UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE DE ARQUITETURA, ARTES E COMUNICAÇÃO _______________________________________________________________ SYLVIA RODRIGUES REFERÊNCIAS ÉTNICAS AFRICANAS NA MODA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA EM DUAS LEITURAS: GOYA LOPES E WALTER RODRIGUES _______________________________________________ Bauru, SP 2012 SYLVIA RODRIGUES REFERÊNCIAS ÉTNICAS AFRICANAS NA MODA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA EM DUAS LEITURAS: GOYA LOPES E WALTER RODRIGUES Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Desenho Industrial da Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação, Campus de Bauru, como requisito à obtenção do Título de Mestre em Desenho Industrial – Área de Concentração: Planejamento de Produto. Orientadora: Profª. Drª. Marizilda dos S. Menezes Bauru,SP 2012 Rodrigues, Sylvia. Referências Étnicas Africanas na Moda Brasileira Contemporânea em duas leituras: Goya Lopes e Walter Rodrigues / Sylvia Rodrigues, 2012. 85 f. Orientador: Marizilda dos Santos Menezes Dissertação (Mestrado)– Curso de Design da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho,2012. 1. Design 2. Moda e Cultura 3. Hibridismo de Culturas na Moda 4.Moda Afro-Brasileira. Dedico este trabalho à memoria de meu pai, Paulo Rodrigues e de minha mãe, Yone Vieira Rodrigues, pelo respeito e empenho que tiveram em relação às minhas aptidões e na escolha da minha área de atuação. À memória do meu tio Ermínio Rodrigues, Professor Livre Docente da Faculdade de Letras da UNESP de São José do Rio Preto, por haver me ensinado o amor pelos livros e a curiosidade pela pesquisa. Aos meus irmãos, Lygia Rodrigues e Eduardo Bom Ângelo, distantes geograficamente, mas próximos da maneira como lhes foi possível estar. À Luiza, minha filha, e aos meus sobrinhos Vitor, Gabriel e Guilherme, no desejo de ter- lhes mostrado que o tempo deve ser um aliado na busca de uma vida livre em ação e expressão, e de que não devemos cessar o movimento de busca nunca, por mais difícil que tudo nos possa parecer. AGRADECIMENTOS Agradeço a Deus e aos Espíritos de Luz por terem aberto um novo caminho em minha vida. Agradeço à Professora Doutora Marizilda dos Santos Menezes, mais que uma orientadora, pelos novos horizontes que me proporcionou. Aos amigos baianos Rildo Polycarpo de Oliveira, “poeta cientista”, e Alicio Charot, chef que cultiva os saberes de uma “gastronomia nômade”, pelas incansáveis e deliciosas conversas sobre miscigenação. A Tula Fyskatoris, por facilitar o contato com o professor de História da Moda, João Braga. Ao Professor João Braga cujas referências bibliográficas foram de extrema importância para o desenvolvimento deste conteúdo. A Maria Luiza Calim Costa e Luciana Maximino, pela amizade e solidariedade. A Goya Lopes e Walter Rodrigues, pela preciosa e desmedida colaboração e interesse demonstrados pelo tema que os definiu como meus estudos de caso. A Banca de Qualificação, pelas corretas e precisas interferências que só contribuíram para uma compreensão maior do meu tema de pesquisa. Aos funcionários da secretaria, biblioteca e a todos os professores do Programa de Pós Graduação em Design da FAAC, pela competência, gentileza e presteza demonstradas nesse tempo de convivência. REFERÊNCIAS ÉTNICAS AFRICANAS NA MODA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA EM DUAS LEITURAS: GOYA LOPES E WALTER RODRIGUES RESUMO Esta pesquisa tem por objetivo tecer reflexões a respeito do produto de moda brasileiro que pode trazer embutidas influências diretas da Matriz Africana ou do que parte da pesquisa pontual de referências étnicas, dessa mesma cultura, objetivando a criação de uma determinada coleção. O interesse por objetos africanos e a utilização de suas referências estéticas carecem de abordagem investigativa, o que nos remete à passagem dos séculos XIX e XX, na Europa, quando, no movimento Pós Impressionista, identifica-se atitude de contemplação apurada da Arte Africana, determinante na construção da forma da Arte Moderna Ocidental. No design de superfície têxtil assim como no design de moda, por meio de dois estudos de caso: Goya Lopes e Walter Rodrigues voltamos nossa atenção às formas de investigação do étnico africano; que quando tratado menos superficialmente gera um produto híbrido cuja abordagem menos exótica garante a qualidade do que é novo e original na Moda Brasileira hoje. Palavras- chave: Design, Moda e Cultura; Hibridismo de Culturas na Moda; Moda Afro-Brasileira. ABSTRACT This research aims at producing reflections about Brazilian fashion product that can bring embedded direct influences of African Matrix or what part of the research point of ethnic references, this same culture, aiming at the creation of a particular collection. Interest in African objects and using their aesthetic references lack investigative approach, which brings us to the passage of the nineteenth and twentieth centuries in Europe, when the Post-Impressionist movement, identifies the determined attitude of contemplation African Art, determining the construction of the Western way of Modern Art. In the textile surface design as in fashion design, through two case studies: Goya Lopes and Walter Rodrigues, we turn our attention to forms of African ethnical research, that when treated less superficial generates a hybrid approach which ensures less exotic quality that is new and original in Brazilian Fashion today. Keywords: Design, Fashion and Culture; Hybridism of Cultures in Fashion, Afro- Brazilian Fashion. SUMÁRIO Introdução......................................................................................................11 1. Desenvolvimento........................................................................................14 1.1 ÁFRICA E OCIDENTE: UM OLHAR SOBRE O OUTRO.........................14 1.1.1 A África que Seduziu as Vanguardas Artísticas Europeias: A Revolução por Meio da Forma..........................................................................................11 1.1.2 Henri Matisse e os Fauves.....................................................................12 1.1.3 Paul Gauguin: a Crítica ao olhar do Mundo Civilizado...........................15 1.1.4 Pablo Picasso e o Cubismo: A Crise da Cultura Europeia.....................17 1.1.5 A Nova Silhueta Moderna: O Étnico que Encantou a Moda do Início do Século XX.........................................................................................................20 1.2 MUNDIALIZAÇÃO: O ÉTNICO NA ESTÉTICA UNIVERSAL....................26 1.2.1 HIBRIDISMO CULTURAL........................................................................29 1.2.2 CULTURA BRASILEIRA MESTIÇA E MISCIGENADA...........................32 2. PROCEDIMENTOS DA PESQUISA.............................................................36 3. A ÁFRICA VISTA PELOS OLHOS DE WALTER RODRIGUES..................38 3.1 O Significado do Étnico segundo o Estilista................................................38 3.1.2 Vida e Trajetória Profissional...................................................................39 3.1.3 Coleção VERÃO 2011, Fashion Rio: “CONTINENTES”, A África segundo Walter Rodrigues...............................................................................................42 4.A ÁFRICA VISTA PELOS OLHOS DE GOYA LOPES.................................57 4.1 Vida e Trajetória Profissional de Goya Lopes.............................................57 4.2 O Significado do Étnico segundo a Estilista................................................70 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS..........................................................................71 6. REFERÊNCIAS.............................................................................................75 7. ANEXOS Os anexos encontram-se gravados em CD que acompanha a publicação. No CD estão contidos 3 anexos: a. Entrevista de Walter Rodrigues. b. Entrevista de Goya Lopes. c. Release de Walter Rodrigues para a Imprensa com material gráfico sobre a Coleção “CONTINENTES” apresentada no Fashion Rio/2011. 11 INTRODUÇÃO Observamos que denominações como étnico, tribal, primitivo, ocupam espaços privilegiados nas referências das histórias moderna e contemporânea da arte, do design de objetos e da moda ocidental. Encontrados nos editoriais das principais revistas, nos releases (textos disponíveis para publicação na imprensa, por meio dos quais as marcas apresentam seu trabalho ao público consumidor), o termo étnico aparece em quase todas as temporadas da moda nacional e internacional; nas coleções assinadas por grifes e estilistas independentes e também pelas grandes lojas de departamentos. De estação para estação o étnico ressurge como tendência. Mas qual é o conceito do “étnico” que está implícito no produto de moda, que referências são utilizadas na elaboração desse produto e como ele é consumido e divulgado hoje no mundo globalizado? Sentimos por vezes que o conceito e as especificidades que envolvem o étnico são deixados de lado em nome de uma visão pasteurizada e desprovida de um envolvimento maior pela pesquisa. No Bureau de Tendências do Verão 2012/ 2013, editado pelo SENAC, o étnico é apresentado como um dos temas presentes na próxima estação. Em meio a várias outras informações, há textos e imagens que se propõem orientar estilistas e empresários do mercado de moda na busca de referências de pesquisa em relação ao tema étnico. As descrições, um tanto quanto abrangentes, superficiais e confusas sobre o termo e suas possíveis fontes de inspiração, serão transcritas a seguir, tal qual se lê na publicação: TENDÊNCIA - “O impacto da forte globalização acaba por despertar um sentimento nostálgico de volta às raízes. As diferenças entre povos e culturas ao redor do mundo são, agora, celebradas de maneira a respeitar e valorizar o “local”, sem deixar de estar integrado ao global. A sociedade moderna presta suas homenagens ao tradicional enquanto segue em frente no caminho natural da evolução. Neste verão vimos nas passarelas o encontro entre o exotismo dos países africanos e a vivacidade dos povos latino-americanos. O resultado é uma mistura apimentada, sensual e super autêntica”. 12 INSPIRAÇÃO – “Savanas africanas, safáris, Tahiti, México, Guatemala, Espanha, Frida Khalo, pinturas de Henry Moore e Paul Gauguin, reserva Hopi, contadores de histórias, cordel, adornos utilizados para rituais de magia, casamentos e acampamentos ciganos, cerâmicas ancestrais.” (Bureau de Tendências do Verão, 2012/2013, SENAC) Iniciamos essa prospecção focalizando na História da Arte do Ocidente o interesse demonstrado por artistas em relação ao contato com diferentes culturas, as chamadas “culturas exóticas ou primitivas”, que ocorreram na Europa, mais precisamente em Paris, ao final do século XIX; e, que foram determinantes para que artistas e designers “aprendessem” outras formas de olhar. O contato com “o outro” possibilitou transformações, à medida que se mesclou o novo ao já conhecido gerando um terceiro resultado. A começar pelo Japão e em seguida pela África, a visão de mundo eurocêntrica curvou-se em reverência ao surpreendente conteúdo formal que iria revolucionar os conceitos de arte até então vigentes, inaugurando, em síntese, a Arte Moderna. Utilizaremos conceitos tais como os de cultura (material e imaterial), pós-modernidade, globalização, sincretismo, mestiçagem e do hibridismo a fim de que nos seja possível delinear reflexões sobre a utilização de referências culturais africanas percebidas no uso da cor, das padronagens de estamparia e no produto final do design de moda e superfície têxtil em nosso país. Para tanto foram realizadas entrevistas para a elaboração das leituras do trabalho de Goya Lopes e Walter Rodrigues, que tem em comum, cada qual em seu momento e de uma determinada maneira, o olhar voltado para o Continente Africano. Por meio desses dois estudos de caso, teceremos nossas reflexões estabelecendo outros parâmetros que nos propiciem entender um pouco mais de como se dá essa miscigenação cultural no desenvolvimento do produto da moda nacional. Falaremos sobre o percurso e a formação dos designers, dos processos de criação de cada um, do seu entendimento sobre o conceito de étnico e mostraremos, por imagens, suas respectivas produções. A pesquisa será concluída com as primeiras reflexões a respeito das referências da cultura afro-brasileira trazidas para o design de moda contemporâneo. 