Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Instituto de Geociências e Ciências Exatas Câmpus de Rio Claro - SP Igor de Assis Borges Aplicação da teoria de equações diferenciais ordinárias à análise do crescimento de células tumorais Rio Claro - SP 2023 Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Instituto de Geociências e Ciências Exatas Câmpus de Rio Claro - SP Aplicação da teoria de equações diferenciais ordinárias à análise do crescimento de células tumorais Igor de Assis Borges Dissertação apresentada como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Matemática, junto ao Programa de Pós-Graduação em Matemática, Mestrado Profissional, do Instituto de Geociências e Ciências Exa- tas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Câmpus de Rio Claro - SP. Orientadora Profa. Dra. Suzete Maria Silva Afonso Rio Claro - SP 2023 B732a Borges, Igor de Assis Aplicação da teoria de equações diferenciais ordinárias à análise do crescimento de células tumorais / Igor de Assis Borges. -- Rio Claro, 2023 52 p. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Rio Claro Orientadora: Profa. Dra. Suzete Maria Silva Afonso 1. Equações Diferenciais Ordinárias. 2. Células Tumorais. 3. Câncer. 4. Modelagem Matemática. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca do Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Rio Claro. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. TERMO DE APROVAÇÃO Igor de Assis Borges Aplicação da teoria de equações diferenciais ordinárias à análise do crescimento de células tumorais Dissertação aprovada como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre no Curso de Pós-Graduação em Matemática, Mes- trado Profissional, do Instituto de Geociências e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, pela se- guinte banca examinadora: Profa. Dra. Suzete Maria Silva Afonso Orientadora Profa. Dra. Eliris Cristina Rizziolli Departamento de Matemática- IGCE/UNESP Profa. Dra. Ligia Laís Fêmina FAMAT - UFU Rio Claro - SP, 08 de março de 2023 Aos meus pais João e Euza Agradecimentos Agradeço a Deus pelo dom da vida, pela minha família e por ter me fortalecido durante todo o meu processo acadêmico. Agradeço a minha orientadora, Profa. Dra. Suzete Maria Silva Afonso, pela paciência e compromisso de estar comigo durante a elaboração deste trabalho, bem como por ter acreditado em mim durante todo o processo e me auxiliado nos momentos de ansiedade. Agradeço a minha família, meus pais, João e Euza, meus irmãos, Diego e Fernanda, e a minha avó, Aguida, que sempre me apoiaram e deram forças para realizar este sonho. Por isso, dedico este trabalho, de modo especial, a vocês, que sem este apoio, nada seria possível em minha vida. Agradeço, de maneira especial, aos professores da minha graduação, Profa. Dra. Silvia Regina Viel, Prof. Dr. Antônio Carlos da Silva Filho, Profa. Dra. Lucinda Maria de Fátima Rodrigues Coelho, Profa. Ms. Letícia Faleiros Chaves Rodrigues e Profa. Ms. Adriana Aparecida Silvestre Gera que sempre acreditaram em mim; aos meus amigos de profissão, Profa. Jenifer Lunara da Silva, Prof. João Pedro Fernandes e Prof. Samuel Eugênio Pimenta, todos esses que sempre me apoiaram e inspiram a ser melhor a cada dia. Agradeço, por fim, ao Departamento de Matemática da UNESP - Câmpus de Rio Claro - pelo Programa de Pós-Graduação em Matemática e a todos os docentes do De- partamento, que agregaram muito a minha experiência acadêmica. 4 “Esta coisa todas as coisas devora: Pássaros, animais, árvores e flores; Rilha ferro, morde aço; Transforma pedras duras em farinha; Chacina reis, arruína cidades, E derruba montanhas.” O Hobbit - J.R.R. Tolkien Resumo As equações diferenciais tornam-se objeto de estudo para prever o futuro, de forma científica, ou analisar o passado de fenômenos naturais. Com equações diferenciais, por exemplo, é possível obter uma interpretação do comportamento de populações e das va- riáveis que interferem diretamente no crescimento delas, se elementos do sistema no qual a população está inserida forem conhecidos. Neste trabalho, apresentamos uma aplicação da teoria de equações diferenciais ordinárias à análise de crescimento de células tumorais, por meio do estudo de modelos de dinâmica populacional. Conceitos relativos ao câncer serão apresentados, bem com a teoria básica de equações diferenciais ordinárias para uma melhor compreensão das análises dos modelos. Palavras-chave: Equações Diferenciais Ordinárias, Células Tumorais, Câncer, Modela- gem Matemática. 6 Abstract Differential equations become an object of study to predict the future, in a scientific way, or to analyze the past of natural phenomena. With differential equations, for ins- tance, it is possible to obtain an interpretation of the behavior of populations and of the variables that directly interfere in their growth, if elements of the system in which the population is inserted were known. In this work, we present an application of the theory of ordinary differential equations to the analysis of tumor cells growth, through the study of population dynamics models. Concepts related to cancer will be presented, as well as the basic theory of ordinary differential equations to better understand the analyses of the models. Keywords: Ordinary Differential Equations, Tumor Cells, Cancer, Mathematical Mode- ling. 7 Lista de Figuras 2.1 Surgimento de uma célula cancerosa. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27 2.2 Surgimento do câncer. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27 2.3 Multiplicação descontrolada de células alteradas; acúmulo de células can- cerosas; tumor. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28 2.4 Dimensões do tumor, segundo a divisão celular, para humanos. . . . . . . 29 3.1 Crescimento de células cancerosas, segundo o modelo de Malthus. . . . . . 35 3.2 Crescimento de células cancerosas, segundo o modelo de Verhulst. . . . . . 38 3.3 Crescimento de células cancerosas, segundo o modelo de Gompertz. . . . . 40 3.4 Crescimento de células cancerosas, segundo o modelo de Gompertz, com inserção de um fator de tratamento. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 42 3.5 Crescimento de células cancerosas, segundo o modelo de Gompertz, com e sem inserção de um fator de tratamento. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 42 3.6 Crescimento tumoral T (t), com a = 0, 231 e c = 1, 075. . . . . . . . . . . . 45 3.7 Crescimento das células viáveis m(t) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47 8 Sumário Introdução 11 1 Equações diferenciais ordinárias de primeira ordem 13 1.1 Propriedades gerais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 14 1.1.1 Teorema de existência e unicidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15 1.2 Tipos especiais de EDOs de primeira ordem . . . . . . . . . . . . . . . . . 21 1.2.1 Equações separáveis . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22 1.2.2 Equações lineares de primeira ordem . . . . . . . . . . . . . . . . . 23 2 Introdução à biologia do câncer 26 2.1 O que é o câncer? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26 2.1.1 Definições relativas ao câncer . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28 2.1.2 Tumor detectável e sistema imunológico . . . . . . . . . . . . . . . 29 3 Modelos de dinâmica populacional para o estudo de crescimento tumo- ral 31 3.1 Modelo de Malthus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 32 3.1.1 Aplicação do modelo de Malthus à análise de crescimento de tumo- res sólidos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34 3.2 Modelo de Verhulst . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34 3.2.1 Aplicação do modelo de Verhulst à análise de crescimento de tumo- res sólidos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37 3.3 Modelo de Gompertz . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 38 9 3.3.1 Aplicação do modelo de Gompertz à análise de crescimento de tu- mores sólidos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39 3.3.2 Inserção de um fator de tratamento no modelo de Gompertz . . . . 40 3.4 Modelo de Bassanezi e Leite . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43 3.4.1 Dinâmica das células viáveis . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 44 4 Considerações Finais 48 Referências 50 Introdução Existem vários tipos de câncer, cada qual com suas características específicas e formas de se manifestar no organismo. Segundo o Instituto Nacional do Câncer (INCA) [15], o câncer é um termo que abrange mais de cem diferentes tipos de doenças malignas, que têm em comum o crescimento de células, que podem invadir tecidos adjacentes ou órgãos a distância. E como as células cancerosas são, em geral, menos especializadas nas suas funções do que as suas correspondentes normais, conforme as células cancerosas substituem as normais, os tecidos invadidos vão perdendo suas funções. Por exemplo, a invasão dos pulmões gera alterações respiratórias, a invasão do cérebro pode gerar alterações neurológicas, etc. Esse processo é chamado de “metástase” e é a principal causa de morte por câncer, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS) [17]. A compreensão do comportamento das células tumorais ao longo do tempo no orga- nismo faz-se necessária para que seja possível buscar um tratamento rápido e adequado que iniba a invasão agressiva das células cancerosas por várias regiões do corpo e, consequen- temente, impeça o processo de metástase. Para isso, a Matemática, mais especificamente a Biomatemática, é de grande utilidade, pois dedica-se a explorar modelos matemáticos para transcrever fenômenos biológicos. Com o auxílio da Biomatemática, é possível reali- zar modelagens matemáticas, por meio de equações diferenciais que descrevem a evolução das células cancerosas no corpo humano e a influência de um fator de tratamento para a atenuação da população dessas células. Este trabalho teve como objetivo aplicar a teoria de equações diferenciais ordinárias (EDOs) para compreender e prever a evolução de células tumorais num