UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA CAMPUS DE MARÍLIA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS Edgar Indalecio Smaniotto EUGENIA E LITERATURA NO BRASIL: apropriação da ciência e do pensamento social dos eugenistas pelos escritores brasileiros de ficção científica (1922 a 1949). Marília – SP 2012 EDGAR INDALECIO SMANIOTTO EUGENIA E LITERATURA NO BRASIL: apropriação da ciência e do pensamento social dos eugenistas pelos escritores brasileiros de ficção científica (1922 a 1949). Tese de Doutorado apresentada à Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Câmpus de Marília, como parte das exigências para a obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais no, Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais. (Linha de Pesquisa: Cultura, Identidade e Memória). Orientadora: Dr.ª Christina de Rezende Rubim. Marília – SP 2012 SMANIOTTO, Edgar Indalecio. EUGENIA E LITERATURA NO BRASIL: apropriação da ciência e do pensamento social dos eugenistas pelos escritores brasileiros de ficção científica (1922 a 1949). . / Edgar Indalecio Smaniotto. Marília, SP: UNESP / FFC, 2012, 131 f. Orientadora: Dr.ª Christina de Rezende Rubim Tese de Doutorado em Ciências Sociais, UNESP / FFC – Marília. 1– Ficção Científica 2 – Eugenia 3 – Pensamento Social 4 – Antropologia 5 – Ciência 6- Darwinismo Edgar Indalecio Smaniotto EUGENIA E LITERATURA NO BRASIL: apropriação da ciência e do pensamento social dos eugenistas pelos escritores brasileiros de ficção científica (1922 a 1949). BANCA EXAMINADORA: _____________________________________________________ Professora Doutora Christina de Rezende Rubim (Orientadora) UNESP - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Faculdade de Filosofia e Ciências. Câmpus de Marília _____________________________________________________ Professor Doutor Andréas Hofbauer UNESP - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Faculdade de Filosofia e Ciências. Câmpus de Marília _____________________________________________________ Professor Doutor Aluisio Almeida Schumacher UNESP - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Faculdade de Filosofia e Ciências. Câmpus de Marília _____________________________________________________ Professor Doutor Carlos Alberto Machado Doutor em Educação pela PUC-RJ _____________________________________________________ Professor Doutor Edgar Silveira Franco Universidade Federal de Goiás, FAV - Faculdade de Artes Visuais. FAV /UFG - Câmpus II. Suplentes: _____________________________________________________ Professora Doutora Célia Aparecida Ferreira Tolentino UNESP - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Faculdade de Filosofia e Ciências. Câmpus de Marília _____________________________________________________ Professor Doutor Vanderlei Sebastião de Souza Fundação Oswaldo Cruz/RJ Escola Nacional de Saúde Pública _____________________________________________________ Professora Doutora Simone Rocha Universidade do Contestado - UnC Curitibanos – SC AA minha esposa Karina e meu filho Marco Aurélio, pelos agradáveis momentos juntos. A Christina de Rezende Rubim, mestra querida, amiga e orientadora. Aos meus pais, Elidio Smaniotto e Carmem Lúcia Alves. “Através da abundante e espantosa literatura chamada de ficção científica, sobressai no entanto à aventura de um espírito quase adolescente ainda, que se desdobra à medida do planeta, se empenha numa reflexão na escala cósmica e situa, de maneira diferente, o destino humano no vasto Universo. Mas o estudo de semelhante literatura, tão comparável à tradição oral dos narradores antigos, e que dá provas dos profundos movimentos da inteligência em marcha, não é coisa séria para os sociólogos.” Louis Pauwels e Jacques Bergier, OO Despertar dos Mágicos. “É óbvio que a ciência é una, mas pode se evidenciar para o bem ou para o mal. Lá estão as utopias e as distopias, inevitáveis prolongamentos da essência humana. Mas seja qual for a alternativa, é inegável que a ficção científica manipula alguma verdade prenunciadora, não importa se inclusiva. Equivale pois, como arte, a uma catarse ante a ambiguidade existencial dos terrestres. Essa literatura de nosso tempor merece portanto acurada reflexão, pois sugere o sociólogo do amanhã, na medida