13 DESENVOLVIMENTO 1.1 ÁFRICA E OCIDENTE: O OLHAR SOBRE O OUTRO 1.1.1 A África Que Seduziu As Vanguardas Artísticas Europeias: A Revolução Por Meio Da Forma Ao final do século XIX, assistindo ao crescimento desgovernado das cidades fruto do desenvolvimento industrial galopante, alguns artistas europeus estariam a caminho de um processo chamado por Gombrich (1999) de “ruptura na tradição”. Inicialmente artistas franceses se voltaram à cultura japonesa, encantados e interessados pelos motivos e novos esquemas de utilização da cor que conheceram ao se depararem com objetos de culturas completamente estranhas à sua. As gravuras japonesas, impressas na época em fabulosa quantidade, aportaram na França na forma de embalagens dos produtos importados; simples invólucros, mas que traziam formas desconhecidas e instigantes. Os pintores logo se interessaram pelas imagens trazidas nesses papéis de embrulhos. Mais do que simplesmente exóticas, tais imagens causaram questionamentos acerca das técnicas tradicionais de representação utilizadas desde o Renascimento. Seu sentido “inesperado e não convencional” (GOMBRICH, 1995) proporcionou à arte ocidental um grande impulso na busca de novos padrões de representação. Num segundo momento, por intermédio das influências africanas, de profunda observação e da aplicação do ensinamento direto dos chamados “objetos primitivos” a arte transcenderia definitivamente o naturalismo que dominou a representação da imagem desde o Renascimento. Entre a passagem dos séculos XIX e XX identifica-se uma necessidade vital nas artes visuais de avançar a partir de Cèzanne, cujo trabalho representa, segundo Argan (2008), “o tronco do qual nascem as grandes correntes da 14 primeira metade do século XX”.(ARGAN,2008,pag.102). A pintura modifica-se, conforme analisa Argan (2008, pag.98), ”não era literatura figurada, tampouco uma técnica capaz de transmitir a sensação visual ao vivo; era um modo insubstituível de investigação das estruturas profundas do ser, uma pesquisa ontológica, uma espécie de filosofia”. A partir de 1870 uma grande quantidade de objetos africanos, basicamente constituídos por estatuetas e máscaras, chega à Europa por meio das expedições coloniais exploratórias. Os brancos colonizadores, entre eles missionários cristãos, estavam cientes da importância das estatuetas e máscaras na vida religiosa dos povos colonizados e que sua atitude violenta, para destruir tais objetos, seria a forma ideal de demonstrar seu poder. Completamente desprovidos de valor comercial, esses objetos, trazidos pelas expedições, não foram entendidos como manifestação artística, mas atraiu a muitos por seu caráter extremamente exótico, misterioso e capaz de transportar seu possuidor para terras distantes e imaginárias. Foram expostos, na forma de “documentos do poder da dominação” no Musée d’Ethnographie du Trocadéro e reproduzidos nas cidades de Paris, Marselha, Berlim, Munique, Bruxelas e Londres para que fossem vendidos como qualquer “coisa exótica” nos mercados de pulgas. Essas peças interessaram especialmente aos artistas, marchands e críticos de arte, um público que se sentiu atraído por seu implícito valor simbólico. No texto “A Arte da Resistência”, Manthia Diawara (1998), nos fala sobre a relação que artistas como André Derain, Maurice Vlaminck, Georges Braque, Henri Matisse e Picasso mantiveram com as peças da arte africana: Utilizaram-nas não apenas como fonte de alimentação e inspiração, mas também como proteção contra as ansiedades e as grandes narrativas da modernidade. Em casa destes artistas, bem como nos museus, as máscaras e estatuetas encontraram uma nova reverência, ao lado das suas próprias esculturas e pintura.. (DIAWARA, 1998). A convivência e a observação atenta a tais objetos geraram mudanças formais tão profundas a ponto de reestabelecer as relações fundo e figura no 15 plano pictórico. Também a anatomia sofreu grandes ajustes; geometrizado, o corpo humano passou a ser apenas mais um objeto na paisagem, perdendo a importância que teve na pintura clássica. A arte moderna, por meio de suas vanguardas abandona gradativamente a representação passando a exigir do espectador um domínio cada vez mais amplo de seu vocabulário específico. 1.1.2 Henri Matisse e os Fauves Um dos grandes nomes do grupo “fauve”, selvagem, como os denominaria um critico de arte da época, Henri Matisse estudou os esquemas de cores fortes e puras dos tapetes orientais e dos cenários norte-africanos, interessado no poder de síntese dessas imagens. Matisse e seus companheiros entendem os objetos africanos como perfeitos elementos decorativos que podem compor harmônica e perfeitamente o cenário de sua pintura. “Também a cerâmica negra atraiu os fauves. Algumas peças que Matisse recolhera em uma viagem à Argélia passaram a servir de modelos para algumas naturezas-mortas. São peças que se destacam pela simplicidade decorativa, e a sua inclusão, como motivos para serem pintados entre outros objetos, possui a finalidade de introduzir o decorativo dentro do decorativo”. (Barros, Afro-Ásia, 2011). A estatuária e as máscaras da África tribal tiveram profunda influência na escultura, que Matisse explorou simultaneamente à pintura (Figura 1). A subtração de formas e o uso constante dos ângulos retos refletem a sintonia do artista em relação aos objetos africanos que colecionava e mantinha como referência em seu ateliê. 16 Figura 1: Henri Matisse, “La Serpentine”,escultura,1909,The Museum of Modern Art of New York. Fonte: theartinstituteofchicago. blogspot.com/ Acesso abril,2012 Na pintura de Matisse, pela análise da obra “A Dança” (Figura 3), feita por Argan (2008) notamos como o espaço é construído de maneira quase que modular. Figuras e fundo são destituídos de qualquer referência naturalista; são, antes de qualquer coisa, módulos de uma composição racional e intuitiva. “A música e a poesia confluem na pintura, e a pintura é concebida como uma arquitetura de elementos em tensão no espaço aberto; é síntese entre a representação e a decoração, o símbolo e a realidade corpórea, entre o volume, a linha e a cor. Todavia, a síntese ainda pode ser um cálculo racional; é preciso ir além, identificá-la com uma beleza nunca vista e quase monstruosa, sobrenatural, para além dos diferentes naturalismos do belo clássico e do belo romântico.” (ARGAN, 1998,pag.259). A cor de Matisse vai além do que o olho humano pode experimentar por meio da observação da natureza, é pura e intensa. A composição em “A Dança” se mostra contrária, como nos diz 17 Gombrich, ao “equilíbrio estático, a um ritmo regular e uniforme”; ela propõe que o ritmo deve ser gerado no próprio quadro e não fora dele. Podemos comprovar o fato observando os pés que tocam o solo nos dando a impressão de que pisam em algo flexível. Figura 2: Henri Matisse, “A Dança”, 1910, pintura. Leningrado Museu Hermitage Fonte: mokum-amsterdam. blogspot.com/Acesso abril, 2012 O solo em “A Dança” é mais que um simples chão, é “horizonte terrestre”, “a curva do mundo”, onde seres gigantescos dançam entre o céu e a terra. O importante, e novo nos domínios das artes plásticas, é que tudo isso ocorre na superfície da tela, na pintura; não existe o desejo da representação realista da paisagem de fundo, nem das figuras, nítida influência da arte africana. “O movimento fauvista – na sua curta duração que vai de 1904 a 1907 – pode ser considerado, enfim, o grande precursor da assimilação das formas e dos recursos expressivos africanos pela arte moderna”. (ARGAN, 2008,pag.258) Matisse não se engajou ao cubismo, por não haver afinidades entre seu pensamento estético e o movimento. Na sua obra o sintetizar é intuitivo, não manifesta o interesse de dissecar o objeto à maneira racional e objetiva 18 como o faziam os cubistas. 1.1.3 Paul Gauguin: a crítica ao olhar do mundo civilizado Paul Gauguin crítica o mundo civilizado a partir de atitude visceral: deixa seu país de origem, sua zona de conforto, à procura de culturas consideradas primitivas. Parte, não em busca de novas sensações, mas em busca de si mesmo a fim de descobrir as origens e os motivos mais remotos de suas sensações, o que entenderia como essência vital do seu processo de criação. “Gauguin criou sua própria lenda, a do artista que se põe contra a sociedade de sua época e dela foge para reencontrar numa natureza e entre pessoas não corrompidas pelo progresso a condição de autenticidade e ingenuidade primitivas, quase mitológicas, na qual ainda pode desabrochar a flor da poesia, agora exótica, que é destruída pelo clima da Europa industrial.” (ARGAN, 2008,pg.130) O pintor assume postura radical ao escolher viver de modo oposto ao da vida europeia no final do século XIX. Sua práxis afeta, ainda que de forma indireta, o gosto da época e sua respectiva cultura artística. Esta atitude inusitada tem o poder de transformar a pesquisa em prática e a superar tradições e paradigmas que eliminavam as oportunidades de escolher com liberdade. “a ilimitada ampliação do horizonte histórico da arte, que a partir de então passou a incluir as expressões dos primitivos, pelo menos em igualdade de valor, junto com as das culturas clássicas”. (Argan, 2008,pg.130). Gauguin apresenta ao mundo ocidental o depoimento vivo de um tempo dedicado ao encontro com seu “eu primitivo”, dissociado das obrigações e agruras que a vida do mundo civilizado lhe impunha. Argan (2008) fala ainda sobre a poética de Gauguin em relação a um 19 determinado momento histórico em que o mundo europeu, o dito “mundo civilizado” sustentava seu progresso sobre a não civilização, carregando o escândalo moral de ser colonizador de povos considerados, pelos próprios europeus, como primitivos. “... sente-se fortemente uma exigência ética que leva a uma intervenção direta nas situações (e não a fúteis evasões). Se para dar um sentido ativo à função da imaginação, é preciso afastar-se da sociedade moderna, é porque nela não há mais espaço nem tempo para a imaginação. Sua vontade de rejuvenescer numa mítica barbárie é uma sugestão ao mundo civilizado para que inverta sua rota”.