ABÍLIO REZENDE MACEDO A EXPERIÊNCIA DA QUEIMADURA: implicações subjetivas e socioculturais ASSIS 2018 ABÍLIO REZENDE MACEDO A EXPERIÊNCIA DA QUEIMADURA: implicações subjetivas e socioculturais Dissertação apresentada à Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, para a obtenção do título de Mestre em Psicologia (Área de conhecimento: Psicologia e Sociedade). Orientador: José Sterza Justo Coorientadora: Mariana Dorsa Figueiredo Bolsista: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP, Processo Nº 2016/16289-8) ASSIS 2018 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca da F.C.L. – Assis – Unesp M141e Macedo, Abílio Rezende A experiência da queimadura: implicações subjetivas e socioculturais / Abílio Rezende Macedo. Assis, 2018. 124f. : il. Dissertação de Mestrado – Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis Orientador: Dr. José Sterza Justo Coorientador: Drª Mariana Dorsa Figueiredo 1. Queimaduras - Complicações e sequelas. 2. Queimaduras - Tratamento. 3. Estigma (Psicologia social). 4. Serviços de saúde. 5. Saúde pública. I. Título. CDD 614 A Alexandra Bilar Henrique, Elaine Alves e Silmara Andrade e Avelar, que me inspiraram a realizar este trabalho e me acompanharam, ao longo de todo o percurso. Aprendi muito com a determinação e força de vontade de cada uma de vocês. AGRADECIMENTOS À minha família, por sempre me apoiar nas minhas escolhas. Ao meu orientador, José Sterza Justo, pela prontidão e pelo aprendizado, durante as orientações. À minha coorientadora, Mariana Dorsa Figueiredo, pelo auxílio ao longo da pesquisa. Às pessoas que participaram do estudo, sem as quais não seria possível a realização deste trabalho. Aos docentes e funcionários da Faculdade de Ciências e Letras - FCL/UNESP Assis, pela atenção e colaboração na execução deste trabalho. A toda a equipe da Santa Casa de Misericórdia de Guaratinguetá, que me recebeu tão gentilmente e me proporcionou experiências valiosas para a construção do estudo. Ao Professor Dr. José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres e Dr.ª Tereza Etsuko da Costa Rosa, pelas importantes contribuições que favoreceram o enriquecimento desta pesquisa. A Fernando Silva Teixeira Filho, Abílio da Costa-Rosa, Silvio Jose Benelli, Wiliam Siqueira Peres e Francisco Hashimoto, professores por que tenho grande admiração e que colaboraram com relevantes sugestões na construção da pesquisa. A Larissa Oyama, Luiz Philipe Molina Vana, Rosa Irlene Maria Serafim e Cristina Lopes Afonso, profissionais com quem tive a oportunidade de compartilhar inquietações sobre o tema da pesquisa e que, para mim, são referências na atuação em saúde. A Matheus Viana Braz, Vinicius Cintra Marangoni, Maico Fernando Costa, Roberto Duarte Santana Nascimento, Alexandre Espósito, Matheus Mancuso, pela amizade, apoio e colaboração em todos os momentos desta jornada. À Fernanda Freire, em especial, pelos anos de companheirismo. À Faculdade de Ciências e Letras - FCL/UNESP Assis, que, por meio do Programa de Pós-Graduação em Psicologia, reafirma o seu compromisso com a educação de boa qualidade. A CAPES e FAPESP, processo nº 2016/16289-8, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), cujo apoio financeiro viabilizou esta pesquisa. LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS SUS - Sistema Único de Saúde TCLE - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido UTQ - Unidade de Tratamento de Queimados LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1. Atendimento de urgência em grande queimado e tratamento de grande queimado ................................................................................................................................. 42 Figura 2. Colaboradora 1 - Áreas do corpo atingidas pela queimadura e que ........... 47 Figura 3. Colaboradora 2 - Áreas do corpo atingidas pela queimadura e que correspondem às marcas cicatriciais posteriores. ........................................................... 50 Figura 4. Colaboradora 3 - Áreas do corpo atingidas pela queimadura e que correspondem às marcas cicatriciais posteriores............................................................. 51 Figura 5. Colaboradora 4 - Áreas do corpo atingidas pela queimadura e que correspondem às marcas cicatriciais posteriores............................................................. 53 Figura 6. Colaboradora 5 - Áreas do corpo atingidas pela queimadura e que correspondem às marcas cicatriciais posteriores............................................................. 55 Figura 7. Colaborador 6 - Áreas do corpo atingidas pela queimadura e que correspondem ......................................................................................................................... 58 Figura 8. Colaborador 7 - Áreas do corpo atingidas pela queimadura e que correspondem ......................................................................................................................... 60 Figura 9. Colaboradora 8 - Áreas do corpo atingidas pela queimadura e que correspondem às marcas cicatriciais posteriores............................................................. 62 Figura 10. Colaboradora 9 - Áreas do corpo atingidas pela queimadura e que correspondem ......................................................................................................................... 64 Figura 11. Colaborador 10 - Áreas do corpo atingidas pela queimadura e que correspondem às marcas cicatriciais posteriores............................................................. 65 Figura 12. Colaboradora 11 - Áreas do corpo atingidas pela queimadura e que correspondem às marcas cicatriciais posteriores............................................................. 68 Figura 13. Colaborador 12 - Áreas do corpo atingidas pela queimadura e que correspondem às marcas cicatriciais posteriores............................................................. 71 MACEDO, Abílio Rezende. A experiência da queimadura: implicações subjetivas e socioculturais. 2018. 124f. Dissertação (Mestrado Acadêmico em Psicologia). – Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, 2018. RESUMO Os efeitos da queimadura acarretam sofrimentos de ordem física, psíquica e social. Objetiva-se, com o presente estudo, compreender como a pessoa com sequelas de queimaduras percebe e atribui significados à experiência sofrida, bem como levantar as necessidades e demandas que apresentam com relação à assistência em saúde, após a alta hospitalar. Optou-se por uma pesquisa qualitativa, apoiada na abordagem teórica da Psicologia Social e na contribuição de autores do campo da Saúde Coletiva. Trabalha-se com entrevistas semiestruturadas realizadas individualmente, com 12 participantes, os quais possuíam sequelas de queimaduras e estavam fora do período de internação. Elegeram-se, como foco de análise, os processos de significação e produção de sentido desses sujeitos, por meio de suas narrativas, abordados de acordo com os seguintes núcleos temáticos: circunstâncias de ocorrência de queimaduras, percepções sobre o período de internação, continuidade do tratamento, mudanças de vida após a queimadura, saúde e adoecimento na experiência da queimadura. A ocorrência do acidente térmico se configurou como um trauma físico e psicológico para as pessoas atingidas. Após adquirirem sequelas de queimaduras visíveis, os entrevistados apontaram mudanças no convívio social, implicando problemas relacionados a preconceitos, estigmatizações e discriminações. As pessoas revelaram acentuada dificuldade em continuar seus tratamentos de saúde. No que tange à atenção às pessoas com sequelas de queimaduras, há uma grande fragmentação entre os serviços e pouca comunicação entre as redes, dificultando o acesso dos sujeitos às redes de cuidado que necessitam. É importante que seja dada maior atenção aos problemas de saúde evidenciados por essas pessoas, após o período de internação (fase aguda), e é necessária a oferta de um tratamento integral, considerando-se todos os aspectos envolvidos no processo de adoecimento. Palavras-chave: Queimaduras – Complicações e sequelas. Queimaduras – Tratamento. Estigma (Psicologia social). Serviços de saúde. Saúde pública. MACEDO, Abílio Rezende. The burning experience: subjective and sociocultural implications. 2018. 124f. Dissertation (Master’s degree in Psychology). São Paulo State University (UNESP), School of Sciences, Humanities and Languages, Assis, 2018. ABSTRACT The effects of burns cause sufferings of physical, emotional and social orders. It is expected with this study to understand how the one with burn consequences realizes and attributes meanings to the experience suffered and which necessities and demands are made related to the health assistance after the hospital discharge. It is a qualitative research, supported in the Social Psychology theoretical approach and in the contribution of authors in the field of Collective Health. It was worked with semi- structured interviews, conducted individually with 12 participants, which had burn consequences and were off the internment period. It was elected as the focus of the analysis the processes of signification and meaning production of these individuals through their narratives, approached according to the following thematic axes: circumstances of burning occurrences, perceptions about the period of internment, continuity of the treatment, changing of life after the burn, health and sickening in the experience of the burn. The occurrence of the thermal accident configured itself as a physical and psychological trauma to the victims. After acquiring aftereffects of visible burns, the interviewed pointed changes in the social living, implying in problems related to prejudice, stigmatize and discrimination. People presented an accented difficulty in continuing their health treatments. As it comes to the attention to people with burn aftereffects, there is a big fragmentation between the services and a poor communication between the networks, making the access of people to the healthcare network they need difficult. It is important to be given bigger attention to health problems presented by these people after the internment period (acute phase) and it is necessary the offer of a full-time treatment, considering all the aspects implied in the process of sickening. Keywords: Burns and Scalds – Complications and Sequelae. Burns – Treatment. Stigma (Social Psychology). Health Services. Public Health. SUMÁRIO APRESENTAÇÃO ..................................................................................................... 11 1. INTRODUÇÃO ................................................................................................... 13 1.1. As queimaduras como foco de pesquisa ...................................................... 15 1.2. Sobre o processo de internação .................................................................. 18 1.3. Implicações sociais e subjetivas .................................................................. 20 1.4. Medidas políticas e assistenciais brasileiras no campo da queimadura ...... 20 2. OBJETIVOS ....................................................................................................... 25 2.1. Objetivo geral ............................................................................................... 25 2.2. Objetivos específicos ................................................................................... 25 3. REFERENCIAL TEÓRICO ................................................................................. 26 3.1. Tratamento das queimaduras ...................................................................... 26 3.2. Lesão, formação de cicatrizes e sequelas de queimadura ........................... 27 3.3. O tratamento integral da pessoa com sequelas de queimadura .................. 