UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Instituto de Geociências e Ciências Exatas Campus de Rio Claro SOBRE REVOLUÇÕES CIENTÍFICAS NA MATEMÁTICA João Carlos Gilli Martins Rio Claro (SP) 2005 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Instituto de Geociência e Ciências Exatas Campus de Rio Claro SOBRE REVOLUÇÕES CIENTÍFICAS NA MATEMÁTICA João Carlos Gilli Martins Orientador: Prof. Dr. Romulo Campos Lins Tese de Doutorado elaborada junto ao Curso de Pós-Graduação em Educação Matemática – Área de Concentração em Ensino e Aprendizagem da Matemática e seus Fundamentos Filosófico-Científicos Para obtenção do título de Doutor em Educação Matemática. Rio Claro (SP) 2005 510.09 Gilli Martins, João Carlos G481s Sobre revoluções científicas na Matemática / João Carlos Gilli Martins. – Rio Claro : [s.n.], 2005 175 f. Tese (doutorado) – Universidade Estadual Paulista, Instituto de Geociências e Ciências Exatas Orientador: Romulo Campos Lins 1. Matemática – História. 2. Epistemologia. 3. Paradigma. 4. Pesquisa normal. 5. Pesquisa extraordinária. 6. Álgebra. I. Título. Ficha Catalográfica elaborada pela STATI – Biblioteca da UNESP Campus de Rio Claro/SP COMISSÃO EXAMINADORA Prof. Dr. Romulo Campos Lins (orientador) IGCE/UNESP – Rio Claro (SP) Prof. Dr. Antonio Vicente Marafioti Garnica FC/UNESP – Bauru (SP) Prof. Dr. Francisco César Polcino Miles IME/USP – São Paulo (SP) Profª. Drª. Ligia Arantes Sad UFES – Vitória (ES) Prof. Dr. Marcos Vieira Teixeira IGCE/UNESP – Rio Claro (SP) Rio Claro, o4 de maio de 2005 Ao meu avô, Carlos Gilli Netto (in memoriam); aos meus pais, Jesus Martins Martins (in memoriam) e Nilde Gilli Martins; à minha esposa, Graziela Lucci de Angelo e aos meus filhos, Bruno de Angelo Gilli Martins e Lígia de Angelo Gilli Martins, aos quais tanto devo, dedico. AGRADECIMENTOS Ao amigo Romulo Campos Lins, pela confiança em mim depositada, pela disponibilidade e pelas valiosas contribuições a este trabalho, advindas de uma orientação crítica e segura. Aos colegas do grupo de pesquisa Sigma-t: Amarildo Melchiades da Silva, Carlos Alberto Francisco, Patrícia Rosana Linardi, Regina Ehler Bathelt e Rodolfo Chaves, pelo estímulo sempre presente e pelas contribuições recebidas nas sessões semanais de orientação. Aos colegas — professores e servidores técnico-administrativos do Departamento de Matemática e do Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática da UNESP, Campus de Rio Claro —, pela acolhida amiga; em especial, aos professores: � Irineu Bicudo, que orientou os meus primeiros passos nesse programa de pós-graduação; � Roberto Ribeiro Baldino e Tânia C. Batista Cabral, que contribuíram significativamente para que o projeto desta tese desabrochasse; � Antonio Carlos Carrera de Souza, que me apresentou a Educação Matemática enquanto processo de se educar pela Matemática; � Antonio Vicente Marafioti Garnica, sempre disponível, com sugestões sempre oportunas; � Marcos Vieira Teixeira, um interlocutor, de todas as horas, acerca da História da Matemática; � Ole Skovsmose, pelos caminhos apontados e pelas sugestões pertinentes. Aos colegas — professores e servidores técnico-administrativos — do Departamento de Matemática da Universidade Federal de Santa Maria, pela confiança, apoio e incentivo; em especial, ao amigo João Batista Peneireiro, pelas discussões esclarecedoras e propostas oportunas. Aos membros da banca de qualificação e da banca examinadora da defesa, pelas contribuições pertinentes que enriqueceram este trabalho. À Graziela Lucci de Angelo, minha esposa e companheira, não só pela compreensão e carinho, mas, também, pelo exaustivo trabalho de revisão do texto. Aos colegas do corpo discente do Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática da UNESP — Campus de Rio Claro —, com os quais muito aprendi; em especial a Adlai R. Detoni, Ana Flávia Mussolini, Ana Márcia T. Carvalho, Ana Paula Malheiros, Andréia M. P. de Oliveira, Antonio Olímpio Jr, Antonio Pádua, Chateaubrian N. Amâncio, Duelci Vaz, Edílson R. Pacheco, Emerson Rolkouski, Fabiane H. Noguti, Heloísa da Silva, Jonei C. Barbosa, José Eduardo F. da Silva, Jussara de Loyola Araújo, Luiz H. Haruna, Marcelo S. Batarce, Nilce F. Scheffer, Otávio Jacobini, Paulo I. Hiratsuka, Raquel Milani, Ronaldo M. Martins, Rosimeire Batistela, Rosinete Gaertner e Vanda Domingos. Aos amigos da aprazível Rio Claro, que tornaram a nossa permanência, nessa cidade, mais aconchegante ainda e, para sempre, inesquecível. À CAPES-PICDT, pelo apoio financeiro. À vida, que tanto tem me dado. Agradeço. “Entre os intelectuais, o mito do progresso é engolido por vaidade pessoal, pois a psicologia nos ensina que, com raras exceções, nada mais agradável do que pensar na grandeza das nossas criações nas ciências, nas artes, nas letras, com aquela arrogância que lança ao passado um olhar superior de quem se utiliza dele como um degrau para galgar níveis mais elevados. Verdade se diga que, entre os homens da ciência, uma atitude soberba é mais comum do que entre os artistas, pois, afinal, salta aos olhos que uma catedral gótica não é nem superior nem inferior a um templo grego; é apenas diferente. Mas, dizer que a geometria diferencial moderna não é nem superior nem inferior à geometria de Euclides, oh! isso não! O curioso é que, com todo esse ‘progresso’, ninguém toma consciência de que nunca houve tanta gente morrendo de fome, de doenças, queimadas por Napal e bombas atômicas, como no mundo atual! Bem, dizem, por aí, que este é um argumento emocional e muito gasto pelo uso. De fato, pode ser assim, mas a vergonha da desigualdade entre os homens continua berrante e, então, iremos apresentar, no decorrer de nossa exposição, argumentos não emocionais, mas solidamente ancorados na filosofia para evidenciar a ilusão desse mito do progresso e a incongruência dessa linha de interpretação da história que, infelizmente, como doença contagiosa, afeta mesmo as mentes mais esclarecidas de nossos tempos.” (Lintz; 1999:XVII). Índice Introdução O Problema Uma orientação à leitura deste trabalho Capítulo 1 Introdução: à guisa de um breve esclarecimento Sobre a Análise de discurso: aspectos relevantes ao presente trabalho Sobre História Bibliografia Capítulo 2: Sobre as condições históricas ao surgimento do positivismo Introdução A gênese da filosofia positivista da ciência Bibliografia Capítulo 3: Sobre o fim da teoria do conhecimento e o desabrochar da teoria da ciência Introdução Rei morto, rei posto Bibliografia Capítulo 4: Desenvolvimento da Matemática: Um processo contínuo e cumulativo? Introdução A teoria da ciência de Thomas Kuhn: Uma breve abordagem Considerações acerca dos paradigmas Sobre o período de ciência normal Da pesquisa normal à crise e à revolução: um caso na Matemática Viète e o desenvolvimento da Álgebra na Europa Comentário adicional Bibliografia 01 02 05 06 16 29 33 33 53 55 55 72 74 75 79 97 109 137 153 155 Capítulo 5: Outras leituras e um confronto necessário Introdução As dez "leis" de Crowe referentes aos padrões de mudança na história da Matemática Em busca de um significado Conclusão Bibliografia Conclusão final 158 158 161 167 171 173 Resumo Tem sido unanimidade entre os filósofos da Matemática a compreensão de que as revoluções científicas, na forma como são apresentadas em A Estrutura das Revoluções Científicas, de Thomas S. Kuhn, não ocorrem na Matemática. Este trabalho pretende o contrário: fundado no Modelo Teórico dos Campos Semânticos e tendo a história da Matemática como cenário ― mais especificamente, a história da Álgebra ― esta tese foi elaborada para mostrar que a obra Kitab al mukhtasar fi hisab al-jabr wa’l-muqabalah, de al- Khwarizmi, inaugura o primeiro período de pesquisa normal no desenvolvimento da Álgebra na Europa, um período altamente cumulativo e extraordinariamente bem sucedido em seus objetivos paradigmáticos e que se estendeu até as décadas iniciais do século XIX. Mostramos, ainda, que a demonstração do, hoje denominado, Teorema Fundamental da Álgebra, por Gauss, e a publicação do trabalho Sobre a resolução algébrica de equações, de Abel, trouxe à luz, na forma de um fato, uma anomalia irresolúvel do primeiro paradigma da Álgebra no Velho Continente. A partir daí, abriu-se um período de pesquisa extraordinária no âmbito dessa disciplina ― um período revolucionário ― de onde viria emergir um novo período de pesquisa normal, um novo paradigma para a Álgebra ― os sistemas algébricos abstratos ― fundado nas realizações matemáticas de Galois, Peacock e Hamilton. Abstract Thus far, all the Mathematical Philosophers have unanimously agreed that the scientific revolutions, as it is presented in The Structures of the Scientific Revolutions, by Thomas S. Kuhn, do not take place in Mathematics. This paper intends to prove just the opposite: founded on The Theoretical Models of the Semantic Fields and considering the History of Mathematics as the scenery in question — more precisely, the History of Algebra — this thesis was prepared to show that the work Kitab al mukhtasar fi hisab al-jabr wa’l muqabalah, by al-Khwarizmi, gives birth to the first period of normal research in the European development of Algebra, a highly cumulative and extraordinarily well succeeded period in its paradigmatic objectives, which extended until the first decades of the Nineteenth Century. We further show that the proof of the so called The Fundamental Theorem of Algebra, by Gauss, and the publication of Abel’s work on The Algebraic Solutions of Equations, brought to light, as a fact, an unsolvable anomaly of the first paradigm of Algebra in the Old Continent which, from there on, caused the beginning of an extraordinary research period in this particular field — in fact, a revolutionary period — from which would surface a new time of normal research, a new algebraic paradigm — the abstract algebraic systems — based on the mathematical achievements of Galois, Peacock and Hamilton. Introdução O problema Uma prática muito comum no ensino da matemática, desde as séries iniciais e, até mesmo, nos estágios mais avançados da formação profissional, é apresentar-se, como verdade absoluta, a idéia de que o processo segundo o qual o desenvolvimento da matemática se estabeleceu, ao longo da sua história, é sempre contínuo e cumulativo. Quando aplicada às ciências, essa concepção de desenvolvimento, sempre cumulativo e contínuo, começou a ser desconstruída a partir de 1962 quando, com base na sociologia e na psicologia, Thomas S. Kuhn publicou pela primeira vez A Estrutura das Revoluções Científicas. Diante dessas duas situações, parece-nos natural perguntar se as teses que compõem A Estrutura das Revoluções Científicas se sustentam – em que medida e de que maneira – quando aplicadas aos processos que governam o desenvolvimento da matemática. Alguns filósofos da matemática já se pronunciaram a respeito dessa questão. De maneira geral, todos eles colocam sob suspeição qualquer possibilidade de se ver a história da matemática sob a ótica das revoluções científicas. Michael Crowe, por exemplo, é, talvez, o mais categórico dentre eles: em um pequeno artigo intitulado Ten “laws” concerning patterns of change in the history of mathematics, publicado em 1975, conjectura, através dessas leis, que as teses apresentadas por Thomas Kuhn em A Estrutura das Revoluções Científicas não se aplicam à análise dos mecanismos segundo os quais o conhecimento matemático é construído. Um outro filósofo da matemática, H. Mehrtens, não é tão categórico quanto Crowe quando se trata de olhar a história da matemática sob a ótica da teoria da ciência de Kuhn. No artigo T.S.Kuhn’s theories and mathematics: a discussion paper on the “new historiography”, Mehrtens admite que algumas teses apresentadas por Kuhn são passíveis de serem aplicadas quando o objetivo é analisar o desenvolvimento da matemática. Mas mesmo Mehrtens não vê as mudanças de paradigmas nas matemáticas como rupturas revolucionárias. Como não encontramos filósofo da matemática algum cuja posição a respeito desse assunto não se situasse entre a posição mais categórica de Crowe e a menos radical de Mehrtens, achamos desnecessário apresentar, aqui, uma resenha sobre o que pensam todos esses filósofos a respeito da pertinência, ou não, das teses de Thomas Kuhn para se analisar a história da matemática. 