(ARGAN,1998,pag.131) A postura de Gauguin foi antes de artística ou estética, visceral. O novo na sua arte significou a busca de novas sensações que o levasse de volta à pintura. Interessava-lhe a relação primitiva com a natureza, a liberdade que se manifestava pela nudez dos corpos e da ausência da noção de progresso, de desenvolvimento industrial e urbano, essas suas principais queixas à civilização ocidental. “Para pintar de verdade há que sacudir o civilizado que carregamos e sacar o selvagem que carregamos”. (Mario Vargas Llosa, “O Paraíso na Outra Esquina”,pag.34). Curiosamente, na obra “To Ma Tete” (Figura 3) observamos uma forte referência à arte egípcia, nas figuras femininas sentadas ao banco. As imagens do Continente Africano já exerciam grande fascínio sobre os artistas europeus, mesmo antes de 1922, ano do descobrimento da Tumba de Tutancâmon por arqueólogos no Egito; quando uma forte influência da geometria e da simplificação da figura humana percorreria o mundo, influenciando até a decoração de interiores. Lembramos Jean-Jacques Rousseau cujo pensamento tanto influenciou o movimento romântico e que caracterizou a primeira metade do século XIX. A valorização dos sentimentos em detrimento da razão intelectual, e da natureza mais autêntica do homem, em contraposição ao artificialismo da vida civilizada. O “mito do bom selvagem” exerce forte influência no pensamento da época. 20 Figura 3: Paul Gauguin, “To Ma Tete” (Mulheres taitianas sentadas num banco), pintura, 1892. Basiléia, Kunstmuseum. Fonte: http://foro.artelista.com/caa-yari-leyenda-de-la-yerba-mate-t9825s250.html Acesso,abril,2012. 1.1.4 Pablo Picasso e o Cubismo: a crise da cultura europeia. Foi Pablo Picasso quem concretizou formalmente o caráter moderno da arte ocidental. Sua relação com a forma e a cor é racional, intelectual; o instintivo e lírico dos fauves definitivamente não o seduz. “Com Les demoiselles d’Avignon, Picasso num golpe de força, entra no cerne vivo da situação; não propõe outra poética, mas contesta e supera a poética dos fauves, a classicidade meta- histórica e o mito mediterrânico de Matisse. Na história da arte moderna, é a primeira ação de ruptura.” (ARGAN, 2008, pg.422). Em 1908, o chamado movimento cubista torna pública a primeira pesquisa analítica sobre a estrutura funcional da obra de arte no ocidente. Nunca havia sido proposta antes uma análise sintática da forma. Isto só foi possível graças aos elementos trazidos pela arte africana a que apenas um restrito grupo de intelectuais e artistas da época teve acesso. 21 Em 1920, o pintor Juan Gris faz uma boa reflexão sobre o pensamento cubista: ...“se o escultor negro-africano vai da ideia de deus ou do ancestral à figura que a materializa, no lugar de fazer como o escultor grego, que se esforça antes de tudo por elevar à beleza divina as amostras da humanidade na qual se inspira, nós compreendemos, então, porque Picasso e Braque inspiraram-se na arte negro-africana.” (MORAIS, 2002) Em “Les Demoiselles d’Avignon”, 1907 (Figura 4), que representa um divisor de águas nas artes visuais do Ocidente, Picasso formaliza as questões colocadas anteriormente por seus antecessores e vai mais fundo deixando definitivamente de entender a arte como “contemplação da natureza”. Segundo Argan, para Picasso a arte “é intervenção resoluta na realidade histórica”: Figura 4: Pablo Picasso, “Les Demoiselles d’Avignon”, pintura, 1907. MOMA Fonte: http://www.moma.org/collection/object. php?object_id=79766 /Acesso em maio,2012 22 “Intelectual e não sensorial, embora plenamente visual tal seja a verdade que buscam Picasso, Braque, Gris e os outros pintores cubistas; e como se alcança essa verdade intelectual- visual distanciando-se da visão empírico-sensorial, disse-o admiravelmente Braque: é preciso escolher. Uma coisa não pode ser ao mesmo tempo verdadeira e verossímil.” (ARGAN, 2008, pag.430) E, muito além da questão puramente formal, Picasso, Braque, Modigliani e outros artistas se aproximaram, sem intenção e de modo tão intenso do “primitivo”, que este passa a integrar sua obra como importante referência histórica cultural. [...] “deram forma inventiva ao sincretismo artístico. Rostos e corpos de inspiração africana conviviam lado a lado com rostos e corpos de origem europeia. Sua mescla não ia em direção a cinzentas sínteses finais de modelo eugenético, mas antes à explosiva presença simultânea de traços entre si opostos no mesmo frame”. (CAVENACCI, pag.14) Os cubistas formalizaram por meio da pintura um pensamento. A princípio uma ação completamente nova, digna de críticas e ataques públicos, pois romperiam com a ordem vigente de maneira mais contundente que as outras vanguardas o fizeram, propondo na aparente desordem uma nova e surpreendente ordenação formal. “As intervenções na história são ações, e, portanto, o quadro também deve ser uma ação que se realiza, é um empreendimento que se assume e não se sabe como irá terminar. A chamada coerência estilística, pela qual todas as partes de uma obra de arte formam uma totalidade harmônica, é um preconceito a ser eliminado: a arte é realidade e vida, a realidade e a vida não são coerentes.” (Argan, pag.424) 23 1.1.5 A Nova Silhueta Moderna: o Étnico que Encantou a Moda do Início do Século XX. Os passos largos da Revolução Industrial inundam o mercado de novos produtos. Inaugura-se uma nova fase na vida urbana e surge pela primeira vez o conceito de consumo: não se comprará apenas por real necessidade, mas pelo puro e simples prazer de consumir. A grande oferta de produtos manufaturados leva o homem das cidades a desejar o que não necessariamente necessita. O conceito da obsolescência surge nesse momento e a Moda o personifica. A Moda, no sentido moderno do termo, surge, com a alta costura, em Paris, durante a segunda metade do século XIX. “Como arte das nuanças e refinamentos das superfícies, a moda prolonga, paralelamente à paixão pelos belos objetos e pelas obras de arte, essa aspiração a uma vida mais bela, mais estilizada, que surgiu por volta de 1100.” (LIPOVETSKY, 1989). A moda sempre se relacionou com as linguagens da Arte e da Arquitetura. Num tempo, como esse onde profundas modificações estruturais se instalavam na sociedade, ela estaria à frente abrindo novas discussões e possibilidades. “Estes três campos de conhecimento: moda, arte e design referenciam e refletem os fatores culturais de uma época, e também podem propor ou representar contextos de questionamentos relativos aos valores e formas de pensar e agir de uma cultura num determinado momento.” (MOURA, 2010, pag.38). Como dissemos anteriormente, as escavações arqueológicas no Egito, em 1890, causaram no mundo um fenômeno conhecido por “egiptomania”. Da decoração de interiores à moda podia-se notar o ávido interesse pela cultura completamente desconhecida. Além das influências na joalheria e nos 24 penteados, o fato “provocou uma escalada de vestidos drapejados e vaporosos, franjas, bandas e motivos de pirâmides e escaravelhos e flores de lótus.” (CALLAN, 2007, pág20). A importância de Paul Poiret (Figura 5) é reconhecida por haver “afrouxado” a silhueta tradicional da moda. O que mais nos interessa, no entanto, é ressaltar que Poiret “promoveu a forma do quimono, do turbante e das calças de odalisca no início da década de 1900” (O’HARA, 2007,pág.34). Trouxe na sua proposta aquilo que era completamente novo aos olhos e ao corpo ocidentais. Buscando muitas referências nos Ballets Russes, acrescentou elementos novos na estrutura básica da roupa tradicional. Muito interessado nas diversas formas do vestir, utilizando-se de técnicas simples de modelagem, Poiret usou a seda, brocados e os bordados fazendo das texturas ricas e variadas sua marca pessoal. Figura 5: Paul Poiret Fonte: pordentrodamodabymarinact.blogspot.com Acesso em maio,2012 Poiret foi um grande incentivador da arte moderna (Baudot, 2002). Dedicava-se, além da moda, à pintura e colecionava os artistas de sua época mostrando interesse e grande conhecimento sobre as artes visuais. 25 Figura 6: Paul Poiret, Capa, 1905. Fonte: fashionistaag.blogspot.com Acesso maio,2012 Figura 7: Paul Poiret, Vestido com bordados estilizados no decote, 1923. Fonte: “Papiers Á La Mode”, Isabelle de Borchgrave Segundo Baudot (2002), foi em 1909, quando aconteceu a primeira temporada parisiense dos Ballets Russes que “a elite descobre os encantos do orientalismo e este imediatamente será adaptado à moda de Paris por Poiret que não hesita em transformar suas clientes em almeias de harém: pantalonas bufantes, turbantes, estampas em cores vivas”. [...] “a Alta Costura sistematizou a um ponto tal a lógica da inovação, que não é ilegítimo reconhecer aí uma figura 26 particular, certamente menos radical, mas, no entanto significativa do dispositivo original que aparece na Europa: a vanguarda. Não é um fenômeno anedótico que, desde a aurora do século XX, certos grandes costureiros admiram e frequentam os artistas modernos: Paul Poiret é amigo de Picabia, Wlaminck, Derain e Dufy; Chanel é ligada a P. Reverdy, Max Jacob;Juan Gris,realiza os trajes da Antigone de Cocteau,sendo os cenários de Picasso e a música de Honegger;as coleções de Schiaparelli são inspiradas pelo surrealismo”. (LIPOVETSKY, 1989) As influências dos artistas plásticos e seu encantamento pelo étnico também fez de Gustav Klimt (Figura 8), um admirador e colecionador de peças étnicas. . Figura 8: Gustav Klimt vestido com túnica, 1912. Fonte: noticias. uol.com. br Acesso maio,2012 Emilie Flöge, sua companheira, dirigia uma das mais elegantes boutiques de alta costura de Viena, e se interessava por culturas distantes. Colecionou tecido étnico e peças de vestuário do tempo do Império recolhidas na Hungria, Eslovênia, Romênia e Croácia. Klimt costumava vestir-se com túnicas que lhe proporcionavam conforto e lhe davam maior capacidade de movimentação; chegando a chamá- las de “aventais para pintar”, usava-as durante o verão e o inverno. 27 A “túnica Klimt” era feita de linho e tinha um comprimento que ia até seus tornozelos. A peça que era, segundo Brandstätter (2000) “um misto de caftã oriental e traje nô, do teatro tradicional japonês foi concebida por ele mesmo e simbolizava o retorno a uma vida simples e natural”, embora o artista demonstrasse também o gosto pelo refinamento das grandes cidades. Klimt vestia suas ideias. O tempo era de mudanças, não só na aparência como também no conforto do corpo em relação à vestimenta e dos espaços que se habitava. Buscava-se uma coerência formal e ideológica com a proposta da integração da arte, da arquitetura e do design, compreendendo-se a moda. Paris e Viena foram os primeiros centros urbanos a discutir simultaneamente os novos conceitos para o vestuário e, entre seus vários pontos em comum figurava o renascimento do estilo império, com padrões novos e fantasistas, com a criação de um novo tipo feminino, capaz de por fim à blindagem, ao espartilho, com a “libertação da silhueta”. (Brandstäter, 2000). Klimt e mais dezoito artistas dissidentes da Associação dos Artistas Vienenses criaram a Secessão Vienense, por uma crítica à liberdade de criação, propondo um caminho contrário ao da academia. Influenciados pelo movimento inglês Arts and Crafts, o grupo buscava resgatar as qualidades do fazer artesanal contra a mecanização, propondo a integração entre a arte e arquitetura. Para esses artistas a moda tinha tanta importância quanto à arquitetura e a artes plásticas. A arte da Secessão (1900), ou a arte reformista vienense, compreendia a criação na arquitetura, na decoração de interiores e na moda, pois era concebida segundo os mesmos critérios estéticos e de visão de mundo. Sua clientela restringia-se a um pequeno círculo da alta burguesia que cultivava os mesmos gostos e valores e se identificava com as novas formas de vestir, morar e pensar. Gustav Klimt fez parte do Movimento pela Reforma do Vestuário, que propunha um novo tipo de vestimenta para as mulheres e uma grande reforma nas regras de comportamento social. Desenhou não como estilista, mas como 28 artista envolvido que era pelo universo feminino, muitos vestidos com inspiração nas túnicas africanas: de silhueta larga e com tecidos de estampagem étnicos (Figura 10). Klimt também desenhou as etiquetas que eram costuradas às roupas da loja Flögel. Em suas pinturas mostra grande talento pela representação de interiores imaginários que são fundos perfeitos para suas figuras femininas e prima pela utilização de tecidos, os mesmos que poderiam ser usados na confecção de roupas (Figura 9). Figura 8: Gustav Klimt Retrato de Fritza Riedler”, 1906, Belvedere. Fonte: jopersilva. blogspot.com Acesso maio,2012 Figura 9: “Vestidos africanos”, Emilie Flöge e Gustav Klimt. Fonte: Brandstätter, 2000, pág. 70 Na moda, assim como nas artes visuais, artistas e estilistas, ao longo da história, procuraram em distintos universos culturais referências que se tornaram, depois de elaborados cruzamentos, sinalizadoras de novos caminhos estéticos e intelectuais. 