que o vir-a-ser pode ser perscrutado pela ciência. Ficção Científica: Sociologia do futuro?” Rubens Teixeira Scavone, TTemplários, Frankenstein, Buracos Negros e outros temas. RESUMO Este trabalho tem por objetivo contribuir para as pesquisas referentes ao movimento científico e social conhecido como eugenia, a partir da análise de obras brasileiras de ficção científica publicadas na primeira metade do século XX, particularmente entre os anos de 1922 a 1949. A partir de algumas obras representativas, segundo a crítica especializada da época, buscamos verificar a forma com que o pensamento eugênico foi incorporado às narrativas de ficção científica, dando forma à representação ficcional de mundos utópicos eugenistas. Mapearemos e estudaremos a apropriação da ciência e do pensamento social desses intelectuais eugenistas pelos escritores brasileiros de ficção científica, no período de 1922 a 1949, possibilitando compreender as formas com as quais o discurso eugênico foi incorporado à literatura brasileira e, posteriormente, difundido por ela. Para tanto, buscamos entender os limites da eugenia como ciência, as diferentes formas do gênero ficção científica e as formas de interação entre literatura de ficção científica e eugenia no Brasil e nos Estados Unidos. Dessa forma, teremos um amplo aspecto das interações entre o pensamento social eugenista e o campo literário no Brasil. Sendo assim, os textos literários, a serem abordados no decorrer de nossa pesquisa, possibilitarão identificarmos a transposição do discurso científico eugenista para a literatura de ficção científica, na primeira metade do século XX. Palavras-Chave: Ficção Científica – Eugenia – Antropologia – Ciência – Pensamento Social e Darwinismo. ABSTRACT This work aims to contribute to research concerning the scientific and social movement known as eugenics, from the analysis of Brazilian science fiction works that were published in the first half of the twentieth century, particularly at the years 1922 to 1949. From some representative works, according to specialized critics of the age, we seek to verify the way the eugenic thinking was incorporated into the science-fiction stories, forming the fictional representation of utopian eugenicist worlds. We shal map and study the appropriation of science and social thought of these intellectual eugenicists by Brazilian writers of science fiction at the period 1922 to 1949, making possible to understand the ways which eugenic discourse was incorporated into Brazilian literature and posteriorly spread by it. Therefore we seek to understand the limits of eugenics as a science, the different forms of the science fiction genre and the forms of interaction between science fiction literature and eugenics in Brazil and the United States. Thus we will have an ample aspect of interactions between the eugenicist social thought and literary field in Brazil. In such case, the literary texts, which will be discussed during our research, will enable identifying the transposition of eugenicist scientific discourse to the science fiction literature in the first half of the twentieth century. Key-words: Science Fiction - Eugenics - Anthropology - Science - Social Thought - Social Darwinism. SUMÁRIO Lista de Figuras.................................................................................................10 Introdução..........................................................................................................11 CAP. I. Eugenia, Ciência e Ficção Científica: um encontro possível................14 CAP. II. Ficção Científica: definições, temas e história.....................................22 2.1. Definindo o Gênero Ficção Científica...................................................22 2.2. Nasce a Ficção Científica: o moderno Prometeu.................................27 2.3. Júlio Verne: nasce a ficção científica “hard”.........................................31 2.4. H. G. Wells: política e sociedade na ficção científica...........................32 2.5. Arthur Conan Doyle: em busca de mundos perdidos...........................39 CAP. III. Darwinismo, racismo e eugenia..........................................................43 CAP. IV. Ciência, Eugenia e Ficção Científica: o mito do