2 O que é importante ressaltar, entretanto, é a unanimidade entre esses filósofos em não admitir que as revoluções, na forma como são apresentadas em A Estrutura das Revoluções Científicas, ocorrem na matemática. Diante dessas considerações, afirmamos que o objetivo central deste trabalho é mostrar que as teses apresentadas por Thomas Kuhn em sua principal obra se aplicam, nos seus aspectos mais importantes, quando se trata de analisar o processo segundo o qual o conhecimento matemático, naqueles aspectos mais significativos, é produzido. Uma orientação à leitura deste trabalho Grosso modo, esse trabalho pode ser dividido em três momentos aparentemente desconexos. O primeiro deles está ligado à tese central que este nosso trabalho dispõe-se a discutir e que está formulado no último parágrafo da seção anterior. A ele correspondem os capítulos 4 e 5. O capítulo 4 é, digamos assim, o ponto nevrálgico da nossa tese e poderá, sem maiores problemas, ser lido sem o suporte dos três capítulos que o precedem. Abrimos esse capítulo com uma pequena Introdução onde o problema central da tese é recolocado. Em seguida, para situar o leitor na teoria da ciência de Thomas Kuhn, fazemos uma breve abordagem dessa teoria naqueles aspectos que julgamos os mais relevantes no posterior desenvolvimento das nossas argumentações. A partir de então, passamos a tratar mais detalhadamente algumas dentre as mais importantes noções da teoria da ciência de Thomas Kuhn, sobre as quais foi edificada A Estrutura das Revoluções Científicas, quais sejam, as noções de paradigma, de ciência normal, de anomalia, de crise de um paradigma, de pesquisa extraordinária e de incomensurabilidade. Ao traçarmos considerações acerca dos paradigmas, discutiremos os diferentes usos que Thomas Kuhn faz desse termo, bem como a necessária circularidade que a definição de paradigma, dada por Kuhn, carrega consigo. Neste mesmo tópico, discutiremos os principais elementos constituintes de um paradigma considerado enquanto uma matriz disciplinar, e que são fundamentais na formulação da teoria da ciência de Kuhn: as generalizações simbólicas, os modelos e os exemplares. Essa discussão será desenvolvida de modo a se analisar se esses elementos se aplicam, se podem ser utilizados ― e em que medida 3 ― como componentes de uma possível matriz disciplinar partilhada pelos membros de uma comunidade de matemáticos. Feita essas considerações acerca dos paradigmas, voltaremos a nossa atenção para aquilo a que Thomas Kuhn denomina período de ciência normal ou de pesquisa normal e que, neste nosso trabalho, quando estivermos analisando o desenvolvimento da matemática, denominaremos por período de matemática normal ou, mesmo, na sua formulação geral, de período de pesquisa normal. Para justificar a nossa escolha pela teoria da ciência de Thomas Kuhn, discutiremos, ainda, neste tópico referente ao desenvolvimento da pesquisa normal, o porquê da sua escolha em detrimento da teoria da ciência de Imre Lakatos. Aí também será feita uma breve discussão acerca da incomensurabilidade. Sob o título Da pesquisa normal à crise e à revolução: um caso na matemática, discutiremos o processo segundo o qual a Álgebra se desenvolveu na Europa a partir das realizações matemáticas de al-Khwarizmi e al-Karaji. Estaremos empenhados em mostrar que as obras desses dois matemáticos ― essencialmente a Kitab al mukhtasar fi hisab al-jabr wa’l-muqabalah de al-Khwarizmi ― governaram, por séculos, enquanto realizações matemáticas, o primeiro paradigma da álgebra na cultura ocidental até que a conjunção de dois fatos matemáticos ― as demonstrações do Teorema Fundamental da Álgebra e da impossibilidade de, via radicais, encontrar uma fórmula geral para as raízes de polinômios de graus maiores do que quatro ― mostrou uma anomalia irredutível desse paradigma. Daí à crise, à revolução matemática e a emergência de um novo paradigma da Álgebra. Durante o desenvolvimento do nosso estudo sobre o primeiro paradigma da Álgebra na cultura ocidental, estaremos empenhados em mostrar que, sob a ótica da nossa análise, François Viète não poderia ser ― como querem muitos historiadores da matemática ― o precursor da Álgebra como é concebida nos dias de hoje, ou seja, como um sistema algébrico abstrato. No capítulo 5, ainda que brevemente, faremos um confronto necessário entre a nossa concepção sobre como se dá o desenvolvimento da matemática com aquela apresentada por Michael Crowe em Ten “laws” concerning patterns of change in the history of mathematics. Nessa discussão abordaremos alguns aspectos do desenvolvimento da geometria euclidiana nos marcos do primeiro paradigma da geometria, cuja realização matemática foi os Elementos de Euclides. O segundo momento da nossa tese é desenvolvido nos capítulos 2 e 3. Ainda que, para um olhar menos atento, possa parecer que esses dois capítulos pouco ― ou nada ― 4 têm a ver com o que foi discutido nos capítulos 4 e 5, ou seja, com o problema central desta tese, nós pensamos justamente o contrário. A inclusão desses dois capítulos parece-nos importante para que possamos esclarecer dois aspectos do desenvolvimento da matemática que não foram abordados em nossa análise do problema central da tese. Se não, vejamos. Se nós advogamos que as principais teses apontadas por Thomas S. Kuhn em A Estrutura das Revoluções Científicas se aplicam, nos seus aspectos mais importantes, quando se trata de estudar o processo pelo qual o conhecimento matemático é produzido, então o que explica a concepção comum entre os filósofos da matemática de que o progresso da matemática, ao longo de toda a sua história, é contínuo e cumulativo? Para nós, essa visão de progresso contínuo e cumulativo, seja ela relacionada ao desenvolvimento das ciências naturais, ou ao das matemáticas, ou mesmo aos desenvolvimentos sociais em geral, é uma concepção positivista da história, uma filosofia que foi construída no calor do extraordinário desenvolvimento científico e tecnológico ocorrido ao longo do século XIX. Assim, no capítulo 2, trataremos das condições históricas ― objetivas e subjetivas ― que determinaram a gênese da filosofia positivista da ciência que, hoje, dá sustentação à ideologia de que o desenvolvimento da matemática é sempre contínuo e cumulativo. No capítulo 3, com base nos pressupostos apresentados por Habermas em seu tratado Conhecimento e Interesse, ao exercermos uma breve crítica às concepções positivistas de desenvolvimento, sustentamos a tese de que essa doutrina marca o fim do paradigma da Teoria do Conhecimento e que, em seu lugar, instala-se uma Teoria da Ciência que, com status de uma “grande filosofia”, é apresentada como a detentora da verdade absoluta. Finalmente, o capítulo 1 ― o terceiro momento deste nosso trabalho ― foi reservado para apresentar, de maneira geral, a nossa concepção sobre História para que o leitor venha a saber de onde falamos quando tratamos, aqui, da história da matemática. 5 Capítulo 1 “Saber como os discursos funcionam é colocar-se na encruzilhada de um duplo jogo da memória: o da memória institucional que estabiliza, cristaliza, e, ao mesmo tempo, o da memória constituída pelo esquecimento que torna possível o diferente, a ruptura, o outro.” (Orlandi; 2001:10). Introdução: à guisa de um breve esclarecimento Não pensamos que exista um discurso neutro, imparcial, desprovido de ideologias; nem mesmo, como querem os positivistas, os discursos científicos. Com esse pressuposto, o presente trabalho funda-se na convicção de que o homem, na sua historicidade, se põe no mundo, como sujeito1, pela língua, e todo o resto resulta disso. Assim, todo discurso, seja ele produzido na oralidade, seja através da forma escrita, ou mesmo pelo uso mais aparentemente cotidiano e vulgar dos signos, está impregnado das mais diferentes manifestações ideológicas, muito embora os efeitos das ideologias  e da história  nem sempre sejam, nele, tão evidentes. Para justificar essa nossa crença, recorreremos à Análise de Discurso que exercerá, ao longo deste trabalho  ora de maneira geral, outras vezes mais especificamente , um importante papel como referência teórica que trata dos diversos modos de leitura e dos processos de produção de sentidos2. Entretanto, mesmo reconhecendo a importância dessa teoria na construção de dispositivos teóricos de interpretação, julgamos importante esclarecer, aqui, que não trataremos com detalhes, os seus vários aspectos que dão fundamentação e são determinantes à construção de tais dispositivos. Nosso mergulho na Análise de Discurso é raso e não pretende, no presente trabalho, submeter textos de matemática e de história da matemática a 1 Na perspectiva da Análise de Discurso, “a noção de sujeito deixa de ser uma noção idealista, imanente; o sujeito da linguagem não é o sujeito em si, mas tal como existe socialmente, interpelado pela ideologia. Dessa forma, o sujeito não é a origem, a fonte absoluta do sentido, porque na sua fala outras falas se dizem. Para Pêcheux, ‘a ilusão discursiva do sujeito consiste em pensar que é ele a fonte e a origem do sentido do que diz’.” Brandão; 1991: 92) 2 Para a Análise de Discurso, “não existe um sentido a priori, mas um sentido que é construído, produzido no processo de interlocução, por isso deve ser referido às condições de produção (contexto histórico, interlocutores, ...) do discurso. Segundo Pêcheux, o sentido de uma palavra muda de acordo com a formação discursiva a que pertence.” (Brandão; 1991: 92). 