29 3.4. Processos de saúde-doença ........................................................................ 33 4. PERCURSO METODOLÓGICO ........................................................................ 38 4.1. Procedimento para coleta de dados ............................................................. 40 4.2. Aspectos éticos ............................................................................................ 41 4.3. Local da realização das entrevistas ............................................................. 41 4.4. Participantes da pesquisa ............................................................................ 42 4.5. Estratégias de campo e roteiro de entrevista ............................................... 43 4.6. Interpretação do material coletado ............................................................... 44 5. APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS RESULTADOS ........................................ 45 5.1. Apresentação dos participantes da pesquisa ............................................... 45 5.2. Resultados e discussão ............................................................................... 72 5.2.1. As circunstâncias de ocorrência das queimaduras ................................ 74 5.2.2. Percepções sobre o processo de internação ......................................... 79 5.2.3. A continuidade do tratamento ................................................................ 82 5.2.4. Mudanças de vida após a queimadura .................................................. 89 5.2.5. Saúde e o adoecimento na experiência da queimadura ........................ 97 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 101 REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 109 APÊNDICES ............................................................................................................ 119 ANEXOS ................................................................................................................. 123 11 APRESENTAÇÃO O campo de estudo e de atuação em queimaduras se mostra complexo e desafiador. A meu ver, necessita de contribuições e transformações, no âmbito acadêmico e nas práticas de saúde dentro das instituições brasileiras. Além do mais, acredito que as queimaduras trazem implicações muito severas na vida das pessoas atingidas. São questões que, como psicólogo e pesquisador, me instigaram uma forte vontade de aprofundamento no tema. Também devo acrescentar que, a partir desta proposta de trabalho, pude conjecturar a possibilidade de que os resultados obtidos tivessem um retorno para a sociedade e que, de alguma forma, as pessoas que convivem com os problemas devido às sequelas de queimaduras fossem beneficiadas. O presente trabalho acompanhou um movimento crescente, porém, ainda tímido, da inserção do profissional da Psicologia nas práticas de saúde voltadas à pessoa com sequelas de queimadura e também na própria produção acadêmica sobre o tema, composta predominantemente por contribuições da Medicina. Partindo da perspectiva da Psicologia Social, busquei abarcar o máximo possível de informações sobre a temática, assim como a compreensão do desenvolvimento histórico do tratamento das queimaduras, no Brasil. Existem poucas publicações que abordaram esse desenvolvimento, contudo, compreendo que é imprescindível, para todos aqueles que buscam iniciar seus estudos sobre o tema, a leitura das produções de Ary do Carmo Russo (1920 - 1991), médico e Doutor em Medicina. Ele foi o responsável pela implantação do primeiro Serviço de Queimados no Hospital das Clínicas da USP, em 1948. Também indico a leitura das produções de Lidia Aparecida Rossi, Professora Doutora Titular da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo (EERP, USP). Nesta Dissertação busquei responder às questões que apresentei inicialmente, no projeto de pesquisa, todavia, vale ressaltar que meu envolvimento com a temática foi além da minha proposta de trabalho acadêmico. Com minha inserção na pesquisa de campo, tive a oportunidade de conhecer e discutir o tema com trabalhadores da saúde, cujas contribuições influenciaram significativamente minha visão sobre os desafios colocados pelas queimaduras, nos contextos de trabalho, e cooperaram para minha compreensão sobre a postura ética frente a esses desafios. Foi de grande valia o contato com profissionais membros da Sociedade Brasileira de Queimaduras, 12 Núcleo de Proteção aos Queimados, Associação de Ajuda às Vítimas de Queimaduras, Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e Santa Casa de Misericórdia de Guaratinguetá. Em consonância com o trabalho, tive a oportunidade de participar como Psicólogo voluntário do primeiro acampamento voltado a crianças e adolescentes sobreviventes de queimaduras, no Brasil, realizado em junho de 2017. Também aceitei com muita satisfação o convite de participação no Conselho Científico da Associação Nacional dos Amigos e Vítimas de Queimaduras (ANAVIQ), a qual teve seu início durante o período da pesquisa de Mestrado. O contato com parte dos entrevistados permaneceu, mesmo após a realização das entrevistas, tendo muita importância para o desenvolvimento do estudo. Durante o processo de escrita, busquei ser cuidadoso com os termos utilizados, a fim de que não se tornassem ofensivos às pessoas que possuem sequelas de queimaduras. Para diminuir a possibilidade de isso ocorrer, propus para as pessoas mais interessadas na pesquisa, as quais têm sequelas de queimaduras, que lessem partes do trabalho e apresentassem críticas e sugestões a respeito do conteúdo. Quando em contato com as pessoas, procurei abordar os assuntos de uma forma ampliada, não direcionei o trabalho apenas para o que pode ser pensado como patológico ou um infortúnio em suas vidas, ensejando uma certa fluidez, para que também fosse possível captar aquilo que lhes trazia prazer e vibração na vida. 13 1. INTRODUÇÃO O atendimento às vítimas de queimaduras possui um razoável desenvolvimento, na área da Medicina, e um razoável suporte hospitalar garantido por políticas públicas, na área da saúde, porém, há uma considerável negligência quanto à atenção às vítimas e serviços de acompanhamento das sequelas das lesões térmicas. No máximo, o que se encontra são cirurgias reparadoras, nos casos de sequelas graves que comprometem estruturas e funções corporais. São poucas as ofertas de serviços de atenção em outras áreas do conhecimento e especialidades tão importantes quanto a da Medicina, nesses casos, tal como a da Psicologia. As sequelas de acidentes térmicos acarretam sérios problemas relacionados a preconceitos, estigmatizações e discriminações, produzindo sofrimentos psíquicos tão ou mais intensos, complexos e desafiadores do que as dores e lesões que acometem o corpo físico. Portanto, o presente trabalho focalizou um problema deveras relevante para a psicologia enquanto ciência e enquanto serviço e atenção especializados no campo da saúde. Certos eventos históricos mobilizaram a sociedade civil e impulsionaram mudanças do poder público, em relação ao desenvolvimento de medidas que visam à prevenção e assistência de circunstâncias envolvendo queimaduras. Essas circunstâncias vão desde ocorrências domésticas, representativas da maior parcela de registros envolvendo queimaduras, no Brasil (BRASIL, 2012), até mesmo às tragédias de grande repercussão na mídia, como a mais recente, o incêndio ocorrido na Boate Kiss (2013),1 na cidade de Santa Maria, Rio Grande do Sul. Ambas as circunstâncias, assim como tantas outras situações envolvendo lesões térmicas, podem levar sujeitos que passam pela experiência da queimadura à possibilidade de sofrerem com sequelas funcionais, estéticas e alterações psicossociais (WERNECK; REICHENHEIM; CORPEGGIANI, 1995; VALE, 2005; FERREIRA; LUIS, 2002). Observamos, por conseguinte, que os serviços voltados a esse campo devem ser problematizados, juntamente com o impacto significativo que as queimaduras têm na Saúde Pública (BRASIL, 2012). É escasso o conhecimento sobre os aspectos subjetivos e socioculturais que envolvem as sequelas decorrentes de queimadura, questões que nos parecem 1 Para maiores informações sobre o evento, sugerimos a leitura do livro Todo Dia A Mesma Noite, escrito por Daniela Arbex. 14 fundamentais para possíveis problematizações dentro do campo da Psicologia Social e da Saúde Coletiva, corroborando as premissas de integração dos serviços de saúde, investimento em recursos e capacitação de profissionais, parcerias intramunicipais e interestaduais e, inclusive, o controle e a participação sociais efetivos das políticas e ações, como preconizado pela estratégia de Humanização no SUS (HumanizaSUS).2 Com o objetivo de conhecer a literatura sobre o objeto de estudo, efetuamos pesquisas em bases de dados nacionais, tais como Scielo, BVS - Psicologia Brasil, Index Psi. Foram poucos os trabalhos identificados, com potencial para enriquecer a presente proposta. Dessa maneira, não encontramos materiais de referência que tratassem especificamente do problema apresentado em nosso objeto de estudo. Existem textos referentes ao período de internação hospitalar e assistência, na área da queimadura, predominando aqueles realizados por pesquisadores da Enfermagem e Medicina, dentre livros, dissertações e artigos. Destes, podemos ressaltar os trabalhos pioneiros realizados no Brasil pelo cirurgião plástico Ary do Carmo Russo (RUSSO, 1945, 1952, 1953, 1967). Também se destacam os estudos iniciados na Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto (USP), trazendo a temática da assistência aos queimados e já sublinhando aspectos psicossociais, com Azevedo (1987), sendo intensificados nos anos noventa, por Rossi (1992), Dalri (1993), Scherer (1995) e Moura (1996). Mais recentemente, enfatizam-se, nessa perspectiva, incluindo temas relativos ao estigma, cuidado, aspectos psicossociais e socioculturais da experiência da queimadura no Brasil, os estudos de Barbieri e Gobbi (2007), Carvalho (2006, 2011), Ferreira (2006), Arruda (2009), Sousa (2011), Arrunátegui (2011), Almeida (2012), Assis (2012), Echevarria-Guanilo et al (2012), Botelho (2012), Pedro (2013), Coelho (2013), Cantarelli (2014), Souza (2015), Pan (2015), assim como os demais autores que focalizamos, na Dissertação. O presente estudo objetivou compreender como a pessoa com sequelas de queimaduras percebe e atribui significados à experiência sofrida, bem como levantar as necessidades e demandas que apresentam, com relação à assistência em saúde, após a alta hospitalar. A pesquisa teve como objetivos: I) conhecer a percepção da vítima de queimadura das sequelas das lesões térmicas e as relações que estabelecem com aspectos psicossociais e socioculturais; II) compreender as necessidades e demandas de saúde da pessoa com sequelas de queimaduras, após 2 O HumanizaSUS foi criado em 2003 e tem como intenção concretizar os princípios do SUS, no cotidiano dos serviços. 15 a alta hospitalar, e III) gerar subsídios que possam contribuir com a formulação de propostas assistenciais às pessoas com sequela de queimaduras. Na primeira parte do trabalho, além da introdução, buscamos contextualizar e delinear algumas discussões que integram o tema. Apresentamos a compreensão sobre as queimaduras como foco de pesquisa, o processo de internação, as implicações sociais e subjetivas e as medidas políticas e assistenciais brasileiras, no campo da queimadura. Na segunda parte, expomos o objetivo geral e os objetivos específicos do estudo. Seguidamente, encontra-se o estudo teórico e contextual sobre as questões tratadas. Na quarta parte, explicitamos a abordagem metodológica utilizada ao longo do estudo. Na quinta parte do trabalho, consta uma breve apresentação dos participantes da pesquisa e a análise dos resultados. Na parte final, arrolamos as considerações finais da Dissertação. Por meio deste trabalho, buscamos oferecer subsídios para a reformulação das políticas públicas vigentes acerca da população, assim como colaborar com a formação de trabalhadores da Saúde, ampliação da Rede de Saúde e Assistência aos usuários. Também pretendemos contribuir com o desenvolvimento de competências técnicas, éticas e relacionais voltadas para a assistência às pessoas que passaram pela experiência da queimadura e possuem sequelas. 