29 1.2 Mundialização: o Étnico na Estética Universal O conceito de globalização é recente, dos anos 80, porém a propagação dos aspectos culturais das civilizações colonizadas, como valores universais, começa a acontecer já na época das grandes conquistas, das expedições exploratórias. As referências de espaço territorial vão sendo reformuladas determinando novos papéis ao homem e um novo entendimento sobre o mundo que habita. O termo “cidadãos do mundo” (ORTIZ, 1994) refere- se àquele homem que compartilha seu cotidiano com outros, não importando sua localização geográfica diversa. A cultura mundializada não aniquila as manifestações culturais dos povos, ela apenas se alimenta deles gerando novos produtos culturais. Nos dias atuais, o mundo perde fronteiras e agrupa seus habitantes conforme seus gostos, modos de vida. As trocas linguísticas, artísticas, religiosas, gastronômicas acontecem incessantemente gerando comportamentos grupais de reconhecimento, comunicação e criação de novos signos na esfera do simbólico. Vivemos a era pós-moderna, tempo em que o homem é sujeito ativo e passivo dos meios de comunicação de massa, que organizam e reorganizam a realidade através de simulacros dela mesma. A realidade passa por um processo de auto intensificação através deles, seduzindo e convidando o espectador a compactuar e vivenciar as fantasias espetaculares que fabrica. Todas as linguagens visuais que conhecemos e utilizamos tem na imagem sua matéria prima. As imagens do pós-modernismo são formadas por tendências diferentes e estilos misturados, resultando numa “colagem” que desperta interesses e gera mais fantasias. “Porém o mais doido e acelerado cavalo de batalha em ação é a moda. Moda e modismos em alta rotatividade ditam o ritmo social. Oposta ao bom gosto moderno, com seu corte solene, alta costura, hierarquias, a moda pós-moderna vai de extravagância e liberdade combinatória com humor na fantasia. O look deve ser jovem e sexy, a invenção personalizada e 30 informal. Jorrando cores, a moda anima a festa mercadológica que é o cotidiano, e para isso promove a convivência de todos os estilos: retro com futurista, esporte com passeio, lã azul com lycra laranja. E faz alusão à vestimenta oriental, militar, circense.” (SANTOS,2002) Observamos que as culturas distantes, desconhecidas pelo Ocidente nas suas especificidades, vão sendo gradativamente incorporadas a ela através da culinária, música, artes visuais, objetos de decoração, utilitários, religião e pelas diversas formas do vestir. Cada uma dessas sociedades desconhecidas tem sua própria gramática cultural e socioeconômica, o que determina o ambiente real onde o produto cultural é gerado; no entanto ele chega fora de seu contexto e destituído de história. Manifesta-se pelas impressões pela forma, gosto, sons, cores. Na medida em que incorpora essas diferenças, os objetos da própria diferença adquirem valor agregado de mercado e seu produto acabará por redefinir o perfil dos personagens que compõem os cenários das grandes metrópoles. “Na Inglaterra, nos últimos anos, enquanto testemunhamos um aumento da tensão racial, da islafobia e da violência étnica especialmente em áreas multirraciais de classes trabalhadoras, houve uma obsessão coletiva por todas as coisas indianas – desde o cinema de Bollywood, a moda indiana, a música, a comédia e o esporte, até a comida sul-asiática, o design e a arte visual. Estes objetos entrizados circulam em espaços urbanos como sinais célebres de uma nova nação pós-imperial liberal e cosmopolita [...]” (SHARMA E SHARMA, 2003). A proximidade, mesmo que formal, e certa familiaridade com elementos étnicos de culturas desconhecidas levam o ser humano a alcançar o status de indivíduo cosmopolita numa hipotética harmonia cultural. O indivíduo ascenderia ao universalismo à medida que passa a imitar o outro, comendo sua comida, ouvindo suas músicas e vestindo sua roupa e adereços. O “outro” é o estranho, aquele que nos assusta, ameaça, e, ao mesmo tempo nos atrai porque nele encontramos a diferença, mas também o elo comum que une toda a humanidade. Ama-se a diferença e, ao mesmo tempo, 31 procura-se anulá-la. Ou, pelo menos domesticá-la, trazendo-a para terreno conhecido, como se quiséssemos matar exatamente aquilo que nos havia atraído de início. . O homem pós-moderno incentivado, pelo próprio sistema, a experimentar o novo e a novidade, junta vários pedaços de universos numa mesma colagem de modo a construir e reconstruir consecutivamente seu desígnio tornando-se menos conhecido de si próprio à medida que agrega superficialmente novos valores que lhe são impostos. No entanto é fundamental constatarmos que na tentativa de imitar o outro, novas versões dele são criadas para serem consumidas. Temos desse modo inúmeras traduções feitas em torno das culturas não ocidentais, ou seja, das culturas que vivem à margem da visão euro centrista da história. [...] “o desejado outro repudia corpos asiáticos reais e a cultura material que existe no Ocidente, mas ele é um outro idealizado que é criado pela própria cultura branca – uma projeção do indivíduo branco. Assim, quando esse indivíduo identifica-se com e deseja o outro, é uma forma de narcisismo que mantém a estabilidade e universalidade da subjetividade branca. [...] No presente contexto de uma cultura de mídia mutante que produz e exibe a artificialidade da imagem do não-eu autêntico, encontramos tentativas mais elaboradas e contínuas de produzir e imitar compreensíveis e controláveis outros”. (SHARMA E SHARMA, 2003,pág.67) 32 1.2.1 HIBRIDISMO CULTURAL Hibridismo cultural é um fenômeno histórico-social que vem ocorrendo desde os primeiros deslocamentos geográficos humanos no mundo, deslocamentos estes que resultam em contatos permanentes entre grupos distintos, que tem em comum, a princípio, apenas o fato de serem humanos. Outros vínculos são necessários para se pertencer a novos agrupamentos. O não pertencimento em si gera ações de aproximação entre indivíduos na busca de novas relações que ao serem estabelecidas, o fazem pertencer. A fim de situar-se o homem procura fazer da desarmonia o ponto de partida para estabelecer e viabilizar as relações com o outro, com suas diferenças. Mistura a língua, a religião, o modo de vestir, os objetos e seu uso, a comida, a música, a arquitetura, enfim, o modo de ver e estar no mundo. Essa combinação e recombinação dos elementos das culturas material e imaterial dá origem ao híbrido. “Falamos [...] de algumas pessoas que são transparentes para nós. Todavia, é importante no tocante a essa observação que um ser humano possa ser um enigma completo para outro ser humano. Aprendemos isso quando chegamos a um país estranho com tradições inteiramente estranhas e, o que é mais, mesmo que se tenha um domínio total do idioma do país. Nós não compreendemos o povo (e não por não compreender o que eles falam entre si). Não nos podemos situar entre eles.” (GEERTZ, 2008,pág.10). De acordo com Canclini (1997) cultura é “processo em constante transformação, diferenciando-se da tradicional visão patrimonialista. Mobilidade e ação a caracterizam”. A visão euro centrista do mundo que trata as culturas locais como “atrasadas e primitivas” por que não se encaixam em padrões europeus não considera que cultura é manifestação orgânica e existe em função dos sujeitos que a vivenciam, modificam e a propagam, não só de geração para geração como também entre povos distintos. Outro aspecto a ser considerado é o desconhecimento que muitas 33 vezes os integrantes de um grupo apresentam em relação a seu próprio grupo. Vivem de certa forma à parte de certas tradições, desconhecem fatos históricos importantes e seus personagens. Apenas convivem e nessa convivência estabelecem seus vínculos. “Quanto à globalização, seus propagandistas não seriam tão persuasivos se a precária integração mundial obtida na economia e nas comunicações não fosse acompanhada do imaginário de que todos os membros de todas as sociedades podem chegar a conhecer, ver e ouvir os outros, mas também do esquecimento daqueles que nunca poderão integrar-se às redes globais. Por isso o imaginário se impõe como um componente da globalização. A segregação é o reverso “necessário” das integrações, e a desigualdade limita as promessas de comunicação. “(CANCLINI, 2010,pág.60) Vivemos, nos domínios das culturas, uma época de globalização e, segundo Burke (2010) “a globalização cultural envolve hibridização. Por mais que reajamos a ela, não conseguimos nos livrar da tendência global para a mistura e a hibridização” [...] O híbrido transparece a partir de objetos e práticas e nos mostra o quanto todos são vulneráveis às influências de outros e de si mesmos quando a informação vai e volta para o mesmo lugar de onde veio, quase que uma reexportação para seu local de origem. [...] “a ideia de circularidade cultural. Alguns músicos do Congo se inspiram em colegas de Cuba, e alguns músicos de Lagos em colegas do Brasil. Em outras palavras, a África imita a África por intermédio da América, perfazendo um trajeto circular que, no entanto, não termina no mesmo local onde começou, já que cada imitação é também uma adaptação”. (BURKE, 2010,pág.32). O hibridismo se dá a partir de um processo de fusão, termo conhecido na física. O termo fusão é curiosamente utilizado na gastronomia contemporânea ocidental e teve origem na França, por volta de 1970, no momento em que alguns chefes franceses decidiram combinar produtos do seu país com algumas especiarias originárias de outros países, na sua maioria os asiáticos, sobretudo a China e o Vietnã. Surgiram pratos variados que ainda hoje constam no cardápio de alguns restaurantes franceses. “Fundir” significa 34 trabalhar mesclando ingredientes e sabores na busca constante de resultados inusitados (Figura 11). O espírito do nosso tempo propõe que se experimentem sabores desconhecidos e que a eles se agregue a tradição. A tendência é modificar o conhecido, desbancar o previsível criando novas possibilidades gustativas, proporcionando - nos verdadeiras viagens sensoriais a lugares incógnitos e cheios de exotismo. Figura 10: Livro “Um toque étnico” de Nicoletta Negri Fonte: http://www.wook.pt/ficha/um-toque-etnico-a-cozinha-de-fusão Acesso,maio,2012 A sinopse do livro informa o leitor de que as receitas ali contidas são tão novas e saborosas que “já não se pode evitá-las”. O híbrido é hoje macro tendência; deixa de interessar apenas aos antropólogos e historiadores e passa a fazer parte do cotidiano mais íntimo das pessoas; invade a mesa, a casa e o guarda-roupa. A vontade de provar o desconhecido vai além do senso comum e passa a determinar comportamentos. O gosto por viagens a países exóticos e sua cultura realiza na prática aquilo que as novelas mostram na televisão. “O outro” está a nosso alcance. Segundo Caldas (2006), é inegável a existência desse “não-sei- o- quê” que pousa sobre as coisas e define l’air du temps,um equivalente francês ao espírito do tempo, que só os narizes mais treinados são capazes de farejar e 35 os artistas mais geniais, de antecipar. 