organismo. Para tanto, exploramos modelos matemáticos de dinâmica populacional para populações de células cancerosas, tais como os modelos de Malthus, Verhulst e Gompertz, que utilizam como ferramenta comum as EDOs. Também estudamos a equação de Gompertz sujeita à inserção de um fator de tratamento que tem por finalidade estabilizar o crescimento ou diminuir o volume da massa tumoral. Adicionalmente, exploramos o modelo de Bassanezi e Leite, também expresso por EDOs, que descreve o crescimento de um tumor sólido, baseado no fato de que a população de células diferenciadas (tecido morto) presentes no tumor é o fator principal de inibição de seu crescimento. Organizamos este texto em quatro capítulos. No Capítulo 1, apresentamos a teoria 11 Introdução 12 básica de EDOs de primeira ordem, que são as ferramentas matemáticas necessárias para o estudo dos modelos de dinâmica populacional a serem explorados. No Capítulo 2, exibimos conceitos relativos ao câncer e explicamos como ele surge, a fim de fundamentar o tema do trabalho. O Capítulo 3 é dedicado ao estudo dos modelos de dinâmica populacional aplicados à análise de crescimento de células tumorais. Por fim, no Capítulo 4, relatamos as considerações finais a cerca do trabalho apresen- tado. CAPÍTULO 1 Equações diferenciais ordinárias de primeira ordem É sabido que muitos dos princípios, ou leis, que regem o comportamento de fenôme- nos físicos, são relações ou proposições que envolvem a taxa segundo a qual as coisas acontecem. Em linguagem matemática, as relações são equações e as taxas são deriva- das. Equações diferenciais são equações contendo derivadas e podem ser classificadas em ordinárias, parciais, funcionais, impulsivas, fracionárias e estocásticas. Neste capítulo, concentrar-nos-emos na teoria básica das equações diferenciais ordi- nárias (EDOs) de primeira ordem, pois os modelos matemáticos aplicados à análise de crescimento tumoral que estudaremos são descritos por equações desse tipo. Por essa razão, este capítulo, de caráter preliminar, faz-se necessário. Também neste capítulo exibiremos métodos para encontrar soluções analíticas de alguns tipos de equações dife- renciais ordinárias de primeira ordem, a saber, equações separáveis e equações lineares de primeira ordem, que serão requisitadas no Capítulo 3. Mesmo as equações diferenciais ordinárias mais simples fornecem modelos úteis de processos físicos. Como exemplo, podemos citar a segunda Lei de Newton, que diz que a massa do objeto vezes sua aceleração é igual à força total que atua sobre o objeto. Matematicamente, essa lei é expressa pela equação F = m · a, (1.1) onde m é a massa do objeto, a sua aceleração e F a força total agindo sobre o objeto. Sabe-se que a e v estão relacionadas pela relação a = dv dt , de tal modo que a equação (1.1) pode ser reescrita como uma EDO da forma: F = m · dv dt . 13 Propriedades gerais 14 1.1 Propriedades gerais Seja A um subconjunto aberto do espaço R × R, onde R é a reta real. Um ponto de R × R será denotado por (t, x), com t ∈ R e x ∈ R; salvo menção contrária, adotaremos em R × R a norma do máximo: |(t, x)| = max{|t|, |x|} e a métrica d induzida por essa norma. Uma equação diferencial ordinária de primeira ordem é uma equação da forma ẋ = dx dt = f(t, x), (1.2) onde f : A → R é uma função dada. Para interpretar os modelos descritos por EDOs de primeira ordem, é importante fundamentar o conceito de solução desse tipo de equação. É o que faremos a seguir. Definição 1.1 (Solução de uma EDO). Uma solução da equação (1.2) em um intervalo I ⊂ R é uma função x : I → R tal que (i) G(x) = {(t, x(t)) : t ∈ I} ⊂ A, (ii) x é diferenciável em I e (iii) ẋ(t) = f(t, x(t)), para todo t ∈ I. Se t é um ponto extremo do intervalo I, a derivada ẋ(t) é a derivada lateral respectiva. Exemplo 1.2. Pensando no propósito deste trabalho, consideremos a equação do cresci- mento exponencial (um dos modelos mais elementares relacionados à dinâmica populaci- onal, veja [1]): ẋ = kx, (1.3) em que k é uma constante de crescimento (ou decrescimento). Neste caso, A = R × R, f : A → R é definida por f(t, x) = kx e x(t) = cekt satisfaz a equação (1.3) para todo t ∈ R, sendo c qualquer constante real, haja vista que dx dt = d dt [ cekt ] = k[cekt] = k[x(t)], ∀t ∈ R. Portanto, x(t) = cekt é uma solução da equação (1.3) para cada c ∈ R. Note que há uma infinidade de soluções para a equação (1.3). Definição 1.3. Seja (t0, x0) ∈ A. Um problema de valor inicial (PVI) para a equação ẋ = f(t, x) consiste em encontrar um intervalo I contendo t0 e uma solução x(t) da equação em I tal que x(t0) = x0. Acerca de um PVI, surgem algumas questões: (I) Quando um PVI tem solução? (II) Se ele tiver solução, quando se pode garantir que a solução é única? (III) Se tiver solução única, é possível exibi-la explicitamente? Propriedades gerais 15 A próxima subseção trará respostas para as duas primeiras perguntas. A resposta da terceira pergunta reside no fato de que para a maioria dos problemas de valor inicial não é possível exibir uma solução analítica. No entanto, em muitos problemas de aplicação não se faz necessário saber a expressão algébrica da solução da equação diferencial, é suficiente saber se a equação admite solução e estudar suas propriedades qualitativas. Adicionalmente, quando necessário, pode-se recorrer a métodos numéricos que fornecem soluções aproximadas para tais problemas. 1.1.1 Teorema de existência e unicidade Para explorar um modelo descrito por uma equação diferencial, é extremamente im- portante saber se ele admite solução. E para que conclusões bem definidas a respeito do modelo possam ser extraídas, garantir que sua solução seja única também é fundamental. O próximo resultado, cuja prova foi extraída de [8], fornece condições suficientes para que um PVI tenha solução única e responde satisfatoriamente as questões ((I)) e ((II)). Teorema 1.4 (Existência e Unicidade). Seja f : A → R uma função contínua. Suponha- mos que a derivada parcial com relação à segunda variável, ∂f ∂x : A → R, seja contínua também. Então, para cada (t0, x0) ∈ A, existe um intervalo aberto I contendo t0 e uma única função diferencial Φ : I → R, com (t, Φ(t)) ∈ A para todo t ∈ I, que é uma solução do PVI: ẋ = f(t, x) (1.4) x(t0) = x0. (1.5) Antes de demonstrar o Teorema 1.4, vamos transformar o PVI (1.4)-(1.5) no problema de resolução de uma equação integral, conforme segue abaixo. Lema 1.5. Seja f : A → R uma função contínua. Então, uma função diferenciável Φ : I → R é uma solução do PVI (1.4)-(1.5) se, e somente se, é uma solução da equação integral x(t) = x0 + ∫ t t0 f(w, x(w))dw, t ∈ I. (1.6) Demonstração. (⇒) Suponhamos que Φ seja solução do PVI (1.4)-(1.5). Então, dΦ dt = f(t, Φ) (1.7) e Φ(t0) = x0. Seja t ∈ I. Integrando ambos os membros da equação (1.7) de t0 a t e aplicando o Teorema Fundamental do Cálculo, obtemos: Φ(t) − Φ(t0) = ∫ t t0 f(w, Φ(w))dw, ou seja, Φ(t) = x0 + ∫ t t0 f(w, Φ(w))dw. Portanto, Φ é uma solução da equação integral (1.6). Propriedades gerais 16 (⇐) Se Φ é uma solução da equação integral (1.6), então Φ(t0) = x0 + ∫ t0 t0 f(w, ϕ(w))dw = x0 + 0 = x0. (1.8) Além disso, sendo Φ solução da equação (1.6), Φ é contínua e, pelo Teorema Funda- mental do Cálculo, Φ é diferenciável e satisfaz Φ′(t) = f(t, Φ(t)), (1.9) completando a prova de que Φ é solução do PVI (1.4)-(1.5). Pelo Lema 1.5, provar existência e unicidade de uma solução para o PVI (1.4)-(1.5) equivale a provar existência e unicidade de uma solução para a equação integral (1.6). Por essa razão, vamos nos concentrar na equação integral (1.6). Dado (x0, y0) ∈ A, tomemos a e b positivos de modo que o retângulo B = B(a, b, x0, y0) = {(t, x) : |t − t0| ≤ a e |x − x0| ≤ b} (1.10) esteja contido em A. Como f é contínua e B é compacto em R×R (fechado e limitado), f(B) é compacto. Logo, f é uma função limitada em B e atinge em B seus valores máximo e mínimo (pelo Teorema de Weierstrass). Sejam M = max {|f(t, x)| : (t, x) ∈ B} , 0 < a ≤ min { a; b M } (1.11) e Ja = [x0 − a, x0 + a]. Seja C o conjunto de todas as funções contínuas g : Ja → R tais que g(t0) = x0 e |g(t)−x0| ≤ b. Graficamente, queremos em C as curvas que passem pelo ponto (t0, x0) ∈ B e que estejam contidas no retângulo B. Podemos definir em C × C a seguinte função real: d(g1, g2) = max {|g1(t) − g2(t)| : t ∈ Ja} . É fácil verificar que (C, d) é um espaço métrico (veja [12]). Podemos, então, falar em sucessão de Cauchy: (gn)n∈N é uma sucessão de Cauchy se dado ϵ > 0 existir um n0 tal que d(gn, gm) < ϵ para n, m ⩾ n0. Uma sucessão (gn)n∈N converge para g ∈ C se dado ϵ > 0 existir n0 tal que d(gn, g) < ϵ, para n ⩾ n0. Diz-se que um espaço métrico (X, d̃) é completo se toda sucessão de Cauchy (gn)n∈N ⊂ X é convergente para algum elemento de X. O espaço métrico (C, d) é completo. A prova dessa proposição baseia-se nos fatos de que a convergência na métrica d é a convergência uniforme de funções e o limite uniforme de funções contínuas é uma função contínua (veja [12]). Propriedades gerais 17 Voltemos a considerar a equação integral (1.6), tal que a função Φ esteja definida em C e que a cada x ∈ C associa a função g(t) = x0 + ∫ t t0 f(w, x(w))dw. (1.12) Note que g(t) é uma função contínua para t ∈ Ja, g(t0) = x0 e |g(t) − x0| ≤ ∣∣∣∣∫ t t0 |f(w, x(w))|dw ∣∣∣∣ ≤ M |t − t0| ≤ Ma ≤ b. (1.13) Portanto, g ∈ C. Então, temos Φ : C → C. Assim, a equação integral (1.6) pode ser escrita sob a forma funcional x = Φ(x). (1.14) Note que as soluções de (1.6) são os pontos fixos de Φ. A ideia agora é usar o Teorema do Ponto Fixo de Banach para provar a existência e unicidade de um ponto fixo de Φ e, consequentemente, concluir a prova do Teorema 1.4. Por ser uma ferramenta importante para a prova do teorema de existência e unicidade de solução de um PVI, apresentamos o Teorema do Ponto Fixo de Banach a seguir. Lema 1.6 (Teorema do Ponto Fixo de Banach). Sejam (X, d) um espaço métrico completo e Φ : X → X uma contração1. Existe um único ponto fixo p de Φ, ou seja, existe um único ponto p ∈ X tal que Φ(p) = p. Demonstração. Inicialmente, vamos provar a existência de um ponto fixo de Φ. Fixemos x ∈ X e consideremos