1.1. As queimaduras como foco de pesquisa As queimaduras são compreendidas como lesões de tecidos orgânicos provenientes de trauma de fonte térmica, resultante do contato ou exposição a superfícies e líquidos quentes, chamas, substâncias químicas, radiação, eletricidade, fricção ou atrito (GOMES; SERRA; PELLON, 1995). A lesão é avaliada de acordo com o agente causador da queimadura (físico, químico ou biológico), localização corporal, profundidade da lesão, classificando-a em 1°, 2° e 3° grau, e extensão de lesão corporal. No que diz respeito à extensão da área lesionada, é atribuído um escore quantitativo definido entre pequeno, médio e grande queimado (LIMA-JÚNIOR et al., 2008). Na Classificação Internacional de Doenças (CID 10)3, a queimadura encontra- se na categoria de causas externas, englobando circunstâncias acidentais e de violência (OMS, 2000). É concebida mundialmente como um dos mais sérios 3 Segundo a Organização Mundial da Saúde (2000), exposições a corrente elétrica, a fumaça/fogo/chamas, a substância quente ou fonte de calor (capítulos XX e XIX). 16 traumatismos pelo qual o ser humano pode passar, responsável por uma estimativa de 265 mil mortes por ano e aumentando o número de pessoas com deficiência, especialmente em países de média e baixa renda (OMS, 2014). O maior índice de mortalidade por queimaduras ocorre em países de baixa e média renda (PECK, 2011). Nos países de alta renda, observa-se que as classes socialmente marginalizadas são as mais atingidas. No Brasil, as queimaduras estão entre as principais causas externas de mortes registradas, sendo ultrapassadas apenas pelos acidentes de transporte e homicídios (VALE, 2005). Dentre os casos notificados no País envolvendo queimaduras, a parte mais representativa ocorre na própria residência dos indivíduos (BRASIL, 2012). Praticamente metade dessas ocorrências são protagonizadas por crianças (ROSSI et al., 2003), predominantemente do sexo masculino (MARTINS; ANDRADE, 2007; COSTA et al., 1999). O álcool etílico líquido estava presente como componente da segunda maior causa de queimaduras entre crianças e é responsável pela maior parcela de queimaduras entre adolescentes (COSTA et al., 1999; SERRA et al., 2012; ANDRETTA et al., 2013). Em um estudo realizado no Hospital João XXIII (Belo Horizonte, Minas Gerais), no período de fevereiro de 2009 a julho de 2010, foi verificada maior abrangência de queimaduras em pacientes do sexo masculino (62,5%). Com relação ao número total de pacientes, pode-se notar que 79% das circunstâncias foram acidentais, 12% de autoextermínio e 9% de agressão. A escaldadura4 foi o principal agente causador de queimadura em crianças com menos de 4 anos, enquanto o álcool foi o principal agente em pacientes com mais de 5 anos (LEÃO et al., 2011). Em estudo feito no Hospital de Urgências de Sergipe (Aracaju, Sergipe), no período de janeiro de 2011 a junho de 2016, foi observada maior abrangência de queimaduras em pacientes do sexo masculino (63,02%). Com respeito à faixa etária, houve uma maior prevalência de internação de crianças entre 0 a 12 anos (51,15%), seguida pelo grupo de 19 a 59 anos (40,34%) e pelo grupo de adolescentes, 13 a 19 anos (5,46%). De acordo com o estudo, o grupo de idosos foi o menos expressivo. Quanto ao agente causador, houve prevalência da escaldadura (49,47%), seguida por chama direta (30,88%) e superfície aquecida (5,99%). Houve predomínio de lesões de segundo grau (79,41%), seguido por pacientes que apresentaram queimaduras de 4 Queimadura decorrente de líquidos ferventes ou jatos de vapor. 17 segundo e terceiro graus concomitantes (11,34%) e queimaduras de terceiro grau (4,73%) (SANTOS JÚNIOR et al., 2016). No Hospital das Clínicas (Ribeirão Preto, São Paulo), uma pesquisa mostrou que, das mulheres que sofreram lesão térmica, 67% dos casos ocorreram em ambiente doméstico, no entanto, chama-nos a atenção que os 33% restantes corresponderam a tentativas de suicídio,5 por meio de agente causador de queimadura. Em todos esses casos, houve utilização de álcool etílico, e as áreas corporais mais afetadas foram o tórax anterior e superior, membros superiores, cabeça e pescoço (ROSSI et al., 1998). Um dos fatores poucos explorados nos estudos brasileiros relaciona-se a queimaduras derivadas de violência doméstica. São questões preocupantes e que possuem pouca visibilidade. Arruda (2009), em sua Dissertação de Mestrado intitulada Inscrita no corpo, gravada na carne: experiência de ser queimada em mulheres nordestinas, evidencia a experiência da queimadura na esfera da violência de gênero e como isso reflete no espaço psicossocial das mulheres vitimadas. Tomemos como referência, para pensarmos esse tipo de violência contra a mulher, dados referentes à Índia, onde observamos a violência responsável por 70% dos casos de queimadura atinentes às mulheres (BARRETO et al., 2008). São ações de violência que almejam a deformação do corpo da vítima6, por isso, o principal alvo é a face. Esse tipo de lesionamento na face, supostamente, poderá levar o sujeito a ter modificações em relação a sua identidade, provocando, inclusive, possíveis sentimentos negativos com respeito ao próprio corpo, que passam a presentificar seu cotidiano (MOSTARDEIRO; PEDRO, 2010). No que tange às sequelas funcionais e motoras derivadas da queimadura, pode-se inferir que estão diretamente associadas ao tratamento da fase aguda. Quanto menos recursos disponíveis e mais demorado o tratamento, nessa fase, maiores são as chances de a pessoa formar cicatrizes hipertróficas7 (VANA, 2016). 5 Existem estudos que apresentam importantes informações sobre tentativas de suicídio, por meio de agente causador de queimadura. Sugerimos, como leitura: ASSIS (2012); FERREIRA; LUIS (2002); PACHECO et al. (2012); MACIEL; CASTRO; LAWRENZ (2014). 6 A partir dessas questões, foi produzido um trabalho de curta-metragem chamado Saving Face (2012), com direção da paquistanesa Sharmeen Obaid-Chinov. São abordadas, de forma muito rica, relações de violência de gênero presentes em determinadas culturas do Oriente, a que parcela significativa de mulheres estão submetidas. O trauma térmico, nessas circunstâncias tem como finalidade a deformação dos corpos das vítimas. Para mais detalhes: Saving Face. Direção: Sharmeen Obaid- Chinov; Daniel Junge. HBO Films, 2012. 1 DVD (40 min). 7 Um tipo de cicatriz saliente, que aparece após a cura do ferimento. 18 Em relação à oferta de estrutura de referência a casos envolvendo lesão térmica grave, existem cerca de quarenta e cinco Unidades de Tratamentos de Queimados (UTQ) habilitadas pelo Ministério da Saúde. A maior parte está localizada na Região Sudeste do País, porém, nove Estados brasileiros não dispõem de nenhum centro de referência para tratamento de queimaduras (PESCUMA JÚNIOR et al., 2013). As Unidades de Tratamento de Queimados (UTQs) ou Centros de Tratamentos de Queimados (CTQs) são unidades compostas por equipe multidisciplinar, cuja finalidade é o tratamento especializado de pacientes com traumas de queimaduras. Acredita-se que essas unidades especializadas tenham surgido primeiramente nos Estados Unidos da América e Inglaterra, em meados dos anos de 1950 (AL- MOUSAWI et al., 2009). O Brasil não possui estudos estatísticos que demonstrem, de maneira efetiva, a abrangência de ocorrências de queimadura, em âmbito nacional. Cantarelli (2014) alude a essa escassez de informações, as quais poderiam servir como norteadoras de ações públicas, como algo representativo do descaso em relação à saúde da população. 1.2. Sobre o processo de internação O momento culminante da queimadura e internação é traumático e, inclusive, revela a potencialidade de mudar significativamente a vida dos sujeitos que tiveram seus corpos queimados (ALMEIDA, 2012). De acordo com Almeida (2012), no período de internação, a pessoa é repentinamente colocada em uma situação adversa8, onde sua movimentação está prejudicada e, sobretudo, sua intimidade fica exposta a pessoas desconhecidas. Carlucci et al. (2007) apontam, no período de internação, estressores psicológicos que decorrem de circunstâncias como o afastamento do trabalho, mudanças corporais, separação da família, dependência de cuidados, perda de autonomia e despersonalização. A literatura internacional disponibiliza importantes conhecimentos sobre o processo de internação de pacientes com queimadura, englobando tanto a recuperação física quanto a psicológica. Segundo Adcock et al. (1998 apud 8 Almeida (2012) destaca procedimentos como banhos, curativos e operações, que, somados à dor das feridas, levam a estados de ansiedade, angústia e tristeza profunda. 19 CARVALHO, 2006, p. 4), define-se como fase aguda ou ressuscitação o período das primeiras 72 horas após o evento que causou a queimadura, caracterizando-se pelo período de estabilização e ressuscitação do usuário. Nesse momento, o usuário supostamente se encontra inseguro, ansioso e com sensações de medo. Em um segundo momento, o usuário passará pela fase subaguda e, sendo submetido a procedimentos cirúrgicos e fisioterápicos intensos, o sujeito apresenta expectativas com relação ao tratamento e são perceptíveis estados de depressão, tristeza e ansiedade generalizada. O terceiro e último momento corresponde ao estágio de reabilitação ou fase crônica. É período próximo à alta hospitalar, quando o sujeito já não depende de cuidados emergenciais e sairá das intermediações hospitalares, ocupando-se de se reintegrar socialmente; nesse tempo, são verificáveis a ansiedade e a angústia diante das novas circunstâncias originadas, inclusive as mudanças corporais. No período de internação, o paciente queimado é avaliado, e o tipo de procedimento a ser adotado dependerá da gravidade da lesão. O tratamento das lesões exige ações individualizadas para cada área do corpo afetada. Dentre os procedimentos mais comuns aplicados ao paciente queimado, podemos citar a balneoterapia, antibioticoterapia, analgesia, desbridamento, aplicação de enxerto e cirurgia plástica (FERNANDES et al., 2012). Depois da alta hospitalar, o tratamento que pode amenizar as sequelas funcionais e estéticas das queimaduras envolve o acompanhamento ambulatorial com equipe multidisciplinar, com frequentes readmissões para intervenções cirúrgicas reparadoras (FERREIRA; D’ASSUMPÇÃO, 2006). As circunstâncias decorrentes do trauma térmico se prolongam para além do período de internação hospitalar e exigem, desses sujeitos, reposicionamentos subjetivos frente às novas circunstâncias em suas vidas (CANGUILHEM, 1943/2015). De acordo com Carlucci et al. (2007), é recorrente, por parte desses sujeitos, a percepção da extensão do problema e, consequentemente, surgem questões sobre como ficarão as cicatrizes, sobre o comprometimento do corpo e de suas funções. 