1 Milena de Brito Mello Parataxe e Tradição Discursiva: orações paratáticas justapostas em sincronias pretéritas do português Dissertação apresentada ao Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista, Campus de São José do Rio Preto, para obtenção do título de Mestre em Estudos Linguísticos (Área de Concentração: Análise Linguística) Orientador: Profª. Drª. Sanderléia Roberta Longhin São José do Rio Preto 2015 2 COMISSÃO JULGADORA Titulares Profª. Drª. Sanderléia Roberta Longhin UNESP – Universidade Estadual Paulista - Orientadora Profª. Drª. Angélica Terezinha Carmo Rodrigues UNESP – Universidade Estadual Paulista Profª. Drª. Fernanda Corrêa Silveira Galli UNESP – Universidade Estadual Paulista Suplentes Profª. Drª. Luciani Ester Tenani UNESP – Universidade Estadual Paulista Profª. Drª. Cristina dos Santos Carvalho UNEB– Universidade do Estado da Bahia 3 Dedico este trabalho a Deus, por toda graça e proteção; aos meus queridos pais, pela força e dedicação. 4 AGRADECIMENTOS à Sanderléia Roberta Longhin, com quem tudo começou, pela confiança depositada em mim, pelas cuidadosas orientações, pela grande dedicação a este trabalho, pela paciência, por todos os conselhos e pela amizade; às professoras Angélica Terezinha Carmo Rodrigues e Fernanda Corrêa Silveira Galli, pelas enriquecedoras discussões e sugestões; à professora Fabiana Cristina Komesu, pelas relevantes contribuições ao meu trabalho e por ter me acompanhado na qualificação; à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior, CAPES, pelo auxílio financeiro. ao Gustavo, pelo amor, pelo apoio e incentivo nos momentos de angústia; aos meus familiares, em especial, ao meu irmão Renan, à minha avó Tereza e às minhas tias Jacira e Sirlei, pela força; à minha sobrinha Júlia, por me fazer sorrir nos momentos difíceis; aos meus amigos do Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos, em especial, à Fernanda Meneghetti Ferro, por compartilhar com minhas preocupações e anseios; aos amigos João Pedro, Patrícia e Pe. Marcelo, pela amizade verdadeira e pelo companheirismo; à Lina María Grajales Agudelo, pelo carinho e pela prazerosa convivência; ao William Taconi Bergamini, pelos inúmeros favores; Enfim, a todos que contribuíram de alguma forma para a concretização deste trabalho, minha sincera gratidão. 5 “Deus, conceda-me a serenidade para aceitar aquilo que não posso mudar, a coragem para mudar o que me for possível e a sabedoria para perceber a diferença: vivendo um dia de cada vez, apreciando um momento de cada vez, recebendo as dificuldades como um caminho para a paz [...]” Reinhold Niebuhr 6 LISTA DE QUADROS Quadro 01: Modelo de combinação de orações (Halliday, 1985) ...................................... 20 Quadro 02: “Cline” de combinação de orações (Hopper e Traugott, 1993) ...................... 24 Quadro 03: Níveis de observação da atividade linguística (Koch, 1997) ......................... 56 Quadro 04: Descrição dos textos selecionados para análise dos dados ............................. 69 7 LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 01: Frequência, em percentuais, das construções paratáticas justapostas em cada texto do corpus 77 Gráfico 02: frequência das correlações modo-temporais nas construções paratáticas justapostas temporais 81 Gráfico 03: frequência das correlações modo-temporais nas construções paratáticas justapostas causais 88 Gráfico 04: frequência das correlações modo-temporais nas construções paratáticas justapostas explicativas 95 Gráfico 05: frequência das correlações modo-temporais nas construções paratáticas justapostas contrastivas 102 Gráfico 06: frequência das correlações modo-temporais nas construções paratáticas justapostas condicionais 108 Gráfico 07: Frequência, em percentuais, das relações de sentido em correlação com a arquitetura sintática, no sermão 119 Gráfico 08: Frequência, em percentuais, das relações de sentido em correlação com a arquitetura sintática, na peça teatral 129 Gráfico 09: Frequência, em percentuais, das relações de sentido em correlação com a arquitetura sintática, na narrativa 140 Gráfico 10: Frequência, em percentuais, das relações de sentido em correlação com a arquitetura sintática, nos colóquios 149 Gráfico 11: Frequência, em percentuais, das relações de sentido em correlação com a arquitetura sintática, na hagiografia 158 8 SUMÁRIO LISTA DE QUADROS ..................................................................................................... 6 LISTA DE GRÁFICOS ................................................................................................... 7 RESUMO .......................................................................................................................... 10 ABSTRACT ..................................................................................................................... 11 INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 12 1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA 1.1. JUNÇÃO ........................................................................................................................... 16 1.1.1. Halliday (1985) ............................................................................................................... 16 1.1.2. Neves (2006) ................................................................................................................. 21 1.1.3. Hopper e Traugott (1993) .............................................................................................. 23 1.1.4. Taboada (2009) ............................................................................................................... 26 1.1.5. Trabalhos empíricos sobre parataxe e justaposição ........................................................ 28 1.1.6. Conclusões sobre a parataxe ........................................................................................... 51 1.2. TRADIÇÃO DISCURSIVA ............................................................................................ 55 1.2.1. A concepção de tradição de discursiva ........................................................................... 55 2. MATERIAL E MÉTODOS 2.1. Corpus .............................................................................................................................. 68 2.2. Método ............................................................................................................................... 70 2.2.1. No âmbito da junção ....................................................................................................... 70 2.2.2. No âmbito da TD ........................................................................................................... 74 3. CONSTRUÇÕES PARATÁTICAS JUSTAPOSTAS 3.1. RELAÇÃO DE TEMPO .................................................................................................. 77 3.2. RELAÇÃO DE CAUSA .................................................................................................. 83 3.2.1. Relação de causa/efeito ................................................................................................. 85 3.2.2. Relação de explicação ................................................................................................... 90 3.3. RELAÇÃO DE CONTRASTE ......................................................................................... 97 3.4. RELAÇÃO DE CONDIÇÃO .......................................................................................... 103 3.5. Resumo da Seção ............................................................................................................. 109 9 4. PARATAXE E TRADIÇÕES DISCURSIVAS 4.1. A justaposição no domínio das TD ................................................................................. 112 4.1.1. Sermão nascimento do Menino Deus ........................................................................... 113 4.1.2. Auto da barca do inferno .............................................................................................. 124 4.1.3. Corte na aldeia e noites de inverno .............................................................................. 135 4.1.4. Colóquios dos simples e drogas e coisas medicinais da Índia ..................................... 144 4.1.5. Vida do arcebispo Dom Frei Bartolomeu dos Mártires .............................................. 154 CONCLUSÃO ................................................................................................................... 161 BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................. 167 10 RESUMO A presente dissertação de mestrado teve como objetivo realizar um estudo da parataxe, especificamente das construções paratáticas justapostas. No âmbito da junção, este trabalho analisou as composições paratáticas justapostas com leitura de tempo, causa, contraste e condição, em termos do pareamento entre forma e sentido, com a finalidade de reconhecer, nos modos paratáticos de composição, os correlatos formais e os mecanismos interpretativos que são colocados em jogo na ausência do juntor. Para este estudo da parataxe, foram adotados os pressupostos da gramática sistêmico-funcional de Halliday (1985) e propostas recentes de cunho textual, tais como Taboada (2009), La Fauci (2010), além dos volumes editados por Béguelin, Avanzi e Corminboeuf (2010). O reconhecimento e a sistematização das pistas que sustentam as relações de sentido na ausência do juntor foram realizados mediante a análise de enunciados extraídos de cinco textos produzidos em sincronias pretéritas do português (séculos XVI e XVII) e inseridos em tradições discursivas distintas (teatro, colóquio, hagiografia, sermão e narrativa). O levantamento das construções paratáticas justapostas foi subsidiado pela apuração das frequências token e type, nos moldes de Bybee (2003). A frequência token diz respeito à frequência textual da construção em questão e a frequência type diz respeito à frequência com que um padrão paratático particular ocorre. Os parâmetros adotados para o reconhecimento das marcas interpretativas mostraram- se viáveis. Eles também possibilitaram a visualização de características das relações de sentido, além de tendências das paratáticas justapostas. Com base no pressuposto de que existe uma correlação entre os esquemas de junção e a tradição discursiva em que o texto se insere (Kabatek, 2006), no sentido de que a tradição discursiva condiciona o uso de determinadas construções linguísticas, o segundo objetivo específico deste trabalho consistiu em analisar em que medida aspectos da composicionalidade das tradições discursivas em que os textos se inserem condicionam o emprego dos arranjos paratáticos justapostos. Para tanto, realizamos o mapeamento de todos os esquemas de junção em uma porção de cada texto, com o propósito de averiguarmos se a opção pela paratática justaposta ajuda na constituição da própria tradição discursiva. As análises mostraram, de maneira geral, que as construções justapostas, quando utilizadas, correspondem às escolhas pessoais dos autores, isto é, ao estilo de cada autor. Palavras-chave: Parataxe, Justaposição, Tradição Discursiva. 