1.2.2 CULTURA BRASILEIRA: MESTIÇA E MISCIGENADA Segundo Geertz (2007) a cultura é um processo público, não particular, onde os homens “tecem” o tempo todo novas relações Numa determinada cultura os significados e os símbolos são partilhados pelos membros do sistema cultural, em várias situações. A cultura é um processo dinâmico, num contexto onde existem atores sociais que mantém ,transmitem, incorporam, acrescentam; num processo em que nada é casual. O IPHAN, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, define cultura material pelos objetos, pelos artefatos criados pelo Homem, sua matéria prima, técnicas de execução e reprodução que determinam um sentido histórico e humano à produção. Como Patrimônio Cultural Imaterial, a UNESCO define “as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas-junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural.” O Patrimônio Imaterial é transmitido e constantemente recriado pelas comunidades e grupos, assim como acredita Geertz . Para que possamos falar sobre o Brasil mesclado, faz-se necessário o entendimento da situação do Brasil recém-descoberto, das diversas culturas que se encontraram e sofreram um processo peculiar onde o colonizado também foi colonizador. Em relação aos africanos que aqui chegaram na condição de escravos, isto também ocorreu Os negros partilharam com portugueses e indígenas sua cultura material e imaterial e receberam igualmente a informação cultural dos outros. Traziam da África diversas culturas africanas e na busca do pertencimento estabeleceram vínculos com outras culturas aqui existentes. A cultura afro-brasileira surge, um híbrido 36 cultural forjado na convivência e no compartilhamento cotidiano, fruto da diáspora africana. Sob essa perspectiva, seguiremos na discussão do tema da pesquisa enxergando a cultura brasileira como uma cultura mestiça, miscigenada, própria de uma nação que se fez de várias, que é híbrida de nascimento e por isso deve conhecer e reconhecer suas origens como condição básica para o seu desenvolvimento global. Nós, brasileiros, somos um povo em ser, impedido de sê- lo. Um povo mestiço na carne e no espírito, já que aqui a mestiçagem jamais foi crime ou pecado. Nela fomos feitos e ainda continuamos nos fazendo. Essa massa de nativos viveu por séculos sem consciência de si... Assim foi até se definir como uma nova identidade étnico-nacional, a de brasileiros... (RIBEIRO, 1995) A miscigenação compõe o DNA do Brasil a partir de seu descobrimento. A identidade que, segundo Darcy Ribeiro, de entendimento complexo, custamos tanto a compreender e assumir. Fomos concebidos a partir de “célula luso-tupi”, e, o negro assim como o branco, teve de se adaptar àquela primeira cultura, a original, da nova terra. Gilberto Freyre fala sobre o antagonismo como característica positiva na formação cultural brasileira; o dualismo de raça e de cultura gera “gente de uma mobilidade, de uma plasticidade” que determina sua estupenda qualidade de adaptação. “O que se sente em todo esse desadoro de antagonismos são as duas culturas, a europeia e a africana, a católica e a maometana, a dinâmica e a fatalista encontrando-se no português, fazendo dele, de sua vida, de sua moral, de sua economia, de sua arte um regime de influencias que se alterna, se equilibram ou se hostilizam. Tomando em conta tais antagonismos de cultura, a flexibilidade, a indecisão, o equilíbrio ou a desarmonia deles resultantes, é que bem se compreende o especialíssimo caráter que tomou a colonização do Brasil, a formação sui generis da sociedade brasileira, igualmente equilibrada nos seus começos e ainda hoje sobre antagonismos.” (Freyre, 2011,pág 69). A construção da cultura imaterial brasileira se deu em bases 37 absolutamente miscigenadas. Os africanos foram se amoldando à nova realidade, vindos de regiões diversas da África, com seus diversos dialetos e culturas, tiveram muita dificuldade de estabelecerem os vínculos de pertencimento. O esforço para pertencer socialmente, mesmo que ainda em situação sub-humana, levou-os a integrar um “corpo de novas compreensões” (RIBEIRO, 1995), ao contrário da primária comunicação estabelecida a princípio. Dessa forma, o negro passou a exercer papel importante na formação da sociedade, da sociedade subalterna, o de “agente de europeização”, ensinando aos escravos recém-chegados a língua do colonizador, as técnicas do trabalho e ser feito e as normas e valores próprios dessa nova cultura a que se via incorporado (RIBEIRO, 1995). No entanto, se faz necessário frisar que ao transmitir aos novos escravos aquilo que haviam aprendido, aquele conhecimento se achava impregnado de sua própria cultura original e o que passavam aos outros era fruto da livre interpretação que faziam da cultura do colonizador. A hibridização cultural surgiria triunfante no processo desses ensinamentos provando o caráter mutante das culturas. Ao refletirmos sobre o processo que faz com que as informações que vão voltem para o mesmo lugar de onde vieram, lembramos o conceito da circularidade cultural de Burke (2010). O africano desenhou um percurso híbrido desde a saída de seu Continente até a chegada ao Brasil, assim, como da mesma forma, os portugueses o fizeram. A ideia nos sugere que o colonizado exerceu, ao mesmo tempo, o papel de colonizador, iniciando os africanos recém chegados na língua e maneiras ocidentais. Foi pela religião e pelos cultos religiosos que os africanos preservaram a essência de sua ancestralidade. Apegando-se ao mundo espiritual preservaram a culinária e a música, fontes de perfeita resistência diante da situação lastimável a que foram submetidos. Suas tradições foram mantidas e a prática religiosa defendida acima de tudo, tendo de sobreviver ao “mais geral e mais profundo antagonismo: o senhor e o escravo”. Em Gilberto Freyre (2011) encontramos menção a certa “ação 38 europeizante” no que concerne a vida nos quilombos. É sabido que os escravos fugidos se miscigenavam aos indígenas: tinham filhos com as índias e propagavam a língua portuguesa e a doutrina cristã, tal qual um missionário branco. Em relação à vida comunitária, plantavam e criavam animais para consumo alimentar, cultivavam, assim como os índios, o algodão e teciam com ele suas roupas rústicas. A vida organizacional dos quilombos contou com a aptidão criativa, técnica e econômica do negro e do indígena. “Uma circunstância significativa resta-nos destacar na formação brasileira: a de não se ter processado no puro sentido da europeização. Em vez de dura e seca, rangendo do esforço de adaptar-se a condições inteiramente estranhas, a cultura europeia se pôs em contato com a indígena, amaciada pelo óleo da mediação africana.” (FREYRE, 2011,pág.69) Entendemos que a moda brasileira seria também reflexo de hibridização cultural e trazemos nesta pesquisa o interesse da reflexão sobre as referências da cultura afro-brasileira que permeiam o processo de criação de alguns de nossos designers contemporâneos originando um produto tão miscigenado quanto único. Nota-se, entretanto erros consideráveis feitos em estudos sobre a influência do negro em nossa cultura. Em geral a ideia sobre o negro vem envolvida por “aspectos pitorescos, anedóticos, folclóricos, em outras palavras, o aspecto exótico do africanismo”. (BASTIDE, 1971) 39 2. PROCEDIMENTOS DE PESQUISA Trata-se de uma pesquisa exploratória, descritiva e bibliográfica contendo dois estudos de caso. Os conceitos fundamentais para o entendimento do tema foram colhidos e desenvolvidos a partir de bibliografia selecionada. Por se tratar de tema com vasta repercussão nos dias de hoje, se recorreu, em momentos específicos a material disponível nas mídias (jornais, revistas e catálogos). Nos blogs de moda encontramos comentários e críticas pontuais a respeito das propostas de estilistas contemporâneos e a repercussão de suas apresentações. Após definido o objeto de estudo, partiu-se para um levantamento histórico que localizou o tema geral - o étnico visto a partir da visão de mundo ocidental. Interessaram-nos ,na História da Arte, momentos em que a cultura africana, pela presença de seus objetos, de suas imagens, tivesse influenciado diretamente e de modo decisivo a cultura material ocidental. Os estudos de caso foram adotados por acrescentarem dados importantes a essa pesquisa. Dois estilistas foram escolhidos a partir da sua relação temática com o étnico africano. Não houve intenção prévia nem posterior de se analisar comparativamente seus produtos, quando optamos por seus nomes. Houve sim o interesse em detectar suas diferenças e possíveis pontos em comum para que através deles fosse possível gerar hipóteses acerca dos processos de criação para discussão do tema. Como já conhecíamos pessoalmente os dois estilistas, os encontros para as entrevistas foram marcados, informalmente, por telefone e as conversas, antes e depois das entrevistas, se deram por mensagens via correio eletrônico e telefone. A entrevista com Walter Rodrigues foi gravada em sua casa em São Paulo, em setembro de 2011 e a de Goya Lopes foi feita por Skype e telefone e transcrita simultaneamente, em maio de 2012. A estrutura das entrevistas obedeceu à mesma ordem nos dois casos. Inicialmente nos interessou a história de vida, formação e trajetória profissional 40 do designer, a seguir, seu entendimento sobre o termo Étnico e seu processo de criação a partir de temas e propostas estabelecidos em cada caso. O tempo médio de cada entrevista foi de duas e meia a três horas de duração, e, no caso de Goya Lopes, a conversa foi dividida em duas etapas. Ambos complementaram seus depoimentos orais com pequenos textos via e mail, quando necessário. Ambos os estilistas cederam, para essa pesquisa, fotos de seus acervos particulares, bem como outros documentos (releases para a imprensa, amostras de tecidos, fotos de seus “cadernos de criação” e “look books”). As entrevistas transcritas foram incluídas na pesquisa na forma de dois capítulos independentes. Ao final construímos uma conclusão fazendo um cruzamento dos dados colhidos nas entrevistas e alinhavando-os na intenção de tecer um comentário sobre as referências afro-brasileiras encontradas na moda que se produz aqui e agora. 