a sucessão a : N → X, dada por a0 = x e an = Φn(x), para cada n ∈ N∗. Afirmação 1: (an)n∈N é uma sucessão de Cauchy em X. De fato, utilizando o Princípio de Indução Finita, podemos constatar que d(an+1, an) ≤ Knd(a1, a0), (1.15) para n ∈ N∗, onde 0 ≤ K < 1 é a constante de contração. Utilizando a desigualdade (1.15) e novamente o Princípio de Indução Finita, concluí- mos que d(an+r, an) ≤ Knd(ar, a0), (1.16) para n ∈ N∗. Agora, utilizando a desigualdade triangular e (1.15), obtemos d(ar, a0) ≤ d(ar, ar−1) + d(ar−1, ar−2) + · · · + d(a2, a1) + d(a1, a0) ≤ (Kr−1 + Kr−2 + · · · + K + 1) d(a1, a0). Desta última desigualdade e de (1.16) segue que d(an+r, an) ≤ Kn(1 + K + K2 + · · · + Kr−1)d(a1, a0) ≤ Kn ∞∑ j=0 Kj d(a1, a0) = Kn 1 − K d(a1, a0), 1Seja (X, d) um espaço métrico. Uma aplicação Φ : X → X será dita uma contração se existir 0 ≤ K < 1 tal que d(Φ(x), Φ(y)) ≤ Kd(x, y), para x, y ∈ X. Propriedades gerais 18 de onde segue que (an)n∈N é uma sucessão de Cauchy, pois d(an+r, an) → 0 quando n → +∞, posto que 0 ≤ K < 1. Como X é completo, então (an)n∈N é convergente em X, ou seja, existe p ∈ X tal que p = lim n→∞ an = lim n→∞ Φn(x). Afirmação 2: p é ponto fixo de Φ. Com efeito, como Φ é, em particular, contínua, temos que: Φ(p) = Φ( lim n→∞ an) = lim n→∞ Φ(an) = lim n→∞ Φ(Φn(x)) = lim n→∞ Φn+1(x) = lim n→∞ an+1 = p. Afirmação 3: p é o único ponto fixo de Φ. De fato, suponha que p e p̃ sejam pontos fixos de Φ. Notemos que d(p, p̃) = d(Φ(p), Φ(p̃)) ≤ Kd(p, p̃). Daí, (1 − K)d(p, p̃) ≤ 0 e, como 0 ≤ K < 1, devemos ter d(p, p̃) = 0, implicando p = p̃. Para aplicar o Teorema do Ponto Fixo de Banach ao problema que estamos estudando, resta demonstrar que Φ é uma contração. É o que faremos a seguir. Por enquanto, temos |Φ(g1)(t) − Φ(g2)(t)| = ∣∣∣∣∫ t t0 [f(w, g1(w)) − f(w, g2(w))]dw ∣∣∣∣ . (1.17) Para estimar o integrando no segundo membro de (1.17), usaremos o seguinte lema. Lema 1.7. Seja f : A → R uma função contínua tal que a derivada parcial fx : A → R seja também contínua. Dado um subconjunto limitado A0 ⊂ A0 ⊂ A, existe uma constante K > 0 tal que |f(t, x1) − f(t, x2)| ≤ K|x1 − x2|, (1.18) para todos (t, x1), (t, x2) ∈ A0. Demonstração. Seja δ ≤ dist (A0, A)2, onde ∂A representa a fronteira de A, e designare- mos por Aδ = { (t, x) ∈ A : dist ((t, x), A0) < δ 2 } uma δ 2 -vizinhança de A0. Dados (t, x1), (t, x2) ∈ A0 com |x1 − x2| < δ, é fácil constatar que o segmento [t, λx1 + (1 − λ)x2], 0 ≤ λ ≤ 1, está contido em Aδ (lembre que em R × R estamos adotando a métrica induzida pela norma do máximo). Aplicando o Teorema do Valor Médio, obtemos f(t, x1) − f(t, x2) = fx(t, ϵ)(x1 − x2), com x1 > x2, (1.19) onde ϵ ∈ [t, λx1 + (1 − λ)x2], 0 ≤ λ ≤ 1. 2Dados A e B subconjuntos não-vazios de R2, a distância entre A e B é dada pelo ínfimo das distâncias entre pontos do conjunto A e pontos do conjunto B, isto é: dist (A, B) = inf{d((t, x), (s, y)) : (t, x) ∈ A, (s, y) ∈ B}. Similarmente, dados (t, x) ∈ R2 e B um subconjunto não-vazio de R2, temos que dist ((t, x), B) = inf{d((t, x), (s, y)) : (s, y) ∈ B}. Propriedades gerais 19 Usando M1 = max { |fx(t, x)| : (t, x) ∈ Aδ } , 3 obtemos de (1.19) a desigualdade |f(t, x1) − f(t, x2)| ≤ M1|x1 − x2| que é válida para (t, x1),(t, x2) ∈ A0 com |x1 − x2| < δ. Para os pontos com |x1 − x2| ⩾ δ, a estimativa abaixo se verifica |f(t, x1) − f(t, x2)| ≤ 2M2 ≤ 2M2 δ |x1 − x2|, (1.20) onde M2 = max (t,x)∈A0 |f(t, x)|. Logo, para obter (1.18) basta tomar K = max { M1, 2M2 δ } . Voltando à estimativa de (1.17), temos, pelo Lema 1.7, que |Φ(g1)(t) − Φ(g2)(t)| ≤ K ∣∣∣∣∫ t t0 |g1(w) − g2(w)|dw ∣∣∣∣ ≤ Kad(g1, g2), onde a foi definido em (1.11). Daí, obtemos d(Φ(g1), Φ(g2)) ≤ Kad(g1, g2). Portanto, podemos concluir que Φ é uma contração quando Ka < 1. Sendo assim, em relação ao intervalo Ja, tomamos a < 1 K e o Teorema 1.4 fica demonstrado com I = (x0 − a, x0 + a). Ou seja, existe e é única uma solução Φ para o PVI (1.4)-(1.5). Observação 1.8. Mostramos acima a existência e unicidade de uma solução do PVI (1.4)-(1.5) em um determinado intervalo I = (x0 − a, x0 + a). É possível notar que a depende de f e da distância do ponto (t0, x0) à fronteira de A. Por essa razão, o próximo resultado é de grande valia. Lema 1.9. Se K ⊂ A é compacto, então um mesmo a pode ser escolhido de modo a servir para todas as condições iniciais (t0, x0) ∈ K. Demonstração. Considere uma δ-vizinhança Kδ de K, tal que K ⊂ Kδ ⊂ Kδ ⊂ A. Então, podemos escolher a, b positivos tais que B seja um retângulo (veja (1.10)) e B ⊂ Kδ para todos os pontos (t0, x0) ∈ K. Assim, basta tomar M = max{|f(t, x)| : (t, x) ∈ Kδ}, e a satisfazendo a < min { a, b M , 1 K } , onde K é a constante fornecida pelo Lema 1.7 com A0 = Kδ. 3M1 existe porque fx é contínua e Aδ é compacto. Propriedades gerais 20 Observação 1.10. Considerando apenas a hipótese de continuidade de f , garante-se a existência de solução para o PVI (1.4)-(1.5), mas não a unicidade. A demonstração da existência com apenas a continuidade de f usa o Teorema do Ponto Fixo de Schauder e pode ser encontrada em [10]. O Teorema 1.4 estabelece condições que garantem a existência local (no intervalo I = (x0 −a, x0 +a)) de solução para o PVI (1.4)-(1.5). Uma contestação natural que pode surgir é: esse intervalo pode ser estendido? O próximo resultado fornece uma resposta para essa pergunta. Teorema 1.11. Sob as mesmas hipóteses do Teorema 1.4, toda solução do PVI (1.4)-(1.5) pode ser estendida a um intervalo maximal, o qual é aberto. Antes de demonstrar o Teorema 1.11, será necessário provar o próximo lema. Lema 1.12. Sejam Φ1 e Φ2 soluções do PVI (1.4)-(1.5) definidas, respectivamente, em intervalos abertos I1 e I2 contendo x0. Então, Φ1 e Φ2 coincidem em I1 ∩ I2. Demonstração. Temos que Ĩ := I1 ∩ I2 é um intervalo aberto, já que I1 e I2 são intervalos abertos por hipótese. Considerando J̃ ⊂ Ĩ, definido por J̃ = {t ∈ Ĩ : Φ1(t) = Φ2(t)}, temos que J̃ é fechado em Ĩ, já que Φ1 e Φ2 são contínuas, e também não-vazio, pois t0 ∈ J . Além disso, J̃ é aberto em Ĩ, pela aplicação do Teorema 1.4. Como Ĩ é um intervalo e, portanto, um conjunto conexo, podemos inferir que J̃ = Ĩ. Demonstração do Teorema 1.11. Considere S o conjunto de todas as as soluções Φi do PVI (1.4)-(1.5), definidas em intervalos abertos Ii contendo x0. Sejam I = ⋃ Ii e Φ : I → R a função definida por Φ(x) = Φi(x) se x ∈ Ii, para algum i. A função Φ está bem definida em virtude do Lema 1.12. Como Φi é solução do PVI (1.4)-(1.5), temos que Φ também é, e I é aberto. Vamos usar a notação I = (θ−, θ+). Afirmação: I é maximal, ou seja, não existe um intervalo contendo propriamente I onde o PVI (1.4)-(1.5) tenha solução Φ̃. De fato, se existisse tal intervalo, ele conteria uma das extremidades de I, digamos θ+. Logo, pelo Teorema 1.4, a solução de x′ = f(t, x) x(θ+) = Φ̃(θ+) existiria num intervalo (θ+ − a, θ+ + a). Note que o fato de Φ̃ ser uma solução definida em θ+ implica que o ponto (θ+, Φ̃(θ+)) pertence ao aberto A. Por essa razão podemos aplicar o Teorema 1.4. Concluímos que a função Φ̃ definida no intervalo Ĩ = (θ−, θ+ + a) por Φ̃(t) = { Φ(t), para t ∈ (θ−, θ+), Φ̃(t), para t ∈ [θ+, θ+ + a) Tipos especiais de EDOs de primeira ordem 21 é solução do PVI (1.4)-(1.5). Contudo, isso é impossível, uma vez que I foi definido como a união de todas os intervalos abertos contendo t0, onde o PVI (1.4)-(1.5) tem solução, e Ĩ contém I propriamente. Relação entre a fronteira ∂A e a solução Φ definida no intervalo maximal. Qual é o comportamento de (t, Φ(t)) quando t se aproxima dos extremos do intervalo maximal I = (θ−, θ+)? Vamos mostrar que (t, Φ(t)) tende para a fronteira de A, no sentido de que a solução sai de qualquer compacto contido em A. Teorema 1.13. Se Φ(t) é solução do PVI (1.4)-(1.5) com intervalo maximal I = (θ−, θ+), então (t, Φ(t)) → ∂A quando t → θ+ (o mesmo vale para x → θ−), isto é, dado K ⊂ A, existe τ < θ+ tal que (t, Φ(t)) ̸∈ K para t ∈ (τ, θ+). Demonstração. 1) Se θ+ = +∞, dado K compacto em A, tome τ = sup (t,x)∈K (t, x). Dessa forma, (t, Φ(t)) ̸∈ K se t > τ . 2) Se θ+ < +∞, dado K ⊂ A, temos pelo Lema 1.9 que o raio a pode ser escolhido de forma que seja o mesmo para todas as condições iniciais em K. Se (t1, Φ(t1)) ∈ K, então Φ está definida em (t1 − a, t1 + a). Tomando τ = θ+ − a, temos que (t, Φ(t)) ̸∈ K se t ∈ (τ, θ+). De fato, se t1 ∈ (τ, θ1) e (t1, ϕ(t1)) ∈ K, então Φ(t) estaria definida em (t1 − a, t1 + a) pelo Teorema 1.4. Assim, como t1 + a > τ + a = θ+, obteríamos uma contradição ao fato de I ser maximal. Observação 1.14. O Teorema 1.13 é importante para determinarmos se as soluções de uma determinada equação são globalmente definidas, isto é, θ+ = +∞. Quando A contém o semiplano t ⩾ x0 e θ+ < +∞, o Teorema 1.13 implica que |Φ(t)| → +∞ quando t → θ+ ou quando t → θ−. Por conseguinte, se conseguirmos mostrar que |Φ(t)| fica limitada (consequentemente contida num compacto), então teremos, obrigatoriamente, que Φ é globalmente definida. 1.2 Tipos especiais de EDOs de primeira ordem Nesta seção apresentaremos, de forma sucinta, métodos analíticos para solucionar al- guns tipos especiais de equações diferenciais ordinárias de primeira ordem, que aparecerem em modelos de dinâmica populacional que estudaremos posteriormente. Tipos especiais de EDOs de primeira ordem 22 1.2.1 Equações separáveis Uma EDO de primeira ordem é dita separável ou com variáveis separáveis quando pode ser escrita na forma dx dt = g(t)h(x), (1.21) onde g e h são funções reais contínuas em intervalos reais abertos I e J , respectivamente. Se h não se anula em J , a equação (1.21) é equivalente a: p(x)dx dt = g(t), (1.22) onde p(x) = 1 h(x) para x ∈ J . Afirmação: A equação 1.22 é equivalente a: d dt F (x(t)) = g(t), (1.23) onde x = x(t) é solução da equação (1.21) e F é uma primitiva de p. De fato, note que d dt F (x(t)) = g(t) ⇐⇒ F ′(x).dx dt = g(t). Portanto, devemos ter F ′(x) = p(x), de onde segue que F é uma primitiva de p. Agora, integrando (1.23) com respeito a t, obtemos: F (x(t)) = G(t) + c, (1.24) onde G(t) = ∫ g(t)dt e c é uma constante de integração. A solução x = x(t) da equação (1.24) é dada por x(t) = F −1(G(t) + c), onde F −1 é a inversa da F . Observe que a existência de F −1 é garantida pelo Teorema da Função Inversa4, já que F ′ = p, p ̸= 0 e p é contínua em J . A expressão em (1.24) é equivalente a∫ 1 h(x)dx = ∫ g(t)dt + c, permitindo que digamos que é possível encontrar as soluções de uma equação com variáveis separáveis separando as variáveis e integrando ambos os lados da equação com respeito às respectivas variáveis. 