11 ABSTRACT The present master thesis aimed to accomplish a study of parataxis, specifically the juxtaposed paratactic constructions. Within the joint, this work analyzed juxtaposed paratactic compositions with reading time, cause, contrast and condition, in terms of the match between form and meaning, in order to recognize in modes composition of paratactic, the formal correlates and the interpretative mechanisms which are brought into play in the absence of the juntor. For this study the parataxis, were adopted assumptions of the systemic functional grammar of Halliday (1985) and recent proposals of textual nature, such as, Taboada (2009), La Fauci (2010), in addition to the volumes edited by Béguelin, Avanzi and Corminboeuf (2010). The recognition and the systematization of the tracks that support the sense relations in the absence of the juntor were performed by the extracted set of analysis of five texts produced on to earlier syncs of the Portuguese (centuries XVI and XVII) and inserted in different discursive traditions (theater, conference, hagiography, sermon and narrative). The survey of juxtaposed paratactic construction was subsidized by the calculation of frequencies token and type along the lines of Bybee (2003). The frequency token respect to the frequency of textual construction in question and the frequency type respect to the frequency often a particular paratactic pattern occur. The parameters adopted for the recognition of interpretive marks proved to be viable. They also allowed the characteristics of view of sense relations, besides tendencies of the juxtaposed paratactic. Based on the assumption that there is a correlation between the joint schemes and the discursive tradition in which the text is inserted (Kabatek, 2006), in that the discourse traditional conditions using certain language constructs, the second specific objective of this study was to examine to what extent aspects of compositionality of discursive traditions in which texts are inserted condition the employment of paratactic juxtaposed arrangements. Thus, we performed the mapping of all joint schemes in a portion of each text, for the purpose we are going to ascertain if the option by juxtaposed paratactic help in the creation of own discursive tradition. The analysis showed, in general, that the juxtaposed constructions, when used, correspond to the personal choices of the authors, this is, to each author's style. Keywords: Paratactic, Juxtaposed, Tradition Discourse. 12 INTRODUÇÃO O presente trabalho tem como objeto de investigação as construções paratáticas justapostas, isto é, um tipo de construção complexa que não apresenta juntor explícito. Considerando que nem sempre a interpretação da relação de sentido nesse tipo de paratática é evidente, sendo necessária a mobilização de pistas de diferentes níveis de análise, o objetivo maior deste trabalho é caracterizar o modo de composição paratático, especificamente as paratáticas justapostas, em termos de um pareamento entre forma e um sentido fortemente pragmático, com o propósito específico de reconhecer os mecanismos interpretativos colocados em jogo, quando não há juntor explícito, tendo em vista Taboada (2009), Neves (2006) e Béguelin, Avanzi e Corminboeuf (2010) os quais admitem que, na ausência do juntor, sempre há pistas de natureza diversa que ajudam a indiciar o sentido da construção. Buscamos a identificação e a descrição das construções paratáticas justapostas em uma amostra de dados retirada de cinco tipos de textos produzidos nos séculos XVI e XVII. Desenvolvemos pesquisa, em nível de iniciação científica (proc. Fapesp nº 2012/07499-8), sobre as paratáticas justapostas em enunciados de peças teatrais dos séculos XIX e XX, com objetivo de relacionar os correlatos morfossintáticos responsáveis pela interpretação temporal, causal, contrastiva e condicional das ocorrências. Para esta dissertação, foram priorizadas as pistas de ordem morfossintática, semântica e pragmática, já que este trabalho se fundamenta em um modelo de base funcionalista, cujas investigações conjugam informações de vários níveis de análise. Em (01), extraído do corpus da pesquisa, há um tipo de paratática justaposta, cuja interpretação depende de propriedades de cada um dos períodos e também da natureza da relação de sentido que se estabelece entre eles. Índices como a ordem das orações, itens lexicais colocados em oposição (terra X céu; fé X vistas; ouvidos X olhos) e o 13 paralelismo estrutural autorizam reconhecer entre os dois segmentos oracionais uma relação de contraste, admitindo assim paráfrase com “mas”: (01) Porque na terra he Deos ouvido, no Ceo he Deos visto: na terra he Deos conhecido pela Fé, e pelos ouvidos fomente; Ø 1 no Ceo he conhecido pela vista, e com os olhos (VIEIRA, séc. XVII, p. 67)2 [...] na terra Deus é conhecido pela fé e pelos ouvidos, mas no céu é conhecido pela vista e com os olhos Para alcançarmos o objetivo proposto, primeiramente fizemos um refinamento do conceito de parataxe, com base nos pressupostos da gramática sistêmico-funcional de Halliday (1985), conjugados com propostas recentes de cunho textual sobre coesão paratática, que defendem uma visão multidimensional, em que sintaxe, prosódia e discurso são mobilizados para a explicação do fenômeno, como é o caso, por exemplo, dos trabalhos de Taboada (2009) e Béguelin, Avanzi e Corminboeuf (2010). Posteriormente, fizemos o reconhecimento e a sistematização das pistas que sustentam as relações de sentido nas construções justapostas, a partir das frequências token e type, nos moldes de Bybee (2003). Neste trabalho, a frequência token refere-se à contagem geral das ocorrências de justapostas e a frequência type refere-se à identificação dos tipos de paratáticas justapostas, considerando critérios de naturezas semântica, morfossintática e pragmática. O segundo grande objetivo deste trabalho, no âmbito das tradições discursivas (TD, daqui e diante), consiste em analisar a correlação entre TD e junção, à luz da hipótese de Kabatek (2006), que sustenta que os esquemas de junção utilizados em um texto estão diretamente relacionados com o tipo de texto em que se inserem. Para que se cumprisse esse objetivo no plano das TD, foram levantados todos os esquemas de junção de partes dos textos 1 O símbolo Ø indica a ausência de juntor entre duas orações vinculadas por uma relação lógico-semântica e/ou discursivo-pragmática. 2 A ocorrência (01) foi retirada do texto Sermão do nascimento do menino Deus, do Padre Antonio Vieira. 14 e foi considerada a composicionalidade das TD, conforme princípio postulado por Kabatek (2006), para quem um texto comporta ao mesmo tempo uma rede de tradições, e busca identificar se as diferentes TD que compõem os textos favorecem ou não o emprego das paratáticas justapostas. O trabalho encontra-se organizado em quatro seções. Na primeira seção, apresentamos a fundamentação teórica sobre junção, parataxe e TD. Buscamos na literatura, em textos teóricos e em trabalhos empíricos discussões sobre parataxe e justaposição e, a partir dessas discussões, chegamos a um conceito operacional de parataxe que foi a base para o levantamento e análise dos dados, já que essa noção não é consensual. Na segunda seção, discorremos sobre a metodologia adotada no trabalho; na terceira seção, apresentamos a análise dos dados e sistematizamos as pistas que fundamentam cada tipo de relação de sentido; e, na quarta seção, expomos a análise das paratáticas justapostas no domínio das TD. No final, elaboramos uma síntese dos resultados obtidos. Pretendemos com este trabalho contribuir para o conhecimento e compreensão de aspectos da história do português brasileiro, particularmente no plano das construções complexas de junção, na medida em que esta pesquisa colabora com um projeto maior, financiado pelo CNPq (processo: 308430/2011-5), no âmbito do programa de Produtividade em Pesquisa, denominado Tipologia e história das construções paratáticas em perspectiva longitudinal, que investiga a parataxe em uma amostra diacrônica de textos do português brasileiro, inseridos em diferentes TD, com o intuito de caracterizar esse modo de composição nos campos descritivo e histórico. 15 SEÇÃO 01 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA Nesta seção, primeiramente, apresentamos o aparato teórico dentro do qual fenômenos de junção, com ênfase para as construções paratáticas, são estudados. No primeiro momento, no âmbito da junção, são abordados o modelo de gramática funcional de Halliday (1985), a teoria sistêmico-funcional, que oferece, ao nosso ver, conceitos teóricos favoráveis à análise do objeto de pesquisa, e trabalhos de teóricos que se aproximam de investigações de base funcionalista, tais como Neves (2006), Hopper e Traugott (1993) e Taboada (2009). Em seguida, expomos uma revisão bibiográfica de outros trabalhos que, de alguma forma, se compatibilizam com a abordagem funcionalista e que investigam a parataxe empiricamente, como Béguelin (2010), La Fauci (2010), Paiva e Braga (2010), Pekarek Doehlet et al. (2010) e Hirata-Vale (2008), além dos trabalhos de Traugott e König (1991) e de Kortmann (1997) que, embora se situem na perspectiva da mudança por gramaticalização, tratam de noções que são relevantes também para análise das paratáticas justapostas. No segundo momento desta seção, apresentamos a noção de TD com base, principalmente, nos trabalhos de Koch (1997), Öesterreicher (1997) e Kabatek (1998; 2000; 2001; 2002; 2004; 2005; 2006; 2010), que norteiam a análise dos dados no domínio das TD. 16 1.1. JUNÇÃO 1.1.1. Halliday (1985) O modelo de gramática funcional de Halliday (1978, 1985, 2004), que analisa a linguagem em uso, está ligado a uma teoria sistêmica, em que sistêmico implica as possibilidades de escolhas do falante no sistema linguístico, ou seja, escolhas lexicais, semânticas, sintáticas, fonéticas e fonológicas, sob a concepção de que a escolha produz sentido. Nesta abordagem, o processo de escolha leva em conta o ambiente e o contexto de realização da produção linguística, relacionando linguagem, situação e cultura sistematicamente. Halliday (1985) sustenta para a língua uma abordagem altamente semântica com propósitos claros de análise textual. Trata-se, portanto, de uma “gramática do discurso”. Em toda obra, o autor defende a existência de uma forte correlação entre as funções da linguagem e a estrutura da oração, no sentido de que a estrutura deve representar as funções específicas que a língua desempenha: A forma do sistema da língua consiste num potencial de significados, representado como uma rede de opções que são derivadas de uma função social particular, e são realizadas, por sua vez, por estruturas cujos elementos se relacionam diretamente aos significados que estão sendo expressos. (HALLIDAY, 1978, p. 136) Segundo Halliday (1978, p. 158), a organização interna da língua não é acidental, ou seja, a relação entre o sentido e a codificação estrutural não é arbitrária. Ela incorpora as funções que a língua desenvolveu para servir na vida do homem social. A esse respeito, o autor estabelece as três macro-funções da linguagem que representam os reflexos linguísticos da multiplicidade dos usos sociais. No modelo de Halliday (1985), toda oração realizada é produto de três componentes semânticos ou macro-funções simultaneamente codificados: o ideacional, o interpessoal e o 17 textual, os quais são realizados por meio de conjuntos de opções dos componentes gramaticais. A oração, a partir dessa concepção, codifica, simultaneamente, uma representação do mundo (ideacional), uma troca (interpessoal) e uma mensagem (textual). A macro-função textual, de acordo com Halliday (1978, p. 157), é o componente semântico que possibilita ao falante criar um texto e que preenche a exigência de que a língua seja operacionalmente relevante, ou seja, que tenha uma textura, em contextos situacionais concretos, que distinga uma mensagem viva de um mero item na gramática ou no dicionário. A função textual é considerada instrumental para as outras duas macro-funções, já que um discurso somente se realiza quando o emissor produz um texto e o ouvinte/leitor o reconhece. Para Halliday (1985), a função textual não se restringe ao estabelecimento de relações entre as frases, mas leva em conta também a organização interna da frase e o seu sentido como mensagem, tanto em si como