros autores, preservarei a grafia empregada pelos mesmos, como “Vygotsky” nas citações de Freitas (1995 e 2002) e Pinheiro (2003). 9 vista uma abordagem interdisciplinar dos conteúdos curriculares. Assim, o projeto envolvia toda a equipe pedagógica da escola, os alunos, pais e a comunidade local. Como único professor de Geografia da escola e pelas experiências com a cartografia escolar, minha contribuição maior no projeto foi justamente o levantamento de bases cartográficas, a produção e a adaptação de mapas 9 . Também fui solicitado pelas professoras das séries iniciais para falar sobre as atividades de iniciação cartográfica que realizava com meus alunos de quinta série e que elas pretendiam desenvolver com suas classes, como propunham os PCNs. A equipe pedagógica da escola estava também estudando os PCNs para adequar os planos de ensino das disciplinas e o projeto interdisciplinar às orientações curriculares oficiais. Na participação nesse projeto desenvolvido na escola, deparei-me com a questão da “delimitação” do lugar, que é conceitual, teórico-metodológica. Durante o projeto, estudávamos, falávamos, pensávamos sobre o lugar em Geografia a partir e através principalmente de mapas do município, do estado, do distrito, da planta urbana da vila. Onde começa e onde termina esse lugar? Quais são os seus “limites”, no sentido de delimitação de uma extensão territorial? Os limites do município ou do distrito, as quadras de um bairro, os muros de uma escola, o perímetro urbano, as cercas de uma fazenda? Nos mapas, traçamos e vemos os limites traçados, demarcando áreas, territórios, extensões, divisões, com a desejada precisão matemática e, quando não há traços demarcando os limites precisos, os inferimos pela área da imagem ou de partes dela, como vemos as cidades e seus “limites” nas “manchas urbanas”. Aprendendo e ensinando o mapa e a pensar o espaço pelo mapa, pensava nos “limites” do lugar. Estava em jogo a concepção geográfica de lugar. Isso se explicitou melhor quando, durante o desenvolvimento do projeto, chegou na escola o Atlas Municipal Escolar de Rio Claro (NICOLETTI et al., 2001). Com o atlas na aula, os alunos queriam primeiro saber “onde estamos no mapa” para, logo em seguida, muitos perguntarem “porque o lugar onde moramos não aparece no mapa” e, depois ainda, “se o lugar onde moramos pertence a Ajapi ou Ferraz”. Nossos alunos da escola de 9 No início do doutorado, também escrevi um trabalho sobre esse projeto na escola (MIRANDA e ALMEIDA, 2002), enfocando a contribuição da cartografia nas atividades interdisciplinares na escola, a produção alternativa de materiais cartográficos pelo próprio professor para uso didático, empregando técnicas convencionais e a informática, e a importância desse tipo de projeto na escola para o desenvolvimento profissional de professores no exercício da profissão. 10 Ajapi moram/vivem em diferentes lugares, alguns dos quais não “estão no mapa”, enquanto outros aparecem apenas como pequenos pontos que, pela divisão político- administrativa do município no mapa do atlas, “não pertencia” ao Distrito de Ajapi, o qual aparece no mapa como sendo apenas a vila, representada por uma pequena mancha. Os alunos e funcionários da escola que moram em Ferraz, um bairro rural no mesmo Distrito de Ajapi e distante cerca de seis quilômetros da vila, não aceitavam “pertencer” a Ajapi, pois os moradores daquele lugar dizem “distrito de Ferraz”. Estavam em jogo, de um lado, os sentidos do lugar, o sentimento de pertença, a tríade habitante-identidade-lugar (CARLOS, 1996) e, de outro lado, os significados envolvidos na divisão político-administrativa do território como conhecimento escolar tratado no ensino de Geografia pelos/nos mapas. E o lugar, paradoxalmente, parecia “não caber” naquele mapa do município, onde estavam aquela pequena mancha e todos aqueles pontos, mas não necessariamente o lugar, ou melhor, os lugares em que muitos alunos viviam no município. Foi a partir dessa experiência que comecei a me questionar também sobre as limitações do mapa para abordar o lugar e a pensar sobre outras possibilidades para o desenho na abordagem do lugar no ensino de Geografia. Trouxe, então, as inquietações dessa experiência para a pesquisa que estava desenvolvendo no doutorado10. O único lugar para o desenho no ensino de Geografia seria apenas o de um lugar de passagem para o mapa? Seu destino traçado e inevitável seria nascer como um “pré-mapa” e morrer como mapa? Na abordagem do lugar poderia haver um outro lugar para o desenho? Que outros conteúdos curriculares do ensino de Geografia poderiam ser abordados pelos e nos desenhos produzidos pelos alunos em aula? Como abordar outros desenhos sobre outros conteúdos geográficos no ensino? Que outras formas de atividade do desenho para ensinar-aprender Geografia a partir do lugar? 10 Após o Exame Geral de Qualificação, apresentei o trabalho “Leituras do desenho e do lugar na sala de aula” (MIRANDA, 2003a) no I Seminário “Produção de conhecimento, saberes e formação docente”, organizado pelo Gepec – Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Continuada, da FE/Unicamp, dentro do 14.o Cole – Congresso de Leitura do Brasil. Esse trabalho foi depois selecionado pelo Gepec para ser publicado como capítulo de um livro organizado pelos professores Guilherme do Val Toledo Prado, Adriana Verani e Cláudia Roberta Ferreira, cujo lançamento, enquanto escrevia essa tese, estava previsto para outubro/2005. Para essa publicação (MIRANDA, 2005b), o trabalho original foi revisto e ampliado, a pedido dos organizadores, detalhando melhor a experiência na escola e incorporando outras leituras que fiz durante a pesquisa e após a escrita do trabalho original. 11 Realizando a pesquisa bibliográfica sobre o desenho infantil, buscando respostas para as questões já acumuladas, me deparei com outra questão ainda maior em um estudo na perspectiva histórico-cultural de Vigotski: a crítica ao enfoque maturacionista e etapista predominante nas abordagens do desenho da criança. Em que se fundamenta tal concepção “naturalizante” do desenho, a crítica a essa concepção e que implicações tem isso para a prática pedagógica? Se essa questão era importante para a pesquisa em andamento e para minha prática com o desenho na escola, naquele momento era ainda mais importante pela responsabilidade na formação de outros professores de Geografia, uma nova experiência profissional que eu iniciava e que me exigia novas aprendizagens, novos conhecimentos11. E no trabalho que começava a desenvolver com os licenciandos, futuros professores de Geografia, tratava do ensino do mapa, falava e mostrava exemplos das fases da evolução do desenho infantil, das etapas do desenvolvimento cognitivo definidas na teoria de Piaget. Se esses conhecimentos são importantes para o trabalho dos professores, mais importante é o conhecimento crítico para orientar a prática pedagógica de modo consciente e coerente. Buscando saber as implicações entre as concepções sobre o desenho infantil e a prática pedagógica, cheguei às concepções e relações entre ensino, aprendizagem e desenvolvimento nas teorias de Piaget e de Vigotski e seus pressupostos filosófico-epistemológicos, contrapondo-as às propostas para o ensino de Geografia. Nessa análise, procurei identificar fundamentos psicopedagógicos mais coerentes com a prática pedagógica preconizada para a Geografia Escolar Crítica, mas procurando também as origens de minhas concepções no ensino para esclarecer e situar a origem de uma contradição que via entre a “teoria praticada” em relação do desenho e a “teoria professada” em relação ao ensino de Geografia12. Com base nas análises realizadas nesta etapa do trabalho, fui me aproximando da perspectiva histórico-cultural na abordagem do ensino, da formação de professores e da pesquisa educacional, principalmente das contribuições de Vigotski, Bakhtin, Dermeval Saviani, Newton Duarte e Roseli Fontana. Sob essa 11 Entre 2002 e início de 2004, tive a oportunidade de ministrar, primeiro como professor eventual e depois como professor substituto, as disciplinas Prática de Ensino de Geografia (I, II e III) e Estágio Supervisionado, do Depto. de Educação do IB-Unesp de Rio Claro, nos cursos diurno e noturno de licenciatura em Geografia. 