20 1.3. Implicações sociais e subjetivas Estudos apontam que cicatrizes decorrentes de queimaduras em partes de maior visibilidade no corpo, principalmente a face, podem trazer, como consequências, dificuldades de socialização (STUBBS et al., 2011; MOSTARDEIRO; PEDRO, 2010). Segundo Costa et al. (2008), sujeitos possuidores de sequelas de queimadura, devido aos incômodos gerados pelas cicatrizes, tendem a tentar escondê-las, evitando exposições. Há casos de diminuição da comunicação no espaço social e, em certas situações, não raras, observa-se que essas pessoas passam a evitar o convívio social fora de casa. Tais questões podem afetar a saúde psíquica do sujeito (ROSSI et al., 2005; WALLIS et al., 2006; MOCK, 2008; ASSIS, 2012; CARLUCCI et al., 2007; ALMEIDA, 2012; COSTA et al., 2008, 2010; DUARTE et al., 2012). Em estudo com pessoas que passaram por trauma térmico, na infância e juventude (PHILLIPS; FUSSELL; RUMSEY, 2007), foi verificado que um dos principais incômodos, especialmente em espaços públicos, relacionava-se a olhares e provocações destinados aos sujeitos que exibiam sequelas decorrentes de queimadura. Devido às indagações de curiosos, as cicatrizes decorrentes de queimaduras são colocadas em foco, propiciando situações de constrangimento a esses sujeitos (DIAS et al., 2008; CARLUCCI et al., 2007; COSTA et al., 2008). Compreendemos, pois, que, ao tratarmos do assunto, estamos concebendo uma problemática que vai além das dimensões físico-biológicas. A experiência da queimadura pode englobar sequelas físicas e alterações psicossociais que estão imbricadas ao contexto sociocultural. 1.4. Medidas políticas e assistenciais brasileiras no campo da queimadura O processo de desenvolvimento da assistência às pessoas que passaram pela experiência da queimadura, no Brasil, pode ser compreendido considerando-se determinados eventos históricos, os quais concernem à queimadura e que tiveram grandes repercussões em todo o País. Tais eventos impulsionaram estudos científicos e alterações, no âmbito político e legislativo, sobre questões referentes à prevenção e assistência, no campo da queimadura. Dentre os marcos trágicos no País, podemos citar o incêndio no “Gran Circus Norte-Americano”, ocorrido em 17 de dezembro de 1961, no Rio de Janeiro, o qual foi 21 considerado o incêndio com maior número de vítimas, no Brasil, com mais de 300 mortes (O FLUMINENSE, 1961). Nesse evento, foram verificadas (KNAUSS, 2007) a ausência de fiscalização da prevenção e combate ao fogo, a insuficiência de infraestrutura hospitalar na cidade de Niterói e a precariedade das condições para atendimento às vítimas de queimadura, já suscitando problematizações sobre medidas de prevenção de acidentes e serviços voltados a esse tipo de ocorrência, no País (SILVA, 1995). Posteriormente ao incêndio no “Gran Circus Norte-Americano”, aconteceram outros grandes incêndios que incitaram modificações no âmbito da prevenção de incidentes desse tipo no País. No Estado de São Paulo9, podemos citar o incêndio no Edifício Andraus, em 24 de fevereiro de 1972, e no Edifício Joelma, em 1° de fevereiro de 1974. Ambos, ocasionando vítimas fatais e um número acentuado de feridos, fizeram com que emergencialmente fossem promovidas discussões sobre segurança e preparo em relação à prevenção e combate a incêndios. Nos anos 70, a área de segurança contra incêndio ganhou impulso, no País (ONO, 2007), sobretudo no Estado de São Paulo, cuja capital foi cenário de ocorrência de ambas as tragédias. Nesse contexto, em 1975, deu-se a promulgação da Lei Municipal 8.266/75, o Código de Edificações do Município de São Paulo10, que foi o primeiro código de obras do País que buscava aprimorar medidas de segurança destinadas a usuários em circunstâncias de emergência. Concomitantemente, em 1976, houve a criação do Laboratório de Fogo no Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) do Estado de São Paulo, com pretensões de compilar e sistematizar informações sobre segurança contra incêndio. Nesse período, por meio dos estudos de Teodoro Rosso, na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), apareceu o trabalho intitulado Incêndios e Arquitetura (1975).11 Esse material serviu como um dos principais referenciais para futuros estudos da temática, 9 Em outras regiões do Brasil e no próprio Estado de São Paulo, podemos citar o incêndio no edifício onde funcionavam as Lojas Renner (27 de abril de 1976), em Porto Alegre – RS; incêndio em Cubatão – SP, em 25 de fevereiro de 1984, o qual vitimou e desabrigou milhares de pessoas da região; incêndio no Edifício Andorinha, no Rio de Janeiro, em 17 de fevereiro de 1986; incêndio no Edifício Grande Avenida – SP, em 14 de fevereiro de 1981; incêndio na Creche Uruguaiana – RS; incêndio na casa de shows Canecão Mineiro, em 24 de novembro de 2001, em Belo Horizonte – MG; e o mais recente incêndio de grandes proporções e visibilidade, na mídia, o incêndio na Boate Kiss, ocorrido em 27 de janeiro de 2013, na cidade de Santa Maria – RS. 10 Para mais detalhes sobre a Lei Municipal 8.266/75, ligada a incêndios em edificações, atentar para o capítulo II: “Circulação e Segurança” e o capítulo VII: “Instalações de Emergência e Proteção Contra Fogo”. Disponível em: < http://cmspbdoc.inf.br/iah/fulltext/leis/L8266.pdf >. Acesso em: 06 fev. 2018. 11 ROSSO, Teodoro. Incêndios e arquitetura. São Paulo: FAUUSP, 1975. 22 assim como os trabalhos de especialidade médica, publicados anteriormente por Ary do Carmo Russo, como o “Sistematização do tratamento local das queimaduras” (1945), sendo a base principal para a primeira norma de atendimento no Serviço do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (MARIANI, 1995). Pensando em episódios que podem culminar na queimadura e na própria experiência da queimadura, destaca-se a importância da comunicação entre diferentes áreas científicas e da articulação de estratégias que tornem essas questões relevantes, já que os efeitos desse processo estão diretamente ligados ao que compreendemos como diminuição de riscos e acidentes, aprimoramento dos serviços da Saúde Pública e Políticas de Estado. Os eventos citados, assim como tantos outros, tornaram possível a análise do campo de assistência às pessoas que passam pela experiência da queimadura, no País, processo iniciado e registrado oficialmente em 1948, no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, com a criação do Serviço de Queimaduras (MARIANI, 1995). Recentemente, conforme mencionado, ocorreu o incêndio na Boate Kiss, em 27 de janeiro de 2013, na cidade de Santa Maria – RS, com óbito de 242 pessoas e mais de 600 feridos. Tanto esse evento de grande proporção quanto os de circunstância doméstica colocaram a mesma indagação: que tipo de assistência é ofertada, na Saúde Pública, para além do período de internação, a esses sujeitos que passaram pela experiência da queimadura? Quais são as repercussões psicossociais para aqueles que possuem sequelas decorrentes de queimadura? Quais ofertas na área da Saúde, incluindo os serviços de Psicologia, poderiam contribuir para as questões desses sujeitos? Traçando um panorama sobre a eficácia das ofertas de saúde na área de queimaduras no Brasil, o cirurgião plástico e Presidente da Sociedade Brasileira de Queimadura, Luiz Philipe Molina Vana, informa: Quantas UTQs têm em seu quadro terapeuta ocupacional, fisioterapeuta, psicóloga continuamente? Quantas UTQs têm a sua disposição uma equipe multidisciplinar completa? Quantos pacientes têm malha compressiva a sua disposição? E tratamentos mais recentes como laser? Infelizmente, não temos este número, mas certamente são poucas. Recursos que todos nós desejamos, mas poucos dispõem em nosso dia-a-dia. Acabamos sendo obrigados a usar a famosa criatividade do povo brasileiro para contornar tantas carências. Obviamente, pagamos um preço elevado por isso. (VANA, 2016, p. 234). 23 Em termos de políticas voltadas à prevenção de queimaduras, sob caráter preventivo, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) interditou a livre comercialização de álcool líquido em altas concentrações, visando a reduzir o número de eventos com queimadura, principalmente com crianças em ambientes domésticos (ANVISA, 2002). Também foi instituído o Dia Nacional de Luta Contra Queimadura, em todo o território nacional, no dia 6 de junho de cada ano. Recentemente, foi publicada a Lei nº 13.239, de 30 de dezembro de 2015, a qual dispõe sobre a oferta e a realização, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), de cirurgia plástica reparadora de sequelas de lesões causadas por atos de violência contra a mulher, inclusive aquelas que decorrem de queimadura (BRASIL, 2016). Em nível nacional, antes do ano 2000, não havia política alguma para a assistência especializada à pessoa acometida por trauma térmico. No período de atendimento hospitalar emergencial, eram tratadas em hospitais comuns, ou seja, sem suporte suficiente para lidar com a especificidade dos casos. Tendo em vista essas questões, a Secretaria de Assistência à Saúde, com a Portaria GM/MS nº 1273, de 21 de novembro 2000, e a Portaria GM/MS nº 1274, de 22 de novembro de 2000 (BRASIL, 2000), implementou, no SUS, Redes Estaduais de Assistência a Queimados, estabelecendo procedimentos hospitalares e ambulatoriais específicos para essa área, formados pela comunicação e encaminhamento entre hospitais gerais e Centros de Referência em Assistência a Queimados. Grande parte dessas mudanças se deu pela mediação de organizações da sociedade civil, entre as quais podemos citar a Sociedade Brasileira de Queimaduras (SBQ), o Instituto de Apoio ao Queimado (IAQ), a Associação dos Portadores de Sequelas por Queimaduras (APOSEQ) e o Núcleo de Proteção aos Queimados (NPQ). De acordo com Cantarelli (2014), os recursos ofertados pela Saúde Pública brasileira não contemplam, de forma efetiva, a experiência da queimadura em seus múltiplos aspectos. Evidencia-se a necessidade da disponibilização de serviço multidisciplinar profissional a esses sujeitos (ALMEIDA, 2012; FERREIRA; LUIS, 2002; CARLUCCI et al., 2007), no sentido de acompanhar suas demandas, inclusive dando ênfase aos aspectos psíquicos, por meio da instrumentalização e acompanhamento de profissionais da psicologia (SOUSA, 2011; BLAKENEY et al., 2008), no período posterior à internação hospitalar. No entanto, diferentemente da 24 cobertura oferecida a essa população, em âmbito nacional, o Estado de Santa Catarina aprovou um projeto de lei inédito no País (Lei nº 16.285/2013), que assegura às pessoas com sequelas decorrentes de queimadura o direito de receberem assistência integral para promover sua ampla reinserção social, considerando aspectos de origem física e psicossocial (SANTA CATARINA, 2013). 25 2. OBJETIVOS 2.1. Objetivo geral Compreender como a pessoa com sequelas de queimaduras percebe e atribui significados à experiência sofrida, bem como levantar as necessidades e demandas que apresentam com relação à assistência em saúde, após a alta hospitalar. 2.2. Objetivos específicos I- Conhecer a percepção da vítima de queimadura das sequelas das lesões térmicas e as relações que estabelecem com aspectos psicossociais e socioculturais; II- Compreender as necessidades e as demandas de saúde da pessoa com sequelas de queimaduras, após a alta hospitalar; III- Gerar subsídios que possam contribuir com a formulação de propostas assistenciais às pessoas com sequelas de queimaduras. 