na sua relação com o contexto. Neves (1997, p. 12) afirma que Halliday insiste em uma teoria não apenas extrínseca, mas também intrínseca das funções da linguagem, uma teoria segundo a qual a multiplicidade funcional se reflete na organização interna da língua e a investigação da estrutura linguística revela, de algum modo, as várias necessidades a que a língua serve. Em trabalhos anteriores, Halliday e Hasan (1976 apud NEVES, 2006) definem junção como processo textual coesivo entre orações, complexos oracionais ou trechos de textos. Em outras palavras, junção é uma conexão que indica a forma pela qual o elemento que vem antes e o que vem depois estão interligados. Segundo os autores, esses elementos conjuntivos não são coesivos por si só, pois o seu sentido pressupõe a presença de outros elementos no discurso. No modelo hallidayano, que pressupõe a não-discretude dos processos de junção e o cruzamento entre informações sintáticas, semânticas e pragmáticas, as orações complexas podem ser analisadas tendo em vista dois sistemas básicos que determinam como uma oração 18 está relacionada com a outra: (i) tipo de interdependência ou taxe, que diz respeito às relações de interdependência entre as orações e (ii) relação lógico-semântica, que diz respeito às relações de sentido que legitimam a junção. No eixo tático ou taxe, uma construção com duas orações em um complexo pode apresentar uma relação entre elementos de mesmo estatuto, o que configura a parataxe, ou uma relação entre elementos de estatuto diferente, o que configura a hipotaxe. No eixo lógico-semântico, o qual está ligado à relação entre processos, inclui as relações de expansão ou projeção3, que são agrupadas em diferentes conjuntos de tipos gerais. Uma construção paratática, conforme Halliday (2004), apresenta uma relação paritária, em que cada oração é potencialmente independente, uma vez que cada oração constitui uma proposição por si só. A parataxe é ainda caracterizada como uma relação de simples continuação entre elementos em que “um inicia e outro continua” (2004, p. 374). Tanto o elemento que inicia quanto o que continua são funcionalmente autônomos, “livres”, no sentido de que cada um pode se expressar como um todo. No entanto, para o autor, é o segundo elemento ou a oração secundária que faz a extensão, a elaboração ou o realce4 da construção, o que gera uma restrição quanto a ordem das orações paratáticas. De acordo com a teoria, na parataxe somente a ordem 1^2 (oração primária ^ oração secundária) é possível e ainda há uma prioridade ao elemento que vem primeiro, por exemplo, “pão e manteiga” não é sinônimo de “manteiga e pão”, apesar de um implicar o outro, em um contexto em que se quer censurar alguém por ter excedido na quantidade de manteiga passada no pão. Halliday justifica essa assimetria da parataxe ao afirmar que “enquanto a parataxe é uma relação 3 Na projeção, a oração secundária é projetada por meio da oração primária que instaura uma locução ou uma ideia, ou seja, relaciona fenômenos de uma ordem superior de experiência (o que as pessoas dizem ou pensam) (HALLIDAY, 2004). 4 Na expansão, a oração secundária expande a oração primária por: (a) elaboração, quando uma oração expande o sentido da outra por meio da exposição, exemplificação, esclarecimento ou descrição; (b) extensão, quando uma oração expande o sentido da outra pela adição de algum elemento novo, pela indicação de uma exceção ou pela oferta de uma alternativa; (c) realce, quando uma oração expande o sentido da outra pela qualificação de traços de tempo, lugar, causa, condição, concessão. (HALLIDAY, 2004) 19 assimétrica, a relação lógico-semântica de expansão não é” (2004, p. 392); portanto, a sequência das orações é fixa. A relação lógico-semântica, assim, “interfere” na simetria/assimetria das construções. Uma construção hipotática, em contrapartida, apresenta uma relação hierárquica ou de dominação, em que uma oração é considerada nuclear ou dominante e a outra dependente. Na hipotaxe, o elemento dominante é “livre” ou funcionalmente autônomo, já o elemento dependente, que modifica a oração nuclear, não é. Logo, para Halliday, a hipotaxe, por excelência, é a estrutura oracional que realiza a relação de “modificação”. Em virtude de apresentar estatuto diferente, os elementos de uma construção hipotática são simétricos, ou seja, há uma escolha envolvida por parte do falante/autor no posicionamento da sequência das orações. Sendo assim, a oração de qualificação pode ser colocada antes ou depois da oração nuclear - escolhas estas determinadas com base em considerações textuais. Certifica-se, assim, que parataxe e hipotaxe são estratégias gramaticais de combinação de orações, diferentemente das relações de encaixamento (orações completivas, restritivas e relativas), em que uma oração funciona como parte constituinte. As orações encaixadas revelam um mecanismo de “constituência” da oração, portanto não são nem paratáticas, nem hipotáticas. O Quadro 01, abaixo, que mostra apenas parte do modelo do autor, apresenta a articulação do eixo tático (parataxe e hipotaxe) com as opções de expansão, as quais são suficientes para dar conta do objeto de investigação deste trabalho. O quadro ilustra tipos de juntores; interessa-nos, no entanto, a investigação de algumas dessas relações, especialmente os casos em que não apresentam juntores. 20 Quadro 01: Modelo de combinação de orações EIXO TÁTICO PARATAXE (estatuto igual) HIPOTAXE (estatuto desigual) E X PA N SÃ O Elaboração Exposição: P isto é Q Exemplificação: P por exemplo Q Esclarecimento: P de fato Q Orações relativas apositivas Extensão Co-ordenação de orações: Adição (positiva e negativa): P e Q; não P nem Q Adversidade: não P mas Q Alternância: P ou Q Hipotaxe de orações em: Adição: P além de Q Adversativa: P apesar de Q Alternância: se P não Q Realce Co-ordenação de orações com traço circunstancial Tempo: P então Q; P e depois Q; primeiro P e Q Espaço: P e aqui/lá Q Modo: P e dessa maneira Q; P do mesmo modo Q Causa: P e por isso Q; P em vista disso Q Condição: P ou por outro lado Q; P caso contrário Q Concessão: P ainda Q; P assim mesmo Q Orações circunstanciais Tempo: quando P, Q; antes que P, Q; Espaço: P onde Q Modo: P assim como Q Causa: P porque Q Condição: Se P, Q Concessão: P embora Q Fonte: adaptado de Halliday (1985) Como é possível observar, neste modelo, qualquer relação de sentido pode ser codificada tanto por arranjos paritários, como por arranjos hierárquicos, o que põe em questão a abordagem tradicional em termos da dicotomia coordenação X subordinação. Segundo Neves (2006, p. 238), “Embora do ponto de vista lógico-semântico se possa invocar equivalência para as duas possibilidades de construção, claramente se vê que, do ponto de vista da comunicação, obtém-se resultados diferentes”; dito de outra forma, a escolha por um ou outro tipo de combinação de orações (parataxe ou hipotaxe), na composição da textual, produz, no final, diferentes efeitos semânticos e pragmáticos. A organização das orações em uma frase complexa, tendo em vista o grau de interdependência das orações, ou seja, em termos de parataxe e hipotaxe, também foi abordada por Matthiessen e Thompson (1988), os quais, seguindo a abordagem de Halliday (1985), defendem que a avaliação do grau de interdependência das orações em enunciados complexos não pode ser determinada somente no nível interno à frase, mas que deve integrar- se com a consideração das funções discursivas em que cada unidade básica do discurso 21 mantém com certa relação funcional, seja com a unidade que a precede ou com a que sucede. Para os autores, na parataxe nenhum dos membros é suporte para o outro, enquanto que, na hipotaxe ou relação núcleo-satélite, há membros que realizam os objetivos centrais do locutor, enquanto outros constituem suporte para os objetivos centrais ou realizam objetivos suplementares (1988, p. 289). Halliday (2004, p. 369) afirma ainda que uma sequência de expansão ou projeção pode ser realizada por orações que não estão combinadas estruturalmente em uma oração complexa (não há nenhum ponto que separa as orações, ou elas são separadas somente por vírgula ou ponto-e-vírgula), mas que apresentam uma sequência coesa (orações separadas por um ponto final), como no seguinte esquema: A aconteceu. Então B aconteceu. Para o autor, a constatação de uma sequência coesa somente é possível se as orações relacionadas possuírem o mesmo estatuto estrutural. Nesse caso, o modo de articulação de uma sequência coesa somente pode ser feito por parataxe. 1.1.2. Neves (2006) Neves (2006) aborda uma temática muito discutida por pesquisadores de orientação funcionalista: a articulação de orações em enunciados, tomando como base a língua em função e não apenas as estruturas dos enunciados. A autora busca definir e explicar os dois processos de formação e de conexão de enunciados utilizados na língua: a parataxe e a hipotaxe. Neste trabalho, interessam-nos, sobretudo, as noções referentes à parataxe. Para Neves (2006), a parataxe não é apenas um eixo sistêmico que organiza informações exclusivamente sintáticas, mas ela vai além da combinação de elementos na sintaxe da língua e pode ser definida como um eixo de organização de informação textual- dicursiva. Além disso, a própria escolha do falante pela forma de expressão paratática provoca consequências na organização discursiva. 22 Em concordância com Halliday (1985), Neves (2006) afirma que a construção justaposta é uma das formas de combinação de orações paratáticas, ou seja, de mesmo estatuto, conectadas por meio de algum tipo de relação lógico-semântica. Isto inclui construções do tipo (01), retomada do trabalho da autora, em que a ausência da marca da condicionalidade não impede que identifiquemos a estrutura que assinala a condição ou prótase e a que expressa a asserção correspondente ao conteúdo da oração que seria nuclear ou apódose. Para Neves (2006), construções desse tipo, que não apresentam a marca condicional de hipotaxe (se) são “construções em que, evidentemente, as duas proposições têm relevância mútua (um mínimo de hierarquização), mas não têm estatuto diferente, propriedade que, no eixo tático, caracteriza a hipotaxe” (p. 238): (01) Fosse você, passava ela para frente. De acordo com Neves (2006), uma combinação justaposta ou com uma conjunção aditiva na formação de uma condicional implica uma curva entonacional ascendente no primeiro membro, criando um espaço mental hipotético-factual (condição que pode ser realizada) ao invés de um espaço hipotético-eventual (condição que pode ser eventualmente realizada), em que haveria uma curva entonacional descendente, “como a que pode ser pressuposta na construção condicional canônica” (p. 238). Além disso, a escolha por enunciados sem a marca condicional de hipotaxe (se) revela uma condicionalidade que ganha relevo avaliativo e que, portanto, ganha carga subjetiva (cf. SCHWENTER, 1999 apud NEVES, 2006, p. 239). Ao assumir que a ordem nas hipotáticas é mais livre e que nas paratáticas é mais fixa, Neves (2006) declara que a anteposição da condicional é pragmaticamente preferencial em qualquer arranjo sintático e que esta posição reveste a oração prótase do estatuto pragmático 23 de tópico, estatuto este que “abre espaço para relevantes efeitos interacionais, com ampla mobilidade no jogo das peças informativas dadas e novas” (p. 239). Neves (2006), ao analisar os marcadores de coordenação e/mas/ou, que ocorrem frequentemente em início de frase e que fazem a “conjunção externa” à organização sintática da frase completa, definiu “pausa dramática” como aquela que tem um efeito no drama da linguagem: ela vai indicar um encerramento que não acontece efetivamente e um efeito dramático criado pelo acréscimo do segundo segmento ao primeiro, como é mostrado