12 Sobre a análise feita nesta etapa da pesquisa, escrevi um trabalho para o IV Seminário de Pós-Graduação em Geografia da Unesp de Rio Claro, que não chegou a ser apresentado, mas seu resumo foi incluído nos anais do evento (MIRANDA, S., 2004). O mesmo trabalho, com outro título, foi apresentado no 10.o EGAL – Encontro de Geógrafos da América Latina (MIRANDA, S., 2005a). 12 perspectiva, nova para mim, busquei relações entre as abordagens do desenho no ensino de Geografia, a prática pedagógica e a formação de professores. Isso não implicou apenas uma mudança na perspectiva teórico-metodológica da pesquisa, mas significou também mudanças radicais no modo de pensar do pesquisador. Esse processo modificava as condições em que se realizava a pesquisa e, nessas novas condições, os dados coletados por mim durante um ano e meio no trabalho desenvolvido no grupo com três professoras e seus alunos não poderiam mais ser utilizados para a tese. Seria necessário realizar outra coleta de dados empíricos de modo condizente com a nova perspectiva assumida na pesquisa e pelo pesquisador. Outra alternativa seria concluir a tese apenas com a pesquisa teórica e bibliográfica, que já reunia elementos que considerava relevantes e suficientes para abordar teoricamente o problema da pesquisa com argumentação fundamentada. Mas, com todo o entusiasmo pelas idéias novas que me surgiam a partir das reflexões e das descobertas nas leituras realizadas, quis saber como poderia desenvolver algumas dessas idéias na prática em sala de aula. E só com a contribuição dos alunos, em situação real de aula, poderia pensar/falar em termos concretos sobre outras possibilidades da atividade do desenho para abordar outros conteúdos no ensino de Geografia. Faria nova pesquisa empírica, mesmo sabendo que corria o risco do tempo, que não pára, corre. Como estava afastado de meu cargo na escola, recorri a uma amiga-colega-professora e seus alunos para desenvolver a pesquisa em sala de aula, que foi realizada em duas etapas, a primeira em dezembro/2004, com parte de uma turma de terceira série, e a segunda, com uma turma de segunda série, em março/2005!, faltando seis meses para entregar a tese. Agora já não analisaria mais saberes e práticas de outros professores. Mas, para o necessário rigor no trabalho científico, não bastava justificar as mudanças nos rumos da pesquisa pela redefinição do problema e das hipóteses ou por uma mudança de perspectiva do pesquisador, mas exigia ainda apreender o significado dessas mudanças, sua relevância para a pesquisa e suas relações com o problema investigado, o que passava pelo sentido pessoal dessa pesquisa para o pesquisador. Para apreender o sentido e o significado desse processo e sua relevância para a pesquisa enquanto contribuição ao conhecimento, busquei 13 instrumentais teóricos que possibilitassem abordar a subjetividade, a singularidade, o inesperado, o imprevisto, na mesma perspectiva histórico-cultural. A partir de uma abordagem sócio-histórica do processo de pesquisa e da dialética materialista histórica, foi possível: compreender que os eventos que marcaram e mudaram a pesquisa e o pesquisador era o que constituía o processo real de uma pesquisa em desenvolvimento, se fazendo historicamente pelas e nas relações estabelecidas entre o pesquisador, seu objeto e seus “outros” sociais, nas condições e situações concretas de produção dessa pesquisa; abordar o desenho na própria prática e no ensino de Geografia como um todo, numa perspectiva de totalidade, buscando suas múltiplas relações a partir das questões inicialmente colocadas para a pesquisa, daquelas que surgiram durante a investigação e das situações vividas nesse processo. Segundo a tipologia da pesquisa educacional descrita por André (2003) e Lüdke e André (1986), a pesquisa realizada pode ser classificada como um estudo de caso com o enfoque do materialismo histórico dialético, tratando-se do caso particular de um pesquisador e professor que se volta para sua própria prática com o desenho no ensino e na pesquisa como práxis, tomando o processo de pesquisa como processo de conhecimento-aprendizagem numa perspectiva dialógica. O caso singular, particular, pode proporcionar experiência vicária e constituir fonte de generalização naturalística, nos termos de Stake (apud ANDRÉ, 2003, p. 57), ou seja, outros sujeitos podem estabelecer relações e associações entre um caso relatado e outros casos conhecidos ou de sua experiência pessoal, generalizando seus conhecimentos. Mas, neste estudo de caso com uma abordagem sócio- histórica do processo de pesquisa, a singularidade é considerada uma instância da totalidade social e, portando, o relato de um caso não deve se reduzir a uma narrativa pessoal, meramente individual. Assim, procuro colocar o caso particular de minha formação e de minha prática com o desenho em relação com a prática pedagógica, a formação de professores e o ensino de Geografia como um todo. Essa é, em linhas bem gerais, a título de introdução, a história dessa pesquisa, cujos resultados e outros detalhes continuam ao longo das próximas páginas. Espera-se que essa pesquisa contribua para ampliar o conhecimento na área da didática e da prática de ensino de Geografia, oferecendo elementos que possam subsidiar a prática tanto de professores que estão atuando nas escolas 14 quanto nos cursos de formação inicial e continuada de professores geógrafos e daqueles que atuam nas séries iniciais. Também se espera contribuir para continuar avançando na reflexão epistemológica sobre o ensino da disciplina e na construção de uma Geografia Escolar Crítica. Parafraseando Carlos Rodrigues Brandão (2003), na apresentação de seu livro “A pergunta a várias mãos: a experiência da pesquisa no trabalho do educador”, essa pesquisa, sendo, desde o início, portadora do desejo de que venha a contribuir e ser compartilhada com outros educadores, professores de Geografia, a esses outros quer se dirigir, desejando ser mais a pesquisa de um educador que pesquisa do que a de um pesquisador que, eventualmente, educa. Ao final, o que se pretende demonstrar é que o lugar atribuído ao desenho nas propostas e nos estudos relativos ao ensino de Geografia é limitado e limitante do desenho e do ensino; essa abordagem predominante do desenho se insere em uma orientação conservadora da Educação que se reproduz no ensino de Geografia como um todo, inclusive por contribuições que se apresentam como críticas no campo de renovação da Geografia e do seu ensino; a perspectiva histórico-cultural de Vigotski pode contribuir para superar tanto a abordagem limitada e limitante do desenho e do ensino de Geografia quanto a orientação conservadora da Educação de que essa abordagem é portadora, podendo, assim, contribuir para se avançar na constituição efetiva de uma Geografia Escolar Crítica. Na exposição desse trabalho, procurei fugir da rigidez daquele esquema clássico de apresentação de pesquisa, principalmente em dissertações e teses, em que se separam e se estancam em capítulos a “revisão bibliográfica”, a “fundamentação teórica”, “os métodos, materiais e técnicas”, etc., por acreditar também, como Frigotto (2002, p. 73 e 89), que no enfoque da dialética materialista histórica na pesquisa educacional “não há razões necessárias para se ritualizar a pesquisa em etapas estanques, ou mistificar o formalismo dos projetos de pesquisa” e que, ao invés disso, importa mais “que buscamos expor ao debate o movimento real de uma pesquisa em andamento”. Acompanho esse autor também na crítica que faz à tendência verificada nas pesquisas educacionais em se tomar o “método” dialético como um conjunto de técnicas, procedimentos, instrumentos; a teoria como uma camisa-de-força ou uma “doutrina”; as categorias de análise como apriorísticas, abstratas, e não construídas, históricas. 