6 um tratamento analítico à luz dessa teoria. Nosso objetivo é outro: buscamos apoio no arcabouço teórico da Análise de Discurso para firmar a proposição de que, frente aos gestos de interpretação que relacionam sujeito e sentido, a procura por uma pretensa “verdade” imediata de um texto  seja ele qual for  é um esforço inútil diante das tramas engendradas pelas interpretações possíveis. A nossa opção pela Análise de Discurso nos parece adequada por duas razões que se ajustam: se, de um lado, é objetivo central deste trabalho apresentar a nossa perspectiva histórica de como se inscrevem os processos de produção de conhecimento matemático, de outro, a Análise de Discurso, na vertente que a tomamos, teoriza a interpretação, ou seja, coloca em relevo a interpretação, as múltiplas possibilidades de leitura. Sobre Análise de Discurso: aspectos relevantes ao presente trabalho Das duas tendências da Análise de Discurso, optamos por trabalhar com a vertente francesa que surgiu, pode-se dizer assim, grosso modo, nos anos sessenta do século XX, a partir das reflexões de Althusser, escrevendo sobre os trabalhos de Marx; das especulações de Règine Robin, sobre as relações entre lingüística e história; do “mergulho” de Lacan na Psicanálise, propondo uma outra leitura de Freud; de Foucault, apresentando a sua arqueologia; das considerações de Barthes, identificando a leitura como escritura e, fundamentalmente, a partir dos ensaios de Michel Pêcheux, mais particularmente do seu Analyse Authomatique du Discours, publicado na França em 1969. Como teoria da interpretação, a Análise de Discurso coloca em suspenso a noção de leitura e coloca em seu lugar, como fundamental, a noção de sentido, tomado não como algo em si, como se existisse a priori, mas como “em relação a”, construído no processo de interlocução. Considerando o discurso como a materialidade própria da ideologia e a língua como a materialidade própria do discurso, Pêcheux (1975) considera que, do mesmo modo que todo discurso pressupõe um sujeito, não há sujeito sem ideologia; para ele o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia e é desse modo que a língua faz sentido, que os sujeitos e os sentidos se estabelecem. Para essa vertente da Análise de Discurso, todo enunciado oferece lugar à interpretação. Segundo Pêcheux (1981), todo enunciado é sempre suscetível de ser/tornar-se outro e que esse lugar do outro é o lugar da interpretação  manifestação da ideologia na 7 produção de sentidos e na construção dos sujeitos. Desse modo, não há por que procurar o sentido “verdadeiro”, o sentido real de um enunciado. Não há essa verdade oculta atrás de um texto. O que há, segundo Lins (1996), são gestos de interpretação que constituem o texto. E é, pois, analisando os próprios gestos de interpretação  considerados como atos no domínio simbólico , que a Análise de Discurso procura compreender como os objetos simbólicos adquirem sentidos. Deslocando a noção de ideologia, de uma formulação sociológica para uma formulação discursiva, Orlandi (2001) alerta, ainda, sobre a impossibilidade de não estarmos sujeitos à linguagem, a seus equívocos, à sua opacidade; e que, ao penetrarmos o simbólico, estamos irremediavelmente presos ao ritual da palavra e comprometidos com os significados ali produzidos e com o político. Nessas condições: “... o sujeito não pode não significar/fazer significar: ele é levado a dizer o que ‘isto’ quer dizer. Há assim injunção à interpretação. Há, neste fato, o que tenho chamado ilusão de conteúdo, apagamento da construção discursiva do referente. Trata-se da redução do sentido a um conteúdo, sendo que essa redução é parte da ilusão referencial, produção do efeito de evidência. É aí que reside um dos mecanismos ideológicos importantes. Na realidade, não há um sentido (conteúdo), só há funcionamento da linguagem. [...]. O sujeito é a interpretação. Fazendo significar, ele significa. É pela interpretação que o sujeito se submete à ideologia, ao efeito da literalidade, à ilusão do conteúdo, à construção da evidência dos sentidos, à impressão do sentido já-lá. A ideologia se caracteriza assim pela fixação de um conteúdo, pela impressão do sentido literal, pelo apagamento da materialidade da linguagem e da história, pela estruturação ideológica da subjetividade.” (Orlandi; 2001: 22). Entretanto, se de um lado, como sujeitos, somos reiteradamente solicitados a interpretar, se há uma injunção permanente à interpretação, de outro, é bom que se frise, não há neutralidade alguma nesse processo. Os sentidos não estão soltos. Ao contrário: “Há modos de se interpretar, não é todo mundo que pode interpretar de acordo com sua vontade, há especialistas, há um corpo social a quem se delegam poderes de interpretar (logo de ‘atribuir’ sentidos), tais como o juiz, o professor, o advogado, o padre, etc. Os sentidos estão sempre ‘administrados’, não estão soltos. Diante de qualquer fato, de qualquer objeto simbólico somos instados a interpretar, havendo uma injunção a interpretar. Ao falar, interpretamos. Mas, ao mesmo tempo, os sentidos parecem já estar sempre lá.” (Orlandi; 2001: 10). No dizer de Orlandi (2001), mesmo ao analista do discurso, cujo gesto de interpretação é determinado pelo dispositivo teórico  o sujeito funciona no ordinário pelo dispositivo ideológico , mesmo a ele, não se pode imputar uma posição de neutralidade em 8 relação aos sentidos, muito embora o arcabouço teórico à sua disposição lhe possibilite deslocamentos para trabalhar os equívocos, a opacidade e a não auto-evidência da linguagem. Isso, por certo, relativiza a relação do sujeito-analista com a interpretação. Entretanto, mesmo assim, o analista do discurso também estará sempre suscetível ao ritual das palavras, ao jogo da interpretação, mesmo porque, o seu dispositivo teórico marca uma posição na diferenciação a outras interpretações, algumas delas de certo modo antagônicas, como é o caso, por exemplo, da hermenêutica. Uma outra razão que nos levou a essa Análise de Discurso reside em que ela  no dizer de Pêcheux (1984)  é, sobretudo, desde meados da década de sessenta do século XX, assunto pertinente não somente a lingüistas mas também a historiadores. Essa pertinência encontra explicação no fato de essa teoria colocar à reflexão a tensão permanente e contraditória que caracteriza os processos através dos quais os acontecimentos se inscrevem no espaço da memória3. Para Pêcheux (1999), essa tensão se dá sob uma dupla forma-limite de esquecimento, sob a tensão entre os processos parafrásticos4 e os processos polissêmicos5 presentes na construção dos discursos. Pêcheux (1975) distingue duas formas de esquecimento no discurso: (a) o esquecimento que é da ordem da enunciação6 e que produz a impressão da realidade do pensamento, que faz crer que há uma relação direta, “natural”, entre o pensamento, a linguagem e o mundo. É essa impressão psico-ideológica do sentido já-lá, do sentido absolutamente literal do texto, que faz crer que aquilo que se diz só pode ser dito de 3 “Memória deve ser entendida aqui não no sentido diretamente psicologista da ‘memória individual, mas nos sentidos entrecruzados da memória mítica, da memória social inscrita em práticas, e da memória construída do historiador.” (Pêcheux; 1999:50). 4 Por processos parafrásticos entendam-se aqueles pelos quais há, em toda enunciação, um resíduo que se mantém, ou seja, o dizível, a essencialidade, a memória. É o processo que reconduz sempre aos mesmos espaços do dizer, ao já-dito. Para Orlandi, “A paráfrase representa [...] o retorno aos mesmos espaços do dizer. Produzem- se diferentes formulações do mesmo dizer sedimentado. A paráfrase está do lado da estabilização.” (Orlandi; 2001: 36). Por exemplo: “José bebeu muito”, “José tomou todas” e “José encheu a cara” são paráfrases umas das outras. 5 Ao contrário dos processos parafrásticos, nos processos polissêmicos o que se tem são os deslocamentos, o não- dito, o “a se dizer”, a ruptura de processos de significação. Em outras palavras, a polissemia joga com o equívoco, instala a multiplicidade de sentidos e faz com que o sentido de uma expressão mude de uma formação discursiva para outra. Por exemplo: No discurso do futebol, “receber uma bolada” significa que o jogador foi atingido pela bola; no discurso do cotidiano, significa receber uma expressiva quantidade de dinheiro. 6 Por enunciação, entende-se a “emissão de um conjunto de signos que é produto da interação de indivíduos socialmente organizados. A enunciação se dá num aqui e agora, jamais se repetindo. Ela se marca pela singularidade.” (Brandão; 1991: 89). 9 uma maneira única e não de outra  muito embora, no processo de enunciação, famílias parafrásticas se constituam para indicar que o dizer sempre podia ser outro; (b) o outro esquecimento, que é da instância do inconsciente, se origina do modo como somos apreendidos pela ideologia. Por esse esquecimento ideológico, temos a ilusão de que os discursos se originam em nós, quando o que acontece, na construção dos discursos, é sempre a retomada de sentidos pré-existentes. Muito embora haja uma singularidade na maneira como a língua e a história nos afetam, nós não estamos na inicial absoluta da linguagem, da mesma forma como não somos o início da história: quando somos lançados ao mundo, os discursos  e a história  já estão em processo e nós é que somos apreendidos por esse processo. É importante que se ressalve, entretanto, que essas impressões  seja a ilusão referencial que estabelece uma relação “natural” entre a palavra e as coisas, seja a ilusão de que a origem do que dizemos está absolutamente em nós  não são “defeitos”; são, antes de tudo, necessidades para que a linguagem funcione nos sujeitos e na produção dos sentidos. É nesse processo que “os sentidos e os sujeitos estão sempre em movimento, significando sempre de muitas e variadas maneiras. Sempre as mesmas mas, ao mesmo tempo, sempre outras.” (Orlandi; 2001: 36). Contudo, é importante que se frise, nem todo esquecimento no discurso se enquadra nessas duas formas distinguidas por Pêcheux. Numa conferência proferida no Colóquio “Utopias e Distopias”, realizado, em maio de 1998, na Universidade Federal de Santa Maria (RS), Orlandi (1999) acrescenta um “esquecimento” no discurso, de outra ordem, que não se inscreve nos dois tipos descritos por Pêcheux e que são pertinentes à falha e ao esquecimento constitutivos, próprios da memória. Refere-se, nessa conferência, aos sentidos que são silenciados, que são censurados pelos Aparelhos Repressivos do Estado; aos sentidos que são excluídos para que um já-dito não se inscreva, para que não haja um já-significado no espaço da memória que possibilite, a partir dele, outros sentidos. Esses sentidos, uma vez excluídos, silenciados, não podem significar por força das ideologias e da repressão. Entretanto, é importante que se ressalve, que mesmo esse apagado pelo silenciamento  pela censura  não desaparece de todo: ficam os seus vestígios de discurso em suspenso até que o real da história  a história em toda sua potencialidade, em todas as suas relações  exerça pressão e faça com que algo irrompa nessa ideologia e desencadeie, a partir dos vestígios, processos de (re)significação. 