4Teorema da Função Inversa: Se F é uma função real de classe C1 num intervalo I com F ′(x) ̸= 0, para todo x ∈ I, então F é invertível e sua inversa, F −1, é derivável. Tipos especiais de EDOs de primeira ordem 23 Exemplo 1.15. Vamos considerar a equação do crescimento exponencial: dx dt = kx, (1.25) onde k é uma constante positiva. Neste caso, h : (0, +∞) → R e g : R → R são as funções dadas por h(x) = x e g(t) = k, para x ∈ (0, +∞) e t ∈ R. Claramente, h e g são funções contínuas em seus respectivos domínios e h é não-nula. Para encontrar a solução analítica da equação (1.25), de acordo com a teoria apresentada acima, seguimos os passos abaixo: 1 x dx dt = k d dt [ln x(t)] = k∫ d dt [ln x(t)] dt = ∫ kdt ln x(t) = kt + c, onde c é uma constante real. Logo, a solução geral da equação (1.15) é dada pela família de funções x(t) = ln−1(kt + c) = c1e kt, com c1 = ec. Para o problema de valor inicial dx dt = kx x(0) = n0, com n0 ∈ N, x(t) = n0e kt é a solução para t ⩾ 0, posto que c1 = x(0) = n0. 1.2.2 Equações lineares de primeira ordem Uma EDO de primeira ordem é dita linear quando pode ser escrita na forma dx dt + a(t)x = b(t), (1.26) onde a e b são funções reais e contínuas num intervalo real aberto I. A equação (1.26) recebe o nome de linear porque a operação efetuada sobre x(t),[ d dt + a(t) ] x(t) (1.27) é uma operação linear, ou seja,[ d dt + a(t) ] (αx1 + βx2) = α [ d dt + a(t) ] x1 + β [ d dt + a(t) ] x2, para quaisquer α, β ∈ R. Note que a expressão dx dt + a(t)x é “quase” a derivação de um produto de funções. Se assim fosse, a solução da equação (1.26) seria facilmente encontrada através de uma integração. Tipos especiais de EDOs de primeira ordem 24 Suponha que exista uma função não nula µ(t) contínua em um intervalo real que ao ser multiplicada pela expressão (1.27) nos dê: µ(t)dx dt + µ(t)a(t)x = d dt (µ(t)x(t)). (1.28) Neste caso, deveríamos ter dµ dt = µ(t)a(t). (1.29) A equação (1.29) é separável (pois é escrita sob a forma (1.21)) e é fácil constatar que µ(t) = e ∫ t t0 a(z)dz é uma solução para tal. A função µ(t) = e ∫ t t0 a(z)dz é denominada o fator de integração ou fator integrante da equação linear (1.26). Portanto, resolver a equação (1.26) equivale a solucionar a equação d dt (xe ∫ t t0 a(z)dz) = e ∫ t t0 a(z)dz b(t). Para resolver esta última equação, basta integrar ambos os lados com respeito a t. Logo, a solução geral de (1.26) é dada por x(t) = e − ∫ t t0 a(z)dz ∫ t t0 e ∫ t t0 a(z)dz b(s)ds + ce − ∫ t t0 a(z)dz , onde t0 ∈ I, e c é uma constante real. Exemplo 1.16. Consideremos a equação linear dx dt + kx = e−t, (1.30) sujeita a condição inicial x(0) = 1, (1.31) onde k > 1. Na equação (1.30), a : R → R e b : R → (0, +∞) são as funções dadas por a(t) = k e b(t) = e−t. Sabemos que a e b são funções contínuas em R. O fator de integração da equação (1.30) é dado por λ(t) = e ∫ t 0 kdz = ekt. Pelo que vimos acima, resolver a equação (1.30) equivale a resolver a equação d dt (xekt) = ekte−t. No entanto, a solução dessa última é dada por x(t) = e−t k − 1 + ce−kt, onde c é uma constante real. Considerando a condição inicial x(0) = 1, obtemos c = k − 2 k − 1 . Logo, a solução do problema de valor inicial (1.30)-(1.31) é x(t) = e−t + k − 2 k − 1e−kt. Tipos especiais de EDOs de primeira ordem 25 Há outros tipos especiais de EDOs de primeira ordem cujas soluções podem ser ob- tidas analiticamente, tais como Equações de Bernoulli, Equações de Clairaut, Equações Homogêneas e Equações Exatas. Contudo, para aplicar EDOs aos modelos de crescimento tumoral que exploramos neste trabalho, os tipos que apresentamos acima serão suficien- tes. Para estudar os tipos de equações citados anteriormente, que não foram abordados aqui, recomendamos que o leitor consulte as referências [3] e [5]. CAPÍTULO 2 Introdução à biologia do câncer Neste capítulo discorreremos sobre aspectos da biologia do câncer. A motivação para tal é que, antes de abordar os modelos matemáticos propostos para a análise de cresci- mento de células tumorais, é fundamental entender seu surgimento e desenvolvimento. 2.1 O que é o câncer? Historicamente, o câncer não é uma doença nova (vide [16]), mas sim uma doença que recebeu um nome e atenção a partir do século XIX com o avanço de sua compreensão biológica que mudava, por vezes radicalmente, de uma década para outra. O câncer surge a partir de uma mutação genética que ocorre dentro do material gené- tico (DNA) de uma única célula. Essa mutação faz a célula receber informações erradas do organismo, levando-a a sofrer alterações. Essas alterações podem afetar genes especiais, denominados proto-oncogênes que, a priori, são inativos em células normais. Ao serem ativados, os proto-oncogênes tornam-se oncogênes - genes responsáveis pela oncogênese (ou carcinogênese) - levando à transformação da célula normal em célula cancerosa. Essa mutação no DNA afeta os genes concedendo à célula a capacidade de realizar a divisão celular de forma descontrolada. Numa célula normal, poderosos circuitos genéticos regu- lam sua divisão e sua morte. Numa célula cancerosa, esses circuitos foram rompidos e a célula libertada não consegue parar de crescer [16]. Toda célula - animal - é constituída por três partes, a saber, pela membrana celular (parte mais externa); pelo citoplasma (o corpo da célula) e pelo núcleo (que contém os cromossomos que, por sua vez, são compostos por genes). Os genes detêm todas as informações genéticas inscritas no organismo fornecendo as informações estruturais e organizacionais numa memória química - o ácido dioxirribonucleico (DNA). A divisão celular é um mecanismo deveras importante para a sustentação da vida. A divisão da célula permite nosso crescimento, nossa adaptação, nossa recuperação e 26 O que é o câncer? 27 Figura 2.1: Surgimento de uma célula cancerosa. Fonte: https://www.inca.gov.br/. Figura 2.2: Surgimento do câncer. Fonte: https://www.inca.gov.br/. nossa correção como organismos - em suma, permite que vivamos. Quando distorcida e descontrolada, ela permite que a célula cresça, desenvolva-se, adapte-se, recupere-se e corrija-se. As células cancerosas podem crescer mais rapidamente, adaptar-se melhor [16]. Diferente do que podemos pensar, o processo de oncogênese pode ocorrer lentamente, podendo levar vários anos para que uma célula cancerosa prolifere-se e dê origem a um tumor detectável. Os efeitos cumulativos de diversos agentes cancerígenos - agentes que são responsáveis pela “iniciação”, provocando modificações nos genes - são encarregados de levar à célula ao próximo estágio, denominado “promoção” (as células geneticamente alteradas, ou seja, “iniciadas”, sofrem o efeito dos agentes cancerígenos classificados como oncopromotores) e, posteriormente, à “progressão” (que se caracteriza pela multiplicação descontrolada e irreversível das células alteradas) determinando assim o avanço da on- cogênese. As chances de um sistema desenvolver células cancerosas suficientes para ser clinicamente detectável dependem juntamente da taxa de exposição, da frequência e do período de tempo que o sistema interage com tais agentes cancerígenos. https://www.inca.gov.br/ https://www.inca.gov.br/ O que é o câncer? 28 Figura 2.3: Multiplicação descontrolada de células alteradas; acúmulo de células cancero- sas; tumor. Fonte: https://www.inca.gov.br/. 2.1.1 Definições relativas ao câncer Abaixo elencamos alguns conceitos fundamentais para o entendimento da biologia do câncer, extraídos de [19]. (i) Câncer é um termo que abrange mais de 100 diferentes tipos de doenças malig- nas que são caracterizadas por crescimento celular desordenado, cuja causa está relacionada ao genótipo do indivíduo e/ou ao meio. (ii) Neoplasia é uma massa de tecido anormal que pode surgir em diferentes partes do corpo. (iii) Tumor é o aumento de volume dos tecidos que pode ou não ser provocado por uma proliferação neoplásica verdadeira. (iv) Tumor benigno é aquele em que as células anormais estão reunidas em um único local e de forma uniforme e bem definida, cercado por células normais saudáveis. (v) Tumor maligno é aquele em que as células anormais misturam-se com as células saudáveis. Esse tipo constitui o câncer. (vi) Metástase é o processo no qual o câncer se dissemina além do local onde começou (sítio primário) para outras partes do corpo. A metástase pode ocorrer quando as células cancerosas viajam através da corrente sanguínea ou dos vasos linfáticos para outras áreas do corpo. (vii) Angiogênese tumoral é o processo de neovascularização no qual as células tumorais estimulam a formação de novos vasos sanguíneos. O processo da angiogênese tumoral é um tanto quanto complexo e importante, uma vez que um crescimento tumoral invasivo e a metástase não ocorrem sem angiogênese. A angiogênese tumoral aproveita os vasos sanguíneos existentes para criar novos vasos sanguíneos a fim de alimentar o sistema da célula cancerosa. https://www.inca.gov.br/ O que é o câncer? 