15 Para que o processo de conhecimento seja dialético, a teoria, que fornece as categorias de análise, necessita, no processo de investigação, ser revisitada, e as categorias reconstituídas. Ou por acaso a ‘totalidade’, as contradições e as mediações são sempre as mesmas? Que historicidade é essa? (FRIGOTTO, 2002, p. 81). É nesse sentido também que se coloca, metodologicamente, a necessidade de se restituir aqui a história da pesquisa por uma abordagem sócio- histórica do processo de investigação. Essa orientação para a exposição, ao contrário do que possa parecer, não é mais fácil ou simples, pois exige articular de modo coerente, inteligível e claro os movimentos reais da pesquisa realizada e os movimentos do pensamento com as possibilidades e limites da escrita como comunicação, diálogo e criação. Impõe-se então a necessidade de escolha de estratégias para o texto. Uma primeira estratégia para a exposição desse trabalho consiste na retomada dos textos produzidos durante o período de realização da pesquisa, o que também consistiu em uma estratégia para o desenvolvimento da mesma13. Durante a realização da pesquisa, entre 2002 e 2005, os textos abordando questões e aspectos parciais relacionados ao trabalho de investigação que estava desenvolvendo, além da sistematização das idéias, análises e leituras em processo, visavam também atender a uma exigência do regulamento do programa de pós- graduação no tocante à integralização dos créditos em atividades extra-curriculares. Para tal, esses textos foram apresentados e publicados em eventos científicos. A produção desses textos se deu em momentos diferentes do percurso realizado e registram as buscas, os abandonos, os achados e perdidos, as reflexões e dúvidas que me acompanharam nessa jornada desde o início. Assim, esses textos, sendo partes, fragmentos e momentos constituintes deste trabalho, serão resgatados aqui no lugar que lhes é próprio e que lhes foi reservado. O que deles for aqui retomado apenas parcialmente, modificado ou suprimido, permanece presente como mudanças que se produziram no/pelo processo de pesquisa ou como aperfeiçoamento das idéias e dos argumentos e/ou da elaboração e apresentação pela e na escrita. 13 Esses textos, que já vim citando quase todos nesta introdução e situando-os no processo de pesquisa, são: Miranda, S. (2002; 2003a; 2003b; 2003c; 2004; 2005a; 2005b). 16 A partir dessa primeira estratégia para a apresentação da pesquisa, que foi também estratégia para sua realização e agora, também para reconstruir aqui sua história, procurei seguir um plano de exposição elaborado para organizar o trabalho obedecendo as linhas gerais do processo real de pesquisa. Mas, como já se sabe, a lógica da pesquisa é diferente da lógica da exposição, o que precisa ser respeitado. Por outro lado, os instrumentais teóricos e a metodologia da pesquisa foram construídos historicamente pelo e no seu processo de desenvolvimento, constituindo parte de seus resultados, e isso precisava aparecer de forma clara no texto. Desse modo, a apresentação dos resultados da pesquisa, que inclui essa introdução e, portanto, a partir daqui, foi organizada da seguinte forma: No primeiro capítulo, Entradas e bandeiras14, começo apresentando a concepção do processo de pesquisa e o modo como se chegou ao seu delineamento teórico-metodológico com a ajuda de vários autores com os quais fui estabelecendo diálogo em minhas buscas ao longo do caminho. Em seguida, procuro apresentar o atual contexto sócio-político em que se insere a Educação no país e minhas convicções sobre educação escolar, prática pedagógica, formação de professores e o papel do ensino de Geografia. Com esse primeiro capítulo começo a contextualizar e fundamentar teoricamente as idéias principais defendidas nesse trabalho. No segundo capítulo, O lugar do desenho, apresentam-se as reflexões teóricas realizadas sobre estudos, publicações e propostas metodológicas envolvendo o desenho e o ensino de Geografia, procurando-se compreender os fundamentos dessas abordagens e as implicações para a prática pedagógica e o ensino de Geografia como um todo. Identificado o lugar que se tem atribuído ao desenho no ensino de Geografia e a concepção de Educação a que está ligado, passo então a buscar as origens dessa concepção em minha prática e a sua 14 Esse título de capítulo foi inspirado no velho e bom vinil de Rita Lee & Tutti Frutti, de 1976, que, reencontrando em cd, reencontrei memórias da adolescência e da juventude que guardam em algum canto o espírito crítico, criativo e transgressor desse disco em seu tempo. Aqui, esse título reflete minhas “entradas” (e saídas) por diferentes caminhos e campos, e minhas “bandeiras”, as que dei e as que levantei tanto na vida como nessa pesquisa. 17 presença em estudos, discursos e propostas recentes e atuais para o ensino de Geografia e, negando concepções anteriores, faço outras opções. O terceiro capítulo, O desenho do lugar, trata da abordagem do lugar como conceito geográfico no currículo de Geografia nas séries iniciais do ensino fundamental e traz a pesquisa empírica realizada com a atividade do desenho em sala de aula. Nas Considerações finais, retomo alguns pontos do caminho percorrido para fazer uma síntese das idéias principais produzidas como resultados do trabalho realizado. Das obras que constam nas Referências, alguns autores não foram citados no texto simplesmente porque não retornei a eles no momento da escrita para citá-los, mas a autoria de idéias e palavras alheias foi respeitada no texto. Aqueles que não foram citados, mas que foram lidos e contribuíram de alguma forma no desenvolvimento deste trabalho estão também, por gratidão e por honestidade intelectual, relacionados nas referências bibliográficas do trabalho. 18 Capítulo 1 Entradas e bandeiras Abro o armário e vejo nos sapatos meus caminhos qual virá no séqüito? (hai kai de Aníbal Beça) “...Não devemos servir de exemplo a ninguém. Mas podemos servir de lição.” Mário de Andrade (em epígrafe de livro de Zuenir Ventura) 19 1.1 Primeiras palavras Crear es difícil, la demanda creadora no coincide siempre con la posibilidad de crear y de aquí surge al decir de Dostoevskii, la tortura de que la palabra no siga al pensamiento. Los poetas llaman a este sufrimiento, tortura de la palabra. Vigotski1 O desafio agora é retomar o percurso percorrido até aqui para reconstruir o trabalho realizado, recriá-lo pela e na escrita, enfrentando a “tortura da palavra”, que se pretende superar na criação do texto, pela criação no texto. Quero dizer aqui sobre o desenho no ensino de Geografia em geral e em minha prática pedagógica em particular. Quero compreender como os desenhos de crianças-alunos têm sido falados, pensados e vistos para encontrar outras possibilidades para o desenho na prática do ensino de Geografia, partindo de minha experiência com o desenho no ensino e na pesquisa sobre o ensino do mapa. Mas me interessa agora apenas desenho. Refiro-me ao desenho tal como se entende da forma mais comum, banal, como quando pedimos a uma criança simplesmente para nos fazer um desenho ou para desenhar algo. E desses desenhos comuns interessa-me especialmente saber como poderiam ser abordados em aula e que outros conteúdos do ensino de Geografia envolvidos no conceito de lugar eles poderiam trazer na atividade em aula. E desejo encontrar respostas em uma perspectiva crítica-marxista da Geografia e da Educação, na perspectiva de uma Geografia Escolar Crítica. Antes de entrar na abordagem do tema e da problemática envolvida nesta pesquisa, se fazem necessárias algumas palavras para começar, e apenas começar, a dizer como se pensou e como se deu a produção do trabalho para poder se compreender e se explicar as escolhas feitas, os rumos do processo de pesquisa e começar, e apenas começar, a apresentar os seus fundamentos e pressupostos teórico-metodológicos, filosóficos e epistemológicos. Apenas começar porque se 1 Vigoskii, 1996, p. 49. 