3. ÁFRICA VISTA PELOS OLHOS DE WALTER RODRIGUES 3.1 O Significado Do Étnico Segundo o Estilista 41 Walter Rodrigues conta o porquê do seu interesse por outras culturas, um traço tão marcante no seu trabalho. Diz que quando criança seu sonho era ser arqueólogo, pois adorava a história das culturas, dos povos. O designer cultivou ao longo do tempo um enorme fascínio “pelo que não lhe pertencia”. Ao indagar-se a si próprio, nos anos 70, sobre essa admiração e atração contínuas lembrou-se de um fato curioso e marcante da sua infância. Morou em Herculândia e Tupã, onde conheceu e conviveu com espanhóis, letos, italianos, japoneses e libaneses. Seus colegas de escola eram descendentes diretos desses povos. A convivência com as diversidades dos tipos físicos e das culturas fazia parte do cotidiano; as crianças adoravam trocar os lanches na escola para conhecer outros sabores, as casas eram diferentes até na sua arquitetura: “as casas dos letos tinha telhados pontiagudos, próprios de lugares com neve”. Na década de 40 era comum ouvir na rua várias línguas diferentes; seitas orientais conviviam com outras, ocidentais. A multiplicidade sempre o acompanhou. Cultiva o gosto pela diferença vivendo em meio a objetos do mundo todo que gosta de colecionar. Walter diz que o étnico é universal; qualquer ser humano, de qualquer região do mundo tem em comum a humanidade e o planeta que habita. E nunca deixou de admirar e sonhar com as expedições exploratórias do século XIX que reunia os homens em torno da ideia da procura e do encontro com as civilizações perdidas. No seu trabalho tem na curiosidade e no experimento sua matéria prima. Interessam os cheiros, os sabores, o toque dos tecidos e materiais, as casas, os tipos de leitura, os perfumes, conhecer as diferenças para transformar essa vivência em design. Para o designer “o étnico é essência, é raiz, são culturas que permanecem hoje no mundo globalizado, pessoas que ainda se vestem como se vestiam há 2000, 3000 anos atrás”. Étnico é olhar para o mundo, “pensamos o local, mas observamos e vivemos o global”. Walter gosta de lembrar nomes contemporâneos como os de Nicolas Guesquière da Balenciaga, Yves Saint Laurent e John Galliano como exemplos bem 42 sucedidos no trabalho com tema étnico. Fecha o raciocínio lembrando-se da pluralidade, da multiplicidade da cultura brasileira (tons de pele, cor de olhos e de cabelos, de “jeitos de falar o português”, etc.). Considera primordial aceitarmos e procurarmos conhecer as diferenças: “temos de cultuar essas diferenças que são um verdadeiro legado; temos de discutir, trabalhar isso, fazer reverberar a ideia para mais pessoas. O Brasil tem DNA múltiplo na sua forma coesa de produzir, tem tudo isso junto”. 3.1.2 Um pouco da vida e trajetória profissional de Walter Rodrigues Walter Luiz Vieira Rodrigues (Figura 12) nasceu a 13/12/1959, na cidade de Herculândia, estado de São Paulo. Figura 12: Walter Luiz Vieira Rodrigues, Fonte: Acervo do designer Abandonou o curso técnico de química para trabalhar em Tupã, na loja “Berly”, como vendedor e vitrinista. No ano de 1981, em Presidente Prudente (SP), trabalhou noutra loja da mesma rede. Em 1982, numa das revistas Vogue que comprava com assiduidade, viu e se encantou com dois designers de moda japoneses que levaram às passarelas da Semana de Moda de Paris, influências punks. Eram eles Rei Kawakubo (Figura 13) e Yohji Yamamoto (Figura 14). 43 Figura 13: Rei Kawakubo Fonte: www.fashionista.com Figura 14: Yohji Yamamoto Fonte: vanguardfashion. blogspot.com Acesso maio de 2012 Apresentado, por uma amiga de Presidente Prudente (SP), à designer de moda Gloria Coelho foi a São Paulo para uma entrevista e foi convidado a trabalhar na confecção por quinze dias. Gloria Coelho o indicou para Iza Smith, editora de moda da Revista Manequim, onde Walter ficou por um ano. Continuou em São Paulo onde a seguir, 1984, integrou a equipe de estilismo da Cori e, após seis meses, tornou-se assistente de Clotilde Orozco, dona da marca Huis Clos. Walter conta que, foi ali, pela primeira vez, que se deparou com peças originais de grandes nomes da moda internacional. O estilista não passou por curso superior de Moda, inexistentes ainda no Brasil, assim como tantos designers de moda de sua geração. Fez sua própria formação estudando História da Moda com Serafina Borges do Amaral e, na Rhodia, em São Paulo, participou do curso Criação de Moda com Marie 44 Rucki, principal nome do renomado Studio Berçot de Paris. Em 1986, foi um dos mentores da ideia da “Cooperativa de Moda”, ao lado de Conrado Segreto, Jum Nakao, entre outros, sob o patrocínio do empresário Yoshiro Kimoto, dono do grupo Cosmopolitan. A ideia era montar um bureau de estilo para atender indústrias que não contassem com seus próprios designers, além de viabilizar as coleções de cada designer e comercializá-las numa futura loja da “Cooperativa”. A ideia prenunciava a terceirização do setor. Esse projeto teve vida breve, mas gerou dois desfiles em São Paulo, com grande repercussão na mídia em geral. Em 1987, arriscando vôo solo, cria a “Satori”, com a sócia Áurea Yamashita. As silhuetas são retas e básicas, com nítida influência japonesa, conquistando de imediato um público bastante interessado naquele estilo construído e “limpo”. No início dos anos 90, até assinar seu trabalho com o próprio nome, trabalhou para as marcas Bicho da Seda e Viva Vida. Na mesma sociedade, em 1992, lança a marca Walter Rodrigues, tornando-se o único responsável por seu negócio. Esteve presente em todos os importantes eventos de moda que precederam o SPFW (São Paulo Fashion Week), desde o antigo Phitoervas Fashion, em 1994, passando pelo Morumbi Fashion e, atualmente, São Paulo Fashion Week, optando, nas últimas edições deste, pelo Rio Fashion Week, realizado no Rio de Janeiro. Ao lado de Fause Haten e Alexandre Herchcovitch surgiu como revelação no primeiro Phitoervas Fashion, embora já estivesse no mercado da moda há dez anos. Internacionalizou sua marca participando das últimas temporadas da Semana de Moda Parisiense e da Semana de Moda da Colômbia. Podemos dizer que Walter Rodrigues é um “designer arqueólogo” que mantém, por detrás de cada coleção que desenvolve um processo de criação ancorado em pesquisas teóricas e visuais, conforme o tema eleito. Seus 45 cadernos de referências são verdadeiros documentos de pesquisas e observações apuradas dos temas que elege a cada estação ou a cada projeto novo. Ricos em levantamentos iconográficos primam pela inteligência sensível de quem tece com maestria uma trama. Tem a postura de um cool Hunter (um caçador de tendências), observa as ruas, as pessoas e suas roupas, os tipos de comida que se come em cada lugar, a arquitetura dos lugares e traça relações entre as várias maneiras de estar no mundo conhecendo o espírito do seu tempo. Como criador e designer ultrapassa o conceito do vestir pessoas, sua roupa carrega histórias a cada tema de cada coleção, e o tecido, como suporte, se transforma em mensagem estética. Atualmente se dedica à coordenação do Núcleo de Design da Associação Brasileira de Calçados e Artefatos (ASSINTECAL), trabalho que realiza desde 2005; e, é responsável pela Curadoria de Desenvolvimento de Materiais e do Projeto INSPIRAMAIS. O INSPIRAMAIS, Salão de Design e Inovação de Componentes nasceu com a finalidade de transformação. Do descobrimento de novas ideias, cheias de expressão e muito surpreendentes. Termo procedente do latim inspirare que significa soprar, comunicar, e é utilizado tanto no campo da teologia como das artes para designar o tipo de motivação que leva um indivíduo a produzir uma obra de arte. Para além do sentido figurado, este termo pode também ser relacionado com a respiração como sendo o movimento do ar para dentro. No entanto, a partir do século XVI, onde surge nos escritos de Ambroise Paré, o sentido figurado como sinônimo de intuição estética, invocação, genialidade, criação e imaginação. Site:inspiramais.com.br 46 3.1.3 Coleção Verão 2011, Fashion Rio “Continentes”, A África segundo Walter Rodrigues Na entrevista feita em setembro de 2011 com Walter Rodrigues, falamos sobre o processo de criação da coleção que se chamou “Continente”, e cujo lançamento aconteceu durante o Fashion Rio, em janeiro do mesmo ano. Walter conta que tudo começou quando, no Colóquio de Moda, em agosto de 2010, foi convidado por Carol Garcia e Ana Paula de Miranda, esta última consultora do projeto, para ir a Pernambuco integrar uma equipe de estilistas que participaria do “Pernambuco com Design”, um projeto de intervenção socioeconômica liderada pela Agência de Desenvolvimento Econômico de Pernambuco (AD DIPER). A equipe foi composta por quatro designers de moda. Além de Walter Rodrigues, que trabalharia em Quipapá; Ronaldo Fraga, em Passira; Melk Z-da, em Fernando de Noronha e Tininha da Fonte (da marca Movimento), trabalharia com Brasília Teimosa, em Recife. O Estado, que concentra um dos maiores polos de confecção do Brasil, contava com um grande déficit de profissionais especializados na manufatura de produtos, com caráter peculiar e de excelência. Dentro de várias outras dificuldades surgiu um projeto que teria como objetivo capacitar costureiras ensinando-as as técnicas da costura industrial e de luxo. No caso da parceria com Walter Rodrigues, o resultado desse trabalho seria mostrado durante o Fashion Rio, em janeiro de 2011, no desfile de sua marca. Walter conta que, ao chegar à cidadezinha, deparou-se com um grupo de vinte e cinco mulheres que sabiam costurar o básico em máquinas muito antigas, as Singer de pedal. O projeto incluía montar, junto com a prefeitura de Quipapá, um espaço onde o designer ensinaria o manuseio de máquinas industriais modernas e trabalharia junto às costureiras realizando produtos. Mas não só de costura foi feita essa capacitação, as mulheres de Quipapá tiveram aulas de Português, Matemática, Gestão, Associativismo, Customização, História da Moda e Planejamento e Comercialização de Produtos. Era objetivo fazer desse espaço um espaço vivo. 47 Walter classifica, a princípio, uma situação como essa, de “assustadora”, por desconhecer completamente as pessoas envolvidas e suas expectativas. Começou “desmistificando tudo”, a começar por sua ação no lugar. Disse que estava sendo pago para estar lá e que sua presença anunciava um projeto de trabalho e não uma ação de caridade. Salientou que acreditava muito no potencial de aprendizado daquelas mulheres. Considerava- as sobreviventes, pois ficaram sem trabalho após o fechamento de uma usina de cana de açúcar e que dali para frente partiriam, segundo as expectativas gerais, para algo novo em suas vidas envolvendo a costura. O projeto se chamou “Costurando minha dignidade” (Figura 15) e funcionaria num galpão cedido pela prefeitura de Quipapá. Figura 11: Galpão do Projeto “Costurando minha dignidade”, Quipapá, PE. Fonte: acervo do estilista Era importante, segundo Rodrigues, para uma cidade do agreste pernambucano ter a noção de como romper barreiras, conhecer a possibilidade da terceirização e aprender a trabalhar em grupos. Por estarem muito próximos de Caruaru, grande polo têxtil e ao lado de Santa Cruz do Parnaíba que também é muito forte na confecção, oportunidades não lhes faltariam. Começou do zero. Iniciou sua pesquisa iconográfica seguindo seu 48 pressuposto, de que