26 3. REFERENCIAL TEÓRICO 3.1. Tratamento das queimaduras Antes da explicitação dos principais referenciais teóricos que deram sustentação às discussões do presente trabalho, é necessária a conceituação de alguns termos utilizados, comumente empregados pela especialidade médica. Também mostramos como nos apropriamos dessas terminologias e como as usamos, ao longo do estudo. Primeiramente, é necessário fazer uma diferenciação entre tratamento das queimaduras e tratamento da pessoa que sofreu queimaduras. Consideramos que, ao tratar das queimaduras, também estamos tratando do sujeito que se queimou, contudo, além dos cuidados biomédicos sobre esse corpo lesionado, existe um sujeito e uma demanda de cuidado que vai além da dimensão biológica do organismo. Existem registros do tratamento das feridas de queimadura desde o homem de Neandertal, há 400 mil anos (HERNDON, 2012). Os eventos envolvendo lesões térmicas acompanharam a humanidade desde seu início e aumentaram, progressivamente, com o desenvolvimento e manipulação dos agentes térmicos. Em nossa contemporaneidade, com a expansão urbana, temos acesso cada vez maior a instrumentos cujo funcionamento ou finalidade envolvem eletricidade, agentes químicos ou combustão. Estes alteraram drasticamente a vida dos sujeitos, seja na vida privada, seja na esfera coletiva, favorecendo, nos mais variados modos, as ocorrências de queimaduras. Pensar no tratamento das queimaduras consiste em conceber seu desenvolvimento, ao longo dos períodos históricos. Parte desse desenvolvimento aconteceu durante as grandes guerras, circunstâncias com alto número de feridos, as quais demandaram o aperfeiçoamento dos cuidados e tratamento, principalmente de ferimentos de queimaduras. Podemos compreender que o tratamento das queimaduras, mais concretamente, tem seu desenvolvimento conjuntamente ao da cirurgia plástica, no Ocidente. Até a década de 1930, as lesões térmicas eram tratadas de forma expectante. Baseando-se em Herndon (2012), Vana (2017, p. 4) salienta que [...] as escaras eram observadas até a sua eliminação espontânea; as feridas curavam a partir de anexos cutâneos, por contração da ferida e cicatrização por segunda intenção. A sobrevida era baixa e a incidência de sequelas era alta. A resposta sistêmica às grandes queimaduras (mais de 20% de área corpórea queimada) era pouco compreendida e grande porcentagem dos pacientes morria nas primeiras 24 a 48 horas pós trauma; muitos dos que 27 sobreviviam por mais tempo, morriam no período de 10 dias pós-queimadura em decorrência de infecções. A partir de 1940 e 1950, inúmeros estudos aprofundaram substancialmente os conhecimentos sobre o tratamento das queimaduras. O avanço dos tratamentos cirúrgicos, a melhor compreensão da fisiopatologia, a melhoria do atendimento inicial, o aperfeiçoamento dos cuidados respiratórios com equipamentos mais sofisticados, a utilização de antibióticos mais potentes e o início da inclusão de novas especialidades no campo das queimaduras, com profissionais da Nutrição, Fisioterapia, Medicina Intensiva, Enfermagem, trouxeram uma significativa redução da morbimortalidade e aumento da sobrevida do paciente com queimaduras (RUSSO, 1959; SHERIDAN, 2001). Sucessivamente, é verificado o crescente desenvolvimento de sofisticadas técnicas cirúrgicas no tratamento das queimaduras, sobretudo pelo aperfeiçoamento da enxertia de pele, na década de 1970 (VANA, 2017). O enxerto de pele é um procedimento médico em que se retira de uma região não lesionada do corpo uma porção de pele, a qual é aplicada em uma outra região do corpo que foi lesionada. A enxertia é considerada uma das técnicas mais eficientes, e seu aperfeiçoamento cooperou para a redução de mortes em decorrência de queimaduras. 3.2. Lesão, formação de cicatrizes e sequelas de queimadura Todo processo cicatricial decorre da criação de uma ferida. A ferida de queimadura é concebida como uma lesão em determinada região do corpo, que corresponde tipicamente a uma laceração ou quebra de membrana, com danos aos tecidos envolvidos (VANA, 2017). Após a lesão, a formação de cicatriz é influenciada por uma série de fatores, como a região do corpo lesionada, os cuidados profiláticos (técnicas cirúrgicas, radioterapia ou infiltração com corticosteroides), doenças crônicas, sexo, idade, raça, tipo de pele ou até mesmo estilo de vida (exposição solar e tabagismo, por exemplo) (VANA, 2017). Na contemporaneidade, mesmo se adotando as mais sofisticadas técnicas de tratamento, em virtude da profundidade e extensão de determinadas queimaduras, é comum a formação das chamadas cicatrizes retráteis ou retrações. Esse tipo de cicatriz é comumente caracterizado pela especialidade médica como sequela de queimadura. 28 O tratamento das sequelas de queimadura consiste na fase de acompanhamento posterior ao tratamento da fase aguda do paciente queimado, ou seja, quando não se têm mais lesões ou feridas, as quais impliquem em alterações clínicas ou necessitem de internação. É importante ressaltar que esse tipo de sequela tem variações em sua classificação, podendo transitar de uma sequela leve a inexistente ou severa. Não há, na literatura científica, uma definição específica para as sequelas de queimadura (SOOD, 2006), contudo, estas são comumente definidas, dentro da especialidade médica, como uma alteração indesejada na pele, derivada de queimadura (VANA, 2017). Conforme a Classificação Internacional das Doenças (CID), em sua 10ª edição (2006), “sequela” pode ser concebida como um “[...] efeito residual (condição produzida) após a fase aguda de uma doença ou de lesão que tenha terminado.” Um assunto que ainda não foi discutido com a devida atenção é o reconhecimento da inclusão da pessoa com sequelas de queimadura como um deficiente físico. Diante da gravidade das sequelas de queimadura de algumas pessoas, elas poderiam ser consideradas deficientes cutâneos. Essa definição ainda não existe na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde. A pessoa com sequelas de queimadura possui uma pele com características diferenciadas. As áreas atingidas pelas queimaduras não possuem a mesma capacidade de hidratação e termorregulagem de uma pele sem queimaduras. Fisiologicamente, essa pessoa irá sofrer com uma série de intercorrências, devido às características de sua pele, estando impossibilitada de realizar diversas atividades. Segundo Vana (2017), mesmo as lesões leves podem causar severas alterações psicológicas e sociais. Nessa perspectiva, busca-se propiciar ao sujeito um tratamento que englobe seus aspectos físicos, visando à recuperação funcional do corpo, conjuntamente aos seus aspectos psicológicos. Assinala o autor: Em geral, os pacientes esperam que os resultados do tratamento cirúrgico sejam esteticamente agradáveis, bem como funcionalmente correto. Talvez mais do que outros pacientes, as suas expectativas quanto ao que querem e desejo frequentemente vão muito além das possibilidades reais das técnicas disponíveis na medicina. (p. 50). Compreendemos que, após o tratamento das feridas, as ações passam a abranger diferentes níveis de demandas do sujeito, sendo necessária uma equipe 29 multidisciplinar para prover um tratamento adequado. Nessa perspectiva, o tratamento deve abranger não apenas a lesão física, mas o sofrimento e a busca de cuidado que essa pessoa apresenta. Esse tratamento não se dará somente no hospital ou com o cirurgião plástico que faz reparações cirúrgicas. Ocorrerá em diferentes níveis e mediante o acesso a diferentes redes de cuidado que promovam um tratamento integral. Autores da área médica apontam que o tratamento da pessoa que sofre queimaduras é encerrado, quando suas expectativas quanto ao tratamento são atingidas ou quando se chega aos limites, dentro do aparato técnico e material disponíveis na Rede de Saúde (VANA, 2017; HERNDON, 2012). Nesse sentido, podemos conceber o tratamento em duas dimensões principais: a perspectiva subjetiva do sujeito sobre seu processo de adoecimento e saúde e a perspectiva em que o sujeito é contemplado ou não, em suas necessidades de saúde. A fim de pensarmos essas dimensões, construímos dois tópicos. Um diz respeito às redes de atenção em saúde e o tratamento integral da pessoa com sequelas de queimadura; o outro refere-se à relação do sujeito com seu processo de adoecimento e saúde. 3.3. O tratamento integral da pessoa com sequelas de queimadura Antes da discussão sobre o tratamento da pessoa com sequelas de queimadura, é necessário abordar o Sistema Único de Saúde (SUS) e como poderíamos pensar a atenção em saúde em queimaduras, dentro dessa dinâmica. O SUS é um projeto instituído em 1988, com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil. Trata-se de um projeto nacional e democrático que teve seu início mediante a articulação de trabalhadores das áreas da saúde, pesquisadores e militantes dos mais diversos movimentos sociais. O SUS é perpassado por pilares que norteiam as suas ações, cuja meta maior é o acesso integral, universal e igualitário à saúde. Na Constituição de 1988 (BRASIL, 1988), ficou estabelecido que “[...] a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem [...] o acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.” (art. 196). Um dos princípios do SUS consiste no “[...] atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais.” (art. 198). Sobre a integralidade, temos a Lei 8.080/90, na qual é descrita como “[...] um conjunto 30 articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema.” (BRASIL, 1990). Para Cecílio (2001), a integralidade pode ser compreendida em duas dimensões – a dimensão ampliada e a dimensão focalizada. A primeira ocorre nas relações entre as diferentes redes de saúde e envolve a articulação de múltiplas integralidades, as quais se articulam através de fluxos e circuitos, a partir das necessidades das pessoas que utilizam e demandam os serviços de saúde. Já a dimensão focalizada consistiria no contato dos profissionais de saúde e usuários e pode ser definida como o “[...] esforço da equipe de saúde de traduzir e atender, da melhor forma possível, a expressão individual das necessidades de saúde.” (p.116). Segundo o autor, deve-se buscar uma melhor escuta das pessoas que procuram cuidados em saúde e, dependendo do momento em que o usuário se encontra, a tecnologia de saúde de que necessita pode estar em uma unidade básica de saúde ou em algum serviço produtor de procedimentos sofisticados (CECÍLIO, 2001). Sobre a integralidade na construção dos serviços, Pinheiro (2001, p. 65) acrescenta: [...] uma ação social resultante da permanente interação dos atores na relação demanda e oferta, em planos distintos de atenção à saúde (plano individual – onde se constroem a integralidade no ato da atenção individual e o plano sistêmico – onde se garante a integralidade das ações na rede de serviços), nos quais os aspectos subjetivos e objetivos sejam considerados. Pensar em integralidade é pensar em trabalho integrado em rede, o qual não se dá apenas em um serviço, mas através de novos fluxos e novas possibilidades, mediante as diferentes portas de entrada do sistema de saúde. Parte-se da perspectiva de que o sujeito terá suas necessidades de saúde supridas nos serviços que acessou e por outros serviços que estariam articulados a ele. Cecílio (2012) destaca a importância de processos que “[...] vão desenhando fluxos, pontos de conexão e articulação entre os serviços de saúde.” No que tange à atenção à pessoa com sequelas de queimaduras, há uma grande fragmentação entre os serviços e pouca comunicação entre as redes, dificultando o acesso dos sujeitos às redes de cuidado de que necessitam. Pouco se sabe sobre o percurso que pessoas com sequelas de queimaduras realizam, após o período da internação hospitalar, dificultando o planejamento e a realização de ações efetivas quanto às suas necessidades em saúde. 