20 entende que a concepção real e mais ampla do trabalho e a visão social de mundo em que se inscreve só se apreendem tomando-o como um todo, pelo trabalho concreto, em seus movimentos reais no processo de produção. E esse começar aqui não significa meu ponto de partida nessa empreitada, os “prioris” da pesquisa. Assumindo uma abordagem sócio-histórica da pesquisa em ciências humanas, procuro conceber esta pesquisa como relação intersubjetiva, dialógica, como processo de conhecimento – e, portanto, de aprendizagem – em que o particular é focalizado como uma instância da totalidade social e o pesquisador é parte integrante da pesquisa (FREITAS, 2002). Com essa abordagem, busco um aporte teórico que possibilite tanto enfocar o objeto de estudo de modo coerente com minhas concepções acerca da Geografia e da Educação, quanto considerar a subjetividade e a singularidade no processo de pesquisa na mesma perspectiva de totalidade, para poder estabelecer relações com a formação de professores e a prática pedagógica no ensino de Geografia como um todo. Ou seja, um referencial teórico que possibilite relacionar de modo coerente, com uma mesma perspectiva sobre a Geografia e a Educação, os aspectos singulares e subjetivos dessa pesquisa, do pesquisador-professor, e o que há de comum, de geral, em relação ao ensino de Geografia, à formação e à prática de outros professores. Isso implica, metodologicamente, o tratamento de questões relacionadas às concepções filosófico-epistemológicas e aos referenciais teórico-metodológicos na Geografia e na Educação. Assim, essa abordagem deve se inserir em um quadro referencial mais amplo, o qual pode ser entendido como uma “visão social de mundo”, na definição de Michael Löwy (1987)2. 2 Michael Löwy (1987, Introdução), analisando as diferentes acepções no emprego do termo ideologia entre os teóricos da sociologia do conhecimento, propõe o conceito de visão social de mundo. Partindo dos conceitos de visão de mundo (Weltanschauung), em sua formulação “clássica” no historicismo alemão (Dilthey), e de ideologia total e de utopia, no historicismo de Mannheim, Löwy designa visão social de mundo para classificar em um mesmo conceito tanto as ideologias (a estrutura categorizada, a perspectiva global, o estilo de pensamento ligado a uma posição social) quanto as utopias (as representações, aspirações e imagens-de-desejo orientadas para a ruptura da ordem vigente, exercendo uma função subversiva). O autor considera inadequada a concepção de ideologia como falsa consciência, na formulação de Karl Marx, “porque as ideologias e as utopias contêm, não apenas as orientações cognitivas, mas também um conjunto articulado de valores culturais, éticos e estéticos que não substituem categorias de falso e de verdadeiro”. Apesar dos estigmas imputados ao termo visão de mundo, Löwy o considera ainda “o instrumento conceitual mais apto a dar conta da riqueza e da amplitude do fenômeno sócio-cultural em questão. Contrariamente ao termo ‘ideologia total’, este não contém nenhuma implicação pejorativa e nenhuma ambigüidade conceitual: o que ele designa não é, por si só, nem ‘verdadeiro’ nem ‘falso’, nem ‘idealista’ nem ‘materialista’ (mesmo sendo possível que tome uma ou outra destas formas). Ele circunscreve um conjunto orgânico, articulado e estruturado de valores, representações, idéias e orientações cognitivas, internamente unificado por uma perspectiva determinada, por um certo ponto de vista socialmente condicionado” (grifos do autor). Ao acrescentar o termo social, Löwy enfatiza que se trata de uma visão de 21 Compreendido dialeticamente como processo de conhecimento, de aprendizagem, o processo de pesquisa não se faz por um movimento retilíneo ou mecânico, mas se produz pelas e nas ações recíprocas entre sujeitos e objetos de conhecimento, pelas e nas condições concretas e históricas em que se dá essa relação dialética em que sujeitos e objetos de conhecimento se transformam reciprocamente. Mesmo que se tenha que esboçar um plano e manter como norte no percurso o propósito que nos move, o caminho se faz caminhando, como diz o provérbio do poeta espanhol Antonio Machado e que inspirou o título do livro e as conversas de Myles Horton e Paulo Freire (2003) sobre educação e mudança social. É nesse sentido que, como processo dialético de conhecimento, podemos pensar uma pesquisa como uma aventura na qual nos lançamos com um plano esboçado para um determinado propósito, mas sem a certeza de que o alcançaremos plenamente e nem como sairemos dessa aventura, como estaremos ao final dela e a que outra ela nos conduzirá a partir do que nos revela ou não, das aprendizagens que nos possibilitou, das novas necessidades que nos coloca, dos caminhos possíveis que nos mostra e daquele que efetivamente fazemos caminhando. Para esclarecer a trajetória tortuosa da pesquisa realizada e estabelecer os elos e os nexos entre aspectos tratados e que a princípio possam parecer secundários ou desnecessários a esse estudo, recuo um pouco mais em minha história para, a partir das razões que me levaram à Geografia e ao ensino, buscar em minha formação e em minha trajetória profissional as razões dos rumos dessa pesquisa, compreender o seu sentido, o seu significado e a direção que ela me aponta agora para o caminhar, para um outro caminho a se fazer. mundo social, “um conjunto relativamente coerente de idéias sobre o homem, a sociedade, a história, e sua relação com a natureza”, e que “esta visão de mundo está ligada a certas posições sociais (Standortgebundenheit) – o termo é de Mannheim – isto é, aos interesses e à situação de certos grupos e classes sociais” (grifos do autor). Entre as “grandes visões sociais de mundo”, estão o positivismo, o historicismo e o marxismo. Algumas notas de rodapé serão longas, como esta primeira. Foi uma opção para se fazer os comentários, acréscimos e esclarecimentos necessários sem comprometer, com muitos “parênteses”, o fluxo das idéias principais no desenvolvimento do texto. 22 O recuo na história pessoal, buscando minha aproximação com a Geografia através das experiências formativas anteriores ao curso de graduação, também atende a três necessidades colocadas por essa pesquisa em termos teórico-metodológicos e estreitamente relacionadas entre si: a primeira diz respeito à própria concepção do método; a segunda, para tratar de um conflito epistemológico vivido na prática pedagógica e que o processo de pesquisa explicitou; e a terceira, decorrente das duas anteriores, para abordar como parte dos resultados da pesquisa os seus efeitos na subjetividade do pesquisador como sujeito singular e procurar estabelecer relações com a formação e a prática do professor. A exigência quanto ao método decorre da concepção da dialética materialista histórica como método de análise, como visão social de mundo e como práxis, esta entendida como ação refletida sobre a realidade para transformá-la e expressa na unidade teoria-prática3. É na e pela práxis que se dá efetivamente o conhecimento e em cujo processo dialético importa fundamentalmente “a crítica e o conhecimento crítico para uma prática que altere e transforme a realidade anterior no plano do conhecimento e no plano histórico-social”, conforme Frigotto (2002, p. 81). Nesse sentido, e de acordo com o mesmo autor, a postura do pesquisador antecede o método de análise e este exige do pesquisador um inventário crítico das concepções existentes no mundo cultural mais amplo, posicionando-se criticamente e