a seguir: (02) Eu não valho nada, patrão. MAS o senhor pode contar comigo pra o que der e vier. (03) Eu não valho nada, patrão. O senhor pode contar comigo pra o que der e vier. A autora afirma que, nesses casos de construções interfrásicas sem o juntor, “ou se sente o segundo membro coordenado como ainda preso ao primeiro, ou se tem um enunciado estranho” (NEVES, 2006, p. 247). Ainda de acordo com Neves, em construções interfrásicas sem o elemento coordenativo, pode-se afirmar que o segundo membro irá retomar o primeiro membro de modo a reiterá-lo, explicá-lo, explicitá-lo ou particularizá-lo. 1.1.3. Hopper e Traugott (1993) Outro estudo que considera a integração entre componentes sintático e semântico na combinação de orações é o realizado por Hopper e Traugott (1993), que priorizam o ponto de vista da gramaticalização. Os autores reconhecem três modos de articulação de orações – parataxe, hipotaxe e subordinação – que podem ser sinalizados em uma trajetória no sentido que vai da menor para a maior integração das orações, ou seja, podem ser organizados por meio de um continuum ou “cline” de combinação de orações. Os parâmetros utilizados pelos autores para avaliar a articulação das orações são “dependência” e “integração”, de maneira que: (i) a parataxe caracteriza-se por uma 24 independência relativa, em que o elo depende somente de que a relação faça sentido e tenha relevância, mas não há encaixamento e a relação semântica evocada entre os constituintes se dá somente por inferência; esse grupo é formado por orações tradicionalmente denominadas coordenadas e justapostas; (ii) na hipotaxe tem-se uma interdependência entre núcleo e margem, mas também não há encaixamento; esse grupo é formado pelas chamadas orações adverbiais e pelas relativas apositivas; (iii) e na subordinação há uma dependência completa entre núcleo e margem, há, portanto, o encaixamento; esse grupo é formado pelas orações tradicionalmente denominadas completivas e pelas relativas restritivas. Tal proposta aponta para uma trajetória de gramaticalização unidirecional em que as orações subordinadas poderiam derivar de orações menos encaixadas, ou seja, das paratáticas e das hipotáticas. Os autores apresentam um quadro representativo que mostra o “cline” com os níveis de combinação de orações e com a respectiva combinação de traços (1993, p. 170): Quadro 02: “Cline” de combinação de orações PARATAXE > HIPOTAXE > SUBORDINAÇÃO - encaixamento - encaixamento + encaixamento - dependência + dependência + dependência Fonte: Hopper e Traugott (1993) Esse “cline”, segundo Hopper e Traugott (1993), sinaliza os graus de combinação das orações, estando nas paratáticas as relações sintáticas mais frouxas e nas subordinadas as relações sintáticas mais integradas. Em termos de gramaticalização, nas paratáticas encontram-se as estruturas menos gramaticalizadas e nas subordinadas têm-se um estágio mais avançado da gramaticalização. Apoiados em Lehmann (1988), Hopper e Traugott (1993) analisam o grau de integração das orações com base nos tempos e modos verbais da construção. Os autores defendem que a concordância entre tempos e modos verbais é um indício de maior integração oracional. 25 Ao abordarem os fatores pragmáticos que contribuem para o processo de gramaticalização, Hopper e Traugott (1993, p. 76) afirmam que a pragmática está preocupada com as crenças e com as inferências feitas pelos falantes, que dizem respeito à natureza das pressuposições e aos fins para os quais as expressões são utilizadas nos contextos de usos da linguagem. De acordo com os autores, as crenças e as inferências, que são cognitivamente universais, referem-se aos “sentidos indiretos” dos falantes, ou seja, aos sentidos que vão além do que é dito, e às interpretações dos ouvintes que enriquecem o que é dito. Interessam para os autores as inferências do tipo implicaturas que são realizadas em uma oração, ou nos constituintes de uma oração, ou entre um enunciado para o outro. Para este trabalho, que focaliza as construções justapostas, as inferências também são fundamentais. Os autores chamam a atenção para um problema na linguística que concerne às várias relações de sentidos que uma única forma pode evidenciar. A abordagem assumida pelos autores, como a mais adequada para a perspectiva da gramaticalização, argumenta que certas formas compartilham sentidos conceitualmente relacionados, ou seja, defende que certas formas são polissêmicas. Os autores ilustram a polissemia, como efeito pragmático de implicaturas, no exemplo (04) de justaposição, que, segundo eles, trata-se de uma construção com segmentos suscetíveis de interpretação, mesmo sem qualquer marcador estrutural de coerência, simplesmente por estarem em sequência. (04) The earthquake hit at 8 a.m. A four-car crash occurred. (p. 79)5 Hopper e Traugott (1993) afirmam que as relações inferidas em (04) são as de sequência temporal e a de conexão causal. A leitura causal, explicam os autores, somente será possível se as orações sequenciadas indicarem ação/evento e se elas forem interligadas em termos de conhecimento enciclopédico ou de mundo. 5 Tradução sugerida: O terremoto aconteceu às 08:00. Um acidente com quatro carros aconteceu. 26 A proposta apresentada por Hopper e Traugott (1993) é interessante para este trabalho por trazer noções que contribuem para o entendimento do processo de articulação de orações e por defender a organização destes processos de combinações em um continuum como meio de visualizar o grau de integração das construções. Interessa-nos, também, a noção que os autores trazem sobre inferência e polissemia: entendemos que a mobilização de inferências pode auxiliar na interpretação de uma relação justaposta e que a polissemia, como fenômeno pragmático decorrente das inferências feitas pelos interlocutores, pode representar um desafio para a classificação das relações. 1.1.4. Taboada (2009) Taboada (2009), que adota a perspectiva da Teoria da Estrutura Retórica (RST)6, amplia o modelo de Halliday ao olhar para o fenômeno da junção não apenas como processo textual e coesivo (conexão que tem sua manifestação no próprio discurso), mas como relações de coerência (conexões que podem ser feitas pelo leitor/ouvinte com base no conhecimento pragmático). Considera como unidades de análise não somente a oração ou as orações complexas, mas também blocos textuais que realizam entre si conexões semânticas: “Se as proposições são construídas em blocos de discurso, então as relações discursivas são o cimento entre os blocos.” (RENKEMA, 2004, p. 108, tradução nossa)7. Taboada (2009) questiona a existência de relações implícitas nas construções em que não há marcadores discursivos indicando o tipo de relação. A autora argumenta que se as pessoas conseguem interpretar com relativa facilidade diferentes tipos de relações, sem o juntor, é porque elas devem fazer uso de sinais que orientam nessa interpretação. Segundo a 6 Desenvolvido por Willian Mann e Sandra Thompson na década de 80, a RST é um método de análise do discurso e das relações discursivas que considera o discurso uma organização hierárquica dos segmentos de textos. 7 If propositions are the building blocks of discourse, then discourse relations are the cement between the blocks. 27 autora, há outros mecanismos de sinalização ou pistas de diferentes naturezas que ajudam na identificação da relação: semanticamente, os significados dos verbos de conteúdo podem apontar para certas relações de sentido; pragmaticamente, as implicaturas evidenciam-se como mecanismos de sinalização em virtude de estabelecerem entre as proposições relações que não estão explícitas no texto, mas que estão construídas nas mentes dos falantes. Taboada (2009) ressalta que outros indicadores de relações de sentido podem ser reconhecidos, tais como a pontuação, e que o modo de enunciação falado traz ainda novos tipos de sinalização tais como a entonação, pausas e gestos. Para Taboada, todas as relações são sinalizadas de alguma forma, logo, em certo sentido, todas as relações são explícitas. O grande desafio para os pesquisadores, conforme a autora, está em reconhecer os sinais particulares para cada caso, para cada tipo de relação. Outro pressuposto da autora é o de que se o usuário da língua identificou um tipo de relação confiável entre duas partes distintas do discurso, deve haver algo nessas partes que o levou a relacioná-las. Taboada (2009) entende, ainda, que a composicionalidade dos gêneros pode desempenhar um papel importante no reconhecimento das relações de sentido. Assim, a autora conclui que se os tipos de relações detectadas nos textos são diferentes, é porque o gênero também é um grande mecanismo de sinalização para a interpretação dos sentidos em construções em que o juntor está ausente. Taboada admite que, em construções onde não há qualquer marcador, a possibilidade de ambiguidade nas interpretações das relações é comum. Contudo, argumenta a autora, identificando o(s) sinal(is) mais típico(s) de cada relação de sentido, direciona-se a interpretação da construção, diminuindo as ambiguidades. A RST é uma teoria compatível com os pressupostos e objetivos deste trabalho, que admite a existência de mecanismos interpretativos de naturezas diversas para a caracterização das construções paratáticas justapostas, posto que defendemos que a presença dos juntores, 28 frequentemente utilizada pelas gramáticas tradicionais como critério de distinção e classificação, é apenas uma face da construção. 1.1.5. Trabalhos empíricos sobre parataxe e justaposição Apresentamos, nesta subseção, resenhas de trabalhos recentes de cunho textual e funcional, que se harmonizam com a teoria de Halliday e que discutem a parataxe e a justaposição de modo empírico. Iniciamos com Béguelin (2010), que investiga as construções paratáticas justapostas em peças de teatro do francês. A autora discute a falta de consenso na definição de parataxe e refuta definições que se aplicam de maneira indiferente a todos os fenômenos de justaposição de núcleos predicativos, sem a devida consideração das relações de sentido que emergem das construções. A autora mostra que a parataxe é concebida, pela tradição8, como sinônimo de justaposição, por compreender um encadeamento macro-sintático ou discursivo efetuado sem a presença de marcadores de coordenação, em que o “estilo paratático” é configurado por construções morfossintaticamente independentes, que constituem expressões de si mesmas: “No plano morfossintático, a parataxe é descrita tanto como uma supressão ou elipse do juntor, como uma pura e simples ausência de ligação entre duas construções predicativas” (p. 04)9. De acordo com Béguelin (2010), o conceito de parataxe assindética em termos de supressão ou elipse pressupõe que as relações entre dois núcleos predicativos são explícitas e que a parataxe apaga as marcas de coordenação com o objetivo de provocar alguns efeitos de sentido no locutor ou “dar mais força” à locução. Já a hipótese que aborda a parataxe em termos de ausência do juntor defende a parataxe como traço particular da oralidade familiar, 8 Larousse Lexis; Morier (1961). 9 Au plan morphosyntaxique, la parataxe est dès lors décrite soit comme impliquant un enchâsseur ou un ligateur zéro, soit comme pure et simple absence de lien entre deux constructions prédicatives [...] 29 da fala das crianças e da língua popular. Tal hipótese tem como aparato teórico Tesnière (1982 apud BÉGUELIN, 2010), para quem o uso de construções hipotáticas pelo falante revela um grau mais avançado do desenvolvimento da linguagem. A parataxe, segundo esse enfoque, é associada a um modo de construção de orações mais simples que a hipotaxe. A autora defende que a parataxe é caracterizada como construções que estabelecem uma relação de dependência implícita, em que os núcleos predicativos, externamente idênticos entre si, estabelecem uma relação de dependência semântica particular. A autora ilustra tal afirmação com o seguinte exemplo: (05) Je combatais vos passions, vous vous accommodez avec elle, [...] (Marivaux, La Seconde Surprise de l’amour, acte II, scène 4). 