29 2.1.2 Tumor detectável e sistema imunológico Um tumor é clinicamente detectável quando ele possui 1 g e 1 cm, com uma média de 30 divisões celulares, visto que uma célula possui massa de 10 micra. Um tumor é geralmente letal quando atinge a massa de 1 kg, que corresponde a 1012 células. Figura 2.4: Dimensões do tumor, segundo a divisão celular, para humanos. Fonte: https://www.inca.gov.br/. Anterior ao estudo de formas de combater as celular cancerosas, está o entendimento dos mecanismos de defesa naturais que protegem o organismo das agressões impostas por distintos agentes que entram em contato com suas diferentes estruturas. Ao longo da vida, são produzidas células alteradas, mas esses mecanismos de defesa possibilitam a interrupção desse processo, resultando em sua eliminação. A integridade do sistema imunológico, a capacidade de reparo do DNA danificado por agentes cancerígenos e a ação de enzimas responsáveis pela transformação e eliminação de substâncias cancerosas introduzidas no corpo são exemplos de mecanismos de defesa, [15]. Tais mecanismos de defesa, próprios do organismo, são na maioria das vezes genetica- mente predeterminados, e variam de um indivíduo para outro, o que explica a existência de vários casos de câncer numa mesma família, assim como o porquê de nem todo fumante desenvolver câncer de pulmão. O sistema imunológico desempenha um papel fundamental nesse mecanismo de defesa. Ele é constituído por um sistema de células distribuídas numa rede complexa de órgãos, como o fígado, o baço, os gânglios linfáticos, o timo e a medula óssea, além de circular na corrente sanguínea. Esses órgãos são denominados órgãos linfoides e estão relacionados com o crescimento, o desenvolvimento e a distribuição das células especializadas na defesa do corpo contra os ataques de “invasores”. Dentre essas células, os linfócitos desempenham um papel muito importante nas atividades do sistema imune, relacionadas às defesas no processo de carcinogênese. A atividade de atacar as células do corpo infectadas por vírus oncogênicos (capazes de causar câncer) ou as células em transformação maligna, bem como de secretar substâncias chamadas de linfocinas, cabe aos linfócitos. Já as linfocinas regulam o crescimento e o https://www.inca.gov.br/ O que é o câncer? 30 amadurecimento de outras células e do próprio sistema imune. Acredita-se que distúrbios em sua produção ou em suas estruturas sejam causas de doenças, principalmente do câncer. A compreensão dos mecanismos de ação do sistema imunológico podem contribuir para a elucidação de diversos pontos importantes para o entendimento da carcinogênese e, por conseguinte, para novas estratégias de tratamento e de prevenção do câncer. Ao analisar produções bibliográficas acerca do câncer, pode-se concluir que qualquer tipo de câncer é uma doença cuja cura pode ser facilmente descoberta, um vez que o âmago dela está na divisão celular, de forma mais específica na proliferação desordenada de células mutantes. Portanto, deduz-se que basta eliminar tais células sem afetar as demais que estão funcionando comumente. No entanto, essa tarefa não é simples e carece de técnicas avançadas. Também pode-se inferir que todos nós estamos suscetíveis a uma doença caracterizada como câncer, uma vez que as divisões celulares estão ocorrendo em nossos organismos e, a cada divisão, estamos vulneráveis a tais mutações. Ademais, com o passar do tempo, nossos organismos ficam mais vulneráveis a falhas. Cabe mencionar que o desenvolvimento do câncer possui relação íntima com a idade, podendo, no entanto, manifestar-se em pessoas mais jovens. Por estar relacionado à idade, com o aumento da expectativa de vida, as chances de um indivíduo desenvolver câncer foram aumentadas. CAPÍTULO 3 Modelos de dinâmica populacional para o estudo de crescimento tumoral O entendimento do desenvolvimento do câncer pode ser viabilizado pela modelagem matemática. Por isso, este capítulo destina-se a apresentar modelos de dinâmica popula- cional para prever o possível comportamento das células tumorais ao longo do tempo. A habilidade de empregar matemática em outras áreas do conhecimento consiste em transformar um problema de natureza complexa em um modelo matemático, ou seja, “traduzi-lo matematicamente”, procurar uma solução e interpretá-la em termos da situa- ção original real (veja [2]). Como fora mencionado, realizar tal processo requer uma habilidade, mas pode ser sintetizado da seguinte forma: • a partir de um tema é realizada uma pesquisa à procura de dados; • os dados coletados são analisados; • elege-se um modelo matemático; • os dados e o modelo são submetidos à validação. A modelagem é um processo que carrega interpretações e subjetividade. Todos os problemas reais não podem ser expressos em toda a sua completude e complexidade em modelos matemáticos, equações ou sistemas de equações; o modelo é apenas um retrato ou uma simulação de determinado fenômeno. Contudo, um modelo pode nos levar à compreensão e ao entendimento de todas as variáveis que norteiam um determinado problema. As variáveis que envolvem um problema são objetos de estudo importantes para a escolha do melhor modelo matemático a se propor. Dentre as variáveis a serem conside- 31 Modelo de Malthus 32 radas relativas ao desenvolvimento do câncer, pode-se elencar os mecanismos de defesa do organismo. Quando o assunto é dinâmica populacional, lança-se mão das equações diferenciais. Nas próximas seções apresentaremos alguns dos modelos populacionais, regidos por equa- ções diferenciais, mais usuais relacionados à Biologia Celular. Um dos modelos mais primitivos de crescimento populacional é o modelo exponencial, apresentado da seguinte forma: N(t) = at, (3.1) onde a é a taxa de crescimento e N(t) é a população de uma dada espécie no instante t. Esse modelo foi repensado visando maiores aplicações à realidade, uma vez que (3.1) é um modelo que representa apenas populações com crescimento linear. Dentre as alterações propostas ao modelo (3.1), estão os trabalhos de Thomas Malthus, Pierre François Verhulst e Benjamin Gompertz. Usando suas obras como referências, muitas pesquisas foram fomentadas e muitos outros modelos propostos - ainda mais rela- cionados a populações cancerosas. Por isso, nas seções seguintes iremos apresentar cada um dos modelos citados, apresentando suas descrições e suas aplicações à modelagem de crescimento de células cancerosas. Destacamos que as referências [3, 5, 19, 2, 13, 7, 21] foram fundamentais para o estudo apresentado neste capítulo. 3.1 Modelo de Malthus Thomas Robert Malthus (1766 - 1834) foi um importante economista britânico co- nhecido como o pai da demografia - e por sua teoria Malthusiana ou, como também conhecida, Malthusianismo. Sua obra de grande destaque foi “An Essay on the Principle of Population”(Um ensaio sobre o princípio da população) de 1798, veja [13]. Malthus foi um dos primeiros a sistematizar de forma matemática o crescimento de uma determinada população. Assim, vale destacar que o modelo proposto por ele é primitivo e com pontos negativos em sua utilização. No desenvolvimento de seu modelo, Malthus fez a seguinte afirmação: “A população, quando não controlada, aumenta em progressão geométrica. A subsistência aumenta apenas em progressão aritmética. Um pequeno conhe- cimento dos números mostrará a imensidão do primeiro poder em comparação com o segundo.” [13] Portanto, o modelo de Malthus previa que a população poderia crescer de tal forma que não seria possível prover alimentação para todos. Entre as plantas e os animais, a constatação da provável veracidade da afirmação de Malthus é simples. Todos eles são impelidos, por um forte instinto, a multiplicar suas espécies, e este instinto não se altera para garantir a subsistência de sua prole. “Por essa razão, em qualquer parte, existe a liberdade, o poder de cres- cimento se exerce e os efeitos do excesso são reprimidos pela falta de espaço Modelo de Malthus 33 e alimento, comum a animais e plantas, e, entre os animais, pelo fato de se tornar presa de outros.” [13] Com o homem, existem questões tão complexas quanto. Assim como os animais e as plantas, o homem é impelido ao crescimento de sua espécie, por um instinto igualmente poderoso. No entanto, a razão interrompe seu curso vital e o indaga se ele deve ou não trazer seres ao mundo, uma vez que ele terá que prover os meios de subsistência. No atual estágio da sociedade ocorrem também outras questões, tais como: • O homem poderá baixar seu padrão de vida social? • Não se sujeitará a maiores dificuldades do que as que ele atualmente enfrenta? • Não será obrigado a trabalhar mais duramente? • E se o homem possuir uma família numerosa, seus maiores esforços o capacitarão a sustentá-la? O ponto crítico dessa teoria de Malthus é que ela desconsidera fatores externos como guerra, pandemias ou qualquer outro fator que pode exterminar uma população. Partiremos agora para a formulação matemática do modelo de Malthus. Seja y = P (t) a população de uma dada espécie no instante t. A hipótese de Malthus sobre a variação da população é que a taxa de variação de y é proporcional ao valor de y, ou seja, dy dt = ry, (3.2) onde r é a denominada a taxa de crescimento ou declínio, dependendo se é positiva ou negativa, respectivamente. Vamos supor que r > 0, de modo que a população está crescendo. Sob a condição inicial y(0) = y0, temos o seguinte PVI: dy dt = ry y(0) = n0, (3.3) cuja equação é uma EDO separável (escrita sob a forma (1.21)) e possui a seguinte solução y(t) = n0e rt, para t ⩾ 0 (veja o Exemplo (1.15)). Assim, o modelo matemático que consiste no problema de valor inicial (3.3), com r > 0, prevê que a população crescerá exponencialmente todo o tempo. Sob condições ideais, constatou-se que a EDO dada em (3.2) é relativamente precisa para muitas populações, pelo menos por períodos limitados de tempo. No entanto, é claro que tais condições ideais não podem continuar indefinidamente. É provável que, em alguma hora, um fator como limitações de espaço, clima, suprimento de comida ou de outros recursos reduzirá a taxa de crescimento e paralisará o crescimento exponencial ilimitado. Modelo de Verhulst 34 3.1.1 Aplicação do modelo de Malthus à análise de crescimento de tumores sólidos Sabe-se que em um tumor em estágio inicial de desenvolvimento não ocorre angiogênese (recorde esse conceito na Subseção 2.1.1 - (vii)), e considerando-o como constituído de uma única população celular, pode-se assumir que sua taxa de crescimento é proporcional ao número de células tumorais N(t). Denotando por r a constante de proporcionalidade, temos a equação dN dt = rN, (3.4) em que r > 0 é a taxa de crescimento intrínseco1 na qual as células se dividem. Pode- se também escrever ( dN dt ) /N = r, significando que a taxa de crescimento tumoral per capita é constante. O modelo descrito pela equação (3.4) pressupõe, implicitamente, que há ausência de estrutura espacial2, N é uma variável contínua, as células tumorais se dividem a uma taxa constante e de forma não sincronizada, e não há estocasticidade demográfica ou ambiental. Resolvendo (3.4) para N(0) = n0 > 0, onde n0 é o número inicial de células tumorais, obtemos, conforme já fora observado, N(t) = n0e rt, t ⩾ 0, que resulta em crescimento exponencial, sendo, consequentemente, ilimitado. Dessa forma, a lei exponencial não explica a saturação observada no crescimento de tumores. Sendo assim, tal modelo pode retratar apenas o crescimento de tumores avascu- lares, nos quais a angiogênese não tenha ocorrido, os quais segundo Kerbel [11] possuem, no máximo, diâmetro de 1 a 2mm. A Figura 3.1 exibe o ciclo de evolução temporal N(t) de uma população de células cancerosas para diferentes valores de n0 positivos, considerando r = 0, 006, parâmetro extraído de [6, 20, 21]. 