ao mesmo tempo fazendo o inventário de suas próprias concepções em torno dos fatos em questão e sobre a realidade, sua visão social de mundo. Através da elaboração crítica e do conhecimento crítico, busca-se uma compreensão sempre mais ampla, mais 3 Vazquez (1990) esclarece que o termo práxis era empregado na Antiguidade pelos gregos para designar uma ação com uma finalidade em si mesma e que não produz ou cria um objeto externo ao seu agente ou a sua atividade; uma ação que não cria nada fora de si mesma. Era esse o significado de práxis para Aristóteles. Para designar a atividade prática que produz um objeto externo a ela mesma e ao sujeito, o termo empregado em grego é poiésis, que significa produção ou fabricação. Assim, para ser fiel à origem no idioma grego, deveria ser poiésis o termo empregado para designar a ação de produzir um objeto e com o sentido que tem no marxismo, ou seja, atividade real, objetiva, material do homem social. Mas poiésis se conserva em nosso idioma em palavras como “poesia”, “poético” e “poeta” que, embora pressuponham o significado original de produção ou criação, assumem um sentido mais específico, restrito. Por outro lado, o termo “prática”, que seria mais adequado em nosso idioma para designar a atividade material humana no sentido amplo, é bastante empregado na linguagem comum associado a um caráter estritamente utilitário, pragmático e mesmo pejorativo. Assim, Vazquez justifica o emprego do termo práxis, sem igualar seu significado no idioma grego, para designar a categoria central do marxismo, ou filosofia da práxis, referente à atividade humana transformadora da realidade natural e humana. É importante lembrar que historicamente a teoria marxiana, superando dialeticamente tanto do idealismo como do materialismo anteriores, significou um grande salto da filosofia justamente por possibilitar conceber toda atividade humana, teórica e prática, no plano da materialidade através da práxis como categoria filosófica central. 23 elevada, integrada e coerente da realidade para concebê-la como totalidade concreta, ou seja, “como um todo estruturado, dialético, no qual ou do qual um fato qualquer (classes de fatos, conjuntos de fatos) pode vir a ser racionalmente compreendido” (KOSIK, 1976, p. 35). A busca da coerência impõe–se como condição para a compreensão racional da realidade como um todo estruturado, organizado e dialético, ou seja, dinâmico, em movimento, mudando e, portando, exigindo outra apreensão coerente. Essa coerência não se limita à lógica interna da pesquisa, mas envolve a concepção de realidade, a visão social de mundo, a postura, a prática do pesquisador. E a história desta pesquisa é marcada pela busca de coerência em um conflito que impôs a necessidade de tratamento teórico, a confrontação de perspectivas filosóficas, o que implicou mudanças tanto nos encaminhamentos da pesquisa quanto nas concepções do pesquisador, constituindo, portanto, parte significativa dos resultados da pesquisa. As questões que emergiram na abordagem da problemática investigada foram me conduzindo para novas leituras sobre o desenho infantil, a educação escolar, o ensino de Geografia, a pesquisa educacional e a formação de professores. Essas leituras, ao mesmo tempo em que me abriam novas perspectivas, colocavam em xeque muitas das minhas idéias e, algumas, me pareciam mesmo invertidas, viradas pelo avesso. Conflito. Crise. Sinal de que alguma coisa pode estar errada, de que algo mudou, de que algo deva mudar. Mas, o quê? Como? Por quê? Entre releituras e as novas leituras que iam se ampliando, um autor me remetendo a outros, me cobrando outras leituras mais, encontrei um sentido para o que estava acontecendo, o significado pessoal do trabalho que estava realizando e o delineamento teórico- metodológico da pesquisa. Esse caminho me foi possível fazer, reconstituir e compreender pela e na mediação da teoria na reflexão sobre a pesquisa, o ensino, a formação docente e a prática pedagógica. E nisso reside o que se pode tomar da subjetividade, da singularidade dessa experiência pessoal, como comum, generalizável, para a formação e a prática do professor, de acordo com o aporte teórico da pesquisa. Procurando por outras possibilidades para se abordar o desenho do lugar no ensino de Geografia, cheguei à abordagem do desenho infantil na perspectiva 24 histórico-cultural de Vigotski, o que me levou a estudar as relações de ensino nessa perspectiva. Conduzindo e sendo conduzido pela investigação, cheguei aos estudos sobre a mediação pedagógica em aula e a constituição social do “ser professor” de Roseli Fontana (1997; 2000a; 2000b; 2000c). Esses estudos, juntamente com os de outros autores-educadores-pesquisadores brasileiros que abordam a Educação na mesma perspectiva, como Newton Duarte, Dermeval Saviani, Angel Pino Sirgado, Maria C. R. de Góes, Ana Luiza B. Smolka, Maria T. de Assunção Freitas, Marta Kohl de Oliveira, entre outros, me ajudaram a iniciar o meu caminho nas trilhas de Vigotski e Bakhtin para compreender o ensino, a aprendizagem, a pesquisa, a formação docente e a prática pedagógica pelo inverso do que vinha pensando em muitos aspectos. Do exposto acima, decorre que aquela “visão social de mundo” de que fala Michael Löwy (1987) não deve ser entendida como uma moldura já dada e na qual nos enquadramos, um qualquer modelo pré-definido ao qual aderimos ou pelo qual nos classificam e classificamos os outros a priori. Sendo sujeitos históricos e sociais e, portanto, inacabados, em constituição, a visão social de mundo de cada um de nós também se faz histórica, em constituição, se produzindo pela e na história de cada um de nós. Mas a história de cada um não existe como historia isolada da vida social, da cultura e de um tempo-espaço sócio-histórico. Ao contrário, a história de cada um de nós se produz pelas e nas relações sociais concretas, reais, vividas de modo singular e em condições específicas de produção dessas relações no universo histórico e cultural em que vivemos. Relações sociais reais entre sujeitos concretos que vivem simultaneamente distintos papéis e lugares sociais. Não apenas distintos, diferentes, mas desiguais, contraditórios, hierarquizados. As relações sociais entre os sujeitos em constituição como pessoas, como sujeitos singulares, são, portanto, relações de poder e envolvem aceitação, resistência, luta, opressão, submissão, subversão, omissão, revolta, resignação, ruptura... Aí residem em jogo a singularidade e a generalidade, a particularidade e a universalidade, a individualidade e a sociabilidade na constituição social dos sujeitos singulares, das pessoas concretas. Homens e mulheres reais tecendo suas vidas nas tramas das relações vividas em papéis e lugares sociais distintos e desiguais: homem, mulher, pai, mãe, professor, professora, pesquisador, pesquisadora, aluno, 25 aluna, criança, adolescente, chefe, subordinado, livre docente, pós-graduando... Aí se produz o “drama” de que fala Georges Politzer4 e que Vigotski (2000b) emprega no “Manuscrito de 1929”, onde traça algumas das linhas mestras da sua teoria histórico-cultural que desenvolveria sobre a psicologia humana. Entendido como “a dinâmica contraditória em que a personalidade vai se produzindo nos eventos de nossa experiência, o drama remete ao constante choque de significados e de valores derivado do fato de vivermos, simultaneamente, lugares e papeis sociais diversos e distintos” (FONTANA, 2000c, p. 104-5). [...] a personalidade não é um amálgama de processos psicológicos complexos e genéricos, mas o “drama” vivido nas relações interpessoais, em condições sociais específicas, por indivíduos peculiares em constituição. E é na dinâmica dos acontecimentos reais, singulares no espaço e no tempo, que a personalidade torna-se uma personalidade “para si”, mediante o ato de ter-se mostrado aos outros como tal. Ou seja, somente em relação a outros indivíduos tornamo-nos capazes de perceber nossas características, de delinear nossas peculiaridades pessoais, de diferenciar nossos interesses das metas alheias e de formular julgamentos sobre nós próprios e sobre o nosso fazer. (FONTANA, 2000b, p. 222; grifos meus). 