10 Nesta ocorrência de justaposição, a relação adversativa identificada entre as duas orações é, segundo a autora, interpretada “espontaneamente” pelo interlocutor ao considerar a dependência implícita associada à parataxe, ou seja, a dependência semântica e o paralelismo sintático com a função de colocar em cena antagonismos lexicais. Essa dependência implícita, para Béguelin, pode aproximar a parataxe da hipotaxe, sobretudo quando a construção exibe uma dependência sintática, frequentemente condicionada pela presença de um índice formal nas proposições, como elle mostrado no exemplo, que retoma anaforicamente o primeiro período. A parataxe revela, então, conforme a autora, uma “falsa independência”. Le Goffic (1993 apud BÉGUELIN, 2010) utiliza o termo parataxe para designar construções em que considera estar em “estados intermediários” entre a independência e a subordinação. Tal aproximação força-nos a pensar na parataxe e na hipotaxe como modos não discretos de combinação de orações, ou seja, não dicotômicos. Mesmo assim, de acordo com Béguelin (2010), não são raros os trabalhos que descrevem a parataxe como uma 10 Tradução sugerida: Eu combatia suas paixões, você acomodou-se com elas. 30 subordinação (ou uma coordenação) sem marcador, por vezes renomeada como hipotaxe assindética. Com base nas configurações justapostas encontradas nas peças de teatro francês, Béguelin (2010) propõe uma tipologia de paratáticas baseada nas relações de sentido mais recorrentes. A seguir, apresentamos essa tipologia com suas respectivas estruturas e exemplos: a) Justaposição contrastiva: faz uso de paralelismo sintático e de antônimos lexicais, conforme (06), ou implica contraste de modalidades, conforme (07). Segundo esta abordagem, o contraste possui naturezas diversas, podendo apresentar uma alternância de processos inversos, como em (06), interrogações alternativas, como em (07), que coloca os termos em uma incerteza, ou contraste argumentativo, conforme (08). A estrutura que representa este tipo de relação é a seguinte: E(p) + E (q) onde q = ~p/ contrário de ~p/ inverso de p ... (06) Monsieur Lélio vous aime, Madame, j’en suis certaine, votre billet l’a piqué, il l’a reçu en colère, il l’a lu de même, [il a pâli, il a rougi.] (Marivaux, La Surprise de l’amour, acte III, scène 2)11 (07) Où en suis-je donc, si le Chevalier n’est point jaloux; [l’est-il? ne l’est-il point?] on n’en sait rien. (Marivaux, La Seconde Surprise de l’amour, acte II, scène 6)12 (08) [Vous dites que vous le garderez, vous ne le ferez point] (Marivaux, Les Fausses Confidences, acte III, scène 6)13 11 Tradução sugerida: Sr. Lélio vos ama, Senhora, tenho certeza, o seu bilhete foi picado, ele o recebeu com raiva, ele o leu, [ele empalideceu, ele avermelhou.] 12 Tradução sugerida: Onde estou, portanto, se o Cavaleiro não é o ponto de ciúmes; [É ele? Ele não é o ponto?] não sabemos nada. 13 Tradução sugerida: você diz que o manterá, você não o fará. 31 b) Justaposição–gradação: os segmentos articulados “crescem” em uma escala argumentativa e possuem marcas cronológicas, como é exemplificado em (09). Este tipo de justaposição inclui frequentemente mais de dois termos e possui seguinte estrutura: E (p1) + E (p2)... + E (pn) onde p2 > p1, ... pn > pn-1 (09) [Renverse, ravage, brûle, enfin épouse], je te le permets si tu le peux. (Marivaux, Le Jeu de l’amour et du hasard, acte II, scène 1)14 c) Justaposição causal: Béguelin (2010) identificou nas peças de teatro dois tipos de ordenação das justapostas causais, a ordem (i) causa-consequência e (ii) consequência- causa: (i) A ordem causa-consequência pode também ser interpretada em termos de sucessão ou concomitância temporal: (10) [Vous m’appelez, je viens;][vous marchez, je vous suis:] (Marivaux, La Seconde Surprise de l’amour, acte I, scène 1)15 (ii) Na ordem consequência-causa o movimento discursivo é do tipo explicativo. No exemplo 11, o locutor verbaliza uma ação na primeira oração e aponta o fato a partir do qual foi desencadeada a ação na segunda oração. (11) [Je ne saurais vous répondre, je me sens un peu indisposée;] (Marivaux, La Seconde Surprise de l’amour, acte III, scène 10)16 14 Tradução sugerida: [Reverta, destrua, queime, finalmente, despose]. Eu lhe permito, se você puder. 15 Tradução sugerida: [Você me chama, eu venho;][você caminha, eu estou com você] E (p) + E (q), p e q entram em uma relação de antecedência-consequência E (p) + E (q), p e q entram em uma relação de consequência-antecedência 32 d) Justaposição justificativa: segundo Béguelin (2010), este tipo de justaposta trata também das causais, porém no nível ilocutório. As ocorrências mais frequentes nos teatros configuram-se em duas ordens: jussivo-justificativa, exemplificado em (12), e justificativa- jussivo, exemplificado em (13). Em ambos os casos, o principal propósito é o de justificar o ato imperativo realizado pela enunciação adjacente: (12) [Retirez-vous, Lisette, vous me déplaisez, là.] (Marivaux, La Seconde Surprise de l’amour, acte II, scène 7)17 (13) Monsieur, [j’ai à vous parler d’une affaire; ne vous éloignez pas.] (Marivaux, Les Fausses Confidences, acte 1, scène 8)18 e) Justaposição em que o segundo segmento configura-se um comentário: de acordo com a autora, os exemplos desse tipo de justaposição, ilustrados em (14) e (15), são do tipo “ação + continuação”, em que a enunciação continuativa comenta aspectos da enunciação prévia. É possível encontrar, frequentemente, elementos anafóricos “neutros” na segunda oração (cf. JOHNSEN, 2008 apud BÉGUELIN, 2010, p. 18). A estrutura é a seguinte: (i) Comentário de re: este comentário é constituído por um anafórico resumitivo (cela) que retoma toda a enunciação anterior; (14) Vous êtes tous deux aimables, [l’amour s’est mis de la partie, cela est naturel] (Marivaux, La Mère confidente, acte I, scène 1)19 16 Tradução sugerida: Eu não saberei te responder, sinto-me um pouco indisposta. 17 Tradução sugerida: Retire-se, Lisette, você me desagradou. 18 Tradução sugerida: Senhor, eu tenho que vos falar sobre um assunto, não vos afaste. 19 Tradução sugerida: Vocês dois são amáveis, [o amor é colocado em jogo, isso é natural.] E ação + E continuação (comentário de re ou de dicto) 33 (ii) Comentário de dicto: este comentário especifica o ato da linguagem anteriormente realizado; (15) (…); [ne me refusez pas, je vous en conjure]. (Marivaux, Le Jeu de l’amour et du hasard)20 f) Justaposição em que o primeiro segmento é preparatório: neste tipo de justaposição, de acordo com Béguelin (2010), a enunciação inicial refere-se à situação de fala e/ou tematiza as condições de êxito do ato de linguagem subsequente, estabelecendo uma relação de confiança e de cooperação entre os interlocutores. As sequências apresentam basicamente estrutura abaixo: (16) [Croyez-moi, disons la vérité.] (Marivaux, Les Fausses Confidences, acte I, scène 12)21 (17) [Je vous le répète encore, le coeur de Dorante va bien vite;] (Marivaux, Le Jeu de l’amour et du hasard, acte II, scène 1)22 g) Justaposição confirmativa: Neste tipo de justaposição, o segundo período responde em forma de eco, de maneira resumida, o conteúdo do primeiro período, produzindo um efeito de confirmação ou de insistência: E (p) + E (q) em que q repete o núcleo verbal de p (18) [tu vois bien que j’ai raison de dire qu’il faut aller doucement avec cet espritlà; tu le vois bien] (Marivaux, Les Fausses Confidences, acte III scène 1)23 20 Tradução sugerida: (...); não me recuses, eu te peço. 21 Tradução sugerida: Acreditem em mim, digo-vos a verdade. 22 Tradução sugerida: Vou lhes repetir novamente, o coração de Dorante bate bem rápido. 23 Tradução sugerida: Você vê que eu estou certo em dizer que temos que ir devagar com este espírito, você vê? E preparatório = chamado/apelo ou V dicendi + E assertivo 34 Para este trabalho, adotamos parte da tipologia desenvolvida por Béguelin (2010) para as paratáticas justapostas, tais como justaposição contrastiva e justaposição causal. São relevantes para nós algumas características ou marcas dos tipos de justapostas apontadas pela a autora, tais como o paralelismo estrutural e o antagonismo lexical das contrastivas, as possibilidades de ordenação das causais do tipo causa/consequência e do tipo justificativa que envolvem imperativas ou atos de fala. A noção de parataxe defendida pela autora, que admite a existência de uma dependência semântica particular entre os segmentos articulados, também é bastante significativa, sobretudo quando se refere à possibilidade da existência de dependência sintática entre as orações aproximando, na sua perspectiva, a parataxe da hipotaxe. É relevante também, para esta pesquisa, o trabalho desenvolvido por La Fauci (2010), que busca esclarecer alguns paradoxos envolvendo as noções de parataxe e de hipotaxe, bem como desmistificar a rigidez da oposição parataxe e hipotaxe, que caracteriza a tradição gramatical. Para La Fauci (2010), a parataxe é um processo de composição de orações complexas em que, por meio de uma valorização sintática “pôr ao lado” (adotando uma metáfora espacial), formam-se termos de uma relação paritária, em oposição à hipotaxe em que se criam termos de uma relação hierárquica. O autor contesta propostas que admitem simplicidade à parataxe e complexidade à hipotaxe. O autor assume que a parataxe, e não a hipotaxe, tem uma linearidade rígida que recupera a linearidade temporal dos eventos do mundo. Para o autor, a parataxe obedece à ordem intrínseca da manifestação linguística, submetida à “tirania do tempo”, enquanto que a hipotaxe “joga a carta da hierarquia” e reivindica uma margem, ainda que pequena, de escolha e de liberdade quanto ao posicionamento de suas orações. La Fauci conclui que a parataxe é menos livre que a hipotaxe e que ela está mais sujeita a restrições do que a hipotaxe: 35 O estudo da parataxe (e de sua natureza em relação à hipotaxe) não requer um modelo de sintaxe simples [...] Ele requer uma noção de língua mais adequada à natureza do processo de composição de orações, pois (é banal relembrar isso) quanto menos evidente for um processo, mais difícil será sua determinação. E a composição paratática é menos evidente que a construção em hipotaxe, o que faz com que a linguística, quanto à parataxe, tenha de considerar os falantes, o seu trabalho de conceitualização, frequentemente obscuro, e a complexidade subjacente ao que eles fazem. (2010, p. 104, tradução nossa) 24 A simplicidade aparente da parataxe pode ser exemplificada, para o autor, por meio de uma paratática justaposta do tipo Veni. Vidi. Vici. (Vim. Vi. Venci) - famosa construção latina proferida por Júlio César –, dado que evidencia uma ideia suficientemente articulada e, ainda, com descrição de suas passagens. Com isso, o autor afirma que é ingenuidade acreditar que o contraste entre parataxe e hipotaxe consiste em um contraste entre menos ou mais sintaxe e entre uma sintaxe menos ou mais rica, mas, ao contrário, diz respeito à sintaxe mais explícita, referindo-se à hipotaxe, e uma sintaxe mais implícita, referindo-se à parataxe. Para o autor, o fato de a composição paratática ser menos evidente que a composição hipotática faz com sua determinação seja mais dificultosa, portanto, mais complexa do que a hipotática, mas não impossível de interpretação, assim como postulou Taboada (2009). Além disso, conforme La Fauci (2010, p. 106), o implícito da paratática faz com que o interlocutor colabore ativamente na interpretação da relação: Em relação ao explícito da hipotaxe, no caso de parataxe, o locutor elabora um implícito semântico e formal que pede sempre a colaboração ativa do interlocutor. A partir dos indícios colocados a sua disposição, este último reconstrói uma relação pessoal entre uma interpretação e uma forma. Nesse 24 L’étude de La parataxe (et de sa nature par rapport à l’hypotaxe) ne demande pas un modèle de syntaxe simple [...] Elle demande une idée de langue plus adéquate à la nature de processus des phénomènes à étudier, car (il est banal de le rappeler) moins un processus est évident, plus sa détermination est difficile. Et la composition en parataxe a moins d’évidence que la composition en hypotaxe, ce qui comporte que la linguistique, au sujet de la parataxe, doit rendre justice aux locuteurs, à leur travail de conceptualisation souvent obscur et à la complexité sous-jacente de ce qu’ils font. 36 momento, o que elaboramos é fruto de nossa experiência fixada em nossa memória [...].