super-homem americano..........................................................................................................56 CAP. V. A Eugenia no Brasil: lamarckismo, progresso, saúde e nacionalismo......................................................................................................71 5.1. Lamarck: a evolução pelos caracteres adquiridos...............................71 5.2. Lamarckismo e eugenia no Brasil........................................................75 5.3. Eugenia e Raça no Brasil.....................................................................87 CAP. VI. O Futuro Eugenizado: pensamento eugênico, nacionalismo e ficção científica no Brasil..............................................................................................93 6.1. Lobato e o Pensamento Eugênico.......................................................93 6.2. O Feminismo Eugênico de Bittencourt.................................................99 6.3. A Eugenia antifeminista de Berilo Neves...........................................110 CAP. VII. Críticas ao Futuro Eugênico............................................................115 Considerações Finais......................................................................................121 Referências Bibliográficas...............................................................................123 Lista de Figuras: Fig. Nome Pág. 01 Monte Roraima 40 02 A Escala das Raças Humanas 51 03 Comparação entre negros e símios 52-53 04 Capa de Frank R. Paul para Amazing Storie de Agosto de 1928 58 05 1º Arte da capa do livro Uma Princesa de Marte. 61 06 2º Arte da capa do livro Uma Princesa de Marte. 61 07 Capa de Gladiador de 1930 67 08 Adaptação do pescoço da girafa 73 09 Capa do livreto “Jeca Tatuzinho” 81 10 Ilustração de J. U. Campos para o Almanaque do Biotônico, 1935 82 11 A Redenção de Can (1895) 89 11 INTRODUÇÃO: Este estudo pretende ser uma contribuição às pesquisas do movimento científico e social conhecido como eugenia, palavra criada pelo cientista britânico Francis Galton em 1883 para significar as possíveis aplicações sociais do conhecimento da hereditariedade para obter-se uma desejada “melhor reprodução” (STEPAN, 2005). A eugenia, desde suas formas mais brandas, representada pelo branqueamento e a higienização (eugenia positiva), até a eugenia negativa de Kehl1, com suas propostas de esterilização dos degenerados, teve ampla aceitação social em diversos círculos intelectuais brasileiros (DIWAN, 2007). As propostas eugênicas quase sempre vêm acompanhadas de exercícios de futurologia, como os prognósticos elaborados por Roquette-Pinto2 segundo as estatísticas oficiais de população de 1872 a 1890, nos quais o autor previu um branqueamento da população brasileira até o ano de 2012. Entre os anos de 1922 e 1949, as teorias referentes ao branqueamento da população brasileira, higienismo e eugenia, faziam parte das discussões intelectuais da elite brasileira (SKIDMORE, 1976; STEPAN, 2005 e SCHWARCZ, 1993). Uma vez que os literatos participavam intensamente dos debates políticos e culturais da nação, a eugenia e o higienismo, como propostas científicas de melhora da nação, logo também se fizeram presente na literatura (DIWAN, 2007, p. 105), em especial a de ficção científica (CAUSO, 2003). A literatura de ficção científica apresenta em seus discursos alguns arquétipos bastante conhecidos, entre eles as utopias e distopias, mundos perdidos e viagens no tempo (FIKER, 1985). Esses arquétipos, típicos da ficção científica, foram utilizados como recurso literário por escritores brasileiros entre 1922 e 1949, a fim de divulgar suas ideias eugênicas. Identificar, demarcar e compreender essa apropriação do pensamento eugênico pelos escritores brasileiros do período é o objetivo de nossa pesquisa. 1 Em termos gerais, a eugenia positiva pretendia a melhoria dos indivíduos de “sangue bom”, os de raça branca, através do controle dos casamentos. Já a eugenia negativa pregava a esterilização dos indivíduos de sangue ruim, levando a sua eliminação (BLACK, 2003). 2 Os diagramas foram reproduzidos por Lilia Moritz Schwarcz (1993, p. 97). 