10 Enfim, como o objetivo primeiro deste trabalho está centrado na história de como se inscrevem os processos de produção de conhecimento matemático, queremos, ainda que por ora, declarar a nossa convicção de que em se “falando de história e de política, não há como não considerar o fato de que a memória é feita de esquecimentos, de silêncios. De sentidos não ditos, de sentidos a não dizer, de silêncios e de silenciamentos.” (Orlandi; 1999: 59). Na próxima seção, quando falarmos sobre a concepção de História a ser adotada no presente trabalho, voltaremos a abordar, com especificidade, esses esquecimentos e silenciamentos como constitutivos da memória construída do historiador. No entanto, em razão de tudo o que foi dito até agora acerca da Análise de Discurso, uma questão, ao menos, ainda merece ser discutida: se todo enunciado está sujeito, por força da interpretação  e portanto, da ideologia  a ser/tornar-se outro, e se os sentidos apenas se representam como originando-se em nós, então, diante disso, nos parece que a efetividade dos processos comunicativos ficam em suspenso e, assim, uma pergunta se põe naturalmente: como explicar a relativa efetividade dos entendimentos ou, então, “por que os processos comunicativos não são tão divergentes que simplesmente se desfazem à primeira tentativa de contato?” (Lins; 1999: 81). Com vista a perguntas dessa natureza, a Análise de Discurso trabalha a noção de discurso. Essa noção  a que será adotada no presente trabalho  não somente não se enquadra, como se opõe aos modos como o esquema elementar de comunicação concebe e dispõe seus elementos para definir o que se denomina mensagem. Um esquema elementar de comunicação7, a menos de variações formais com maior ou menor complexidade, é constituído de emissor, receptor, código, referente e mensagem. Para esse mecanismo elementar de comunicação, o emissor transmite ao receptor uma mensagem formulada em um código, referindo-se a algum elemento da realidade  o referente. Esse esquema trabalha com a hipótese de que o “processo de transmissão” levará, com fidelidade, a informação  a mensagem  do emissor ao receptor, desde que não ocorram problemas nas etapas desse “processo”, ou seja, desde que a informação seja codificada corretamente, transmitida corretamente e corretamente decodificada. 7 Vide Jakobson, R. Lingüística e Comunicação. São Paulo: Cultrix, 1969 11 Por sua vez, para a Análise de Discurso, a comunicação é colocada em suspeição e o seu lugar é ocupado pela idéia de interação entre sujeitos, pela idéia de interlocução. Não se trata, pois, de transmissão de informação através de códigos, mas de interação entre sujeitos, a partir de lugares provisórios da enunciação, construídos ideologicamente. Em outras palavras, para a Análise de Discurso o sujeito da enunciação8 não comunica suas mensagens; ao contrário, materializa entendimentos que são historicamente construídos. Falando sobre o processo de comunicação elementar, Orlandi escreve: “Para a Análise de Discurso não se trata apenas de transmissão de informação, nem há essa linearidade na disposição dos elementos da comunicação, como se a mensagem resultasse de um processo assim serializado: alguém fala, refere alguma coisa, baseando-se em um código, e o receptor capta a mensagem, decodificando-a. Na realidade, a língua não é só um código entre outros, não há essa separação entre o emissor e o receptor, nem tampouco eles atuam numa seqüência em que primeiro um fala e depois o outro decodifica etc. Eles estão realizando ao mesmo tempo o processo de significação e não estão separados de forma estanque. Além disso, ao invés de mensagem, o que propomos é justamente pensar aí o discurso. Desse modo, diremos que não se trata de transmissão de informação apenas, pois, no funcionamento da linguagem, que põe em relação sujeitos e sentidos afetados pela língua e pela história, temos um complexo processo de constituição desses sujeitos e de produção de sentidos e não meramente transmissão de informação. São processos de identificação do sujeito, de argumentação, de subjetivação, de construção da realidade etc. Por outro lado, tampouco assentamos esse esquema na idéia de comunicação. A linguagem serve para comunicar e para não comunicar. As relações de linguagem são relações de sujeitos e de sentidos e seus efeitos são múltiplos e variados. Daí a definição de discurso: o discurso é efeito de sentidos entre locutores.” (Orlandi; 2001: 21). Um trabalho, no âmbito da Educação Matemática, que apresenta um entendimento acerca do processo de produção de significados9 na comunicação elementar, foi elaborado por Romulo Campos Lins, a partir de seu Modelo Teórico dos Campos Semânticos. Esse trabalho guarda, sob muitos aspectos, uma certa similaridade com o entendimento dado pela Análise de Discurso ao processo de significação. 8 Por sujeito da enunciação “entende-se a figura da enunciação que representa a pessoa cujo ponto de vista é apresentado. É a perspectiva que o locutor constrói e de cujo ponto de vista narra, quer identificando-se com ele quer distanciando-se dele.” (Brandão; 1991: 90) 9 No presente trabalho, o termo significado será tomado na formulação proposta pelo Modelo Teórico dos Campos Semânticos: significado é o que pode e é efetivamente dito sobre um objeto no interior de uma atividade. 12 Partindo da tríade autor-texto-leitor, Lins elabora uma proposta para o que ele chama processo de produção de significados que, assim como a Análise de Discurso, não precisa postular a exigência de uma comunicação efetiva no sentido colocado pelos esquemas elementares de comunicação. Para ele, o que se tem no processo de produção de significados é a sensação psicológica de que a comunicação efetivamente ocorre, ou seja, na sua visão o que ocorre na interlocução é “... a sensação de que está ocorrendo algo que nos conecta, algo que nos dá razão para permanecer neste processo. É disto que precisamos dar conta, em primeiro lugar, mas penso que não precisamos, para resolver este problema, postular a existência de uma comunicação no sentido tradicional, de transmissão.” (Lins; 1999: 81). Com base nesse pressuposto, Lins (1999) formula o seu entendimento sobre o processo de produção de significados partindo, como já dissemos, da tríade autor-texto-leitor. Para ele, o autor é o sujeito que, no processo de produção de significados, produz a enunciação. “Quando o autor fala, ele sempre fala para alguém. Porém, por mais que o autor esteja diante de uma platéia, este alguém não corresponde a indivíduos, pessoas nessa platéia e, sim, ao leitor que o autor constitui: é para este ‘um leitor’ que ‘o autor’ fala.” (Lins; 1999: 81). Segundo esse entendimento, quando o autor fala, ele sempre o faz numa direção, na expectativa de que a sua enunciação se transforme em texto para algum virtual leitor  o um leitor  que ele, o autor, constitui como um seu legítimo interlocutor. Nesse processo, identifica o um leitor, não como um sujeito biológico de memória carnal, mas, como sendo uma direção na qual o autor fala; em outras palavras, identifica o um leitor como modos de produção de significados. Diferentemente do um leitor, o leitor é o sujeito que, no processo de produção de significados, produz significados para o resíduo das enunciações produzidas pelo o autor. Com outro dizer, o leitor se constitui enquanto tal na medida em que fala, ou seja, apenas na medida em que, colocando-se na posição de autor, produz significados para resíduos de enunciação. Para Lins, o leitor, no processo de produção de significados, constitui sempre um autor como seu interlocutor, e é na relação dialógica com o que supostamente diria esse um autor que o leitor produz significado para o resíduo da enunciação que, neste momento, no processo de interlocução, se põe em texto. 13 Na perspectiva dessa proposta, o texto10 deve ser entendido como os significados produzidos pelo o leitor, a partir do que ele acredita ser o resíduo de uma enunciação. É importante que se frise que, no processo de interlocução, o texto produzido pelo o autor não é o mesmo que o constituído pelo o leitor, nem mesmo quando eles  autor e leitor  compartilham o mesmo espaço comunicativo. De fato, como já dissemos na seção anterior, todo enunciado para a Análise de Discurso  e, portanto, todo texto, como unidade de análise  é sempre suscetível de ser/tornar-se outro e esse lugar do outro é o lugar da interpretação. Dissemos, ainda, que não há como não interpretar: ao penetrar o simbólico, o homem é levado a se pronunciar, a dizer o que “isto” significa, a responder o que é “aquilo”, etc. Nessa perspectiva, não há sentido sem interpretação. Por outro lado, “nesse movimento da interpretação o sentido aparece-nos como evidência, como se ele estivesse já sempre lá” (Orlandi; 2001: 46), como se estivesse guardado em algum lugar  seja no cérebro, seja na língua  à espera do momento oportuno para eclodir em significações. No entanto, o sentido não existe em si, nem é predeterminado por propriedades da língua: ele é ideologicamente determinado no processo histórico-social em que as palavras são produzidas e depende, portanto, das múltiplas relações constituídas nas/pelas formações discursivas11. 10 “Por um texto [...] entenderei não somente o texto escrito  como em Écriture, de Derrida (1991) , mas qualquer resíduo de uma enunciação: sons (resíduos de elocução), desenhos e diagramas, gestos e todos os sinais do corpo. O que faz o texto o que ele é, é a crença do leitor que ele é, de fato, resíduo de uma enunciação, ou seja, um texto é delimitado pelo leitor; além disso, ele é sempre delimitado no contexto de uma demanda de que algum significado seja produzido para ele.” (Lins; 2001: 59). 11 A noção de Formação Discursiva foi introduzida por Foucault em sua obra Archéologie du Savoir “para designar conjuntos de enunciados identificáveis por seguirem um mesmo sistema de regras, historicamente determinadas. [...]. No quadro teórico do marxismo althusseriano ... qualquer ‘formação social’, caracterizável por uma certa relação entre classes sociais, implica a existência de ‘posições políticas e ideológicas que não são obra de indivíduos, mas se organizam em formações, mantendo entre si relações de antagonismo, de aliança ou de domínio’. Estas formações ideológicas incluem ‘uma ou várias formações discursivas interligadas que determinam o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de um discurso, ... ) a partir de uma dada posição numa determinada conjuntura’ (Pêcheux et al., 1990: 102). [...]. [O termo Formação Discursiva, enquanto noção da Análise de Discurso,] conheceu um grande êxito nos trabalhos inspirados na escola francesa, mas, na maioria das vezes, foi utilizado independentemente da problemática marxista de Pêcheux. Ele designa todo o sistema de regras que fundam a unidade de um conjunto de enunciados sócio-historicamente circunscritos; ao falar de formação discursiva, parte-se, pois, do princípio de que, para uma sociedade, uma locação, um momento definido, só uma parte do dizível é acessível, que esse dizível forma sistema e delimita uma identidade.” (Maingueneau; 1997: 50-51). 