4 Georges Politzer nasceu na Hungria em 1903 e foi obrigado a deixar seu país em 1919, após o fracasso de um levante comunista em que sua família participou ativamente [Comuna Húngara]. Vivendo em Paris a partir de 1921, formou-se em filosofia e, sendo o primeiro na França a compreender o alcance teórico revolucionário da psicanálise, mas mantendo um distanciamento crítico de Freud, voltou-se para o estudo da psicologia. Em 1927 publicou Crítica dos fundamentos da psicologia, propondo uma psicologia concreta, criticando o formalismo, o abstracionismo, o caráter estéril e meramente nocional da psicologia “oficial” por aplicar aos fatos psicológicos a mesma atitude que para os fatos objetivos em geral, com um método da “terceira pessoa”. Defende que é a existência da “primeira pessoa” que justifica a existência da psicologia como ciência, redefinindo o objeto da psicologia: os fatos psicológicos devem ser segmentos da vida dramática do indivíduo particular. O termo “drama” designa um fato vivido e não tem qualquer apelo romântico ou significação comovedora. Politzer foi contemporâneo e amigo de Lefebvre e abandonou seu projeto de estudo da psicologia quando ingressou, em 1929, no Partido Comunista, voltando-se para a economia política, o que Lefebvre e outros consideraram uma “automutilação” heróica. Na década de 1930, participou da fundação da Univerdidad Obrera, onde ensinou o materialismo histórico e dialético para trabalhadores. Com o fechamento da universidade em 1939 pela ocupação alemã, Politzer integrou a direção clandestina do Partido Comunista e editou duas revistas anti-nazismo. Na Resistência, foi preso e torturado pelos nazistas em fevereiro de 1942 e, fuzilado em maio do mesmo ano, morreu como herói, desafiador até o fim, gritando aos nazistas: “Eu os fuzilo a todos!”. Sua obra filosófica tem influenciado gerações de intelectuais, principalmente marxistas, mas geralmente é desprezada nos meios acadêmicos pela sua crítica decidida e seu compromisso militante (BLADÉ, 2005). Em sua análise histórica do “marxismo ocidental”, Perry Anderson situa Georges Politzer no primeiro grupo de jovens intelectuais marxistas que ingressou no Partido Comunista Francês no final da década de 1920, mas que, com a stalinização e o centralismo soviético no movimento comunista internacional, sofreu a redução do espaço para a atividade intelectual dentro do marxismo nos partidos comunistas europeus: “Politzer, depois de dedicar-se a uma tentativa pioneira de elaboração de uma crítica marxista da psicanálise, transformou-se em pouco mais que um obediente funcionário cultural do PCF” (ANDERSON, 2004, p. 56). 26 Que implicações isso tem para a pesquisa educacional em geral, e para esta em particular? Para a formação e a prática de professores em geral, e para as minhas? Nisso também me ajuda Roseli Fontana que, apoiada principalmente em Bakhtin e Vigotski e tomando o “drama” como categoria de análise, coloca a importância tanto da atenção à singularidade e à subjetividade quanto a da crítica aos reducionismos do sociologismo ou do psicologismo nas abordagens, pesquisas, discursos sobre os professores, suas práticas, sua formação, seu trabalho, tomando- os como seres genéricos, entidades abstratas e, via de regra, produzindo e reproduzindo uma imagem negativa dos professores. “Somos ditos pelos pesquisadores, mesmo que nossas falas estejam transcritas” (FONTANA, 1997, p. 59). Mas, apoiada na teoria histórico-cultural, sua abordagem da singularidade e da subjetividade dos professores não recai no individualismo ou no idealismo subjetivista: Não somos apenas professores, mas um feixe de muitas condições e papéis sociais, memória de sentidos diversos. Nós, professoras, somos mulheres numa sociedade ainda patriarcal. Somos mães, mas também filhas, netas e irmãs e ainda esposas ou “tias”, “rainhas do lar”, companheiras. Somos brancas, não-brancas, embranquecidas numa sociedade vincada pelo racismo. Aprendemos cantando que somos pobres ou ricas, de “ma-ré-de-si”, numa sociedade dilacerada pelas desigualdades, em que nossa condição de assalariadas, ainda que nos agregue a muitos outros trabalhadores, é vivida, mesmo entre nós, de modo desigual, implicando grandes diferenças: moramos diferente, vestimos diferente, estudamos em escolas diferentes, ensinamos em condições diferentes a crianças também diferentes. Nesse jogo, somos muitas a um só tempo. E essas muitas se multiplicam, já que sendo o que somos, somos também a negação do que não somos e, nesse sentido, o que não somos também nos constitui, está em nós. Ser e também não ser: aí radica e é produzida a singularidade. [...] Não somos processos psicológicos como percepção, memória, vontade, inteligência, representação, nem processos sociais como exploração, dominação, alienação. Somos pessoas nas quais nos reconhecemos e em quem foram e vão se constituindo e desenvolvendo funções psicológicas complexas, na dinâmica das relações de poder em que se tecem os acontecimentos reais que vivemos. (FONTANA, 2000c, p. 105) Das relações de poder, dos papeis e lugares sociais hierarquizados, dos conflitos, do choque, pelo e no drama, também se produziu essa pesquisa, desenvolvida em um programa de pós-graduação, em uma instituição universitária, para a elaboração de uma tese a ser apresentada e defendida diante de uma banca de especialistas. Regimentos, regulamentos, normas, prazos, exigências, modelos, 27 formulários, requerimentos, solicitações, protocolos, reuniões, horários... e as pessoas, suas idéias, perspectivas, posturas, práticas, interesses, razões, emoções, sentimentos. Tudo nos dizendo o que, como, onde, quando devemos ou não fazer, dizer, pensar, de acordo com os papéis, os lugares sociais, as expectativas e o poder em jogo. Mas nada sem resistência, sem revolta, sem luta, porque também há o querer, o desejo e o pensar livre, na ação silente, na palavra pensada e cuidadosamente dita, escrita ou irrompendo no grito, justamente porque há a pessoa convivendo com outras pessoas. E aí também se produz o tempo-espaço para criar, compartilhar, dividir, somar, pensar livre junto, caminhar junto, contra ou a favor do vento, numa ou noutra direção. De tudo isso também se fez essa pesquisa na qual, sendo professor da educação básica, professor universitário iniciante, pós-graduando em Geografia, e tudo o mais que não se deixa de ser enquanto se pesquisa e se faz um doutorado (pai, filho, irmão, marido, companheiro que, nesse período, se tornou mais estressado, impaciente e com menos tempo, quase tempo nenhum para os seus), fui aprendendo mais sobre aprender, fazer pesquisa, ser pesquisador, ser professor, ensinar... e sobre mim mesmo, minhas concepções, minha prática, minha perspectiva, confrontando-as com outras, com as de outros, com os outros. Assim, minha perspectiva, histórica, socialmente determinada, como visão social de mundo, em constituição, se re-faz, se re-afirma, se re-define, se transforma, também pelas outras, próximas, distantes, parecidas, convergentes, divergentes, complementares, opostas. Pelo que é e pelo que não é. Tanto pelos “sins” e pelos “nãos” de uns e de outros, como também pelo “talvez”. Mas também pelo que se deseja, pelo que se quer, pelo que se acredita que deva ser e suas razões. Quem são meus “outros” sociais nesta pesquisa? Aqueles com quem na pesquisa estabeleci diálogo: alguns de meus professores de graduação e pós- graduação; colegas professores da escola e da universidade; meus alunos da escola e da universidade; a amiga-colega-professora que tão alegremente me recebeu para essa pesquisa em sua sala de aula e seus