12 Nossas fontes de trabalho serão coletadas com base nas publicações intituladas Ficção Científica pela crítica especializada3. Os textos são: O Presidente Negro ou O Choque das Raças (Monteiro Lobato, 1922); Sua Excia. a Presidente da República no ano 2500 (Aldazira Bittencourt, 1929); A Costela de Adão, a Mulher e o Diabo, e Século XXI (Berilo Neves, 1929/1931 e 1934 – respectivamente); Zanzalá (Afonso Schmidt, 1938); 3 Meses no Século 81 (Jerônymo Monteiro, 1949). A decisão por textos notoriamente considerados Ficção Científica, além de evitar a difícil busca por toda a literatura brasileira, com o objetivo de fazer um levantamento por obras literárias que tenham sido escritas a fim de divulgar ideias eugenistas, visou também realizar o trabalho com um gênero literário que tem na extrapolação do saber científico sua principal característica (CAUSO, 2003). Portanto, limitando nossa pesquisa tanto em um gênero quanto em um determinado tempo cronológico, já que, após 1950, a eugenia se tornou um tema tabu na ficção científica mundial, inclusive na brasileira, e, antes de 1922, não houve obras abordando essa temática (CAUSO, 2003). Na era tecnológica em que vivemos desde a revolução industrial, os horizontes humanos foram enormemente ampliados, juntamente com sua curiosidade e imaginação (SKORUPA, 2002). A Ficção Científica, por sua vez, é fértil em produzir a imaginação sobre esses novos e vastos horizontes científicos e tecnológicos, sendo ela mesma um gênero literário que nasce com a ciência moderna. Se, em geral, todos os avanços científicos modernos foram trabalhados pela Ficção Científica em um momento ou outro (ASIMOV, 1984), uma vez que a “ficção científica elabora extrapolações que, a partir da ciência contemporânea, procuram hipoteticamente, na forma de narrativas literárias, o que poderia ser o futuro, no tocante a fenômenos novos ainda não descobertos” (CARDOSO, 2001, p. 5), a eugenia da primeira metade do século XX também foi motivo de extrapolações por parte de autores de ficção científica. Mas como nos lembra Skorupa (2002, p. 3): 3 Ver: MEDEIROS (1999), NASCIMENTO (1985 e 1994), TAVARES (1992), BOURGUIGNON (2005), CAUSO (2003) e PEREIRA (2005). 13 a despeito de constantemente referenciar-se ao futuro, ela está indissociavelmente ligada ao seu momento de produção e, no seu âmago, discute essas realizações baseadas na ciência e na tecnologia. Se estamos falando de um gênero literário que elabora extrapolações a partir da ciência contemporânea ao seu momento de produção, podemos então identificar na ficção científica tanto uma representação literária do conhecimento científico de sua época, quanto uma prefiguração4 das utopias almejadas por essa sociedade. Sendo assim, os textos literários, a serem abordados no decorrer de nossa pesquisa, possibilitarão identificarmos a transposição do discurso científico eugenista para a literatura de ficção científica, na primeira metade do século XX. Contribuindo assim para o mapeamento da divulgação das ideias eugenistas, tendo em vista que a literatura tem uma receptividade social mais abrangente que textos científicos. 4 Podemos definir o ato de prefigurar como “representação de coisa futura. Representar antecipadamente coisa que ainda não existe, mas que pode existir.” Ver: FERNANDES, Francisco. LUFT, Celso Pedro. GUIMARÃES, F. Marques. Dicionário Brasileiro Globo: Português. 41º ed. São Paulo: Editora Globo, 1995. 14 CAPÍTULO I – Eugenia, ciência e ficção científica: um encontro possível. Nossa pesquisa teve suas motivações baseadas, principalmente, nas possibilidades abertas pela perspectiva de análise da etnografia do pensamento e da ciência. Nessa perspectiva, buscamos uma oportunidade de realizar um empreendimento histórico, sociológico, comparativo, interpretativo, de tornar inteligíveis questões ainda não suficientemente problematizadas acerca do campo do conhecimento que será objeto de análise (PONTES, 1997). Essa é uma perspectiva que permite um tratamento analítico e circunstanciado; abordar os diversos ramos da atividade cultural e científica (literatura, biologia, eugenia, antropologia etc.), exercidos pela intelectualidade brasileira que absorveu as ideias eugenistas (escritores de ficção científica), circunscrevendo-a como um grupo cultural específico, ainda que possivelmente não tenha se organizado socialmente5. Analisaremos essa comunidade (escritores de ficção científica) em suas diversas dimensões: histórica, experiência social e intelectual, atitudes, visão de mundo, ideologia e posição na estrutura social vigente. Assim, poderemos compreender melhor o pensamento desses autores, no contexto em que viveram, e a constituição de um saber sobre a singularidade do Brasil como nação e as esperanças futuras depositadas nela. Pretendemos, também, mostrar que os discursos produzidos pelos integrantes do universo literário e científico da época não são apenas pontos privilegiados de observação intelectual, mas, antes de tudo, modos de estar no mundo, que nos possibilitará uma apreensão – mediada pela dupla confluência entre eugenia e literatura (ficção científica) – da história intelectual e da formação do campo das ciências sociais no Brasil. Para tanto, devemos compreender que as ciências, como nós as conhecemos hoje, se desenvolveram num determinado momento histórico da sociedade ocidental, após o século XIX, principalmente. O movimento científico e 5 No caso dos escritores, já que os teóricos eugenistas se organizaram em diversas associações, como: Sociedade Eugênica de São Paulo, Liga Pró-Saneamento do Brasil, Liga Brasileira de Higiene Mental e Comissão Central Brasileira de Eugenia. 15 social conhecido como eugenia, por sua vez, esteve em grande parte contido na primeira metade do século XX. Uma vez que podemos compreender a ciência como uma sucessiva sequência de revoluções paradigmáticas (KUHN, 1989), porque a apreensão da realidade constantemente se modifica, transformando-a em algo novo, podemos postular que a considerada, hoje em dia, pseudociência da eugenia foi um momento paradigmático anterior ao paradigma atualmente aceito da biologia e da genética. Fundamentando-se na história das ciências, Kuhn desenvolveu uma nova visão epistemológica. Até ele, a ciência era vista como um muro, ao qual cada cientista ia acrescentando o seu tijolo, resultando no conjunto chamado “saber científico”. É a visão cumulativa, na qual o desenvolvimento da ciência torna-se o processo gradativo através do qual esses itens foram adicionados, isoladamente ou em combinação ao estoque sempre crescente que constitui o conhecimento e a técnica científicos. E a história da ciência torna-se a disciplina que registra tanto esses aumentos sucessivos quanto os obstáculos que inibem sua acumulação. (KUHN, 1989, 20) Kuhn propõe uma nova imagem de ciência. Nesse novo quadro, vemos grupos de cientistas lutando por essa ou aquela teoria em contraposição a outras. Os primeiros estágios do desenvolvimento da maioria das ciências têm se caracterizado pela contínua competição entre diversas concepções de natureza distintas; cada uma delas parcialmente derivada e todas apenas aproximadamente compatíveis com os ditames da observação e do método científico. O que diferenciou essas várias escolas não foi um ou outro insucesso do método - todas elas eram “científicas” - mas aquilo que chamaremos a incomensurabilidade de suas maneiras de ver o mundo e nele praticar a ciência. (KUHN, 1989, 20) Uma vez que uma das escolas triunfa, temos o estabelecimento de um paradigma e surge o que Kuhn chamou de ciência normal. A Física de Aristóteles, o Almagesto de Ptolomeu, os Principia e a Óptica de Newton, a Eletricidade de Franklin, a Química de Lavoisier e a Geologia de Lyell - esses e muitos outros trabalhos serviram, por algum tempo, para definir implicitamente os problemas e os métodos legítimos de um campo de pesquisa para as gerações posteriores e praticantes da ciência. Puderam fazer isso porque partilhavam duas características essenciais. Suas realizações foram suficientemente 16 sem precedentes para atrair um grupo duradouro de partidários, afastando-os de outras formas de atividades científicas dissimilares. Simultaneamente, suas realizações eram suficientemente abertas para deixar toda espécie de problemas para serem resolvidos pelo grupo redefinindo de praticantes da ciência. Daqui por diante deverei referir-me às realizações que partilham essas duas características como “paradigmas”, um termo estreitamente relacionado com a ciência normal. (KUHN, 1989, 30) Temos acima uma das definições de Kuhn para o paradigma. Margareth Masterman encontrou vinte e uma delas no livro