(tradução nossa )25 La Fauci (2010) acredita que a projeção de uma construção complexa em um eixo de um continuum não é a maneira mais apropriada para apreendermos a verdadeira natureza dessas composições, já que ao inserirmos uma determinada construção sobre uma linha contínua, entendemos que em suas extremidades há dois modos de articulação de orações prototípicos: a parataxe perfeita e a hipotaxe perfeita, dicotomizando-as e, ao mesmo tempo, afirmando a existência de estado de pureza dessas construções. Para o autor, não há a possibilidade de uma sistematização precisa sobre o lugar da parataxe e da hipotaxe, pois elas podem apresentar traços comuns. La Fauci (2010) complementa tal hipótese citando Torterat (2000), para quem não existem falsas coordenações ou falsas subordinações, mas, ao contrário, existem ambas ao mesmo tempo. O que extraímos do trabalho de La Fauci (2010), como relevante para esta investigação, diz respeito à consideração da parataxe como modo de combinação de oração mais complexo que a hipotaxe, não pelo fato de seguir uma ordem rígida das orações, já que a depender o tipo de relação há a possibilidade de inversão da ordem das orações, mas pela mobilização de pistas diversas para sua interpretação, solicitando do interlocutor uma colaboração mais ativa na comunicação. Numa linha de investigação similar, Paiva e Braga (2010) analisaram as sequências justapostas e as sequências coordenadas com e suscetíveis de interpretação causal no nível referencial26, no português brasileiro (PB) falado do Rio de Janeiro entre 1980 e 1984, com 25 Par rapport à l’explicite de l’hypotaxe, dans le cas de la parataxe le locuteur élabore un implicite sémantique et formel qui appelle toujours la collaboration active de l’interlocuteur. A partir des indices mis à sa disposition, celui-ci reconstruit un rapport personnel entre une interprétation et une forme. Or, ce qu’on élabore, ce qui est le fruit précieux et pénible de notre expérience et de notre labeur se fixe dans notre mémoire [...]. 26 Segundo Sweetser (1990, apud PAIVA; BRAGA, 2010), nas paratáticas justapostas, como também naquelas marcadas morfologicamente com juntor, a relação causal pode ser interpretada tendo em vista três domínios ou níveis distintos, são eles: (i) domínio de conteúdo ou referencial, (ii) domínio epistêmico e (iii) domínios dos atos de fala. De acordo com Neves, Braga e Dall´Aglio-Hattnher (2008, p. 949), no domínio do conteúdo, a interpretação da causalidade deriva de estados de coisas que estão relacionados por uma causalidade em um 37 intuito de mostrar que a escolha do falante entre essas duas formas de expressão, aparentemente equivalentes, apresenta consequências na organização do discurso. Ao analisarem a relação causal no nível referencial - causa concreta em que há implicações - Paiva e Braga (2010) afirmam que a causalidade apresenta-se com uma constituição estrutural essencialmente binária e que ela exerce um papel bastante relevante tanto para o estabelecimento da coesão e coerência discursiva, quanto na expressão da subjetividade. No entanto, para as autoras, a definição do conceito de causalidade, sobretudo com relação as suas fronteiras com outras relações semânticas próximas (tempo, razão, justificativa, finalidade, condição, concessão), não são claras. As autoras, que discutem a justaposição e a coordenação como duas formas de parataxe, assumem, em concordância com Halliday (1985), que a parataxe estabelece uma ligação entre duas unidades com mesmo estatuto, simétricas, autônomas e com uma sequencialidade que cumpre um papel fundamental. Como parâmetros caracterizadores das paratáticas em questão, as autoras utilizam: ordem da sentença, nível hierárquico e simetria morfossintática. Paiva e Braga (2010, p. 328) sustentam a natureza mais integrativa27 das construções paratáticas justapostas. Essa integração mais estreita das justapostas, de acordo com as autoras, é decorrente da associação de uma simetria mais clara, ou seja, de uma combinação de traços pertencentes a diferentes níveis (morfossintático e semântico) e da possibilidade de superposição entre causa e efeito, em que a relação dos eventos é quase que simultânea. Isso acaba por configurar, nas justapostas, um contexto de continuidade máxima (continuidade temporal, referencial e de ação) em que a sequência paratática evidencia o evento em sua mundo qualquer (em um mundo real/físico), em outras palavras, a causalidade é uma ação concreta realizável no mundo; no domínio epistêmico a relação causal é estabelecida entre uma conclusão ou crença, por um lado, e as suas “causas” ou motivação, por outro lado, em que um fato real justifica não outro fato real, mas sim uma expectativa; no domínio dos atos de fala, a oração construída por um ato de fala associa-se a outra oração que oferece a “causa” daquele ato de fala e que, por esta razão, traz uma “explicação”. 27 La nature intégrative des énoncés juxtaposés . 38 totalidade e não em suas partes constituintes. As sequências justapostas são mais integrativas, assim, segundo as autoras, por apresentarem um status de unidades, em que cada complexo paratático pode ser interpretado como um único evento. Para as autoras, essas particularidades das justaposições têm consequências diretas em duas dimensões discursivas (p. 329): “No nível da conexão, na medida em que esses procedimentos acionam relações funcionais entre as frases; no nível da coesão, por sua propensão em assegurar a solidariedade referencial, temporal e acional” (tradução nossa) 28. Paiva e Braga (2010, p. 318) explicam que a interpretação causal, tanto em coordenadas com e quanto em justapostas, repousa, em grande parte, na sucessão temporal entre os eventos apresentados: “se um evento X precede um evento Y, X pode ser a causa de Y”. As autoras reconhecem que, no plano linguístico, a sucessão temporal dos eventos pode ser traduzida pela ordem das proposições, isto é, a proposição causa precede a proposição efeito. Sendo assim, uma possível inversão da ordem das proposições pode acarretar um nexo de causalidade menos transparente, mas não inválido. Isto significa que, embora no nível da representação cognitiva a organização das proposições seja pautada pelas relações icônicas, no nível linguístico tal tendência deve ser relativizada, pois é possível que no discurso haja sequências em que o efeito preceda a causa, como no exemplo (19), extraído do trabalho das autoras. Elas ainda destacam o fato de que a violação do princípio de iconicidade está mais associado com a justaposição do que com enunciados articulados com e. (19) Mas, Ø surpreendeu, Ø ganhou do Flamengo. (efeito/causa) (p. 319) 28 Au niveau de la connexion, dans la mesure où ce procédé met en oeuvre des rapports fonctionnels entre les phrases; au niveau de la cohésion, par leur aptitude à assurer la solidarité référentielle, temporelle et actionnelle. 39 As autoras alegam que “[...] a sucessão temporal é, supostamente, uma condição necessária, mas não é condição suficiente para a interpretação causal” (tradução nossa)29 (p. 320), uma vez que é possível que se tenha uma declaração temporal sem que se tenha, no entanto, leitura causal. Paiva e Braga (2010) defendem, assim como Hopper e Traugott (1993), que a causalidade, na verdade, excede a sequencialidade temporal, já que ela depende da plausibilidade dos eventos discursivos, não operando fora das relações discursivas e das intenções do locutor: “o elo da causalidade emerge mais de aspectos sociais e cognitivos do que de aspectos lógicos” (MEYER, 2000 apud PAIVA; BRAGA, 2010). Outro ponto levantado por Paiva e Braga (2010), quanto às características das construções justapostas causais, refere-se ao partilhamento de tempos e modos verbais, mais precisamente à tendência de se colocar em relevo o traço realizado nas sequências justapostas, reforçada pela presença do verbo tipo pontual na oração efeito. Contudo, ressaltam que essa identidade temporal não se trata de um aspecto categórico. Além disso, as autoras chamam a atenção para o fato de que, quando as duas proposições de sequências justapostas estão no tempo presente, ocorre um enfraquecimento do nexo de causalidade, ocasionando uma interpretação causal menos transparente e sugerindo uma interpretação condicional, como, por exemplo, em (20), abaixo, também extraído das autoras: (20) Aumenta a gasolina, aumenta tudo. (p. 324) As autoras também analisaram as paratáticas causais de conteúdo quanto à correferência dos sujeitos e chegaram à conclusão de que as “justapostas são mais propensas à correferência do que as sequências coordenadas”, tendo em vista o trabalho de Raible (2001, apud PAIVA; BRAGA, 2010), para quem a continuidade referencial consiste em um dos pilares da junção. 29 [...] la succession temporelle est censée être une condition nécessaire, elle n´est pas pour autant une condition suffisante pour l´interprétation causale. 40 Há várias questões em Paiva e Braga (2010) que são relevantes para nossa investigação, sobretudo com relação aos parâmetros de análise adotados pelas autoras, os quais também são válidos aos nossos propósitos, especialmente a ordem das sentenças e a simetria morfossintática avaliada em termos de correlação modo/tempo e de partilhamento de sujeitos. Tal como Hopper e Traugott (1993), as autoras defendem que a concordância entre tempos e modos verbais é um indício de maior integração oracional. Consideramos, assim, importante a discussão, levantada pelas autoras, acerca da natureza mais integrativa das paratáticas justapostas que interpreta cada oração como um único evento. Aproximamos-nos também do trabalho de Pekarek Doehler et al. (2010) que analisaram o mecanismo de ligação das construções paratáticas justapostas a partir das paratáticas que veiculam contraste, em um corpus de vinte horas de entrevista semidiretiva. Os participantes das entrevistas discutem com os entrevistadores o tema da aquisição de linguagem e o bilinguismo, utilizando um tom relativamente informal. Para os autores, é no estudo da linguagem em seu “habitat natural” que novos conhecimentos sobre o fenômeno da parataxe são proporcionados. Nessa investigação, Pekarek Doehler et al. (2010) concentram-se em dois pontos especiais: (i) as bases de ligação entre os constituintes de uma configuração paratática; e (ii) as formas de realização recorrentes das configurações paratáticas na interação. Pekarek Doehler et al. (2010) buscam, assim, examinar os fatores que contribuem para formatar a ligação entre as construções predicativas articuladas de modo paratático e analisar o que faz com que duas orações justapostas na sequência falada sejam interpretadas, tanto pelos pesquisadores quanto pelos interlocutores, como uma sequência paratática contrastiva. Os autores entendem a relação contrastiva não apenas como