alunos de segunda e terceira séries; amigos-colegas da pós-graduação em Geografia de Rio Claro; e os autores, pensadores, pesquisadores, educadores, que li e que venho lendo e relendo. Esse diálogo é entendido aqui conforme esse conceito em Bakhtin e que Ana Luiza Smolka assim colocou: 28 Bakhtin vai estender o conceito de ‘diálogo’, dizendo que se pode compreender ‘diálogo’ não apenas como a comunicação em voz alta das pessoas colocadas face a face mas como toda a comunicação verbal de qualquer tipo que seja. Assim, ele postula a dialogia como princípio explicativo, epistemológico: ‘diálogo’ não significa apenas ‘alternâncias de vozes’ – unidade de análise clássica das trocas verbais, tomada em termos metodológicos – mas implica o encontro e a incorporação de vozes em um espaço e um tempo sócio-históricos. Comentando Bakhtin, Clark e Holquist (1984)5 levantam o conceito de ‘ventriloquar’, isto é, falar no outro, pelo outro, no sentido mesmo de que as vozes dos outros estão sempre povoando a (nossa) atividade mental individual. Essa dialogia, então, implica sempre uma multiplicidade de vozes, uma multiplicidade de sentidos – é sempre polifonia, polissemia. (SMOLKA, 2000a, p. 65) As contribuições teóricas de Mikhail Bakhtin se aplicam também à análise do próprio processo de pesquisa. Tomando como referência as proposições de Bakhtin, Luria e Vigotski sobre a pesquisa em ciências humanas, Maria Teresa de Assunção Freitas (2002) aponta “uma forma outra de fazer ciência” pela abordagem sócio-histórica como orientadora da pesquisa qualitativa. Cabe destacar que a autora se refere à “pesquisa qualitativa” tal como definida por Bogdan e Biklen6 nesta sua citação: ...um campo que era anteriormente dominado pelas questões da mensuração, definições operacionais, variáveis, testes de hipóteses e estatística alargou-se para contemplar uma metodologia de investigação que enfatiza a descrição, a indução, a teoria fundamentada e o estudo das percepções pessoais. Designamos esta abordagem por Investigação Qualitativa” (apud FREITAS, 2002, p. 26). Esse conceito de “pesquisa qualitativa” se difundiu também no Brasil a partir dos anos 1980 para designar diferentes tipos de pesquisa (etnográfica, pesquisa participante ou pesquisa-ação, estudo de caso...) no campo educacional (LÜDKE e ANDRÉ, 1986; TRIVIÑOS, 1987; ANDRÉ, 1995). No contexto de emergência de novas abordagens nas pesquisas educacionais e de debate entre correntes teórico-metodológicas de diferentes orientações filosófico-epistemológicas 5 CLARK, K.; HOLQUIST, M.. Mikhail Bakhtin. Cambridge (Mass.): Harvard University Press, 1984. 6 BOGDAN, R.; BIKLEN, S.. Investigação qualitativa em educação. Porto: Porto Editora, 1994. 29 em disputa no campo das pesquisas em ciências humanas, incluída aí a Geografia, verificou-se uma tendência a se tomar as técnicas quantitativas como sinônimo de positivismo e qualquer “pesquisa qualitativa” como não-positivista. Essa concepção de pesquisa qualitativa é questionada por Sílvio Sánchez Gamboa (2002a; 2002b; 2002c) por fundar-se no dualismo qualidade-quantidade e ter gerado um “falso conflito” no debate sobre as tendências teórico-metodológicas nas pesquisas ao limitá-lo ao nível das técnicas qualitativas ou quantitativas, quando as técnicas não se explicam por si mesmas. Para a superação desse falso dualismo técnico e o avanço do debate teórico-metodológico, Gamboa propõe e demonstra que essa análise deve se estender ao campo mais amplo das opções epistemológicas: As alternativas devem ser colocadas no nível das grandes tendências epistemológicas que fundamentam não somente as técnicas, os métodos e as teorias, mas também a articulação desses níveis entre si e desses níveis com seus pressupostos filosóficos. Nesse contexto maior de enfoques científicos, elucida-se a dimensão e o significado das opções técnicas, sejam essas quantitativas ou qualitativas. [...] Em outras palavras, para superar o falso dualismo quantidade- qualidade, é necessário relativizar a dimensão técnica inserindo-a num todo maior que lhe dá sentido, tomando-a como parte constituída do processo de pesquisa. Na medida em que recuperamos o todo, nesta mesma medida relativizamos a parte. Quando recuperamos o todo maior (nesse caso, o enfoque epistemológico), remetemos a opção e a discussão sobre as alternativas da pesquisa não à escolha de algumas técnicas ou métodos, mas aos enfoques epistemológicos que, como um todo maior, articulam outros elementos constitutivos por meio da construção de uma lógica interna (a própria lógica da pesquisa) necessária para preservar o rigor e o significado do processo científico. A articulação desses elementos depende de cada enfoque epistemológico. (GAMBOA, 2002c, p. 88 e 89). Com essa observação crítica de Sílvio Gamboa deve-se acrescentar que a abordagem sócio-histórica como orientadora da pesquisa, apresentada por Freitas, tem o materialismo histórico dialético não simplesmente como “pano de fundo”, como coloca a autora, mas como base filosófica e epistemológica tanto dos estudos de Bakhtin sobre filosofia da linguagem, literatura e arte, quanto os dos principais fundadores e expoentes da psicologia histórico-cultural, ou seja, Luria, Leontiev e Vigotski, sendo que este último também se interessou pela literatura e a arte em seus estudos. A filiação marxista desses teóricos, e suas implicações, precisam mesmo ser destacadas para que suas colocações em relação ao método nas 30 ciências humanas e sociais não sejam compreendidas meramente como orientações genéricas ou instrumentais para serem aplicadas em “pesquisas qualitativas”. Freitas não faz uma leitura superficial dos autores em questão nem desconsidera a filiação marxista dos mesmos 7 . Mas é preciso enfatizar que a abordagem sócio-histórica que propõe para a pesquisa não pode ser tomada de forma pragmática ou utilitarista para se fazer “pesquisa qualitativa”. Ao contrário, deve-se considerar que se trata do materialismo histórico dialético – uma filosofia e um método – e, portanto, tratam-se de princípios políticos, pressupostos e fundamentos filosófico-epistemológicos que envolvem uma determinada concepção de homem, de realidade, de história, de sociedade, de educação... Em relação especialmente à obra de Vigotski, Angel Pino Sirgado (1997; 2000a; 2000b; 2000c) e Newton Duarte (1998; 2000b; 2001a; 2001b; 2003b) apontam os elementos essencialmente marxistas da teoria vigotskiana da psicologia humana e a importância de uma leitura marxista de sua obra, a qual tem sido descaracterizada por apropriações ecléticas e seletivas, como se verá mais adiante. Considerando a questão da subjetividade na pesquisa como uma especificidade dos estudos em ciências humanas e sociais, tem-se como pressuposto básico a necessidade de elaboração de um método específico para as investigações nesse campo que possibilite o tratamento da subjetividade (GAMBOA, 2002c). Considerando que, como esclarece Scalcon (2002), a denominação “histórico-cultural” se refere à teoria em sua totalidade, incluindo a psicologia, a literatura, a psicolingüística e as artes, e que “sócio-histórico” é o processo de análise pelo qual passa a teoria em seu desenvolvimento, a abordagem sócio- histórica como orientadora da pesquisa deve então se referir à análise do processo de pesquisa em seu desenvolvimento orientada pela teoria e pela dialética materialista histórica como método, práxis e visão social de mundo. A abordagem sócio-histórica como orientadora da pesquisa pode ser entendida então como uma alternativa teórico-metodológica para se considerar os aspectos relativos à subjetividade no processo de pesquisa com o enfoque da dialética materialista histórica nos estudos dos fatos e fenômenos especificamente humanos (sociais, culturais, históricos), como a educação escolar. 