A Estrutura das Revoluções Científicas. Kuhn define paradigmas como: 1) uma realização científica universalmente reconhecida; 2) mito; 3) filosofia, ou constelação de perguntas; 4) manual, ou obra clássica (como vimos na citação acima); 5) toda uma tradição e, em certo sentido, um modelo; 6) realização científica; 7) analogia; 8) especulação metafísica bem sucedida; 9) dispositivo aceito na lei comum; 10) fonte de instrumentos; 11) ilustração normal; 12) expediente, ou tipo de instrumentos; 13) um baralho de cartas anômalo; 14) fábrica de máquinas- ferramenta; 15) figura de gestalt que pode ser vista de duas maneiras; 16) um conjunto de instituições políticas; 17) “modelo” aplicado a quase metafísica; 18) um princípio organizador capaz de governar a própria percepção; 19) ponto de vista epistemológico geral; 20) um modo de ver; 21) algo que define ampla extensão de realidade. 6 As diversas definições de paradigma não diminuem o valor do trabalho de Kuhn, até porque elas não são excludentes. Ao contrário, a originalidade de seu trabalho e a amplitude de sua definição de paradigma faz de suas ideias, em redundância, um verdadeiro paradigma epistemológico. Ao partirmos de uma abordagem paradigmática, como a proposta por Thomas Khun, verificamos que o abandono da caracterização da eugenia como ciência para uma caracterização como pseudociência7 deveu-se pouco a uma mudança de perspectiva construída em relação ao objeto de pesquisa, e 6MASTERMAN, Margareth. LAKATOS, Inre & MUSGRAVE, Alan. A Crítica e o Desenvolvimento do Conhecimento. São Paulo, Cultrix, Edusp, 1979. 7 Pseudociência é uma caracterização usada para denominar campos de conhecimento que pretendem ser científicos, mas, na ótica da ciência acadêmica aceita, não fariam uso correto, ou fariam um uso incompleto e ideológico do método científico, chegando a conclusões não verificáveis experimentalmente ou por indução e dedução. Além da eugenia, alguns campos do conhecimento, como a parapsicologia e a ufologia são por vezes assim classificados, é necessário, pelo menos no caso das duas últimas maiores discussões sobre critérios de cientificidade. Alguns autores também classificariam como pseudociência o materialismo histórico e a psicanálise, o que gera controvérsias. 17 muito a motivações políticas. Afinal, com a vitória aliada na II Guerra Mundial e o repúdio popular maciço às políticas de extermínios nazistas, baseados na eugenia, esta, antes ‘ciência’, foi abandonada definitivamente, mesmo que inicialmente apenas no nome, quando alguns ex-institutos de eugenia trocaram seus nomes para Institutos ou Departamentos de Genética (BLACK, 2003). Toda a ciência necessita, para seu desenvolvimento, ser divulgada, principalmente para seus pares – ao contrário do mito do cientista solitário (tão comum na literatura de ficção científica). O periódico científico8 surge com um objetivo bem claro: promover a troca de informações entre os cientistas. É o que chamamos de comunicação primária: o cientista escreve para seus pares, esperando que eles validem suas hipóteses dentro da comunidade. Os cientistas9 que trabalhavam com eugenia mantiveram uma rede de publicações periódicas10, seminários11 e sociedades científicas12 a fim de divulgar suas pesquisas. Com isso, estavam interessados em mútua troca de conhecimentos e convalidação de suas observações. Por ser um movimento que pretendia moldar a sociedade – ou seja, uma ciência que pretendia ser aplicada no planejamento de políticas públicas – e não apenas ciência pura, os eugenistas se preocupavam com a divulgação científica de suas ideias. No Brasil, por exemplo, Renato Kehl13 se esforçava na divulgação das ideias eugênicas, e é nessa perspectiva que podemos ver a interação entre os escritores brasileiros de ficção científica e os cientistas eugenistas. Alguns eugenistas, como Renato Khel no Brasil e Daverpont nos Estados Unidos, viam na falta de conhecimento científico (no caso, o conhecimento sobre raça e ciência segundo a eugenia) um dos grandes empecilhos a políticas públicas eugênicas eficazes, por isso defendiam sua 8 Também relatórios, livros, etc. 9 Como já salientamos, atualmente não se considera a eugenia uma ciência, e assim seus produtores seriam pseudocientistas, entretanto, esse é um olhar a posteriori. Para efeito deste trabalho, usaremos os termos ciência da eugenia e cientistas eugenistas, pois eram assim vistos na época de sua produção intelectual. 