uma operação lógico- semântica entre duas construções predicativas conectadas parataticamente, conforme Béguelin (2010), mas como uma atividade realizada por um ou mais locutores, em que as estruturas 41 sintáticas intervêm como recursos permitindo a criação de um contraste. Segundo os autores, uma relação de contraste configurada por meio de justaposição, como é exemplificado em (21), é reconhecida devido a uma série de meios sintáticos, léxico-semânticos e prosódicos que dispõem de paralelismos e os relacionam para a criação de sentido. No plano sintático, observa-se um paralelismo estrutural (a estrutura de termos coordenados entre si é idêntica) em que as propriedades léxico-semânticas das orações produzem leitura contrastiva por meio do antagonismo semântico (relações de oposições) ou por meio da presença e da ausência de negação, como é possível observar em (21), em que a leitura contrastiva é estabelecida pelo antagonismo semântico de jamais/toujours (nunca/sempre) e de au-dessus/dans (acima/na), na primeira configuração paratática, e por maîtrise/habite (dominamos/vivemos), na segunda configuração, e pela presença e ausência de negação exibidas em ambas configurações. Já no plano prosódico, os autores reconhecem que, em uma construção contrastiva, o primeiro constituinte dispõe de um contorno entoacional ascendente continuativo, assim como o segundo constituinte, que é mais marcado e dinâmico, acarretando em um novo paralelismo. (21) or on (n’) est jamais au-dessus de la langue on est toujours dans la langue ((aspiration)) on ne la maîtrise pas on l’habite/ (corpus FNRS A)30 A parataxe é definida pelos autores como “sequência assindética de pelo menos duas construções predicativas cuja ligação não é explicitamente expressa por marca segmental de subordinação ou de coordenação” (2010, p. 387). De acordo com Pekarek Doehler et al. (2010), as configurações paratáticas apresentam-se sob formas mais complexas que os pares de construções predicativas frequentemente documentadas na literatura, compatibilizando com La Fauci (2010), uma vez que elas podem se “encaixar” em configurações sintáticas maiores. De acordo com os autores, a ligação paratática não se configura apenas em função de 30 Tradução sugerida: [...] porém nós não estamos jamais acima da língua nós estamos sempre na língua ((aspiração)) nós não a dominamos nós a vivemos/ 42 propriedades morfossintáticas, semânticas, lexicais e prosódicas, mas ela pode estar prefigurada pelo discurso precedente tanto nos níveis acional e conceitual31, quanto no nível sintático. A configuração paratática, dessa forma, não deve ser interpretada isoladamente ou descontextualizada, pois ela ocorre em pontos do discurso em que podem ser explorados esquemas anteriormente produzidos. Além disso, a parataxe pode se calcar sobre um esquema semântico-pragmático utilizado por uma hipotaxe precedente, isso não significa, no entanto, que a ocorrência de uma hipotaxe determina a forma da parataxe seguinte. No exemplo (22), os autores analisam a ocorrência em (21), em seu contexto discursivo ampliado: (22) corpus FNRS A R : oui oui moi il me semble qu’on apprend pas assez les langues à l’école parce que il y a ce mythe de perfectionnisme Q : mhm [mhm R : [hein on dit il faut il faut que nos ((aspiration)) il faut que les enfan:ts eu:h. eu::h soient conduits à une maîtrise de la langue/ or maîtrise c’est déjà un mot tout-à-fait faux/= B : =et utopique R : il est faux/ Q : mhm R : parce que ce i- i- il veut il donne une image il donne l’image qu’on est nous. qu’on se place au-dessus de la langue or on (n’) est jamais au-dessus de la langue on est toujours dans la langue ((aspiration)) on ne la maîtrise pas. on l’habite/. hein32 Tendo em vista a análise do contexto de enunciação do exemplo (22), Pekarek Doehler et al. (2010, p. 395) afirmam que, desde a primeira linha, o locutor R se coloca 31 Analisando a relação de contraste em contexto maior que o nível da oração, Pekarek Doehler et al. (2010) entendem que a ligação entre os constituintes das configurações paratáticas é assegurada tanto no nível acional, ou seja, pela atividade em si do estabelecimento da relação de contraste pelo locutor, quanto no nível conceitual, ou seja, pela mobilização de conceitos opostos. 32 Tradução sugerida: R: sim a mim me parece que não se aprende o suficiente as línguas na escola porque há esse mito de perfeccionisme Q: mhm [mhm R: [hein dizem que é necessário que nós ((aspiração)) é necessário que as crianças:ças eu:h eu:h sejam conduzidas a um domínio da língua/ porém domínio já é uma palavra de fato falsa/= B: =e utópica R: ela é falsa Q: mhm R: porque isso qu-qu-quer dá uma imagem que somos nós. Que nos colocamos acima da língua, porém nós não estamos jamais acima da língua nós estamos sempre na língua ((aspiração)) nós não a dominamos nós a vivemos/. hien 43 contrário àquilo que é apresentado como ideologia dominante do ensino de língua na escola, ou seja, à primazia por um domínio perfeito da segunda língua. R caracteriza o termo maîtrise (domínio) como faux (falso), evocando implicitamente uma oposição entre aquilo que é falso e aquilo que é verdadeiro, correto. O locutor, assim, reconhece um contraste categorial do tipo falso X correto, iniciando a produção de contraste. B toma a fala e formula uma continuação do turno precedente, acrescentando et utopique (e utópico) à fala de R, mas, este rejeita essa proposição ao reafirmar que Il est faux (ela é falsa). Esse momento de desacordo ocasiona uma atividade de explicação de R, acentuado por um parce que (porque), que culmina no contraste evidenciado em (21). A partir dessa análise, Pekarek Doehler et al. (2010) concluem que os falantes não produzem construções paratáticas em qualquer momento, mas em pontos do discurso onde elas podem ser exploradas por meio de esquemas anteriormente produzidos. A complexidade da estrutura paratática também está ligada à ideia de projeção apresentada pelos autores, os quais alegam que é por meio desse mecanismo que os interlocutores também conseguem interpretar um enunciado complexo sem um marcador morfossintático explícito. A projeção, de acordo com Hayashi (2004, apud PEKAREK DOEHLER et al. 2010, p. 403), “refere-se à característica da conduta humana que pressupõe possíveis trajetórias de como uma ação (ou uma sequência de ações) pode desenvolver-se no momento seguinte [...]”33. Os autores destacam que o conceito de projeção está relacionado ao de sequencialidade, isto é, à noção de que a interação se expande articulando momentos de ações precedentes e posteriores e ainda projetando possíveis ações sucessivas: O começo desses enunciados projeta um esquema construcional, de modo que um interlocutor possa não somente distinguir pontos de incompletude possíveis, como também prever a forma futura do discurso ou até mesmo 33 projection refers to the feature of human conduct that prefigures possible trajectories of how an action (or a sequence of actions) might develop in the next moment […] 44 completar antecipadamente [...] a configuração sintática possível. (2010, p. 404, tradução nossa)34 Consideramos de grande valia para este trabalho os padrões sintáticos e léxico- semânticos adotados pelos autores para a interpretação de contraste em uma construção com juntor ausente. O padrão prosódico, no entanto, não foi considerado na análise dos dados desta pesquisa. É relevante também o argumento defendido por Pekarek Doehler et al. (2010) de que a ligação paratática não é configurada somente pelas propriedades morfossintáticas, semânticas e lexicais, mas que ela pode estar prefigurada pelo discurso precedente e pode ser identificada por meio das projeções semântico-pragmáticas. Tais aspectos linguísticos podem auxiliar na codificação das relações paratáticas justapostas e, portanto, podem ser consideradas parâmetros para análise dos dados. Outro trabalho que contribuiu com nossa reflexão foi o de Hirata-Vale (2008), que analisou o uso de construções paratáticas justapostas, coordenadas disjuntivas e aditivas com valor condicional, ou seja, orações que apresentam estruturas diferentes da canônica se p então q. O objetivo da autora foi mostrar que diferentes fatores linguísticos e extra- linguísticos favorecem uma interpretação condicional em construções onde não há conjunção condicional. De modo geral, a autora defende que as construções paratáticas se prestam a um uso argumentativo quando expressam o valor condicional. As ocorrências analisadas por ela foram retiradas de peças de teatro, novelas, romances, manuais técnicos, editoriais jornalísticos dos últimos cinquenta anos. A concepção adotada pela autora em relação ao processo de articulação de orações difere-se daquela apresentada nos estudos tradicionais, em que há uma divisão discreta entre coordenação e subordinação, e aproxima-se da perspectiva 34 Le début de tels énoncés projette un schema constructionnel, si bien qu’un interlocuteur peut non seulement repérer des points de complétude possibles, prédire au discours sa forme future, voire aller jusqu’à compléter de manière anticipatoire [...] la configuration syntaxique possible. 45 de base funcionalista que estabelece a existência de um continuum da parataxe à subordinação. Hirata-Vale (2008, p. 214) afirma que a ordem de ocorrência da prótase e da apódose é considerada definidora de um complexo condicional. Baseada em Haiman (1983, 1986 apud HIRATA-VALE, 2008), a autora destaca o fato de haver uma identidade estrutural entre as condicionais e as paratáticas em virtude de também identificar nas paratáticas uma ordem linear entre o evento antecedente e o evento consequente (orações estruturadas tendo em vista a ordem que ocorrem os eventos no mundo). As paratáticas são formadas, assim, por um vínculo causal, o qual, conforme a autora, é o mesmo vínculo estabelecido nas condicionais e que leva, por sua vez, a uma ordenação icônica das orações paratáticas que vai da causa para a consequência, como em (23), retirado do trabalho da autora. Para Hirata-Vale (2008), a consequência deve ser entendida não apenas em um nível semântico (significando a relação de causa/efeito), mas também em um nível pragmático, uma vez que pode apreender entre as orações uma relação de relevância. (23) Bom, prá encurtá, o advogado ficô com oitenta conto. Pro pobre sobraram cento e vinte. Agora, ocê pode fazê a conta: cento e vinte conto pra vive e pagá remédio... Num durou nem ano e pouco. Chi! O coitado ficou num desespero. A filha largô dele, foi morá com um garcom!... A mulher, coitada, já estava mesmo que não podia... morreu faz poucos mês... Mas ele foi se acostumando. Hoje tá que nem liga. - É sim; baixô a desgraca, primeira coisa que some é a vergonha! (AS-LD) De acordo com a autora, na construção em destaque, a oração prótase (baixô a desgraça) é a causa para o evento que se dá na oração apódose (primeira que some é a vergonha), isto é, o falante argumenta que sempre que a desgraça chega, some a vergonha. Hirata-Vale (2008) acredita que em construções como a apresentada a ordem das orações é iconicamente motivada, isto é, que não existe a possibilidade de comutação e que, por essa razão, a oração prótase de uma construção paratática condicional funciona como tópico - 46 “dados que constituem a moldura para o discurso seguinte (HAIMAN, 1978 apud HIRATA- VALE, 2008, p. 215). De acordo com Hirata-Vale (2008), as construções paratáticas justapostas podem receber uma interpretação condicional quando são consideradas atos de fala que expressam ordens, ameaças, promessas, situações habituais ou genéricas, podendo se tornar, ao longo do tempo, expressões proverbiais, como ilustram as ocorrências (24), (25) e (26); tais construções podem também ser usadas como estratégias de indução ou de intimidação por