14 Entretanto, nem todos somos igualmente apreendidos pela ideologia: existe uma singularidade na maneira como a história e a língua nos afetam e que determina a inscrição da nossa fala numa dada formação discursiva e não em outra. Assim, muito embora sob a ótica do senso comum cristaliza-se, em todo texto, a evidência do sentido já-lá  a evidência de que o texto produzido pelo o autor não se distingue substancialmente daquele constituído pelo o leitor , para a Análise de Discurso essa evidência está profunda e irremediavelmente comprometida pelo fato da interpretação, ante a necessidade de o sujeito significar, diante da imprevisibilidade que marca a relação do sujeito com os sentidos, pela impossibilidade de não estarmos presos à ideologia, etc, etc. Por fim, retomemos uma questão já colocada anteriormente. Se o texto produzido pelo o autor não é o mesmo que o constituído pelo o leitor, então nos parece natural que se pergunte: o que explica a relativa efetividade dos entendimentos ou, então, “por que os processos comunicativos não são tão divergentes que simplesmente se desfazem à primeira tentativa de contato?” (Lins, 1999: 81). Para Lins, como já dissemos, essa suposta comunicação por transmissão de códigos não ocorre efetivamente. Para ele, o que se tem é somente a sensação psicológica da comunicação efetiva e que, no processo de produção de significados: “A convergência se estabelece apenas na medida em que [autor e leitor] compartilham interlocutores, na medida em que dizem coisas que o outro diria e com autoridade que o outro aceita. É isto que estabelece um espaço comunicativo: não é necessária a transmissão para que se evite a divergência.” (Lins; 1999: 82). Do mesmo modo, para a Análise de Discurso, a efetividade dos processos comunicativos por transmissão de signos também é colocada em suspenso. Para ela não existe, no processo de significação, essa separação dicotômica entre autor e leitor: ambos estão realizando ao mesmo tempo esse processo, “um complexo processo de constituição desses sujeitos e de produção de sentidos.” (Orlandi; 2001: 21). Para a Análise de Discurso, os sentidos  como já escrevemos anteriormente  não existem em si mesmos e nem são predeterminados por propriedades da língua: eles são ideologicamente determinados no processo histórico-social em que as palavras são produzidas e dependem, portanto, das múltiplas relações constituídas nas/pelas formações discursivas. E é justamente a inscrição do autor e do leitor numa mesma formação discursiva que poderá estabelecer a convergência dos sentidos no processo comunicativo. Com outras palavras, é isso que, na citação acima, Lins 15 está dizendo quando condiciona a convergência dos sentidos ao estabelecimento de um espaço comunicativo, ou seja, à situação de autor e leitor compartilharem interlocutores, de dizerem coisas que o outro diria e com a autoridade que o outro aceita. Entretanto, é importante que se destaque que, mesmo quando inscritos numa mesma formação discursiva, o texto produzido pelo o autor não é o mesmo que o constituído pelo o leitor: as formações discursivas não são automações homogêneas que nos apreendem em uníssono  são, ao contrário, “constituídas pela contradição, são heterogêneas nelas mesmas e suas fronteiras são fluidas, configurando-se e reconfigurando-se continuamente em suas relações.” (Orlandi; 2001: 44). São, pois, com essas altercações, com esses argumentos que atestam a idiossincrasia dos textos ante a interpretação que distinguimos, no processo de produção de significados, o texto elaborado pelo o autor daquele constituído, a partir de resíduos de enunciação, pelo o leitor. Um aspecto particular do Modelo Teórico dos Campos Semânticos e que interessa de perto a este trabalho é o que Lins (2000) chama leitura positiva12. Uma possibilidade para essa leitura pode ser considerada tomando-se por base a tríade autor-texto- leitor. Nesse sentido, uma leitura positiva do texto que o autor produziu “consiste em saber do que, de que objetos, ele [o autor] estava efetivamente falando.” (Lins; 2000: 18). Nesse sentido, a leitura positiva possibilita a o leitor entender por que o autor produziu o que produziu. No dizer de Silva, “... o caminho para uma leitura positiva é buscar fazer uma leitura do outro através de suas legitimidades, seus interlocutores, compartilhando o mesmo espaço comunicativo.” (Silva; 2003: 54). Enfim, a leitura positiva somente é possível se o um autor (constituído pelo o leitor) e o autor, ainda que discordantes, convergirem no interior de um mesmo espaço comunicativo. Por fim, para encerrar esse tópico,  e agora com base no arcabouço teórico apresentado nessa seção  (re)externamos, ainda, a nossa crença de que não há neutralidade possível no trato com o simbólico e, portanto, na esfera do discurso, no ritual das palavras, nem mesmo das que não se dizem. 12 Maiores detalhes sobre a leitura positiva pode ser encontrado em Silva (2003: 53-7). 16 Com isso, não pensamos, pois, que se possa escrever a história com um discurso neutro, imparcial, desprovido de ideologias; nem mesmo, em particular, a história das ciências e das matemáticas. Sobre História Na introdução deste capítulo, firmamos a nossa convicção de que não se pode escrever a história com um discurso neutro, imparcial, desprovido de ideologias. Embora o objetivo desta tese não seja o de discutir as múltiplas versões da teoria da História  nossos objetivos, aqui, são outros, distintos desse e restritos às exigências de justificação neste trabalho , a afirmação acima requer certos esclarecimentos que, de maneira sucinta, começaram a ser esboçados na introdução deste capítulo. Entretanto, mesmo que os nossos esforços não se dirijam prioritariamente a uma teorização da História, a busca por tais esclarecimentos nos obriga, inevitavelmente, a uma incursão, ainda que breve e rasa, no cenário das discussões que se arrastam, há várias décadas, acerca de como se olha o passado, de como se escreve a história. Além do mais, frente às muitas concepções historiográficas em debate, julgamos necessário, como analistas, explicitar de que posição falamos, que teoria compartilhamos quando, com base nela, colocamos o nosso olhar sobre o passado e nos dispomos a interpretar os fatos, a escrever a história  no nosso caso específico, a história das matemáticas. Diferentemente da visão posta pelo paradigma tradicional da escola rankeana de que a História é objetiva, ou seja, de que se pode ascender ao verdadeiro sentido dos fatos, o presente trabalho funda–se na convicção de que o verdadeiro sentido dos fatos, o real da história  a história em toda a sua potencialidade, em todas as suas múltiplas e incalculáveis relações  está perdido para sempre; mais ainda, que frente à interpretação, não há uma maneira única de se ler e, portanto, de se escrever a história. No entanto  diferenças à parte , é necessário que se reconheça a importância desse paradigma no panorama das mudanças que marcaram os campos de interesses da história, a partir das décadas finais da primeira metade do século XIX: uma importância que não pode ser esquecida; que, ao contrário, deve ser reafirmada e ressaltada. 17 Posta em circulação pelo respeitado historiador alemão Leopold von Ranke (1795-1886), essa concepção de História surge como uma reação deliberada contra as limitações de uma narrativa factual e, não raras vezes, ficcional  as chamadas crônicas  que caracterizava a escrita da história até àquela época e que contrastava com a nova ordem metodológica do cientificismo em plena expansão naquela primeira metade do século XIX com o surgimento do positivismo. Pensando a história essencialmente como uma narrativa de acontecimentos, a tradição rankeana, ao mesmo tempo em que coloca os acontecimentos políticos e as questões de Estado no centro de suas preocupações, concentra as suas investigações quase que exclusivamente nos grandes feitos do passado como obras de grandes homens: uma história vista de cima e que relega o homem comum, as minorias, os movimentos coletivos a meros coadjuvantes, despidos de importância, nas tramas que tecem os cenários da história da humanidade. Mesmo impregnada pela ideologia de ser considerada a maneira única de se fazer a história, “uma das grandes contribuições de Ranke foi a sua exposição das limitações das fontes narrativas  vamos chamá-las crônicas  e sua ênfase na necessidade de basear a história escrita em registros oficiais, emanados do governo e preservados em arquivos.” (Burke; 1992: 13). Entretanto, essa contribuição teve, segundo Burke (1992), um alto preço! Ao enfatizar a necessidade de basear a história escrita em registros oficiais, os pesquisadores da escola rankeana restringiram seus olhares e negligenciaram outros sinais, outros indícios, outros tipos de evidência que não aqueles colocados pelo novo estatuto metodológico. Uma conseqüência evidente dessa restrição  que se estendeu incólume até meados da segunda metade do século XX  pode ser notada, nos dias de hoje, pelo número pouquíssimo significante  para não dizer, insignificante  de estudos e de trabalhos em história tratando, por exemplo, das sociedades ágrafas e de outras sociedades cujas documentações nunca foram registradas ou se perderam ou foram destruídas ao longo do tempo. Não é à toa que o senso vulgar do entendimento confere ao período que antecedeu a invenção da escrita a designação pedante de pré-história da humanidade; refere-se a ele como um período impossível de ser historicamente registrado. Além do mais, as fontes oficiais traduzem, na maioria dos casos, exclusivamente o ponto de vista oficial dos acontecimentos. E uma restrição exclusiva a essas fontes, enquanto método de pesquisa, é mais uma limitação herdada pela historiografia da 18 tradição rankeana. Era inevitável, portanto, o choque entre uma restrição dessa natureza e o interesse de historiadores em pesquisar tudo o que tem um passado a ser reconstituído, em reconstituir até mesmo aqueles acontecimentos não documentados oficialmente. Para muitos historiadores, embora nos últimos anos do século XIX tenham surgido reações esporádicas e individuais à história restrita à narrativa de acontecimentos, é somente após Marc Bloch e Lucien Febvre terem fundado em 1929, na França, a revista Annales, que um número cada vez mais expressivo de historiadores, contrapondo-se ao paradigma rankeano, redireciona suas pesquisas concentrando-as na análise das estruturas que interferem na dinâmica dos acontecimentos observados. Inaugura-se, então, um período de ascensão da história das idéias, da histoire total, um período em que a história política e religiosa passa a ser (re)significada em termos do novo paradigma que se punha. Para muitos, a obra mais significativa desse período é The Mediterranean and Mediterranean World in the Age of Philip II, famoso estudo sobre o Mediterrâneo do século XVI, elaborado pelo historiador francês Fernand Braudel e publicado, pela primeira vez, em 1949. No entanto, “os vinte anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial assistiram a um flagrante declínio na história política e religiosa [e] no uso das ‘idéias’ como explicação da história.” (Hobsbawm; 1998: 2001). Em contrapartida, simultaneamente a esse declínio, um novo foco de análise era direcionado sobre o passado e uma outra explicação da história era alavancada: a história socioeconômica determinista passa, então, a ocupar, paulatinamente, o cenário das reconstituições historiográficas e a explicação histórica passa a ser considerada em termos de relações sociais, das “forças vivas”  as classes sociais  envolvidas nos acontecimentos. É importante destacar, contudo, que essa mudança no foco das atenções dos historiadores não se dispunha a alterar  como não alterou  a base metodológica sobre a qual havia sido edificada a história das estruturas: os parâmetros lançados por Bloch e Febvre, em 1929, continuavam válidos e sólidos na convicção de que são as mudanças de longo prazo e as mudanças geo-históricas de mais longo prazo ainda que, de fato, são significativas e confiáveis de serem documentadas, analisadas e, então, historiadas. Enfim, uma mudança que  como já dissemos  somente deslocou o foco das investigações de um objeto de análise para outro e as explicações históricas do uso das “idéias” para o das relações sociais. De resto, permanece