31 Integralidade, nessa perspectiva, é a estratégia para que se construa, em um ambiente de universalidade, aquilo de que cada sujeito com a sua singularidade necessita. Integralidade não é juntar todas as ações e interligar os diferentes serviços, é algo que se dá principalmente no plano micro e que não consiste em uma intervenção sobre a “patologia”, mas na atuação sobre os diversos aspectos que compõem aquele sofrimento e aquela busca de cuidado de cada sujeito. Tendo em vista a problemática trabalhada nesta pesquisa, pareceu-nos oportuno pensar as questões apresentadas pelas pessoas com sequelas de queimaduras, com base na Linha de Cuidado Integral. Visando a atender os princípios e objetivos do SUS, as Linhas de Cuidado (LC) são definidas como ações em saúde planejadas que objetivam atender às necessidades especificas de determinados grupos da população. Pressupõem a construção de projetos terapêuticos adequados, acesso aos serviços e ações integradas. A Linha de Cuidado tem sido usada com outras problemáticas de saúde, como, por exemplo, na criação da “Linhas de cuidado hipertensão arterial e diabetes”, “Diretrizes para o cuidado das pessoas com doenças crônicas nas redes de atenção à saúde e nas linhas de cuidado prioritárias”, entre outras. Segundo Franco e Franco (2012), Linha de Cuidado pode ser compreendida como [...] imagem pensada para expressar os fluxos assistenciais seguros e garantidos ao usuário, no sentido de atender às suas necessidades de saúde. É como se ela desenhasse o itinerário que o usuário faz por dentro de uma rede de saúde incluindo segmentos não necessariamente inseridos no sistema de saúde, mas que participam de alguma forma da rede, tal como entidades comunitárias e de assistência social. (FRANCO; FRANCO, 2012, s/p). A LC, segundo a definição dos autores, constitui-se a partir do trabalho efetivado de forma integrada e interativa, que se dá entre os diversos profissionais e unidades produtivas, sendo o produto dessa cadeia a resolução das necessidades do sujeito. A LC é realizada a partir de Projetos Terapêuticos, concebidos como um conjunto de ações assistenciais planejadas por gestores, almejando a resolubilidade de determinado problema exibido pelo sujeito. Com base no Projeto Terapêutico, o profissional da saúde orienta o sujeito quanto ao caminho a ser percorrido na rede, considerando suas necessidades. Para Malta e Merhy (2010, p. 595), LC se configura como 32 [...] um fluxo contínuo, monitorado e controlado pelos atores que figuram como “gestores do cuidado”, ou “cuidadores”, encadeado em uma intensa rede de conversação na qual o centro da sua lógica é o processo de produção do cuidado pelos vários encontros que esse exige entre trabalhadores de saúde e usuário. Ao pensarmos em LC, estamos nos voltando para uma produção do cuidado. Conforme Franco e Franco (2012, s/p), o trabalho deve estruturar-se da seguinte forma: o conhecimento do ato de cuidado, ou seja, os saberes técnicos estruturados como o da clínica são fundamentais; o correto uso dos instrumentos e protocolos, sem deixar que o trabalho fique amarrado e engessado no que diz respeito a essas diretrizes, mas procurem nos protocolos uma referência e apoio para o trabalho cotidiano; o ato de cuidar como campo solidário, humanizado de relações, onde acontecem fluxos de afetos entre trabalhador e usuário, fazendo com que este se sinta protegido pelos atos assistenciais. A LC funciona como um projeto eficiente para ser aplicado nas ofertas de serviços de saúde voltados à pessoa com sequelas de queimadura. Estes se mostram presos a tecnologias duras, com grande enfoque biomédico e prevalência de tratamento apenas na instituição hospitalar. A LC, através do ordenamento dos dispositivos de saúde e dos processos de trabalho realizados, prioriza os sujeitos, buscando solucionar de forma satisfatória os problemas apresentados (FRANCO; FRANCO, 2012). Ainda devemos estar atentos ao fato de que toda pessoa que está em busca de cuidado se torna frequentemente um objeto de conhecimento e aplicação de procedimentos, perspectiva que ainda impera nos serviços de saúde. O curar, o tratar e o controlar são ações restritas e construídas em função do desenvolvimento de uma relação distante, individualizante e objetificadora, que transforma as pessoas em meros alvos das intervenções (AYRES, 2001). A interação entre os profissionais de saúde e usuários é peça fundamental para que se tenha eficiência, nas práticas de saúde. Ter em vista essa relação, reconhecendo os sujeitos em suas reais necessidades, torna-se sempre um desafio, pois “[...] nada, nem ninguém, pode subtrair a esse mesmo indivíduo, como aspirante ao bem-estar, a palavra última sobre suas necessidades.” (AYRES, 2004, p. 84). O cuidar, nesse sentido, ainda que seja perpassado pelas competências técnicas, não deve estar estritamente preso a elas: “Estamos falando de um norte prático, necessariamente técnico, mas também inexoravelmente ético, afetivo, estético.” 33 (AYRES, 2001, p. 70). O cuidado engloba dentro de si a dimensão da humanização das práticas em saúde, a necessidade de uma atenção integral à saúde e o respeito aos sujeitos, em sua diversidade e direitos (AYRES, 2009). 3.4. Processos de saúde-doença Aproximar-se de uma compreensão sobre o processo de saúde-doença com sujeitos que sofreram queimaduras e possuem sequelas é algo extremamente complexo. Quando utilizamos a terminologia “experiência da queimadura”, procuramos englobar a dimensão subjetiva da pessoa que se queimou, pois partimos do pressuposto de que cada sujeito tem uma forma singular de adoecer e de buscar seu próprio estado de saúde, que é perceptível mediante os sentidos que atribui aos próprios eventos que vivenciou. Compreendemos que a aproximação de um entendimento sobre processo saúde-doença-cuidado com relação a esses sujeitos só poderia ser possível associando esse processo ao modo de vida da pessoa e ao seu universo sociocultural. Aspectos psicossociais e socioculturais têm sido cada vez mais abordados, no campo teórico da Saúde Coletiva, com a intenção de qualificar e legitimar a assistência no SUS (FIGUEIREDO, 2012). Contudo, ainda predomina o modelo hospitalocêntrico como norteador das práticas em saúde. Para dar norte às nossas discussões, optamos por adotar o conceito de normatividade vital, proposto por Georges Canguilhem (1904-1995), em sua obra O normal e o patológico, publicada em 1943 e revista em 1963 (2015). Buscamos, com base nos relatos que essas pessoas partilharam conosco e da relação que foi estruturada entre pesquisador e participantes, aproximar-nos de uma compreensão de seus “modos de andar a vida”12 e como, a partir do conceito de normatividade vital (CANGUILHEM, 1943/2015), foram capazes de instituir normas (ou não), para dar conta das exigências normativas diante de determinadas condições impostas pelas sequelas de queimadura. Não pretendemos incorporar de forma radical o conceito filosófico de normatividade ao tema, todavia, pareceu-nos oportuno pensar o caráter 12 A expressão “modos de andar a vida” não é encontrada nas edições em português de O normal e o patológico. Essa tradução refere-se a “allures de la vie” (CANGUILHEM, Le normal et le patologique. Paris: PUF, 1966). Nas edições brasileiras, a expressão foi traduzida como “modos da vida”, “modos de ser da vida”, entre outros. Pela leitura do artigo “Georges Canguilhem e a construção do campo da Saúde Coletiva brasileira” (AYRES, 2016), atentamos para essa diferença e optamos por utilizar a expressão “modos de andar a vida”, a qual estaria mais condizente com a ideia do autor. 34 normativo da vida como chave de leitura dos processos de saúde-doença, com respeito às pessoas que possuem sequelas de queimaduras. Canguilhem (1943/2015) fornece importantes contribuições para a discussão acerca das fronteiras entre o normal e o patológico. A partir da leitura do autor, torna- se possível um olhar reflexivo sobre a necessidade de reconstruir as relações entre ciências e técnicas aplicadas pela Medicina, propiciando a revisão crítica desses espaços e recursos das práticas de saúde (AYRES, 2016). Deriva, dessa compreensão, a importante ideia de produzir conjuntamente às pessoas com sequelas de queimaduras uma atenção em saúde que os reconheça como protagonistas no processo saúde-doença-cuidado e que esse caráter seja alvo de investimento e transformação do cuidado. Para Canguilhem (1943/2015), a Medicina é fundamentalmente uma prática, na qual a delimitação da patologia e da normalidade não poderia se dar de forma estritamente objetiva e neutra. A normalidade objetiva, aquilo que é estatisticamente demonstrável, não atende de forma efetiva à dimensão do normal e do patológico, sendo compreendido, pois, em função do conceito de normatividade. A hipótese de Canguilhem (1943/2015) está em considerar que o processo de adoecimento implica uma experiência do vivente que depende da relação firmada entre o organismo e o meio em que ele se encontra, ou seja, “[...] na medida em que é normativo em relação às flutuações do seu meio.” (CANGUILHEM, 2015, p.166). A saúde é tomada como abertura às transformações que são inerentes à vida, pois a doença compõe parte da experiência de todo ser vivente. A normatividade é pensada enquanto capacidade de instituir normas, no interior das experiências de vida dos seres vivos singulares. Canguilhem (1943/2015) aborda o sujeito concreto consciente de sua dor e de sua incapacidade funcional e social, o qual, vivenciando a doença como um drama de sua história, percebe mudadas suas relações de conjunto com seu meio (entourage): “O estado patológico expressa a redução das normas de vida toleradas pelo ser vivo, a precariedade do normal estabelecido pela doença.” (CANGUILHEM, 2015, p. 166). Também contesta a tese do médico René Leriche, segundo o qual, para se compreender a doença, é preciso “desumanizá-la” e, ainda, no estudo do patológico, o que interessa é apenas a alteração anatômica ou o distúrbio fisiológico. O normal, para ele, é a condição do sujeito normativo tomado em sua totalidade real, sendo capaz de criar normas de vida. Dessa maneira, a experiência da 35 queimadura pode ser tomada como normal, desde que, por meio dela, o sujeito expresse a sua normatividade. A sequela de queimadura, nessa perspectiva, apresenta-se como anomalia (diferença), na qual as especificidades da lesão apresentam uma diferença com relação ao que se observa com mais frequência e usualidade, em outros corpos. A anomalia não seria em si uma anormalidade patológica, todavia, uma diferença quanto ao que é mais constante e comum nas pessoas e que, ao mesmo tempo, expressa a variabilidade e a plasticidade da condição humana. Trata-se de uma diferença que acena para novas possibilidades, contudo, quando essa anomalia (diferença/variação) traz consigo um valor prejudicial à vida, passa a ser uma anormalidade (patologia), que implica um obstáculo a um padrão normativo anterior. A patologia consistiria em uma capacidade normativa insuficiente, diante das contingências do meio, a qual não consegue se transformar em outra norma. A chave central para entender essa dinâmica é o conceito da normatividade, pois, para Canguilhem (2015), ter saúde não é a ausência de doença, ter saúde é ser um sujeito normativo (adoecer e ter a capacidade de se recuperar). Poderíamos pensar a relação saúde-doença com a pessoa que possui sequelas de queimaduras em dois planos: o plano objetivo, no qual prevalece a condição biológica de seu corpo; e o plano da experiência subjetiva, que concerne ao modo como essa pessoa lida com as mudanças trazidas pelas sequelas, sejam elas no âmbito particular, sejam elas no âmbito social. Ao aludirmos a experiência subjetiva, não estamos direcionando nossos olhares ao nível de lesão apresentado, mas em como esse sujeito, em face dessa nova condição imposta em sua vida, é impactado positivamente ou negativamente em suas interações com o meio em que vive, na realização de atividades, mobilidade, comunicação ou nos relacionamentos interpessoais. A compreensão das sequelas de queimadura como patologia depende da experiência de cada sujeito e de como estes sujeitos “[...] positivamente desejam em relação aos seus modos de andar a vida.” (AYRES, 2007). O cuidado, orientado por essa perspectiva, não consiste na busca do estado ou condições anteriores à doença, muito menos em uma adaptação do sujeito diante de seus impasses subjetivos e limitações físicas. O Cuidado em Saúde teria em vista a interpretação em conjunto desses problemas, o acolhimento do sofrimento do sujeito, e se tornaria mais um dos instrumentos de expansão da capacidade normativa do sujeito, o que se aproxima de 36 uma atenção em saúde que visa à superação e/ou recuperação de processos de adoecimento (AYRES, 2007). Os estudos efetuados por Costa et al. (2008) e Carlucci et al. (2007) mostraram que, na concepção de determinados sujeitos, a