parte do falante, a fim de atingirem seus propósitos comunicativos. Além disso, a autora salienta, tomando como base Auwera (1986, apud HIRATA-VALE, 2008, p. 218), que, em uma construção onde não há a conjunção condicional, faz-se necessário que se leve em conta o sentido construcional da ocorrência, ou seja, é preciso que se considere a construção como um único ato de fala condicional. (24) Pedro Mico: Olha, mulher que estiver com Pedro Mico ninguém chama disto não. Nem que ela tenha passado em revista todo o Corpo dos Fuzileiros Navais. Nem que tenha sido do Mangue no tempo do cincão. Pendurou no meu braço é moça donzela de novo. (PM-LD) – situação habitual (25) Helena: O que foi que você disse ? Joaquim: Não chove, não pode haver café. Helena: Hoje, tudo está ficando diferente ! Não compreendo mais nada. De primeiro, tempo de chuva era tempo de chuva. Joaquim: Não há mais café como antigamente. (MO-LD) – situação genérica (26) Clóvis: Que não o que. Vamos ganhar. E assim tiramos a garganta dele. Dona Marta: Marido contra mulher não adianta. Tonico: Adianta, sim. No jogo temos economia separada. Perdeu, pagou. Se não tem dinheiro, compro as ações dela. Ela tem mais ações na Santa Marta que eu. (SM-LD) – “quase proverbial” Defendemos em nosso trabalho que a ordenação das orações justapostas nem sempre segue a ordem dos eventos no mundo, ou seja, nem sempre é rígida, pois há relações semânticas, como as causais do tipo referencial, em que a inversão não implica opacidade na interpretação. Contudo, acreditamos que o vínculo causal das construções paratáticas condicionais, discutido por Hirata-Vale (2008), bem como os tipos de condicionais – as que 47 expressam ordem, ameaça, promessa, situação habitual ou genérica – são fortes indícios na caracterização de uma relação justaposta com valor de condição. Igualmente interessante a esta pesquisa são as discussões conduzidas por Traugott e König (1991). Em uma investigação dos processos semântico-pragmáticos envolvidos nos estágios iniciais de gramaticalização, especificamente no desenvolvimento de itens lexicais em clíticos, auxiliares e conectivos, os autores discutem a noção de inferência e defendem que o desenvolvimento de conectivos causais, concessivos e marcadores de preferência envolve inferência do tipo reforço de informatividade. O princípio de informatividade ou relevância, segundo os autores, orienta os falantes no sentido de obter maior clareza e especificidade do enunciado; e os ouvintes, na seleção da interpretação mais informativa ou relevante. Segundo Traugott e König (1991), assim como Hopper e Traugott (1993), Taboada (2009) e Paiva e Braga (2010), a interpretação de uma relação causal, em construções paratáticas onde os juntores não estão explícitos, pode ser sustentada por meio de inferências conversacionais, ou seja, o interlocutor tem a capacidade de mobilizar seu conhecimento pragmático, a partir do material linguístico disponível, a fim de preencher o ato comunicativo, construindo, assim, o sentido. Ao discutirem sobre a “causa inferida”, os pesquisadores defendem que as inferências conversacionais habilitam as noções de causa a partir de fatos temporais e que, por meio deles, podem surgir as polissemias tempo-causa. A fim de evidenciar o fortalecimento de informatividade, os autores apresentam nos exemplos (27), (28) e (29) um caso de gramaticalização da conjunção since, do inglês, envolvendo a polissemia entre os sentidos temporal e causal: (27) I have done quite a bit of writing since we last met. (temporal)35 35 Tradução sugerida: Eu deixei de escrever desde o nosso último encontro. (temporal) 48 (28) Since Susan left him, John has been very miserable. (temporal/causal)36 (29) Since you are not coming with me, I will have to go alone. (causal)37 Os autores apontam que, em (27), a leitura de since é tipicamente temporal, referencial; já em (29), since possui uma interpretação tipicamente causal, com o sentido convencionalizado; em (28), por sua vez, since permite duas leituras, apresentando sentidos obscurecidos ou ambíguos: uma convencional (temporal) e outra conversacional (causal). Para esse tipo de polissemia, os autores defendem que a leitura tipicamente causal ocorre quando a construção refere-se a um evento não-passado ou a um estado. Segundo Traugott e König (1991), em uma construção contrastiva tanto as adversativas, quanto as concessivas conferem superioridade ao conteúdo de uma das orações, referindo-se à noção de “preferência”: nas construções adversativas, as orações encabeçadas pelo but (mas) são consideradas as mais relevantes, em contrapartida, nas construções concessivas, as orações encabeçadas pelo although (embora) são reconhecidas como as menos relevantes na construção. Outra diferença entre adversativas e concessivas, ressaltada pelos autores, refere-se à marca da temporalidade nas construções que pode estar presente na derivação dos sentidos: enquanto que nas adversativas encontramos uma concomitância temporal, nas concessivas a simultaneidade pode ser quebrada. Embora a abordagem de Traugott e König (1991) traga uma perspectiva diferente, a da mudança, em relação às anteriormente analisadas, mostra relevância para este trabalho por trazer as noções de inferência e de ambiguidade, as quais são importantes na interpretação das construções justapostas, e por discorrer sobre pontos oportunos acerca das relações causal e contrastiva. 36Tradução sugerida: Desde que Susan o deixou, John foi muito infeliz. (temporal/causal) 37 Tradução sugerida: Já que você não vem comigo, vou ter de ir sozinho. (causal) 49 Por fim, destacamos Kortmann (1997) que também trata de noções pertinentes a esta pesquisa, ainda que seu principal foco de trabalho seja a gramaticalização de juntores. Kortmann (1997), ao sistematizar um conjunto de mudanças envolvendo os subordinadores adverbiais, propõe um estudo tipológico sobre gramaticalização de juntores adverbiais em línguas europeias. Das discussões de Kortmann, interessa para nós a proposta dos quatro sistemas semântico-cognitivos que relacionam-se, estabelecendo parentescos semânticos e padrões de polissemia. Os quatros grandes domínios são: Tempo (simultaneidade, anterioridade, posterioridade, contingência, etc.), Modo (modo, comparação, meio, proporção, etc.), Lugar e CCCC (causa, condição, contraste, concessão). Segundo Kortmann (1997), a mudança semântica é fortemente direcional e as relações polissêmicas entre os domínios semânticos é que condicionam as mudanças, direcionando-as a um aumento de complexidade de relações cognitivas. O autor afirma que entre as relações semânticas há afinidades maiores e menores, como é sinalizado no Esquema 01 elaborado pelo autor. Tempo pode ser identificado tanto como uma relação básica ou primitiva, quanto como uma relação complexa ou derivada. Em outras palavras, Tempo pode ser tanto ponto de partida ou fonte para sentidos conjuncionais (CCCC), como também ponto de chegada ou alvo para as relações de Lugar e Modo. O esquema abaixo mostra também os diferentes graus de afinidades semânticas envolvendo Tempo: as relações semânticas de Lugar e Modo podem derivar uma relação temporal, mas o contrário não é válido – não há setas saindo de Tempo em direção a Lugar e Modo; em relação à largura da seta em direção à CCCC, observamos que, em virtude de exibir a seta mais larga, Tempo possui maior afinidade semântica com as relações de CCCC, do que com qualquer outro tipo de relação. 50 Esquema 01: Macroestrutura do universo semântico das relações oracionais LUGAR CCCC TEMPO MODO Fonte: Kortmann (1997) Segundo Kortmann (1997), as relações de parentesco semântico ajudam a compreender padrões recorrentes de polissemia e ambiguidades pragmáticas, nas perspectivas sincrônicas e diacrônicas. As polissemias, bem como as mudanças semânticas envolvendo juntores podem ser analisadas como resultado de inferências pragmáticas, tal como descritas por Hopper e Traugott (1993), que possibilitam tanto a criação de sentidos convencionalizados, como a permanência de sentidos polissêmicos em determinados contextos linguísticos. Com base em sua pesquisa, Kortmann confirmou a “universalidade da relação Temporal” defendida por Lühr (1989 apud KORTMANN, 1997), uma vez que Tempo, como se observa no esquema acima, tem a capacidade de alimentar outras relações semânticas como Tempo > Causa, Tempo > Contraste. No entanto, a trajetória do desenvolvimento semântico- cognitivo nesses casos não é realizada pelo mesmo tipo de relação temporal, pois o tipo de Tempo que mantém afinidade semântica com Causa é preferencialmente a anterioridade, já o tipo de Tempo que mantém afinidade semântica com o Contraste é preferencialmente a simultaneidade durativa e com a Condição é a simultaneidade com sobreposição. O autor destaca ainda que as relações temporais mostram grau baixo de informatividade, diferentemente das relações CCCC que caracterizam-se como relações cujas leituras necessitam de maior grau de informatividade, sobretudo a concessão, que é considerada a relação mais complexa de todas as CCCC. 51 Da abordagem de Kortmann (1997), o que contribui para a análise da parataxe diz respeito à reflexão sobre polissemia semântica/pragmática. É relevante para este trabalho apreender as relações de parentesco semântico a fim de que as possíveis ambiguidades possam ser reconhecidas e operacionalizadas. 1.1.6. Conclusões sobre a noção de parataxe Com o objetivo de buscar um refinamento do conceito de parataxe, mais especificamente das construções paratáticas justapostas, evidenciando os mecanismos interpretativos que estão em jogo na ausência do juntor, a presente seção apresentou um aparato teórico com trabalhos linguísticos de base funcionalista que defendem uma visão multidimensional, em que sintaxe, semântica e texto são mobilizados para a explicação do fenômeno. A teoria funcionalista adotada como base do trabalho é a sistêmico-funcional de Halliday (1985) que define a parataxe, ou relação paritária, como modo de combinação de orações independentes, de mesmo estatuto e interligadas por meio de algum tipo de relação lógico-semântica. Neves (2006) e Paiva e Braga (2010), em seus trabalhos, adotam a concepção de parataxe formulada por Halliday (1985), sobretudo quanto ao estatuto das orações. As autoras, todavia, ampliam a visão de Halliday (1985): Neves (2006) afirma que a parataxe vai além da combinação lógico-semântica da língua, podendo ser definida como eixo de organização de informação textual-discursiva; Paiva e Braga (2010) defendem que a mobilização de esquemas de representação de mundo (processo de informação inferencial) também constrói o elo de sentido que une as orações paratáticas; o elo de sentido, nesta perspectiva, é o discursivo-pragmático. As posições de Hopper e Traugott (1993) e de Béguelin (2010) também convergem com aquela de Halliday (1985) no que diz respeito à presença de uma relação lógico- 52 semântica entre os segmentos interligados. Segundo Hopper e Traugott (1993), a parataxe é caracterizada por uma independência relativa, pois o elo somente irá existir se a relação fizer sentido e se tiver relevância. De acordo com Béguelin (2010), a parataxe apenas se aplica àquelas com uma relação de dependência implícita, ou seja, com uma dependência semântica e há casos, ainda, conforme a autora, que a parataxe pode apresentar uma dependência estrutural ou sintática, quando exibir um índice formal em uma das suas proposições. A dependência estrutural aproxima a parataxe da hipotaxe, pensando no posicionamento das estruturas em um continuum, o que nos leva a conceber a parataxe e a hipotaxe como modos não discretos ou não dicotômicos de combinação de orações. La Fauci (2010) e Matthiesen e Thompson (1988), entretanto, defendem que a disposição de uma cons