é impossível fazer primeiro a coleção para depois buscar a inspiração (sic), ou as referências. Walter acredita que a construção de um argumento forte e verdadeiro é que dá sustentação a uma coleção; principalmente no caso de um projeto financiado pelo governo onde estariam expostos o seu trabalho e o das costureiras. Chamou-lhe a atenção o nome da cidade, procurou saber o significado da palavra Quipapá. Descobriu que a palavra denominava uma planta da região. A cidade fica dentro de um vale, quase divisa com Alagoas e vizinha de Palmares, onde foi formado o Quilombo de Palmares1. Seus primeiros pensamentos foram para Monteiro Lobato, onde leu, pela primeira vez em sua vida, sobre a história de Zumbi dos Palmares, o poderoso líder político do Quilombo, que agregava as pessoas entorno de um forte ideal. Foi aí que a África surgiu como inspiração ao lado de outro fator determinante: 70% do grupo de costureiras eram afrodescendentes. Para Walter a África é um continente que mantém intactas características muito particulares, é um “celeiro” de inspirações; ainda não tem moda e se mantém distantes dos costumes ocidentais. Walter complementa: [...] “se for falar de quanto o primitivo pode ser rico, por causa da música, da história, da cultura, dos deuses e tudo isso, a África ainda mantém isso em pleno século XXI. Ela ainda é povoada dessa magia” (São Paulo,setembro de 2011). Para o designer a história se fechava aqui: havia chegado num lugar, do qual não fazia parte, e sentia-se como um “voyeur”, observando e selecionando tudo aquilo que lhe seria interessante. Faria uma releitura dessa realidade, transformando-a em seu trabalho. Resolveu que iria buscar “nessa África” a dimensão que queria para sua coleção. Naturalmente “essa África” 1 Um dos quilombos mais conhecidos da história brasileira foi Palmares, instalado na serra da Barriga, atual região de Alagoas. Com o passar do tempo, Palmares se transformou em uma espécie de confederação, que abrigava os vários quilombos que existiam naquela localidade. Seu crescimento ocorreu principalmente entre as décadas de 1630 e 1650, quando a invasão dos holandeses prejudicou o controle sobre a população escrava. 49 não seria exuberante, colorida, vibrante como o que se imagina quando se pensa em África, de como é Salvador na Bahia, por exemplo. O mundo de Zumbi não era o do grupo Olodum, definitivamente. A cartela de cores da África de Walter seria azul marinho, marrom, cinza, areia, “uma África pesada”. Chamou a coleção de “Continentes”, não no sentido geográfico do termo, mas no sentido de conter, por “conter coisas”. A África continha coisas que o inspiravam, o faziam raciocinar, pensar e, ao mesmo tempo, continha um pedaço de Brasil. As costureiras contaram histórias de suas avós, lembravam suas histórias deixando o grupo coeso. Walter Rodrigues pensou em como iria construir a imagem dessa África. Levou para Quipapá imagens, do livro “Natural Fashion- Tribal Decoration from Africa” que o fotógrafo alemão Hans Silvester*2 produziu no Vale do Rio Omo, na Etiópia (Figura 16). As imagens são extremamente ricas em referências estéticas e apresentam inúmeros detalhes que pedem observação apurada (Figuras 17 e 18). As costureiras observaram com interesse e curiosidade as imagens do fotógrafo e ao mesmo tempo faziam seus exercícios de costura nas novas máquinas. 2 O fotógrafo alemão, Hans Silvester, que já esteve no Vale do rio Omo várias vezes, e passou seis anos entre as tribos. Ficou impressionado com o que encontrou ali, principalmente nas tribos Surma e Mursi, conhecidas por suas exuberantes pinturas corporais. Elas utilizam material vulcânico, para obter as mais diferentes cores e pintarem os corpos nus. E, como adereços, usam cascas, flores e folhagem. A natureza fornece-lhes um campo vasto de tinturas e enfeites. As fotos de Hans Silvester percorrem o mundo como um alerta para a fragilidade dessas tribos, que precisam ser protegidas. A íntegra de seu trabalho pode ser vista no livro Natural Fashion – Tribal Decoration from África/ Editora Thames e Hudson. 50 Figura 12: Capa do livro “Natural Fashion” de Hans Silvester Fonte: trouvaillesdujour.blogspot.com Acesso em maio,2012 Figura 13 e Figura 14: Corpos decorados e adornados com vegetais Fonte: Natural Fashion,Tribal decoration from Africa,Hans Silvester,2009. Ao ver as fotos e a cartela de cores as costureiras não se cansavam de criticar “o tom bege do verão”. Fizeram então os exercícios de costura propostos por Walter usando linha de cor verde limão, um “verde ácido”; numa base “pele” aplicaram as flores de organza. Trabalharam com muita liberdade, a linha é livre e obedece a uma lógica própria delas. Os exercícios da força 51 empregada no pedal da máquina, do conhecimento prático dessa força, foram realizados de um jeito lúdico (Figuras 19 e 20). Figura 15: Costureiras de Quipapá Fonte: acervo do estilista Figura 16: Exercícios de costura Fonte: acervo do estilista Em relação às silhuetas, as referências dos monges tailandeses (Figura 21) e dos Massai (Figura 22) foram importantes, pois o uso que fazem dos panos na construção do corpo interessa muito ao designer. Existe uma sabedoria em se vestir com panos, um conhecimento formal muito grande e sensível. 52 Figura 17: Monge Tailandês Fonte: http://bigblogdagente.zip.net/arch2011-03-27_2011-04-02.html Acesso maio, 2012 Figura 18: Homens Massai Fonte: http://curiosidadeseculturas.blogspot.com.br/2012/02/massai-tribo-africana-que-se-alimenta.html Acesso maio, 2012 Walter traça um paralelo entre os monges e os africanos quando fala sobre a construção do corpo: “a ligação muito forte entre eles está na moullage de cada pano”; também presta muita atenção às amarrações, à forma que os panos se contorcem. Houve uma pesquisa em relação aos comprimentos. A estrutura da roupa é muito simples, muito construída, arquitetural. As linhas 53 limpas sempre interessaram ao designer. Cita Courrèges (Figura 23) quando fala sobre o tubo na coleção. Figura 23: André Courrèges, vestidos tubo, 1965. Fonte: http://vanmarri.blogspot.com.br/ Acesso maio,20212 Contou-nos ainda sobre um documentário que assistiu e que lhe chamou muito a atenção. As roupas produzidas no mundo ocidental3 têm “estágios de vida” e acabam em fardos que são vendidos a preços que variam conforme a sua procedência e conservação, a qualidade da confecção e dos tecidos empregados; os de menor preço são vendidos na África (Figura 24), Leste europeu e países mais pobres da América Latina. 3 Essas "roupas de branco usadas" conhecidas por mitumba são bastante comuns em algumas partes do continente africano. Ha muita polemica entorno delas. Os críticos consideram uma ameaça às manufaturas locais e queixam-se da exploração dos consumidores. Outros argumentam que essas roupas competem por preço baixando a qualidade dos produtos locais. O fato é que estão disponíveis nas feiras e mercados, mesmo nos países que tentaram bani- las, o que aponta certa preferência pelo “gênero mitumba”. De qualquer modo, prevalece o uso de roupa larga e clara, para adaptar-se ao clima muito quente. 54 Figura 19: Fardos de roupas usadas vendidos para a África Fonte:http://portuguese.alibaba.com/product-gs/fashion-summer-used-clothing-second-hand-clothes- 575284101.html Acesso maio,2012 Nesses fardos, diz Walter, encontramos variação na grade, no tamanho das peças, que quase sempre não correspondem ao tamanho do usuário africano. Então, quando roupa chega a esse usuário é usada de outra maneira. Às vezes são dois ou três números maiores e as crianças vestem essas peças, dos adultos, como se fosse algo normal para elas. Uma calça com cavalo grande vira uma calça saruel para os de baixa estatura. Fazem ajustes ao corpo, na hora de vestir, arrumam uma maneira de usar aquela roupa que lhes chega meio sem escolha, fazendo adaptações que lhes pareçam favorecer a própria imagem Algumas pessoas vestem a roupa ao contrário, pela barra. Essas atitudes “não convencionais” de vestir, de usar as peças adquiridas, cria uma “nova percepção da roupa”. O designer arremata: “a livre interpretação da roupa chega, em primeiro lugar, pela necessidade, mas depois se transforma num desejo de moda”. Walter gosta muito de observar o uso não convencional da vestimenta e de como o usuário pode transformá-la em “peças autorais” (Figura 25). 55 Figura 20: Crianças africanas vestidas com roupas ocidentais adaptadas. Fonte: http://subvarejobazar.blogspot.com.br/2008/09/ms-outubro-nmero-6-ano-2008.html Acesso julho de 2012 Na pesquisa sobre imagens para a escolha da estamparia, Walter interessou-se pelo trabalho de pintura corporal dos nativos das tribos do Rio Omo (Figura 26) e utilizou-o como um recurso de sensibilização nas atividades com as costureiras de Quipapá. O macacão estampado (Figura 27) por ser colado à pele nos remete diretamente à ideia dessa decoração corporal. Figura 21: Pinturas corporais dos nativos da região do Rio Omo Fonte: http://almariada.blogspot.com.br/2011_02_01_archive.html Acesso junho, 2012. 56 Figura 26: Macacões com inspiração na pintura corporal das tribos do Omo Fonte: http://dobabado.wordpress.com/category/fashion-rio/ Acesso junho, 2012. Walter conta que a partir da ideia de uma das costureiras, uma das peças da coleção foi concebida: “ela observou a foto do corpo pintado com flores (Figura 27) e resolveu cortar tiras de organza e prendê-las por um ponto central de costura ao tecido de base, imitando as flores pintadas no corpo do homem”. O vestido cheio de flores de organza aplicadas foi uma peça que teve um resultado surpreendente por se tratar de peça criada a partir da observação das fotos do livro de Silvester (Figs. 28 e29). Figura 22: Desenho corporal com motivo floral,Omo Fonte:http://socorromeireles.blogspot.com.br/2009/10/tribos-das-margens-do-rioomoafrica_17.html 57 Figura 23: Vestido com aplicação de flores imitando pintura corporal, Rio Omo Fonte: acervo do estilista. Figura 29: Detalhe da aplicação das flores de organza. Fonte: acervo do estilista. As peças dessa coleção apresentam as influências das silhuetas clássicas da moda ocidental, (Figuras 30 e 31). A influência de Saint Laurent, vista no terno feminino e de Courrèges, no vestido tubo, aparecem como marcas que confirmam o estilo de Walter Rodrigues. 58 Figura 24: Nítida influência de Yves Saint Laurent na África marinho de Walter. Fonte: acervo do estilista. Figura 31: Courreges aparece na construção dos tubos. Fonte: acervo do estilista 59 Ao trabalho das costureiras de Quipapá e das imagens gráficas surpreendentes das tribos africanas, que habitam as margens do Rio Omo, se somaram as silhuetas icônicas da história da moda, gerando um resultado que a imprensa local ( revista ELLE e MARIE CLAIRE) chamou de “a Àfrica chique de Walter Rodrigues”. Perguntamos ao designer o que pensava sobre “África chique” anunciada pelos jornalistas de moda. Walter respondeu que sua consumidora entende exatamente dessa maneira, tem de ser “chic”. Já, a imprensa, em geral, viu como um “desfile temático”, como se ele estivesse fazendo uma “apologia das diferenças”. Alguns jornalistas chegaram a perguntar se ele pensava em coleção “plus size” ou para a terceira idade. O designer critica a “mídia pela mídia”, o “marketing pelo marketing”; diz ainda que um discurso pode ser mal compreendido e que para evitar isso se faz um bom release, mas infelizmente nem todos lêem, se colocam à margem da informação precisa e escrevem histórias absolutamente pessoais sobre o que vêem. As modelos tinham de ser negras, pois a proposta, a ação do desfile na sua concepção era a de “colocar a roupa em cima dessa idéia”, a do corpo negro. O casting do desfile foi composto por vinte e cinco modelos negras, e segundo o designer, juntar o número necessário de mulheres ,modelos profissionais, não foi tarefa simples. As modelos, para os desfiles oficiais, tem de ser sindicalizadas e estarem vinculadas às agências especializadas, não se pode escolher amigos ,por exemplo. Conseguiu uma parte delas no Rio e outra em São Paulo,pois nenhuma agência contava com o número fechado de modelos.Nunca houve antes um desfile brasileiro onde o casting fosse composto exclusivamente por modelos negras (Figura 32),o que chamou a atenção da mídia em geral sobre o fato,porém nada mais foi dito a não ser sobre o “fato curioso” das agências de modelo não possuírem um número considerável de modelos negras para casting. 