queimadura é concebida como um marco que separa uma vida sadia de outra sem saúde, sendo que as sequelas da queimadura obstaculizam a continuidade do desempenho pleno de seu papel social. Parte dessa problemática se dá por conta das marcas cicatriciais visíveis. O corpo com marcas cicatriciais de queimadura pode enquadrar-se no que o sociólogo Erving Goffman (1975) designa como anormalidades do corpo, como as deformidades físicas visíveis, que tendem a evocar sentimentos negativos, no contexto social. Segundo Ferreira (1994), o corpo é emblemático de processos sociais, em que se aplicam sentimentos, discursos e práticas que estão na base da vida social. Nesse sentido, o corpo é concebido e tratado por diversas especialidades disciplinares, tais como a Medicina, a Psicologia, a Pedagogia, a Educação Física e, sobretudo, no âmbito das discussões sociológicas, fornecendo subsídios para análise dos complexos fenômenos sociais que envolvem a corporeidade, no mundo contemporâneo. Os trabalhos de Goffman marcam uma distinção na produção do conhecimento em Psicologia Social, fazendo parte de uma vertente denominada Psicologia Social Sociológica, a qual se constituiu em contraposição à Psicologia Social Experimental (SPINK; FREZZA, 2013). Enfatiza Goffman (1975, p. 11): A sociedade estabelece os meios de categorizar as pessoas e o total de atributos considerados como comuns e naturais para os membros de cada uma dessas categorias: os ambientes sociais estabelecem as categorias de pessoas que têm probabilidade de serem neles encontradas. O que se diferencia do “comum” e “natural” pode vir a possuir um caráter estigmatizante. Estigma é, por conseguinte, a situação do indivíduo que se encontra inabilitado para a aceitação social plena, ou seja, um sujeito que possui uma marca ou um atributo que denota um status desvalorizado, trazendo prejuízos às suas interações sociais. As discussões promovidas por Goffman (1975) influenciaram uma série de estudos contemporâneos, tendo grande importância, inclusive, no campo da saúde. Trata-se não somente de considerar o estigma em sua dimensão social, mas de 37 compreender como esse fenômeno impacta negativamente a vida dos sujeitos afetados (LINK; PHELAN, 2001; TEIXEIRA FILHO, 2000; ARRUDA, 2009). Uma das discussões possíveis dentro da relação entre saúde e estigma é a compreensão de que, em determinados contextos, sujeitos que portam características referentes a uma determinada condição de saúde recebem estereótipos negativos. Nessa perspectiva, abre-se um leque de possibilidades sobre os efeitos desse fenômeno. O sujeito pode ter a percepção dessa relação associada à sua condição (estigma percebido) e, não raro, ao tomar consciência de que reúne determinadas características que comportam um estereótipo negativo, incorporar essa condição (estigma internalizado), o que resultaria em atitudes e crenças negativas sobre si mesmo (CORRIGAN; RAO, 2012; LIVINGSTON; BOYD, 2010). 38 4. PERCURSO METODOLÓGICO Neste item, arrolamos os principais referenciais metodológicos que engendraram a construção deste trabalho. Buscamos compreender como a pessoa com sequelas de queimaduras percebe e atribui significados à experiência sofrida, bem como levantar as necessidades e demandas que apresentam com relação à assistência em saúde, após a alta hospitalar. Optamos por um estudo de caráter qualitativo, em que foram utilizadas entrevistas semiestruturadas. Conforme Minayo (2011), a pesquisa qualitativa trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis (p. 21-22). Foi privilegiado um conhecimento que partiu dos próprios sujeitos da pesquisa, acerca de suas próprias experiências (LÜDKE; ANDRÉ, 1986). Optamos por abarcar os aspectos psicossociais e socioculturais da experiência de queimadura, pois são eles que engendram os processos de significação nos quais os sujeitos apreendem os sentidos de si e do seu mundo. Alguns autores têm ressaltado a importância de repensar o cuidado, nos serviços de saúde, “[...] no sentido de uma maior capacidade de escutar e atender às necessidades de saúde, mais do que a adesão pura e simples a qualquer modelo de atenção dado aprioristicamente.” (CECÍLIO, 2001, p. 116). Assim, compreendemos que os sujeitos participantes da pesquisa são atores ativos no processo de cuidado, partindo daí a necessidade de se escutar o que os sujeitos com sequelas decorrentes de queimadura tinham a dizer. Os procedimentos usados nesta pesquisa incluíram diversas fontes de informação, tais como documentos, sites, observações, entrevistas, reuniões e participação em eventos. É necessário olhar para além dos indicadores quantitativos e problematizá-los como construção de fatos (SPINK; LISBOA; RIBEIRO, 2009). Tendo por base a noção de “campo-tema” de Peter Spink (2003), concebemos a pesquisa como um processo construído à medida que se faz o pesquisar, o qual não é estático, plano ou linear. A concepção de pesquisa, aqui adotada, supõe um ponto de partida, por meio do qual “[...] iria se caminhando sem saber direito como e onde.” (SPINK, 2003, p. 20). Podemos afirmar que pesquisa é um processo contínuo de abertura e fechamento, e é essa processualidade que dá movimento à pesquisa. 39 De acordo com Mary Jane Spink (2010), a articulação entre Psicologia Social e Saúde se dá em contextos complexos, nos quais cultura, política e história se misturam. Ao lidar com os aspectos multidimensionais do campo da Saúde, é necessária a incorporação de conhecimentos advindos das mais variadas disciplinas. Dessa maneira, o trabalho foi construído a partir de produções de conhecimentos derivados da Antropologia, Sociologia, Política, Administração e Medicina, assim como da própria Psicologia Social. É importante a familiaridade com esses domínios, situando diversas práticas de caráter político: sentidos culturais e históricos contextualizados sobre saúde e doença; a atenção à saúde como estratégia de governamentalidade e suas tensões referentes à ressignificação da Saúde como direito e dever (SPINK, 2010, p. 47). Para a autora, práticas em saúde exigem comunicação, o que demanda uma compreensão mútua dos repertórios usados para dar sentido aos assuntos que envolvem saúde e doença. Na pesquisa de campo, o pesquisador está situado no local onde ocorrem as relações e como se dá a comunicação entre profissionais de saúde e usuários. Trata-se de ações em contextos locais e que se dão no cotidiano. Ao pesquisar no cotidiano, o pesquisador deve se posicionar como membro da comunidade, sendo possível a interpretação das ações que se desenrolam nos espaços e lugares nos quais se dá a pesquisa – porque fazemos parte dessa comunidade e compartilhamos normas e expectativas que nos permitem pressupor uma compreensão compartilhada (SPINK, 2007). Em relação à pesquisa de campo, temos a obrigação de revelar quem somos, o que estamos fazendo e com que finalidade, assim como temos o compromisso de devolução dos resultados e, em determinados casos, até mesmo o compromisso de coconstrução explícita das interpretações (SPINK, 2007, p. 11). Quando pesquisamos no cotidiano, somos partícipes das ações que se desenrolam em espaços de convivência mais ou menos públicos. Fazemos parte do fluxo de ações, ou seja, integramos essa comunidade e compartimos de normas e expectativas que nos possibilitam pressupor uma compreensão compartilhada dessas interações. A Psicologia Social, por seu caráter interdisciplinar, faz uso de metodologias trazidas de outros campos das ciências humanas, tais como a Antropologia, a Filosofia e a Sociologia (SPINK, 2010). Nesse sentido, os referenciais teóricos deste trabalho buscaram contemplar os seguintes temas: processo de saúde e adoecimento na experiência da queimadura, corpo e estigma na contemporaneidade e reflexões sobre 40 a atuação em Saúde com pessoas que possuem sequelas de queimadura, a partir da perspectiva da Saúde Coletiva. Para dar ancoragem à problemática apresentada na presente pesquisa, optamos por trabalhar mediante o arcabouço teórico-metodológico de Goffman (1975) e Canguilhem (2015), assim como à luz de produções que trazem a construção de práticas ampliadas e compartilhadas em saúde (AYRES, 2001, 2004, 2007, 2016; CECÍLIO, 2001, 2012; FIGUEIREDO, 2012; MALTA; MERHY, 2010; PINHEIRO, 2001 e outros). 4.1. Procedimento para coleta de dados Antes de iniciarmos a coleta de dados, procuramos informações sobre as Unidades de Tratamentos de Queimaduras existentes no Estado de São Paulo. Essa busca teve como objetivo avaliar o local mais propício para a inserção do Pesquisador. Consideramos o deslocamento territorial que iria ser feito pelo Pesquisador, em um período de seis meses; o número de pacientes atendidos pela instituição, anualmente, tendo em vista o tratamento de grande queimado de alta complexidade; e a receptividade da instituição, quanto à realização da pesquisa. Optamos por realizar a pesquisa em parceria com a Unidade de Tratamentos de Queimados da Santa Casa de Misericórdia de Guaratinguetá, situada na cidade de Guaratinguetá, São Paulo. A Unidade apresentou um expressivo contingente de atendimentos com pacientes queimados. O Pesquisador tinha conhecimento do território onde a Instituição estava situada, região do Vale do Paraíba. Um outro fator determinante para a escolha desse local foi o fato de recebermos a informação de que a Unidade nunca havia participado de uma pesquisa acadêmica. A apresentação do Pesquisador e da proposta da pesquisa se deu, inicialmente, pelo telefone. Após a Santa Casa ter mostrado interesse na realização da Pesquisa, o projeto foi enviado por e-mail a diferentes chefias da Instituição. Houve uma avaliação do Projeto de Pesquisa e, depois, recebemos um retorno positivo quanto à sua efetivação. Em dezembro de 2016, o Pesquisador foi presencialmente à Instituição, explicou novamente a proposta da Pesquisa e esclareceu todas as dúvidas à equipe, no que se relacionava à sua presença no local. Foram assinados dois termos de compromisso, uma cópia ficou com o Pesquisador e a outra com as chefias da Santa Casa. O primeiro Termo foi assinado pelo Chefe da Divisão Médica de Cirurgia Plástica e Reparadora da Unidade de Queimados da Santa Casa de Misericórdia de 41 Guaratinguetá (ANEXO I) e o segundo Termo foi assinado pela Gerente de Enfermagem da Santa Casa de Misericórdia de Guaratinguetá (ANEXO II). 4.2. Aspectos éticos O projeto de pesquisa foi enviado ao Comitê de Ética da FCL-Campus de Assis, com a autorização para realização da pesquisa e das entrevistas individuais, concedida pelos responsáveis da Santa Casa de Misericórdia de Guaratinguetá, devidamente anexada. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética da FCL-Campus de Assis (CAAE: 60050216.0.0000.5401/Número do Parecer: 1.823.699), no dia 17 de novembro de 2016. 4.3. Local da realização das entrevistas Parte das entrevistas foi feita na Santa Casa de Misericórdia de Guaratinguetá13, credenciada como de alta complexidade pelo Ministério da Saúde e que possui Unidade de Tratamentos de Queimados (UTQ). A outra parte das entrevistas foi efetuada na própria residência dos sujeitos. A Santa Casa de Misericórdia de Guaratinguetá é uma entidade filantrópica, privada, sem fins lucrativos. Oferece assistência médico-hospitalar à população do município e região, fazendo parte da rede de hospitais prestadores de serviços ao SUS e atendendo também usuários das operadoras de saúde, empresas de saúde de autogestão, seguros-saúde e outros. Funciona com 184 leitos, divididos em 10 setores especializados, sendo complementadas por serviços de Fonoaudiologia, Odontologia, Psicologia, Fisioterapia, Nutrição e Terapia Ocupacional. De acordo com o DATASUS (2016), selecionando a opção de atendimento de urgência em grande queimado e tratamento de grande queimado de alta complexidade, no período correspondente a janeiro de 2008 até março de 2016, a Santa Casa de Misericórdia de Guaratinguetá atendeu a 1.086 pacientes, um número representativo, sendo o segundo local que mais recebeu usuários no Estado de São Paulo, conforme a Figura 1. 