tudo como era antes: uma história vista de cima, onde as circunstâncias superestruturais  econômico-deterministas, no caso  19 permanecem no centro das atenções, ficando qualquer outra forma de abordagem histórica relegada a um segundo plano no universo dos historiadores. Todavia, os últimos trinta anos foram marcados por inquietações, mudanças e por uma disputa muito intensa sobre os modos de como se escreve a história. Essa disputa colocou em trincheiras diferentes, de um lado, os historiadores de concepção econômico- deterministas  auto-intitulados herdeiros da tradição de Fernand Braudel  que, em sua grande maioria, “descartavam pessoas e eventos como ondas desprezíveis na longue durée da structure e conjoncture” (Hobsbawm; 1998: 204) e, de outro lado, os insurgentes da “nova história” que, com o argumento “de que a história (tal como a ‘individualidade’, a ‘subjetividade’, o ‘gênero’, a ‘cultura’) é composta de uma variedade de fragmentos e não de inteiros epistemológicos sem rachaduras ou imperfeições” (Cohen; 2000: 26), propõem a retomada da tradição dos Analles por uma história total que contemple, também, uma história vista de baixo, uma história que permita reconstituir as atitudes dos rebeldes, dos miseráveis, dos hereges; uma história das minorias, uma história, por fim, que rompa e vaze dos guetos ocultos, das frestas mais escondidas e obscuras da sociedade. Embora não seja este trabalho o lugar para especular sobre esse movimento de insurgência contra a ordem estabelecida pelo paradigma tradicional econômico-determinista, duas questões, ao menos, não podem deixar de serem abordadas: o que é a nova história? A nova história alcança o objetivo de histoire total defendido por Fernand Braudel? A expressão “nova história” tem uma ancestralidade que remonta os anos iniciais do século XX. Historiadores como Karl Lamprecht na Alemanha, James Harvey Robinson nos Estados Unidos da América, e March Bloch e Lucien Febvre na França  só para ficarmos nesses poucos nomes  usaram-na em suas teorias para se contraporem ao paradigma rankeano que advogava a história objetiva, para a qual a tarefa do historiador é relatar os fatos tais quais eles realmente aconteceram. No presente trabalho, entretanto, usaremos a expressão “nova história” para significar os desenvolvimentos presenciados nos últimos trinta e poucos anos, nos mais importantes centros historiográficos do planeta, como reação deliberada contra os modos pelo qual o paradigma econômico-determinista dominante analisa o passado e se põe a escrever a história: modos que, como já dissemos, priorizam a análise das estruturas e as tendências socioeconômicas como centrais à descrição histórica e que estigmatizam a heteroglossia na história, ou seja, estigmatizam todas as outras vozes da história como modismos passageiros ou, então, como procedimentos de segunda categoria. 20 Para efeito de referência, muitos historiadores consideram a publicação da coleção de ensaios Le nouvelle histoire, editada pelo medievalista francês Jacques Le Goff em 1978, na França, um marco no surgimento da nova história ou, como preferem outros historiadores, um marco na volta da “história narrativa”. “Nos últimos trinta anos nos deparamos com várias histórias notáveis de tópicos que anteriormente não se havia pensado possuírem uma história, como, por exemplo, a infância, a morte, a loucura, o clima, os odores, a sujeira e a limpeza, os gestos, o corpo [...], a feminilidade [...], a leitura [...], a fala e até mesmo o silêncio. O que era previamente considerado imutável é agora encarado como uma ‘construção social’, sujeita a variações, tanto no tempo como no espaço.” (Burke, 1992: 11). Para Stones (1979), o surgimento de uma nova história dos homens e das mentalidades pode ser explicado nos marcos do declínio da “história científica” generalizante, da história que se dedicava  e se dedica  a especular pelos “grandes porquês”. Para ele, a desilusão nos modelos de explicação histórica essencialmente econômico-deterministas, o mau êxito da “história quantitativa” em agregar resultados e, também, a evidência nos dias de hoje de que as ações e as decisões políticas podem moldar a história são, fundamentalmente, algumas das razões atribuídas por Stones (1979) para explicar o declínio da história vista pela análise das estruturas socioeconômicas. Burke (1992), por sua vez, não procura vincular o surgimento da nova história exclusivamente ao declínio da “história científica” generalizante. Para ele, o que ocorreu nesses últimos quarenta anos foi uma expansão desmedida no universo dos historiadores com o surgimento de novos campos de interesse. Com isso, como já escrevemos anteriormente, “o que era previamente considerado imutável é agora encarado como uma ‘construção social’, sujeita a variações, tanto no tempo quanto no espaço.”. Paralelamente, por força da suposição de que a realidade é social, ou seja, a partir do momento em que historiadores sociais e antropólogos sociais passaram a compartilhar a mesma suposição de que a realidade é culturalmente constituída, desencadeou- se um processo que levou não só à ampliação da interface de interesses da antropologia social e da história social como, também, destruiu “a tradicional distinção entre o que é central e o que é periférico na história.” (Burke; 1992: 11). Em razão disso, muitas disciplinas dividiram-se em duas, em três e até em mais áreas de investigação, cada uma delas atendendo a interesses historiográficos próprios. A história econômica nos fornece um bom exemplo desse processo de ampliação e de 21 fragmentação disciplinar. Depois de reinar soberana, desde a Segunda Guerra Mundial, no cenário da historiografia, a história econômica experimenta um processo de fragmentação que está gerando muitas áreas de interesse que, certamente, levarão a problemas de definição, de fontes, de explicação, de síntese etc: primeiro, foi a história social a separar-se dela, a conquistar a sua independência, a sua carta de alforria. Não bastasse isso, muitos historiadores econômicos, hoje, estão mais preocupados com as questões referentes ao consumo, ao meio ambiente, ao gerenciamento, ao fetiche da mercadoria do que com a clássica questão da produção tomada exclusivamente. “A história política também está dividida, não apenas nas chamadas escolas de grau superior e elementar, mas também entre historiadores preocupados com os centros de governo e aqueles interessados na política em suas raízes. O território da política expandiu-se, no sentido de que os historiadores (seguindo teóricos como Michel Foucault) estão cada vez mais inclinados a discutir a luta pelo poder na fábrica, na escola ou até mesmo na família.” (Burke; 1992: 8). Era inevitável, portanto, que essa expansão e essa fragmentação no universo dos historiadores gerassem crises e acarretassem problemas. Uma crise bastante evidente nesse processo é a crise de identidade. As variedades de história que estão se pondo  e estão por vir  criam uma confusão de idéias e um “falso” problema sobre o que “realmente” venha a ser História; como se fosse possível defini-la, enquanto conceito, fora do ambiente de uma dada atividade, sem referência qualquer a espaço e a tempo: sob a ótica hegeliana do desenvolvimento do ser, a História  assim como a Educação e a Matemática, por exemplo , enquanto conceito, ainda está se pondo no processo; não é, ainda, ser em-si e ser para-si. Um problema que, com essa extraordinária expansão e fragmentação no campo da história, ficou desmedidamente ampliado é o problema de definição. Segundo Burke (1998), problemas desse tipo estão surgindo porque os novos historiadores estão adentrando um território novo, não familiar, muito embora já tenham feito incursões por esses campos, com outro olhar que não o de hoje, desde Heródoto, na antigüidade grega. Portanto, esse não é um problema novo gerado pela nova história: desde sempre, os historiadores, fossem eles da tradição rankeana  e mesmo anterior a ela , sejam aqueles do paradigma econômico- determinista, ou mesmo os novos historiadores culturais, todos eles sempre se defrontaram  e se defrontam  com problemas de definição. Tais problemas não são propriedade dessa ou daquela escola. 22 Neste sentido, a história centrada na análise das estruturas socioeconômicas  a história vista de cima  carrega consigo, latente nela, os problemas de definição. Um exemplo disso pode ser visto na forma como a história mundial tem sido freqüentemente encarada pelos historiadores ocidentais. Nessa história se presume amiúde “que as divisões econômicas, políticas e culturais em uma determinada sociedade coincidem.” (Burke; 1992: 21). A história do Oriente, por exemplo, tem sido tratada pelos historiadores ocidentais, como se essas divisões não distinguissem os países daquela região, como se todas as regiões do planeta, em geral, e do Oriente, em particular, fossem, do ponto de vista cultural, social e econômico, uma massa homogênea, amorfa, sem especificidades próprias de nenhuma espécie. Por sua vez, a história vista de baixo também ressente  e mais fortemente, ainda  os problemas de definição. Embora se possa listar uma quantidade razoável de situações onde tais problemas aparecem, nos restringiremos, aqui, a título de exemplo, a somente uma delas: a definição do que seja história da cultura popular. “Uma razão para a dificuldade de definir a história da cultura popular é que a noção de ‘cultura’ é algo ainda mais difícil de precisar que a noção de ‘popular’. A chamada definição ‘opera-house’ de cultura (como arte erudita, literatura erudita, música erudita etc.) era restrita, mas pelo menos era precisa. Uma noção ampla de cultura é central à nova história. Os estados, os grupos sociais e até mesmo o sexo e a sociedade em si são considerados como culturalmente construídos. Contudo, se utilizarmos o termo em um sentido amplo, temos, pelo menos, que nos perguntar o que não deve ser considerado como cultura?” (Burke; 1992: 23). No entanto, se é verdade que esses problemas de definição cresceram com a ampliação do campo da história, não é menos verdade que, circunstancialmente, em menor número, eles sempre existiram nos outros paradigmas que precederam a nova história. O mesmo pode-se dizer, também, a respeito dos outros problemas clássicos da historiografia e que se avolumaram, consideravelmente, com o alargamento do campo da história. De fato, com a expansão do universo dos historiadores e o conseqüente surgimento da nova história, os novos historiadores passaram a olhar o passado com outros olhos, a lançar sobre esse passado novos tipos de perguntas e a escolher outros objetos de pesquisa até então ignorados. Com isso passaram a ser considerados novos tipos de fontes para preencher as lacunas criadas pela eventual ausência de documentos oficiais. A partir de então, amparadas pelo método indiciário e pelos modernos recursos audiovisuais e de 23 multimídia, entram em evidência, como base de registro, entre outras, as fontes orais, os dados estatísticos, as imagens (pictóricas, fotográficas, cinematográficas e de monumentos) e, em larga escala, certos tipos de registros oficiais que passaram a ser relidos na perspectiva da vida cotidiana, da história vista de baixo, da micro-história. Era inevitável, portanto, que os problemas das