7 Isso fica claro em obra anterior de Freitas (1995), baseada em sua tese de doutorado, em que analisa o pensamento de Bakhtin e de Vigotski e a relação entre psicologia e educação como um intertexto, buscando alternativa aos psicologismos (objetivista, subjetivista ou interacionista) na educação. 31 Nesse sentido, a abordagem sócio-histórica, partindo do pressuposto de que não há e nem é possível a neutralidade do pesquisador, contribui com a concepção da pesquisa como um processo educativo, de desenvolvimento, “em que o pesquisador é alguém que está em processo de aprendizagem, de transformações. Ele se ressignifica no campo” (FREITAS, 2002, p. 26). Tratando da relação entre o individual e o social na orientação sócio-histórica da pesquisa e as implicações metodológicas quanto à observação, à entrevista e à análise, Freitas acrescenta que: A contextualização do pesquisador também é relevante: ele não é um ser humano genérico, mas um ser social, faz parte da investigação e leva para ela tudo aquilo que o constitui como um ser concreto em diálogo com o mundo em que vive. Suas análises interpretativas são feitas a partir do lugar sócio-histórico no qual se situa e dependem das relações intersubjetivas que estabelece com os seus sujeitos. Ë nesse sentido que se pode dizer que o pesquisador é um dos principais instrumentos da pesquisa, porque se insere nela e a análise que faz depende de sua situação pessoal-social. Para Bakhtin (1988)8, cada pessoa tem um certo horizonte social definido e estabelecido que orienta a sua compreensão e que o coloca diante de seu interlocutor com uma forma própria de relacionamento. A partir dessa situação social, do lugar em que se situa, é que constrói suas deduções, suas motivações e apreciações. A leitura que faz do outro e dos acontecimentos que o cercam está impregnada do lugar de onde fala e orientada pela perspectiva teórica que conduz a investigação. (idem, p. 29-30) As formulações teóricas da perspectiva histórico-cultural envolvem a questão fundamental da teoria do conhecimento e implicada, portanto, em toda pesquisa, que é a relação sujeito e objeto do conhecimento. Vigotski priorizou e enfatizou a importância da mediação semiótica, especialmente pela palavra, pela linguagem como sistema de signos, e da mediação pedagógica, pelo “outro” social, para explicar a origem social e histórica da organização do pensamento, do funcionamento mental, e da subjetividade, da pessoa como ser humano singular, através da apropriação pelo indivíduo de elementos culturais (modos de agir, falar, pensar; conhecimentos; crenças; significados...) do meio social em que se insere. Bakhtin, tendo como mesmo pressuposto básico da perspectiva histórico-cultural a origem e a constituição social da consciência, da subjetividade, do psiquismo 8 Trata-se da mesma obra “Marxismo e filosofia da linguagem” em edição diferente da que consta nas referências bibliográficas deste trabalho: Bakhtin (1986). 32 humano, acrescenta a significação como atividade sócio-ideológica e o princípio da dialogicidade. Assim, Vigotski e Bakhtin colocam a relação sujeito e objeto do conhecimento no plano da intersubjetividade, uma vez que, considerando que tanto o sujeito quanto o objeto são históricos e sociais, essa relação não é direta, mas socialmente mediada pela cultura, pelos sentidos e significados culturais e, destaca Bakhtin, ideológicos em circulação e em produção no meio sócio-histórico em que se dá essa relação. A essas contribuições de Vigotski e Bakhtin para uma abordagem sócio- histórica do processo de pesquisa podem-se acrescentar as de Paulo Freire, cujo pensamento, também marxista, sobre a Educação tem paralelo com o de Vigotski, apontado por Vera John-Steiner e Ellen Souberman (1998), em relação à concepção do ensino como uma forma específica da prática social para o desenvolvimento cultural do homem, ao que se deve acrescentar que Paulo Freire enfatizou que essa prática pode ser tanto para a emancipação como para a alienação do homem, aproximando-se aí do enfoque sócio-ideológico de Bakhtin. Uma aproximação Bakhtin-Paulo Freire é apresentada por João Wanderley Geraldi (2003) em três “teses co-enunciáveis”, que poderiam ser subscritas por ambos os autores: o inacabamento e a (re)elaboração constante da consciência; o futuro como centro de gravidade das decisões do presente; o diálogo, forma privilegiada de relação com a alteridade, materializa-se pela palavra ao mesmo tempo própria e alheia: o sujeito se faz com o outro. Paulo Freire também aborda questões sobre conhecimento, pesquisa, ensino, ideologia, consciência, prática social, mas, como pedagogo brasileiro que, pela força de suas idéias, correu o mundo, primeiro obrigado e depois a convite e pelos seus livros, enfoca essas questões e suas implicações mais diretas em relação à educação no contexto da sociedade brasileira em particular e, em geral, das ditas subdesenvolvidas, periféricas, do Sul... Aceitando essa “tríade” Bakhtin-Vigotski-Paulo Freire, à qual buscarei juntar outros, recorro às palavras de Paulo Freire, nesses fragmentos de sua conversa com Ira Shor, vendo nelas proximidade entre os referidos autores – Bakhtin-Vigotski-Paulo Freire – e, ainda, uma síntese dos pontos principais colocados até aqui e que continuarão pontuando as idéias ao longo do trabalho: 33 Nós nos tornamos algo mais porque estamos aprendendo, estamos conhecendo, porque mais do que observar, estamos mudando. (...) Se você não muda, quando está conhecendo o objeto de estudo, você não está sendo rigoroso. (...) Assim, quanto mais me aproximo criticamente do objeto de minha observação, mais consigo perceber que esse objeto não é, porque ele está se tornando. Então, começo a notar cada vez mais, na minha observação, que o objeto não é algo em si mesmo, mas está dialeticamente se relacionando com outros que constituem uma totalidade. (...) Em minha abordagem da realidade, reconheço também que o próprio fato de ser rigoroso está se fazendo no tempo, na história. Antes de mais nada, não é só uma atitude individual. É também uma atividade social. Estou conhecendo alguma coisa da realidade, com outras pessoas, em comunicação com outros (Paulo Freire, in: SHOR e FREIRE, 1986, p. 104). Enfocar o desenho no ensino de Geografia na perspectiva histórico- cultural implica buscar as relações desse objeto de estudo com o todo, porque “o objeto não é algo em si mesmo, mas está dialeticamente se relacionando com outros que constituem uma totalidade” e, aí, a historicidade, o rigor, os “outros”, a mudança, a dialética entre sujeitos e objetos históricos, sociais, culturais. O todo, que não é tudo (este sim, inalcançável), aqui é o ensino de Geografia no atual contexto sócio- político da Educação na sociedade brasileira, considerando a educação escolar como uma forma específica da prática social que se encontra hoje sob os impactos das políticas neoliberais para atender às condições impostas pela globalização capitalista. Podemos então começar apreender esse todo pelo atual contexto sócio- político e educacional em que se inserem o ensino de Geografia, a prática pedagógica e a formação de professores. 34 1.2 O contexto atual se chama neoliberalismo O neoliberalismo, como marca registrada do capitalismo contemporâneo, re-produz e re-impõe com maior força velhas e novas palavras de ordem como: resultados, competitividade, excelência, cliente, colaboradores, atualização permanente, competência, flexibilidade, capital humano, qualidade total. Palavras carregadas de significação ideológica que têm levado à “mercantilização” de todas as esferas da vida social, pública e privada, transformando o conhecimento em capital, a cultura em “investimento”, os empregados em “associados” ou “colaboradores” da empresa, as pessoas em “capital humano”. “Mas não se trata apenas de uma mudança subjetiva. Este novo ‘ethos’, no qual o antigo trabalhador passa a se comportar como um átomo de ‘capital humano’, fundamenta uma nov