3.2 Modelo de Verhulst Pierre François Verhulst (1804 - 1849) foi um importante matemático belga e doutor em Teoria dos Números. Em vida, envolveu-se bastante com questões políticas e, devido a suas aptidões, acabou por conhecer os trabalhos de Malthus com estatísticas populaci- onais. Ele contribuiu para os modelos de crescimento populacional propondo, em 1838, o modelo que se baseava nos modelos e estatísticas da época, que complementava a teoria de crescimento exponencial de Malthus, inserindo fatores de inibição de crescimento da população. O modelo proposto por Verhulst, conhecido também como modelo logístico ou de crescimento logístico, foi de fundamental importância para o século XX e responsável 1A taxa de crescimento intrínseco é a taxa de crescimento na ausência de qualquer valor limitador. 2Estrutura espacial: como é a distribuição das células em uma determinada área. Modelo de Verhulst 35 Figura 3.1: Crescimento de células cancerosas, segundo o modelo de Malthus. Fonte: Elaborado pelo autor (2022). por muitos avanços em diversos campos de pesquisa, principalmente na Biomatemática. Em seu modelo, Verhulst destaca que a taxa de crescimento demográfico diminui com o aumento da população, atingindo um valor máximo e uma taxa de variação nula. O modelo matemático proposto originalmente por Verhulst foi o seguinte: dy dt = ry ( 1 − y K ) , (3.5) onde • y(t) é o número de indivíduos no tempo t; • r é a taxa de crescimento intrínseco; • K é a capacidade de carga, ou seja, o número máximo de indivíduos que o ambiente suporta. A fim de obter o modelo (3.5) a partir do modelo de Malthus (3.4), substituímos a taxa de crescimento r por uma função h(y) que tenha as seguintes propriedades: (Ph) h(y) ≈ r > 0 para y pequeno, h(y) é decrescente quando y cresce e h(y) < 0 para y suficientemente grande. A função h(y) representa a nova taxa de crescimento. Dessa forma, teremos a equação: dy dt = h(y)y. (3.6) Modelo de Verhulst 36 A taxa é um ponto importante a se considerar. Malthus considerava que a taxa era constante, algo que nem sempre retrata a realidade, pois superpopulações ativam mecanismos que as autorregulam, visando a sua sobrevivência como um todo. Apesar dele pensar nessas variáveis, ainda assim não ponderou as interferências externas. Na tentativa de corrigir esse problema, Verhulst supôs que a taxa de crescimento decresce linearmente a medida que a população aumenta, conforme descrito em (Ph). Uma das funções que satisfazem as propriedades em (Ph) é h(y) = r − ay, onde a é uma constante positiva. Usando essa função em (3.6), obtemos dy dt = (r − ay)y. (3.7) Contudo, muitas vezes é conveniente escrever a equação (3.7) na forma equivalente: dy dt = ry ( 1 − y K ) (3.8) onde K = r a e r representa a taxa de crescimento intrínseco, isto é, a taxa de crescimento na ausência de qualquer agente limitador. A equação (3.7) é uma EDO separável, escrita sob a forma (1.21). Sujeita à condi- ção inicial y(0) = n0, a equação (3.8) admite solução (Observação 1.10), que pode ser explicitada, conforme estudamos na Subseção 1.2.1. Para tanto, supondo y ̸= 0 e y ̸= K, podemos reescrever a equação (3.8) na forma dy( 1 − y k ) y = rdt. Usando expansão de frações parciais e integrando cada membro da equação acima, obtemos ln |y| − ln ∣∣∣∣1 − y K ∣∣∣∣ = rt + c, onde c é uma constante de integração arbitrária a ser determinada pela condição inicial y(0) = n0. Aplicando a exponencial (inversa da função logaritmo natural) nas expressões dos dois lados da última igualdade, obtemos y 1 − (y/K) = Cert. (3.9) Para satisfazer a condição inicial y(0) = n0, devemos escolher C = n0 1 − n0 K . Substi- tuindo esse valor de C na equação (3.9), encontramos a solução: y(t) = n0K n0 + (K − n0)e−rt . Analisando o comportamento assintótico de y(t), temos que lim t→∞ y(t) = K, Modelo de Verhulst 37 o que significa que, após um longo tempo, a população ficará próxima ao nível de saturação K, independente do tamanho inicial da população, desde que seja positivo. O modelo de Verhulst pode ser utilizado para analisar o crescimento de populações humanas de vários países, o crescimento de células de levedura durante a fermentação, assim como o crescimento de células tumorais. 3.2.1 Aplicação do modelo de Verhulst à análise de crescimento de tumores sólidos É sabido que as células tumorais competem entre si por recursos vitais e oxigênio. O modelo de Verhulst contempla essa interação. Temos que dN dt = rN ( 1 − N K ) , (3.10) onde • K > 0 representa a capacidade de carga do tumor, ou seja, o tamanho máximo que o mesmo pode atingir com os nutrientes disponíveis; • ( 1 − N K ) denota a competição intraespecífica; • N(t) simboliza o número de células cancerosas no tempo t; • r > 0 expressa a taxa de crescimento intrínseco na qual as células se dividem. Se K for muito maior do que N , então N K será um número muito menor do que 1 e a equação (3.10) se reduzirá a equação de Malthus (3.4). Conforme vimos acima, a equação (3.10), sujeita à condição inicial y(0) = n0, tem como solução N(t) = n0K n0 + (K − n0)e−rt , em que lim t→∞ N(t) = K, indicando saturação de crescimento. Observação 3.1. Embora o modelo de Verhuslt descrito acima contemple inibição de crescimento, o modelo logístico generalizado pode conferir maior flexibilidade no ajuste de dados experimentais para alguns tipos de câncer, como o de mama. Detalhes sobre o modelo logístico generalizado podem ser encontrados em [19]. A Figura 3.2 mostra o ciclo de evolução temporal N(t) de uma população de células cancerosas para diferentes valores de n0 positivos, considerando r = 0, 006 e K = 1013, parâmetros extraídos de [6, 20, 21]. Modelo de Gompertz 38 Figura 3.2: Crescimento de células cancerosas, segundo o modelo de Verhulst. Fonte: Elaborado pelo autor (2022). Neste gráfico podemos observar, conforme já havíamos constatado, que quando t → ∞, a população converge para K = 1013. 3.3 Modelo de Gompertz Benjamin Gompertz (1779-1865) foi um importante atuário inglês, que desenvolveu um modelo de crescimento populacional, publicado em 1825, ao construir tabelas de mortalidade para sua companhia de seguros. Seu modelo se mostrou adequado para traduzir crescimentos celulares (plantas, bactérias, tumores, etc.). O que se destaca no modelo de Gompertz é a utilização de uma taxa de inibição de variável de estado proporcional ao logaritmo dessa variável. Isso significa que a taxa de crescimento é grande no início do processo, mudando rapidamente para um crescimento mais lento (veja [2]). O modelo de Gompertz é dado pelo PVI dN dt = aN − rN ln N = N(a − r ln N) N(0) = n0, (3.11) com a > 0 e r > 0, em que N(t) denota a população em função do tempo. A taxa de crescimento ω(N) = a−r ln N > 0 decresce com N e o valor de estabilidade de N , que representa a capacidade limite da população, a qual denotamos por K no modelo de Verhulst, é obtido considerando-se ω(N) = 0, ou seja, dN dt = 0 ⇐⇒ (a − r ln N) = 0 ⇐⇒ N = ea/r, com N > 0. Modelo de Gompertz 39 Podemos também observar que quando N é muito pequeno, ω(N) é muito grande, haja vista que lim N→0+ ω(N) = +∞. Portanto, como 0 = a − r ln K, podemos tomar a = r ln K na equação (3.11) e reescrevê-la como dN dt = r ln KN − rN ln N = rN ln ( K N ) = N ln ( K N )r (3.12) e neste caso ω(N) = ln ( K N )r . A EDO do PVI (3.11) é uma EDO separável e a solução do referido PVI pode ser obtida usando o método descrito na Subseção 1.2.1, conforme já fizemos nas seções anteriores3. Sendo assim, a solução do modelo de Gompertz (3.11) é expressa da seguinte forma: N(t) = K ( n0 K )e−rt , t ⩾ 0. (3.13) 3.3.1 Aplicação do modelo de Gompertz à análise de cresci- mento de tumores sólidos O modelo de Gompertz é bastante utilizado no estudo da evolução de tumores sólidos. Nesse caso, assume-se que a taxa de crescimento da população de células cancerosas diminui com o aumento da massa tumoral, pois as células centrais não recebem a mesma quantidade de nutrientes e oxigênio necessários para sua multiplicação (veja [2]). Analisando a solução da equação de Gompertz (3.13), podemos observar que lim t→+∞ N(t) = K, considerando que N(t) seja uma população de células cancerosas. Isso significa que tal população de células tende a K à medida que os ciclos de evolução temporal, t, aumentam, independente do valor da população inicial. A Figura 3.3 descreve o ciclo de evolução temporal N(t) de uma população de células cancerosas para diferentes valores de n0 positivos, considerando r = 0, 006 e K = 1013, parâmetros extraídos de [6, 20, 21]. Analisando o gráfico 3.3, observamos que populações abaixo da capacidade de carga K tendem para K à medida que t cresce. Então, podemos inferir que a tendência é que ocorram multiplicações das células nesse caso. Contudo, quando a população de células tumorais ultrapassa o valor K, ela também tenderá a esse valor. Isso caracteriza N(t) = K como uma solução de equilíbrio estável da equação (3.12). Até agora, estamos considerando o crescimento do tecido tumoral sem levarmos em conta o efeito da administração de tratamentos contra o tumor. Espera-se que, com a consideração de técnicas de tratamento, como quimioterapia ou medicação específica, o 3O leitor interessado em analisar o procedimento para obter a solução de (3.11) pode consultar [2] Modelo de Gompertz 40 Figura 3.3: Crescimento de células cancerosas, segundo o modelo de Gompertz. Fonte: Elaborado pelo autor (2022). equilíbrio populacional das células tumorais seja alcançado bem antes da capacidade de carga, K, do tumor ou que a taxa de crescimento dessa população de células diminua consideravelmente com a ação dessas técnicas. Na próxima subseção consideraremos um fator de tratamento inserido no modelo de Gompertz. 