fontes se avolumassem. Entretanto, negar a nova história por isso, impedir o seu desabrochar pelo fato de as suas fontes não terem adquirido ainda, na sua juventude, o status e a sofisticação da crítica estabelecida através de registros oficiais, há séculos praticada pelos historiadores, uma postura desse tipo, mais do que um erro crasso, nos parece, mesmo, um crime contra a própria história; até por que, os problemas das fontes de pesquisa, sejam documentais ou por testemunho, acompanham os historiadores desde sempre; são problemas crônicos que estão plantados na base do processo de investigação na história. Uma outra conseqüência natural dessa expansão vertiginosa no ambiente dos historiadores foi a necessidade de se repensar a explicação da história. Se nos trinta anos que se seguiram a Segunda Guerra Mundial a explicação histórica dos acontecimentos políticos baseou-se, de maneira geral, em modelos econômico-deterministas, nos últimos trinta anos, com a entrada das tendências culturais e sociais no cenário da historiografia, a explicação histórica não pôde mais pautar-se unicamente nesses modelos. Pela natureza da nova história, tudo leva a crer que uma tal explicação passe, necessariamente, por questões que outrora já pertenceram ao campo de interesse histórico e que, com o desinteresse dos historiadores, essas questões passaram a constituir assunto de sociólogos, antropólogos e de outros cientistas sociais. Uma outra dificuldade decorrente dessa crescente expansão e fragmentação no universo dos historiadores diz respeito ao entendimento, à comunicação entre as várias disciplinas  ou subdisciplinas  do campo da nova história, ou seja, tem relação com os problemas de síntese e que têm, com freqüência, servido de mote às argumentações daqueles que se contrapõem à nova ordem historiográfica em curso. Diante disso, uma pergunta nos parece natural: seria possível um entendimento entre os historiadores de todas as escolas, nas suas diferenças, para que a escrita da história, enquanto processo, contemplasse simultaneamente os vários interesses historiográficos? Em outras palavras: seria possível, hoje, uma dialética que contemplasse a história narrativa e a história pautada na análise das estruturas e preocupada com os “grandes porquês”? 24 Para Hobsbawm, quanto mais se amplia o campo da história, mais difícil se torna essa empreitada. Ele é taxativo quando afirma que “... quanto mais ampla a classe de atividades humanas aceita como interesse legítimo do historiador, quanto mais claramente entendida a necessidade de estabelecer conexões sistemáticas entre elas, maior a dificuldade de alcançar uma síntese.”. Peter Burke, por sua vez, citando o antropólogo Marshall Sahlins, escreve “que há um relacionamento dialético entre os acontecimentos e as estruturas. As categorias são postas em perigo cada vez que são utilizadas para interpretar o mundo em mutação. No processo de incorporação dos acontecimentos, ‘a cultura é reordenada’.” (Burke; 1992: 346). E completa, falando sobre a interação possível, sobre os indícios de um entendimento entre as escolas em conflito: “A oposição tradicional entre os acontecimentos e as estruturas está sendo substituída por um interesse por seu inter-relacionamento, e alguns historiadores estão experimentando formas narrativas de análise ou formas analíticas de narrativa.” (Burke; 1992: 36-37). Com vistas a esse problema, Burke (1992) sugere, ainda, que esse retorno à narrativa histórica se dê em outro nível, em um patamar que não seja simplesmente um retrocesso à narrativa que se colocava nos moldes da tradição dita rankeana do século XIX. Propõe, ele, uma história narrativa densa o bastante para contemplar tanto o desenrolar dos acontecimentos e as intenções dos diversos atores que os protagonizaram, quanto para considerar a análise das estruturas, para se saber o porquê e como esses aspectos interferem  seja como freio ou como propulsor  na dinâmica dos acontecimentos históricos. Seja como for, os problemas de síntese na nova história  assim como todos os outros problemas aqui aventados  estão em aberto; estão, ainda, por serem solucionados: “Ainda estamos a uma longa distância da ‘história total’ defendida por Braudel. Na verdade, seria irrealista acreditar que esse objetivo poderia um dia ser alcançado  mas alguns passos a mais foram dados em sua direção.” (Burke; 1992: 37). Independentemente desses problemas, dessas dificuldades que, de uma maneira ou de outra, como já dissemos, sempre estiveram presentes aos historiadores de todos os tempos e de todas as escolas, independentemente disso, uma coisa nos parece evidente: a narrativa histórica pisa novamente o cenário da historiografia desempenhando um papel de destaque. Se vai ocupar por muito tempo o papel de primeiro ator na trupe da nova história, ainda é cedo para se afirmar algo sobre isso. No entanto, não faltam indícios apontando para 25 essa direção. Sobre os vestígios do restabelecimento da narrativa histórica enquanto paradigma, Burke escreve: “De alguns anos para cá tem havido sinais de que a narrativa histórica, em um sentido bem estrito, está realizando outro retorno. Mesmo alguns historiadores associados aos Annales estão se movimentando nessa direção  Georges Duby, por exemplo, que publicou um estudo da batalha de Bouvines, e Emmanuel Le Roy Laduire, cujo Carnival trata dos acontecimentos que ocorreram na pequena cidade de Romans durante 1579 e 1580. A atitude explícita desse dois historiadores não está muito distante daquela de Braudel. Duby e Le Roy Laduire não focalizam os acontecimentos particulares por si sós, mas pelo que revelam sobre a cultura em que ocorreram. Do mesmo modo, o fato de dedicarem livros inteiros a acontecimentos particulares sugere uma certa distância da posição de Braudel, e seja como for, Le Roy Ladurie já discutiu alhures a importância do que ele chama de ‘acontecimento criador’ (événement matrice), que destrói as estruturas tradicionais e as substitui por novas.” (Burke; 1992: 328) Por sua vez, o historiador inglês, de tradição econômico-determinista, Lawrence Stone  por muitos anos, diretor da conceituada revista Past and Present  pesquisando sobre as mudanças na maneira como a história vinha sendo escrita nas décadas de sessenta e de setenta do século XX, concluiu, não sem uma certa consternação, que uma mudança da escrita da história, do modo analítico-estrutural para o descritivo, estava em curso, o que o levava a crer na volta da “história narrativa”. O artigo publicado por Stones (1979), a respeito da sua pesquisa, agitou os meios acadêmicos em todo o mundo e gerou uma grande discussão acerca de como se escreve a história, colocando em evidência a narrativa histórica, transformando-a em tema de debates nos mais importantes centros de historiografia em todo o planeta. Um outro indício que atesta o retorno triunfal da narrativa histórica no cenário da historiografia é a entrada em cena da micronarrativa, ou micro-história como preferem alguns. Embora essa forma de apresentação não solucione todos os problemas levantados anteriormente e gere novos e próprios problemas  por exemplo, problemas de síntese envolvendo a micro-história e a macro-história  ela já tem a sua importância reconhecida até pelos historiadores da tradição econômico-determinista. Sobre ela, Hobsbawm escreve: “A nova história dos homens e das mentalidades, idéias e eventos pode ser vista mais como complementar que como substituta da análise das estruturas e tendências socioeconômicas. [...]. Por isso, não há nenhuma contradição necessária entre Les Paysans du Languedoc e Montaillou, povoado occitânico, de Le Roy Laduire, não mais que entre as obras gerais de Duby sobre a sociedade feudal e sua monografia sobre a batalha de Bouvines, ou entre The Making of the 26 English Working Class [A formação da classe operária inglesa] e Whigs and Hunters [ Senhores e caçadores] de E.P. Thompson. Não há nada de novo em preferir olhar o mundo por meio de um microscópio em lugar de um telescópio. Na medida em que aceitemos que estamos estudando o mesmo cosmo, a escolha entre micro e macrocosmo é uma questão de selecionar a técnica apropriada. É significativo que atualmente mais historiadores achem útil o microscópio, mas isso não significa necessariamente que eles rejeitem os telescópios como antiquados.” (Hobsbawm; 1998: 206-6). De qualquer modo, independentemente desse embate, essa é uma discussão que, como já dissemos, não é central nessa tese. Para os interesses do presente trabalho, a história é pensada como uma narrativa de eventos13 e, como escreve Veyne (1998), todo o resto resulta disso. Nesse sentido, “... a história é apenas um outro texto em uma procissão de textos e não uma garantia de qualquer significação singular.” (Cohen; 2000: 25). Embora essa afirmação exponha a indeterminação do campo da história, é importante ressaltar que essa indeterminação, em si, não é um “defeito”: é, antes de tudo, parte própria da natureza não articulada da história que não permite, a quem quer que seja, acesso integral ao “sentido real” dos fatos ou, mais precisamente, ao real do sentido da história. Por isso, quando se escreve a história, se é reiteradamente solicitado a interpretar; há uma injunção permanente à interpretação. Além disso, como escreveu Orlandi (1999), quando se trata de história e de política, não há como deixar de considerar que a memória é constituída de silêncios e de apagamentos, de silenciamentos e de sentidos não ditos para que um já-dito não se inscreva, para que não haja, no espaço da memória, um já-significado que desencadeie outros sentidos, outras representações do significante. Como já dissemos na seção anterior, por força das ideologias e da repressão, esses sentidos, uma vez excluídos pelo silenciamento, não podem significar. No entanto, mesmo apagados, eles não desaparecem de todo: ficam os seus vestígios de discurso em suspenso até que o real da história, em outro paradigma, desencadeie, a partir dos vestígios, processos de (re)significação. Um caso exemplar de um sentido que foi silenciado no âmbito da matemática diz respeito à noção de infinitésimo. Com a definição de limite, estabelecida por Weierstrass nos anos sessenta do século XIX, a noção de infinitésimo passou a ser silenciada pelos 13 “Se consideramos o fato um evento, é porque julgamos que o próprio fato é interessante; [...]: em nenhum caso, o que os historiadores chamam um evento é apreendido de uma maneira direta e completa, mas, sempre, incompleta e lateralmente, por documentos ou testemunhos, ou seja, por tekmeria, por indícios. (Veyne; 1998: 18). 