60 Figura 32: O “casting” das modelos, muita dificuldade para reunir 25 modelos profissionais. Fonte: acervo do estilista. Procuramos saber junto aos órgãos competentes do governo de Pernambuco sobre a continuidade do projeto “Costurando minha Dignidade”, porém não houve nenhuma resposta. Contatamos dois outros estilistas ligados ao projeto maior “Pernambuco com Design”, além do próprio Walter Rodrigues, Melk-Z-Da, que também não sabia da continuidade do trabalho na comunidade onde atuou. Ronaldo Fraga, contatado por correio eletrônico, manifestou o interesse em responder a essa questão, mas estava fora do Brasil. 61 4.A ÁFRICA VISTA PELOS OLHOS DE GOYA LOPES 4.1 Vida e trajetória profissional de Goya Lopes Fig.33 Goya Lopes, 2011 Fonte: arquivo da designer Goya Lopes nasceu em Salvador, Bahia, em sete de maio de 1954. Licenciada em Artes Plásticas pela Universidade Federal da Bahia, UFBA, em 1976. Ainda na faculdade, motivada pelo estudo da história da arte, encantou-se com a possibilidade de cursar arqueologia, mas ouviu com atenção um de seus professores que lhe apontou o design como sendo “uma profissão do futuro”. Goya Lopes acreditou e seguiu os conselhos de Romano Galeffi, professor de Estética da UFBA, que vislumbrava o desenvolvimento da profissão de designer no Brasil. Ganhou uma bolsa de estudos para a Itália onde cursou a especialização em Design, Museologia, Expressão e Comunicação Visual, na Universitá Internazionale DellArte di Firenze.Goya 62 conta que, para os professores italianos, ela era mais uma brasileira dos muitos alunos das Artes Plásticas, que vinham com bolsa de estudos para cursar Design na Itália. Ambas as áreas ainda se misturavam no Brasil, e, ainda por certa falta de formação de profissionais e informação do mercado, os artistas plásticos transitavam pelas chamadas “áreas afins”. Durante os três anos em que viveu na Itália, a designer “descobriu” o que era Design. Nessa época, na Europa, existia certo interesse pelo étnico, que se manifestava nos filmes de cinema e entre os formadores de opinião. Existia uma estamparia “inspirada” em América Central, América Latina, África. Goya pensava no Brasil, e de que maneira poderia desenvolver o tema afro, com profundidade, no design têxtil. Voltou da Itália direta para a Bahia no início dos anos 1980. Observava que tudo o que se conhecia sobre “a moda afro” era a própria moda trazida da África, além da “livre interpretação” que alguns faziam sobre o étnico de modo geral. Existia em Salvador, desde 1974, o bloco Ilê Aiyê, que já representava um movimento de identidade afro- brasileira. Sem dúvida a Bahia seria o lugar certo para, algum tempo depois, empreender seu próprio projeto, pois existia um campo, uma necessidade a ser atendida. O mercado mais vigoroso de São Paulo, fez com que Goya vivesse na cidade de 1981 a 1983. Inicialmente trabalhou como profissional autônomo na Alpargatas, para a linha Madrigal. Fez desenhos para jogos americanos, aventais, com referências das carrancas (fig.33), cerâmica marajoara, seguindo a linha nacionalista dos temas propostos. 63 Fig.33. Jogo americano com desenho “Carrancas” Fonte: arquivo Goya Lopes Quando a Alpargatas determinou o fim da linha Madrigal a designer resolveu voltar a Salvador por encontrar muita dificuldade em vender seus desenhos para um mercado que possuía muita oferta de países europeus; com preços baixos e larga escala de produção. Já em Salvador, Goya conseguiu um emprego de meio período, como restauradora, para que tivesse tempo de começar o seu negócio, a princípio quase que desconhecido, pois as únicas pessoas que usavam “roupas africanas” eram de um lado as que pertenciam ao Candomblé, de outro, os formadores de opinião como Jorge Amado, Pierre Vergé, Caribé, entre poucos. Eles costumavam comprar as roupas em viagens internacionais, ou compravam tecidos africanos e davam para suas costureiras transformarem em batas. Seu primeiro público foi de intelectuais ligados à universidade e turistas, pois Goya tinha muitos amigos que eram guias turísticos em Salvador. A técnica utilizada no início não era a da serigrafia, era a das máscaras. Fazia os desenhos, passava-os para as máscaras e em seguida estampava o tecido. As peças eram praticamente únicas. No início contou com a colaboração da parceira Elisa Galeffi, mas depois de um curto período, seguiu sozinha em seu empreendimento. Idealizava a peça, estampava o tecido, sua tia costurava e ela levava as batas e cangas em sacolas, também estampadas, até os hotéis para vendê-las aos turistas que chegavam com seus guias dos passeios programados. Vendia as batas e as sacolas. Em 1986 participou de uma Feira de Moda cujo tema era África. Goya foi indicada à organização do evento pelos que conheciam seu trabalho e o reconheciam como sendo algo muito diferente de uma “África traduzida” que em geral se apresentava. Pediram cangas para um desfile e em troca lhe deram um espaço para exposição. A serigrafia foi pensada como solução, pois 64 a quantidade de tecido seria maior; a designer terceirizou o trabalho, pois ainda não utilizava a técnica como meio de produção. A partir da Feira, e, num curto espaço de tempo, começou a vender caftans e sacolas para lojas de hotéis e outros lojistas. A “moda África” passou e o que restou foi o mercado do turismo, que lhe era fiel. Saiu do Mercado Modelo, onde vendia, para montar uma loja própria no Pelourinho, que na época, 1987, encontrava-se totalmente abandonado. A revista Veja fez, em 1988, uma matéria, por ocasião dos Cem Anos da Abolição, mostrando o que existia de África no Brasil, e o trabalho da designer, ao lado de outros baianos, foi amplamente divulgado, colaborando muito para que seu projeto ganhasse forma. Abriu uma loja no Aeroporto Internacional de Salvador. Outra forma importante de divulgação de seu trabalho foi a campanha do SEBRAE, feita em 1989, para legalização das microempresas no Brasil, Goya representou a Bahia numa série de vídeos institucionais. A revista Pequenas Empresas, Grandes Negócios também a entrevistou. O projeto inicial tomou grandes proporções e a produção teve de acompanhar a demanda crescente.Goya Lopes precisou contou com o feed back de especialistas para lhe orientar em relação a seu trabalho, que ela própria define muito bem como “um produto de modelagem simples, referência afro e de acordo com uma linguagem, com uma necessidade brasileira” (entrevista em maio de 2012). Ter uma loja no Centro Histórico de Salvador, conta Goya, funcionou como um “laboratório”. Por lá passava gente do mundo inteiro e, nessa época, os turistas apresentavam, em geral, um nível cultural mais elevado, eram exigentes em relação ao que consumiam. Goya diz que pode conversar com muitos deles e que recebeu informações importantes acerca do produto que oferecia. As percepções tinham muito em comum, falavam sobre a originalidade e a unicidade do seu produto em relação ao forte conteúdo e à sua forma, percebida como se fosse algo estampado à mão, essencialmente artesanal. 65 A necessidade de criar e manter um padrão tornou-se imprescindível para que o trabalho fosse reconhecido pelo estilo pessoal, como uma marca. A designer afirma que essa seria uma conquista necessária para o futuro de seu projeto: ser reconhecida como referência da moda afro-brasileira e pelo design diferenciado seria um passo definitivo. A partir de uma entrevista concedida para o Caderno de Economia da Folha de São Paulo (a designer não citou dados para referência), onde a questão afro-brasileira foi descrita como uma nova tendência do mercado, seu projeto de produto étnico, estava confirmado e consolidado. Daí para frente poderia realizar novos projetos. A empresa passou e passa por várias mudanças, se mantendo no mercado graças à economia criativa, na gestão do negócio. A busca da sobrevivência fez e faz com que Goya trabalhe como artista plástica, utilizando como matéria prima a cultura afro. Didara é uma marca que conta uma história, como agora, por exemplo, com o tema dos provérbios africanos. “Sou uma contadora de histórias”, diz a designer, as estampas da Didara sempre contaram histórias (Fig.33) Fig.33- Estampa Yorubá Fonte: acervo Goya Lopes 66 Fig.34 Goya acompanha a impressão em serigrafia de uma estampa sua. Fonte: acervo Goya Lopes Fig.35 Logotipo da marca Didara Fonte: arquivo de Goya Lopes As histórias sobre as quais Goya nos fala contam a respeito das três raças que desenvolveram um complexo relacionamento do qual resultou uma cultura ímpar. A presença e a coexistência dos povos ibérico, ameríndio e africano, em terras brasileiras, é contada na forma de imagens e se transforma em tecido para moda e decoração a partir da visão e do entendimento de sua contadora, Goya. A seguir, temos uma amostra das estampas desenvolvidas nos últimos anos (Figs 36, 37, 38, 39,40, 41e 42). 67 Fig.36 “Arqueologia e Solidariedade” Fonte: (Lopes, 2010) Fig.37 Arte do cotidiano e Máscaras Sagrados Fonte (Lopes, 2010) 68 Fig.38 Goya Lopes vestindo DIDARA Fonte: acervo pessoal da estilista, 2010 Fig.39 Ancestralidade e Presença Africana no Brasil Fonte: (LOPES, 2010) 69 Fig.40 Penteados Afro e Afrodescendente Fonte: (LOPES, 2010) Fig.41 Crioulas e Quituteiras Fonte: (LOPES, 2010) 70 Fig.42 Música e Alegria Fonte: (LOPES, 2010) Goya realizou trabalho de estamparia para a marca NEON, de Dudu Bertollini, desfilado no São Paulo Fashion Week para o verão de 2007. As estampas foram desenhadas por três estilistas: Goya Lopes, Fábio Gurjão e Fernando Vilella. A proposta no trabalho de Goya foi “o toque afro-brasileiro da Bahia” nos vestidos e saídas de praia “repletos de flores e frutos”. O destaque foi a estampa Indo-afro, com referências dos índios Kadiwéu, abstrato geométrica (fig.43).A designer também desenvolveu uma embalagem para o Licor Amarula que foi distribuído como brinde para os convidados( fig.44). 71 21 Fig.43 Matéria publicada na Folha da Bahia, 2007, Goya para NEON. Fonte: Arquivo da estilista Fig.44 Embalagem para acondicionar o Licor Amarula, brinde do SPFashion Week,2007. Fonte: acervo da estilista 72 Atualmente Goya Lopes está investindo na marca GOYA LOPES. Após haver construído uma forte referência com a marca DIDARA, pelo trabalho feito há mais de vinte anos, sente que já pode ter a marca que a identifica possibilitando que atue de