13 A Santa Casa de Misericórdia de Guaratinguetá está localizada na Rua Rangel Pestana, 194 - Centro, Guaratinguetá - SP, 12501-090, Brasil. 42 Figura 1. Atendimento de urgência em grande queimado e tratamento de grande queimado de alta complexidade, no período correspondente a janeiro de 2008 a março de 2016. Fonte: DATASUS (maio/2016): Procedimentos hospitalares do SUS - por local de internação - São Paulo. O local mais propício para a localização e abordagem das pessoas com sequelas de queimaduras foi o Ambulatório da Santa Casa, onde, semanalmente, pacientes que já haviam recebido alta hospitalar retornam para consultas médicas. 4.4. Participantes da pesquisa Conforme Minayo (2010), o critério a ser adotado para amostragem dos participantes em pesquisa qualitativa não é numérico. A amostra ideal é aquela que reflita a totalidade do objeto em estudo. Dessa maneira, o número de sujeitos deste trabalho foi obtido, considerando-se o processo de aquisição dos dados, paralelamente à análise, até o alcance dos objetivos propostos. Realizamos 12 entrevistas que contemplaram diferentes circunstâncias, as quais culminaram em graves queimaduras, tais como acidente doméstico, acidente em estabelecimento comercial, atentado criminoso, acidente de trabalho, autoagressão, acidente automobilístico e um referente a uma tragédia de grandes proporções. Todos os participantes receberam o diagnóstico de grande queimado, sendo que sete dos participantes tiveram queimaduras parciais ou totais na face. As entrevistas foram orientadas pela técnica de entrevista individual semiestruturada, para a qual elaboramos um roteiro. Essa técnica favorece a 802 934 1086 1494 713 0 200 400 600 800 1000 1200 1400 1600 Hospital do Servidor Público Estadual Santa Casa de Limeira Santa Casa de Guaratinguetá Hospital Padre Albino de Catanduva Hospital Municipal do Tatuapé Carmino Caricchio 43 produção de depoimentos e narrativas que constituem o material empírico a ser trabalhado (MINAYO, 2010). As entrevistas evidenciam a qualidade de “[...] enumerar de forma mais abrangente possível as questões que o pesquisador quer abordar no campo, a partir de suas hipóteses ou pressupostos, advindos, obviamente, da definição do objeto de investigação.” (MINAYO, 2010, p. 122). As entrevistas foram efetuadas em horário previamente estabelecido, em locais que asseguraram um ambiente tranquilo, confortável e livre de interrupções. As questões abordadas na entrevista foram contempladas pelos tópicos norteadores localizados no APÊNDICE I. Acreditamos que, na pesquisa qualitativa, a produção de informação não se dá de forma dissociada com a produção de instrumentos. Mantivemos os tópicos norteadores formulados inicialmente, no projeto de pesquisa, contudo, em alguns momentos, determinadas questões passaram por uma revisão, com a finalidade de adaptação às eventuais condições que surgiam ao longo do processo da pesquisa. Os critérios apontados para a participação, nesta pesquisa, foram: sujeitos maiores de 18 anos de idade, independentemente do gênero, que apresentavam sequelas visíveis tanto estéticas como funcionais decorrentes de queimaduras, os quais tinham passado ou não por cirurgias reparadoras e que já haviam tido alta hospitalar. 4.5. Estratégias de campo e roteiro de entrevista O processo de coleta de dados foi dividido em dois momentos: no período da manhã, com início do atendimento aos usuários do ambulatório, realizamos a abordagem dos sujeitos que apresentavam sequelas visíveis tanto estéticas como funcionais, decorrentes de queimadura, na sala para atendimento ambulatorial. Essa abordagem teve como finalidade o convite para a participação na pesquisa. De modo a assegurar o êxito na localização desses sujeitos, utilizamos a técnica de seleção de sujeitos conhecida como snowball (BALDIN; MUNHOZ, 2011; BIENACCKI; WALDORF, 1981). A técnica consistiu em utilizarmos, por meio de nossa rede de relações, indicações sobre a população em estudo que atendiam aos critérios fixados na pesquisa. No segundo momento, após a exposição da proposta da pesquisa e a obtenção do consentimento do sujeito em participar do estudo, foi combinado um local e data 44 para a entrevista. As entrevistas foram gravadas com o uso de um gravador de voz digital e, posteriormente, transcritas na integra. Também optamos por adotar, como técnica qualitativa, a Observação Participante. Essa técnica possibilita a participação ativa do Pesquisador nas relações com os sujeitos da pesquisa, complementa os dados colhidos nas entrevistas e possibilita a ampliação da compreensão do Pesquisador da realidade empírica dos sujeitos da pesquisa (MINAYO, 2008, p. 261-297). 4.6. Interpretação do material coletado Para a análise dos dados, empregamos como técnica a análise de conteúdo, em sua modalidade temática (MINAYO, 2010). Enquanto um recurso de análise qualitativa, permite um amplo processo de compreensão dos fenômenos estudados, envolvendo toda a sua complexidade e dando ênfase à realidade dos sujeitos pesquisados. A trajetória analítico-interpretativa percorreu os seguintes passos: (I) contato exaustivo com o material (leitura flutuante); (II) apreensão das particularidades do material gerado pela pesquisa original, identificação e recorte temático dos depoimentos acerca das questões investigadas; (III) organização do material, considerando critérios de exaustividade, representatividade, homogeneidade e pertinência (constituição do corpus); (IV) determinação de palavras-chave ou frases, recortes, modalidade de codificação e conceitos teóricos a serem analisados no estudo; (V) exploração do material, visando a alcançar os núcleos temáticos e, na sequência, correlacionar os núcleos de sentidos de cada fala e (VI) elaboração da síntese interpretativa (MINAYO, 2010; 2012). Por último, na análise final, articulamos e analisamos os dados empíricos, a partir dos elementos acima referidos, com as questões propostas pelos objetivos da pesquisa e referencial teórico adotado. 45 5. APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS RESULTADOS14 5.1. Apresentação dos participantes da pesquisa Colaboradora 1 A Colaboradora 1 era uma mulher de 38 anos, branca, tinha um filho adolescente, era recém-casada e vivia com o marido. Possuía ensino superior completo, era professora, formada em Pedagogia. Por conta do tratamento das sequelas das queimaduras, estava afastada temporariamente do trabalho. Sua queimadura ocorreu em um restaurante, quando estava em horário de almoço. A Colaboradora 1 e uma amiga entraram em um restaurante e foram em direção às bandejas de alimentação para se servirem. Nesse momento, uma funcionária do estabelecimento abastecia um réchaud, utilizando álcool líquido. A chama do réchaud, que permanecia acesa, em contato com álcool, fez com que o fogo aumentasse. A funcionária assustou-se e arremessou o objeto na direção da Colaboradora 1 e sua amiga, atingindo ambas e ferindo-as gravemente. A amiga acabou falecendo, durante o período de internação, por conta do incidente. O acidente ocorreu em dois mil e dez. Aproximadamente seis anos após a ocorrência do evento que culminou na queimadura, a Colaboradora continuava fazendo tratamento fisioterápico, fonoaudiológico e psicológico. Também eram realizadas cirurgias plásticas, periodicamente. Em um primeiro momento, logo após a queimadura, foi levada para uma Unidade Básica de Saúde, em seguida, para um Centro Médico que atendia a seu convênio de saúde. Diante da complexidade do caso, a equipe desse Centro Médico a encaminhou para um Hospital conveniado, em uma cidade com distância aproximada de 35 km. A Colaboradora 1 deixou claro que não compreendeu essa relação de escolhas de locais para atendimento e a transferência de um local para outro. Nesse Hospital conveniado, foi instruída por uma médica a tentar transferência para um Hospital que possuía atendimento especializado em queimaduras. Em um esforço conjunto com essa médica, a Colaboradora 1 foi transferida para uma Santa 14 As reflexões promovidas ao longo do desenvolvimento da pesquisa são derivadas de sucessivas discussões e articulações com o Orientador e a Coorientadora (José Sterza Justo e Mariana Dorsa Figueiredo, respectivamente), com profissionais da área de queimadura e, principalmente, com pessoas que possuem sequelas de queimadura. Quando se tratar de situações de campo vivenciadas apenas pelo Pesquisador, será utilizada a 1ª pessoa (eu), na escrita. 46 Casa que possuía uma Unidade Especializada em Queimaduras, com distância aproximada de 140 km da cidade onde residia e cerca de 94 km do Hospital conveniado no qual se encontrava. A Colaboradora 1 ficou internada vinte e um dias, e suas percepções sobre o tratamento, no período de internação e pós-internação, variam de relatos elogiosos a equipes treinadas e humanizadas a críticas quanto à insensibilidade de alguns profissionais, ausência de serviços de saúde e burocratização do acesso a esses serviços. As queimaduras mais graves se concentraram principalmente na face, pescoço e seio. Também foram atingidos abdômen, coxas, antebraços e mãos (instintivamente, as pessoas buscam apagar o fogo com as mãos). A Colaboradora 1 se apresentou como um desafio à equipe médica no tratamento pós-internação, ou seja, no tratamento das marcas cicatriciais da pele. Ela relatou que, quando jovem tinha muita acne, e, nesse período, já havia a formação de queloides e uma cicatrização ruim das espinhas. Logo que se queimou, a Colaboradora 1 – ainda no corredor do Hospital, sendo encaminhada para os primeiros cuidados emergenciais – passou a lembrar dessa cicatrização “difícil” e a se indagar como ficaria a sua aparência, considerando que o dano da queimadura era muito mais intenso do que as espinhas, no período da adolescência. Seus pensamentos foram condizentes com os desafios com que teve de lidar. Principalmente em sua face e pescoço, formaram-se grandes queloides. Ao longo de todo o tratamento, efetivado em anos, sofria com dores e inchaços acentuados nas feridas. Além disso, tinha de lidar com a visibilidade acentuada das cicatrizes, o que gerava constrangimentos em locais públicos, fazendo com que a Colaboradora 1 buscasse amenizar essas situações, colocando lenços em torno do pescoço e rosto. A utilização de cachecóis e lenços, aliás, tornou-se frequente em sua vida. 47 Figura 2. Colaboradora 1 - Áreas do corpo atingidas pela queimadura e que correspondem às marcas cicatriciais posteriores. Fonte: Adaptada a partir de https://www.kisspng.com/ Um dos traços marcantes nos relatos da Colaboradora 1 foi a relação com o trabalho, após o evento da queimadura. Ela foi abruptamente retirada de suas atividades e submetida a um intenso tratamento, para melhorar as feridas. Consequentemente, teve que se afastar do trabalho de professora. Esse período de afastamento, que ela denominou como “ocioso”, lhe trouxe muito sofrimento e, conjuntamente a outros fatores, levou-a a iniciar psicoterapia. Movida pela necessidade de manter seu trabalho, um recém-concurso no qual havia sido classificada, a Colaboradora 1 voltou a trabalhar. Através de seu depoimento, pudemos perceber a dificuldade, na conciliação entre trabalho e tratamento, para aqueles que cuidam das sequelas de queimadura. Ela passou a se atrasar, tanto no trabalho quanto nos agendamentos de tratamento. Relatou um grande cansaço mental e físico, intensificados pela sensação de insegurança sobre a eficácia e duração do tratamento, sobre a burocratização dos procedimentos de saúde e sobre a constante necessidade de explicar os ferimentos para transeuntes, colegas de trabalho, alunos e pais de alunos. Isso fez com que, com apoio institucional e de coleg