27 matemáticos para que um já-dito não se estabelecesse no espaço da memória, para que não houvesse um já-significado que tornasse possível, a partir dele, outros sentidos, novos processos de (re)significação para esse termo. Desde então, os tratamentos infinitesimais foram abolidos dos manuais de matemática, mesmo depois que Abraham Robinson estabeleceu, em 1966, uma formulação aceita como rigorosa para essa noção. Diante disso, mesmo ao historiador “profissional”, que tem à sua disposição o arcabouço teórico que lhe permite deslocamentos para significar e analisar os fatos, mesmo a ele  sujeito-analista da história , não se pode imputar neutralidade definidora alguma na escolha e no trato dos objetos da história. A escrita da história  como já dissemos  pressupõe a interpretação e, a partir daí, tudo fica posto pela ideologia. Não é, pois, sem motivos que, em todas as épocas, tenha sido “lugar comum na história que os ‘fatos’ sejam sempre selecionados, moldados, e até distorcidos pelo historiador que os observa.” (Hobsbawm; 1998: 201); ou então, não é à toa, que os historiadores, ao longo dos tempos e em cada época, tenham, sempre, recortado a história a seu modo  em história política, história econômica, história social etc  e narrado os eventos, analisando-os e explicando-os conforme interesses preestabelecidos e de acordo com a forma como foram apreendidos pela ideologia e pela própria história. Para Paul Veyne, essa indeterminação do campo da história somente não é total por uma única exceção: “é preciso que tudo o que nele se inclua tenha, realmente acontecido. Quanto ao resto, que a textura do campo seja cerrada ou rala, completa ou lacunar, não importa ...” (Veyne; 1998: 25). Em razão disso, acreditamos que nenhum historiador reproduza, com seu trabalho de pesquisa, o que “realmente aconteceu” quando observa o passado. É impossível a nós, sujeitos finitos, descrever a totalidade dos campos factuais. O historiador sempre escolhe um caminho no rizoma de trajetórias possíveis e o caminho escolhido, qualquer que seja ele, não pode passar por toda parte. Assim, nenhum desses caminhos desvela todo o campo factual, não reescreve a história em toda sua potencialidade, em todas as suas múltiplas e incalculáveis relações. Além do mais, parafraseando Authier-Revuz (1982), o sentido da história nunca se interrompe já que ele é produzido nas situações dialógicas ilimitadas que compõem todas as suas leituras possíveis. Diante disso, parece-nos falsa a oposição que se procura estabelecer, há décadas, entre as várias correntes historiográficas em curso, entre as diferentes formas de se olhar e explicar o passado; enfim,  e só para ficarmos nos últimos embates  entre a 28 história que pergunta pelos grandes porquês e a história vista de baixo. Não há, portanto, no nosso modo de ver, nenhum caminho, nenhuma metodologia que desvele a história em todos os seus detalhes, nenhuma narrativa ou explicação que reconstrua o passado em todas as suas relações tal como ele foi vivido. Com essas considerações, portanto, acreditamos que o real da história, que o presumido sentido dos campos factuais, somente pode ser atingido indiretamente através das séries de suas leituras sucessivas, das interpretações possíveis construídas nas diversas épocas, ao longo dos tempos. Nesse sentido, a busca pela pretensa “verdade” imediata e perene dos acontecimentos passados é, como já dissemos, inútil e se coloca na ordem do desejo. Para os acontecimentos passados, não há a verdade acessível dos fatos: “... tudo o que nos é acessível, a nós, sujeitos finitos, são apenas reflexos distorcidos, aspectos parciais deturpados por nossa perspectiva subjetiva...” (Zizek; 1992: 132). Assim, a “verdade” dos fatos, o presumido sentido dos campos factuais está irremediavelmente diluído por entre as dobras da história, está perdido para sempre por entre as tramas urdidas por todas as leituras admissíveis, por todas as interpretações possíveis em cada época, ao longo dos tempos. 29 BIBLIOGRAFIA: ALTHUSSER, L. Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado. In: ZIZEK, S. (org.). Um Mapa da Ideologia. Rio de janeiro: Contraponto, 1996. AUTHIER-REVUZ, J. Hétérogénéité montrée et hétérogénéité constitutive: Éléments pour une approche de l’autre dans le discours. 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Sobre as condições históricas ao surgimento do positivismo Introdução O objetivo central deste capítulo, como o próprio título o indica, é expor, ainda que de maneira sucinta — e, em alguns momentos, descritiva — as condições históricas que, no meu modo de ver, determinaram a gênese da filosofia positivista da ciência ou positivismo lógico. A gênese da filosofia positivista da ciência Poderia, como argumenta a maioria dos filósofos e historiadores da ciência e da matemática, vincular o surgimento da filosofia positivista da ciência a três acontecimentos que marcaram profundamente o mundo científico na virada do século XIX para o século XX: o desenvolvimento da lógica matemática estruturada a partir da teoria dos conjuntos, a emergência da teoria geral da relatividade de Einstein em 1905 e o surgimento da mecânica quântica. Entretanto, embora esse argumento seja fortemente defensável, eu penso que ele explica o surgimento dessa corrente filosófica somente de modo parcial e acoberta, subjacentemente, a gênese e as condições objetivas de todo o processo que marcou o surgimento, em 1922, do positivismo lógico, também denominado filosofia positivista da ciência. No meu modo de ver, a gênese da filosofia positivista da ciência remonta à primeira metade do século XIX, mais precisamente ao período compreendido entre a 34 Revolução Francesa de 1789 e a Revolução Industrial Inglesa de 1848, como conseqüência do extraordinário desenvolvimento na componente técnico-científica das forças produtivas ocorrido nesse período. De fato, embora muitas das condições objetivas à revolução industrial na Europa já estivessem dadas desde as décadas finais da Idade Média, a falta, nessa época, de uma força de trabalho disponível em grande monta à industrialização e de um controle político das economias nacionais por parte da burguesia eram os obstáculos centrais à insurgência desse processo revolucionário. Entretanto, segundo Vilar (1974), o primeiro desses obstáculos aos poucos  e violentamente  foi sendo superado: o processo da acumulação primitiva da burguesia, ao expropriar camponeses e pequenos proprietários urbanos, criou uma classe de despossuídos que viriam a se concentrar nas grandes cidades européias da época e se constituir na imensa força de trabalho que alavancaria o processo de industrialização em curso na Europa Ocidental. Por outro lado, a industrialização exigia, além dessa monumental força de trabalho, uma classe social disposta, investida de autoridade e economicamente hegemônica. A velha aristocracia rural, presa às antigas relações sociais de produção, de troca e de trabalho, não só abdicaram dessa tarefa histórica como, também  e principalmente  , se colocaram contra essa nova ordem econômica que se impunha. No contexto dessas exigências do Capital, a burguesia toma para si essa tarefa histórica. Abre-se, então, em todo o planeta  e mais significativamente na Europa Ocidental  um período extraordinariamente revolucionário, marcado por profundas transformações nas mais diversas esferas das relações sociais de produção, de troca e de trabalho, e que se estenderia por toda a primeira metade do século XIX. A partir daí, a burguesia, consolidada como classe política e economicamente hegemônica, assume o controle político-financeiro das instituições em seus países e promove, mais significativamente na Europa Ocidental e nos Estados Unidos, o maior e mais extraordinário desenvolvimento nas forças produtivas que a humanidade jamais havia experimentado, desde os tempos mais remotos, quando o homem inventou a agricultura, os primeiros processos de fundição, o dinheiro, a escrita, a cidade e o Estado. 35 Entretanto, embora esse extraordinário desenvolvimento nas forças produtivas tivesse ocorrido quase que exclusivamente na sua componente técnico-científica e a revolução industrial, segundo Hobsbawm (2001), tenha criado, em relação ao passado, um mundo mais feio e fétido, onde a prosperidade material do trabalhador pobre diminuíra em relação a períodos anteriores na proporção inversa em que aumentara a sua jornada de trabalho e onde a situação geral de vida era cada vez mais penosa para os despossuídos, aquela foi, sem dúvida, para o Capital, “... uma era de superlativos. Os novos e numerosos compêndios de estatística, nos quais esta era de contagens e cálculos buscava registrar todos os aspectos do mundo conhecido, chegariam com justiça à conclusão de que realmente cada quantidade mensurável era maior (ou menor) do que em qualquer época anterior. A área do mundo conhecida, mapeada e em intercomunicação era maior do que em qualquer época anterior e suas comunicações eram incrivelmente mais rápidas. A população do mundo era também maior do que nunca; em vários casos, além de toda expectativa e probabilidade. As cidades de grande tamanho se multiplicavam mais depressa do que em qualquer época anterior. A produção industrial atingia cifras astronômicas; [...]. Estas cifras só foram suplantadas pelas ainda mais extraordinárias [cifras] do comércio internacional, que se multiplicara quatro vezes desde 1780 até atingir cerca de 800 milhões de libras esterlinas, e muito mais em outras moedas menos sólidas e estáveis. A ciência nunca fora tão vitoriosa; o conhecimento nunca fora tão difundido. Mais de quatro mil jornais informavam os cidadãos do mundo, e o número de livros publicados anualmente na Grã-Bretanha, França, Alemanha e Estados Unidos chegava à casa das centenas de milhares. A inventiva humana dava, a cada ano, vôos cada vez mais ousados. A lâmpada de Argand (1782-4) acabava de revolucionar a iluminação artificial  foi o primeiro avanço de importância desde a lâmpada a óleo  quando os gigantescos laboratórios conhecidos como fábricas de gás, enviando seus produtos ao longo de intermináveis tubos subterrâneos, começaram a iluminar as fábricas e logo depois as cidades da Europa [...]. O arco voltaico já era conhecido. O professor Wheastone, de Londres, já estava planejando ligar a Inglaterra e a França por meio de um telégrafo elétrico submarino. Quarenta e oito milhões de passageiros utilizaram as ferrovias do Reino Unido em um único ano. Homens e mulheres já podiam ser transportados ao longo de três mil milhas de via férrea na Grã-Bretanha (1846)  e antes de 1850, mais de seis mil  e ao longo de nove mil milhas nos Estados Unidos. Serviços regulares de navios a vapor já ligavam a Europa com a América e com as Índias.” (Hobsbawm; 2001: 321-2) No âmbito desse desenvolvimento, e como uma das componentes das forças produtivas liberadas pelas novas relações sociais de produção impostas pelo processo revolucionário em curso, a ciência se beneficiou extraordinariamente nesse período  particularmente na França , muito mais, segundo Hobsbawm (2001), como resultado do 36 incentivo dado à educação técnica e científica, do que como conseqüência de exigências diretas feitas aos cientistas pelo governo ou pela indústria. Evidências que comprovam tal incentivo podem ser vistas, por exemplo, no primeiro esboço, em 1794, da Escola Normal Superior  estabelecida como parte da reforma geral da educação secundária e superior na França  ; na criação, também em 1794, do primeiro centro de pesquisa inteiramente voltado às investigações fora do âmbito das ciências físicas  o Museu Nacional de História Natural  e no ressurgimento, em 1795, da então decadente Academia Real de Ciências. Entretanto, a mais singular dessas evidências é a criação, em 1795, da Escola Politécnica de Paris voltada especialmente à formação de indivíduos altamente especializados que constituiriam o corpo burocrático para gerenciar os estados nacionais que estavam sendo