3.3.2 Inserção de um fator de tratamento no modelo de Gom- pertz Vamos considerar a equação de Gompertz, descrita novamente abaixo para facilitar a leitura. dN dt = rN ln ( K N ) . (3.14) Queremos inserir um fator de tratamento na equação (3.14), com o intuito de fazer com que a população de células tumorais cresça mais lentamente ou diminua à medida que o tempo passe. Faremos isso com base no artigo [6]. Tal fator de tratamento deve ser tal que: • na sua ausência, se tenha a própria equação de Gompertz (3.14); • com a sua atuação, ele funcione como retardador do crescimento da população de células tumorais, N(t). Em [6], o autor usou dados reais, referentes ao tratamento de tumores com a aplica- ção de uma droga denominada endostatina. Domingues [6] relata que estudos recentes revelam que a endostatina é capaz de interromper o crescimento de tumores em ratos. A endostatina é uma proteína natural que bloqueia a formação de vasos sanguíneos. No Modelo de Gompertz 41 caso do câncer, acaba interrompendo a irrigação do tumor bloqueando o fornecimento de nutrientes e destruindo as células tumorais. De acordo com [20], podemos considerar que a inibição do crescimento das células tumorais depende • da eficácia de atuação do medicamento, γ; • da sua concentração no organismo no instante t, c(t); • da quantidade de células tumorais a cada instante t, N(t). Considera-se, portanto, a seguinte equação: dN dt = rN ln ( K N ) − γc(t)N, (3.15) onde a concentração, c(t), do medicamento no instante t é dada pela equação c(t) = c0Ste−rt, onde c0 é a concentração inicial do medicamento no organismo e S é a função degrau definida como S = { 1, considerando o tratamento, 0, sem considerar o tratamento. A equação (3.15) equivale, portanto, à seguinte equação: dN dt = rN ln ( K N ) − γ(c0Ste−rt)N. (3.16) Assim como em [6], usaremos os seguintes parâmetros para esboçar soluções de (3.16) posteriormente. r K N(0) = n0 c0 γ 0, 006 1013 109 0, 04 0, 04 Tabela 3.1: Parâmetros utilizados para o esboço da curva de Gompertz com a inserção do fator de tratamento. A Figura 3.4 descreve o ciclo de evolução temporal N(t) de uma população de células cancerosas, considerando os parâmetros descritos na Tabela 3.1 e a inserção do fator de tratamento. Já o gráfico 3.5 compara a evolução da população de células cancerosas segundo o modelo de Gompertz, com e sem a inserção do fator de tratamento. Modelo de Gompertz 42 Figura 3.4: Crescimento de células cancerosas, segundo o modelo de Gompertz, com inserção de um fator de tratamento. Fonte: Elaborado pelo autor (2022). Figura 3.5: Crescimento de células cancerosas, segundo o modelo de Gompertz, com e sem inserção de um fator de tratamento. Fonte: Elaborado pelo autor (2022). Pelo gráfico da Figura 3.5, constata-se que com a inserção do fator de tratamento (ou seja, considerando S = 1 na função c(t)), a taxa de variação da população de células tumorais é consideravelmente reduzida. A constatação se efetiva ao comparar as curvas quando S = 1 e quando S = 0. Esse resultado permite que conjecturemos que, com a inserção de um tratamento ba- seado em endostatina, o crescimento da população de células tumorais será retardado em comparação ao seu crescimento sem o tratamento. Sendo assim, considerando o trata- Modelo de Bassanezi e Leite 43 mento, mesmo que nos dois casos as populações tumorais finais sejam as mesmas, com a administração do medicamento, essa população demorará mais a atingir a capacidade de carga K. 3.4 Modelo de Bassanezi e Leite Rodney Carlos Bassanezi é professor titular aposentado do Instituto de Matemática, Estatística e Computação Científica (IMECC) da UNICAMP e, desde 2007, é professor titular da Universidade Federal do ABC. É autor de vários livros e artigos da área de Biomatemática. Seu artigo intitulado “Um estudo evolutivo de tumores sólidos”, escrito em coautoria com sua orientanda de doutorado, Maria Beatriz F. Leite, apresenta um modelo matemático para representar o crescimento de tumores sólidos (as células que se mantêm agrupadas), relacionando seu tamanho com a população de células viáveis, e será a referência para esta seção. O modelo proposto por Bassanezi e Leite para tumores sólidos tem por base que as células cancerosas não sustentam o crescimento exponencial por muito tempo, pois em algum momento o processo de inibição deverá ocorrer. Como causas prováveis dessa inibição destacam-se a “competição” das células e a “diferenciação multicelular”, que é a propriedade de replicação de uma célula filha poder ser diferente de uma célula mãe. Os parâmetros envolvidos no referido modelo foram estimados por meio de simulações numéricas e os resultados comparados com os dados experimentais obtidos no CECAN - UNICAMP (veja [4]), em ratos. Em [4], Bassanezi e Leite mencionam que: “Por simplicidade podemos dizer que um tumor é constituído de células replicáveis (células viáveis) e células diferenciáveis que não se dividem.” Diferente dos demais modelos apresentados, aqui temos uma análise em relação às célu- las viáveis. A importância de se obter modelos matemáticos para o crescimento de células viáveis está no fato de que essas dificilmente podem ser reconhecidas experimentalmente, além de serem as responsáveis pela morte do hospedeiro. O modelo de Bassanezi e Leite baseia-se no fato de que o principal fator de inibição de um tumor sólido são as células diferenciadas (tecido morto) presentes no tumor. Para este modelo, foram consideradas as seguintes variáveis: • T : massa tumoral - células viáveis e diferenciadas (em gramas); • y: taxa de inibição devido à quantidade de tecido morto presente no tumor; • γ: taxa de duplicação das células viáveis. Matematicamente, o modelo é expresso da seguinte forma: dT dt = γT (1 − y), (3.17) em que T (0) = T0 é o tamanho inicial do tumor. Segundo [4] e [18], com os dados experimentais, concluiu-se que Modelo de Bassanezi e Leite 44 (i) y é crescente com o tempo t, e y → 1 quando t cresce; (ii) 0 < y ⩽ 1. Por conveniência, y foi escolhido com um crescimento inibido do tipo de Gompertz, tal que dy dt = −ay ln y, (3.18) em que a é uma constante positiva de proporcionalidade. A equação (3.18) é uma EDO separável. Para resolvê-la, separamos as variáveis de acordo com a teoria apresentada na subseção 1.2.1, obtendo dy y ln y = −a dt. Em seguida, obtemos ln | ln y| = −at + c e consequentemente | ln y| = e−at+c. Por (ii), sabemos que ln y < 0. Portanto, devemos ter ln y = −e−at+c e, por conseguinte, y(t) = e−[e(−at+c)]. (3.19) A solução de (3.18), dada por (3.19), fornece em cada instante a taxa de inibição do crescimento tumoral. A constante de integração c é obtida experimentalmente no início da formação do tumor quando uma quantidade de células viáveis é inserida no animal (rato). Vale verificar que y(t) = e−[e(−at+c)] satisfaz (i) e (ii) para t ⩾ 0. Com efeito, por (3.18), temos dy dt > 0, de onde segue que y é crescente. Ademais, e−[e(−at+c)] > 0 para todo t ⩾ 0 e e−[e(−at+c)] → 1 quando t → +∞, posto que a > 0, de onde podemos inferir que y(t) ∈ (0, 1] para t ⩾ 0. Substituindo y(t) em (3.17), obtemos: T (t) = T0e [γt−γ ∫ t 0 e−[e(−aτ+c)]dτ ]. (3.20) Os valores dos parâmetros foram estimados com simulações dos dados obtidos por [4] no CECAN-UNICAMP, com ratos. A saber, Bassanezi e Leite estimaram T0 = 0, 0066, γ = 1, 073, a = 0, 231 e c = 1, 075. A Figura 3.6 apresenta o gráfico de T (t) considerando tais parâmetros. 3.4.1 Dinâmica das células viáveis É bastante interessante avaliar a proporção de células viáveis presentes em cada ins- tante num tumor, haja vista que elas são as responsáveis pelo efetivo crescimento do tumor. Em contrapartida, o procedimento experimental de avaliação destas células é Modelo de Bassanezi e Leite 45 Figura 3.6: Crescimento tumoral T (t), com a = 0, 231 e c = 1, 075. Fonte: Elaborado pelo autor (2022). demasiadamente complexo, sendo mais simples avaliar a massa tumoral total em cada instante. Sendo assim, um modelo matemático para estudar a dinâmica da população de células viáveis é fundamental para o entendimento de um tumor. Apresentaremos a seguir, segundo [4], um modelo para as células viáveis em um tumor sólido, considerando que a probabilidade delas estarem situadas na camada externa é bem maior que no seu interior. Se todas as células provenientes de uma divisão celular fossem também viáveis, o processo de replicação seria dado pelo modelo: dm dt = γm m(0) = m0, (3.21) onde m = m(t) é a massa de células viáveis, m0 é sua massa inicial e γ é a taxa de crescimento das células viáveis. A solução de (3.21), dada por m(t) = m0e γt, indica que seu crescimento é ilimitado, o que não pode ser sustentado indefinidamente. Bassanezi e Leite consideraram um tumor sólido aproximadamente esférico, e supu- seram que a concentração das células viáveis é maior na parte externa do tumor e mais distante do núcleo do tumor. A igualdade mv mt = mv mv + md expressa a relação entre a massa de células viáveis mv e a massa tumoral mt = mv + md; cabe informar que md denota a massa de células diferenciadas. Modelo de Bassanezi e Leite 46 Uma aproximação desta relação pode ser dada por: mv mt = m0e αt m0eαt + k ∫ t 0 m0eατ dτ = α α + k(1 − e−αt) (3.22) onde α é a taxa de diferenciação das células e k uma constante de proporcionalidade. Segundo [4], a relação p(t) = α α + k(1 − e−αt) (3.23) pode ser interpretada como a probabilidade de, em cada instante, uma célula viável se dividir em outras viáveis. De (3.23), pode-se extrair que: • p(t) é decrescente para t → +∞; • p(0) = 1 (no início todas as células são viáveis); • p(t) → α α + k quando t cresce, o que implica na estabilização das células viáveis. Portanto, considerando p a probabilidade das células serem viáveis e (1 − p) a proba- bilidade das células serem diferenciadas, Bassanezi e Leite propuseram o seguinte modelo para a dinâmica de células viáveis: dm dt = γm ( 1 + ln p ln a ) m(0) = m0, (3.24) onde p é dado por (3.23) e a = α + k α . Analisando (3.24), deduz-se que: • a massa de células viáveis se estabilizará, pois dm dt → 0 quando t cresce. De fato, se t → +∞, então p(t) → α α + k = 1 a =⇒ ln p(t) → ln 1 a = − ln a, uma vez que a função ln é contínua. Portanto, quando t → +∞, temos dm dt → γm ( 1 − ln a ln a ) = γm · (0) = 0. • m cresce exponencialmente no início da formação do tumor, pois p(t) = 1 para t = 0. • m(t) é crescente para t ⩾ 0, uma vez que 1/a < p ≤ 1. • o instante t de máximo crescimento de m(t) independe de m(t) e é obtido quando d2m dt2 = 0, que equivale a resolver a equação γ ln a ( 1 + ln p ln a )2 − α α+k k eαt − 1 = 0. (3.25) Modelo de Bassanezi e Leite 47 Usando os dados experimentais do CECAN, foi considerado α = 0, 147 e k = 0, 1 para plotar o gráfico de m(t), exposto na Figura 3.7. Figura 3.7: Crescimento das células viáveis m(t) Fonte: Elaborado pelo autor (2022). Finalmente, uma alternativa para modelar o desenvolvimento de um tumor sólido, pressupondo que ele deve se estabilizar, é uma combinação dos modelos (3.17)-(3.24) apresentados anteriormente: dm dt = γm ( 1 + ln p ln a ) dn dt = γ(1 − y)(m + n) − γm ( 1 + ln p ln a ) m(0) = m0 n(0) = 0, (3.26) onde n(t) é a população de células diferenciadas em cada instante, T = m + n e dT dt = γ(1 − y)T , em que T é a massa tumoral total; os demais parâmetros são os mesmos definidos anteriormente nesta seção. CAPÍTULO 4 Considerações Finais Segundo o INCA [15], são esperados 704 mil casos novos de câncer no Brasil para cada ano do triênio 2023-2025, e foram estimadas as ocorrências para 21 tipos de câncer mais incidentes no Brasil. O tumor maligno de maior incidência no Brasil é o de pele não melanoma (31,3% do total de casos), seguido pelos de mama feminina (10,5%) - com 74 mil casos novos previstos por ano até 2025 -, próstata (10,2%) - com 72 mil casos novos previstos por ano até 2025 -, cólon e reto (6,5%), pulmão (4,6%) e estômago (3,1%). Diante desses dados alarmantes fornecidos pelo INCA, é inquestionável a pertinên- cia de estudar modelos matemáticos que ajudem a prever o comportamento de células cancerígenas, uma vez que eles constituem uma ferramenta para a busca de diagnósticos adequados e tratamentos assertivos. Eis, pois, a grande motivação para a elaboração deste trabalho. Todos os modelos matemáticos aqui explorados mostraram ser sensíveis em relação à alteração dos parâmetros, sendo necessário sempre dados experimentais para chegar a modelos efetivos que representem, da melhor maneira possível, a realidade - conforme constatou Rodrigues em [19]. Diante dos modelos apresentados, é natural questionar quão adaptável é cada modelo em relação aos diferentes tipos de câncer e sua relação com os dados obtidos em análises laboratoriais. Segundo [19], não há uma lei universal que demonstre ou antecipe o desenvolvimento de um tumor. O modelo que mais se destaca por ser o mais empregado para descrever o desenvolvimento de tumores malignos - de modo geral - é o modelo de Gompertz, mesmo sendo menos flexível em relação a outros modelos. Ainda que não se tenha modelos matemáticos específicos para cada tipo de câncer, existem aqueles que são regularmente relacionados a determinado tipo, com base em dados experimentais. Para finalizar, listamos as conclusões sobre cada modelo de EDOs apresentado neste 48 Considerações Finais 49 trabalho. Para fundamentar as considerações realizadas, enfatizamos a utilização das seguintes referências descritas na bibliografia: [19, 2, 13, 7, 11, 4, 18, 22, 14, 9]. • Modelo de Malthus: fundamental para a formulação dos modelos posteriores, mostrou-se preciso para muitas populações, por períodos limitados de tempo. No entanto, como a lei exponencial não explica a saturação observada no crescimento de tumores, tal modelo pode retratar apenas o crescimento de tumores avasculares, nos quais a angiogênese não tenha ocorrido, os quais segundo Kerbel [11] possuem, no máximo, diâmetro de 1 a 2mm. • Modelo de Verhulst: é um modelo com ampla aplicação em Biomatemática, complementar ao modelo de Malthus, no qual foi inserido fatores de inibição de crescimento da população, podendo ser utilizado para analisar o crescimento de células tumorais de forma mais realística. • Modelo de Gompertz: é o que fornece melhor ajuste para o crescimento volu- métrico de tumores in vivo, segundo dados de [14]. Ademais, é o mais aplicável, de um modo geral, ao desenvolvimento de tumores sólidos. Em particular, dos mo- delos apresentados, o de Gompertz apresenta características de melhor ajuste ao desenvolvimento do câncer de próstata, segundo [9]. • Modelo de Bassanezi e Leite: é um modelo que relaciona o tamanho de um tumor com a população de células viáveis. Ele se baseia no fato de que as células cancerosas não sustentam o crescimento exponencial por muito tempo, pois em al- gum momento o processo de inibição deverá ocorrer. Vale informar que esse modelo se mostrou ajustável aos dados analisados. Segundo [18], o modelo de Bassanezi e Leite também apresentou um desenvolvimento consistente aos dados experimentais do câncer de mama em humanos. Referências [1] N. Bacaër. A Short History of Mathematical Population Dynamics. Springer-Verlag, London, 1 edition, 2011. [2] R. C. Bassanezi. Modelagem matemática: teoria e prática. Editora Contexto, São Paulo, 1 edition, 2015. [3] R. C. Bassanezi and W. FERREIRA Jr. Equações Diferenciais com Aplicações. Editora Harbra Ltda, São Paulo, 1988. [4] R. C. Bassanezi and M. B. F. Leite. Um estudo evolutivo de tumores sólidos. Grupo de Biomatemática IMECC - UNICAMP, IV:18–26, 1994. [5] W. E. Boyce., R. C. Diprima., and D. B. Maede. Equações Diferenciais Elementares e Problemas de Valores de Contorno. Livros Técnicos e Científicos Editora S.A., Rio de Janeiro, 11 edition, 2020. [6] J. S. Domingues. Análise do modelo de Gompertz no crescimento de tumores sólidos e inserção de um fator de tratamento. Grupo de Biomatemática IMECC - UNICAMP, 21:103–112, 2011. [7] D. dos S. Carneiro. Estudo do câncer via equações diferenciais ordinárias. Revista de Matemática de Ouro Preto, 1:101–149, 2017. [8] D. G. Figueredo and A. F. Neves. Equações Diferenciais Aplicadas. Coleção Mate- mática Universitária, Rio de Janeiro, IMPA, 3 edition, 2018. [9] G. FILHO, N. A. DE AGUIAR NETO, and C. M. DA SILVA. Solução da equação diferencial da Gompertz na análise de crescimento de tumores malignos da próstata. Revista de Engenharia e Pesquisa Aplicada, 2(1):551–555, 2016. [10] J. K. Hale. Ordinary Differential Equations. Dover Books on Mathematics Series. Dover Publications, 2009. [11] R. Kerbel. Tumor angiogenesis: past, present and near future. Carcinogenesis, 21:505–15, 04 2000. 50 Referências 51 [12] E. L. Lima. Espaços métricos. Projeto Euclides. Instituto de Matemática Pura e Aplicada, 1977. [13] T. R. Malthus. An Essay on the Principle of Population. Printed for J. Johnson, in St. Paul’s Church-Yard, London, 1798. [14] S. Michelson, A. S. Glicksman, and J. T. Leith. Growth in solid heterogeneous human colon adenocarcinomas: comparison of simple logistical models. Cell Proliferation, 20(3):343–355, 1987. [15] MINISTÉRIO DA SAÚDE. Instituto nacional do Câncer - INCA, https://www. gov.br/inca/, 2022. [16] S. Mukerjee. O imperador de todos os males: Uma biografia do câncer. Companhia Das Letras, São Paulo, 1 edition, 2012. [17] ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. Câncer, https://www.who.int/pt, 2022. [18] N. K. M. Pereira. Um estudo quantitativo sobre o câncer de mama. Dissertação de mestrado, Universidade Estadual de Campinas - IMECC, 2017. [19] D. S. Rodrigues. Modelagem matemática em câncer: dinâmica angiogênica e quime- oterapia antineoplástica. Dissertação de mestrado, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, 2011. [20] R.K. Sachs, L.R. Hlatky, and P. Hahnfeldt. Simple ODE models of tumor growth and anti-angiogenic or radiation treatment. Mathematical and Computer Modelling, 33(12):1297–1305, 2001. [21] Sabrina L. Spencer, Matthew J. Berryman, José A. García, and Derek Abbott. An ordinary differential equation model for the multistep transformation to cancer. Jour- nal of Theoretical Biology, 231(4):515–524, 2004. [22] J. A. Spratt, D. von Fournier, J. S. Spratt, and E. E. Weber. Decelerating growth and human breast cancer. Cancer, 71(6):2013–2019, 1993. https://www.gov.br/inca/ https://www.gov.br/inca/ https://www.who.int/pt Índice Remissivo Angiogênese tumoral, 37 Câncer, 35, 37 Células viáveis, 53 Diferenciação multicelular, 53 Equação diferencial linear de primeira ordem, 31 ordinária de primeira ordem, 22 separável, 30 Metástase, 37 Modelo de Bassanezi e Leite, 53 de Gompertz, 48 de Malthus, 42 de Verhulst, 44 Logístico, 44 Neoplasia, 37 Solução de uma EDO, 22 do modelo de Gompertz, 49 do modelo de Malthus, 43 do modelo de Verhulst, 46 Teorema de existência e unicidade, 23 do Ponto Fixo de Banach, 25 Tumor, 37, 38 benigno, 37 maligno, 37 52 Introdução Equações diferenciais ordinárias de primeira ordem Propriedades gerais Teorema de existência e unicidade Tipos especiais de EDOs de primeira ordem Equações separáveis Equações lineares de primeira ordem Introdução à biologia do câncer O que é o câncer? Definições relativas ao câncer Tumor detectável e sistema imunológico Modelos de dinâmica populacional para o estudo de crescimento tumoral Modelo de Malthus Aplicação do modelo de Malthus à análise de crescimento de tumores sólidos Modelo de Verhulst Aplicação do modelo de Verhulst à análise de crescimento de tumores sólidos Modelo de Gompertz Aplicação do modelo de Gompertz à análise de crescimento de tumores sólidos Inserção de um fator de tratamento no modelo de Gompertz Modelo de Bassanezi e Leite Dinâmica das células viáveis Considerações Finais Referências