10 DIWAN, 2007, p. 48-85. 11 Idem, p. 48-85. 12 ,Idem, ibid p. 48-85. 13 Renato Kehl realizava palestras constantes, escrevia livros populares e incentivava, por cartas, intelectuais, principalmente Monteiro Lobato, a divulgar suas ideias (DIWAN, 2007). 18 divulgação. Percebemos, então, que eles já tinham uma ideia de como o analfabetismo científico era prejudicial. Como salienta Carl Sagan: As consequências do analfabetismo científico são muito mais perigosas em nossa época do que em qualquer outro período anterior. É perigoso e temerário que o cidadão médio continue a ignorar o aquecimento global, por exemplo, ou a diminuição da camada de ozônio, a poluição do ar, o lixo tóxico e radioativo, a chuva ácida, a erosão da camada superior do solo, o desflorestamento tropical, o crescimento exponencial da população. Os empregos e os salários dependem da ciência e da tecnologia. Se a nossa nação não puder fabricar, com alta qualidade e a preços baixos, os produtos que as pessoas querem comprar, as indústrias continuarão a se deslocar e a transferir um pouco mais de prosperidade para outras partes do mundo.14 Um exemplo de fenômeno que ameaça a humanidade e só pode ser resolvido com decisões científicas é o crescimento da população mundial: Se o mundo quiser evitar as consequências terríveis do crescimento da população global, com 10 ou 12 bilhões de pessoas no planeta no final do século XXI, temos de inventar meios seguros, porém mais eficientes, de cultivar alimentos – com o auxílio de estoques de sementes, irrigação, fertilizadores, pesticidas, sistemas de transporte e refrigeração. Serão também necessários métodos amplamente acessíveis e aceitáveis de contracepção, passos significativos para a igualdade política das mulheres e melhoramento nos padrões de vida das pessoas mais pobres. Como será possível fazer tudo isso sem a ciência e a tecnologia?15 Mas como o cidadão pode participar das decisões científicas, se não dispõe de conhecimentos mínimos que lhe permitam escolher entre essa ou aquela opção, e compreender o assunto e todas as suas consequências? A divulgação científica adquire, aqui, um importante papel político e ideológico: o de alfabetização básica dos conceitos de uma determinada ciência, nesse caso, da eugenia. Portanto, devemos compreender a importância que a divulgação científica teve dentro do movimento eugenista, sobretudo porque, sem a divulgação e aceitação de suas ideias, seria impossível que viesse a alcançar seus objetivos de formular leis segregacionistas (BLACK, 2003). 14 SAGAN, Carl. O Mundo Assombrado Pelos Demônios: A Ciência Vista Como Uma Vela no Escuro. São Paulo, Companhia de Letras, 1996, p.21. 15 Ibid, p. 25 19 Os escritos de ficção científica, ao fazerem uso da literatura para divulgar conceitos eugênicos, ofereceram ao movimento eugenista uma porta de entrada de suas ideias ao leitor de romances e contos. Dessa forma tentaremos observar como a eugenia foi divulgada, principalmente através da literatura de ficção científica. O filósofo da ciência francês Michel Serres (2007), que considera que “não se pode mais separar a história das ciências contemporâneas, nem a história da filosofia, nem a história da literatura, nem a das religiões” (2007), trabalha, a partir do estudo da obra de Júlio Verne, justamente com a questão da divulgação científica via ficção científica. Serres propõe, através do exemplo do escritor de ficção científica Júlio Verne, que a literatura muitas vezes nos oferece uma determinada forma de ler uma ciência: Etimologicamente, “legenda” significa “o que deve ser lido”, e legendo, como é preciso ler. Num mapa, geralmente embaixo, à esquerda, um quadro intitulado “legenda” explica como ler os símbolos que ali estão. Passeamos agora as ciências. Como se deve ler a geologia? A astronomia, como se deve lê- la? Pois bem, Júlio Verne propõe um modo de fazer: ele constrói uma máquina que permite ir lá ver. Um submarino desce até a classificação dos peixes; um obus dá a volta a Lua; um pedaço de continente arrancado da Terra visita os planetas do sistema solar, como em Hector Servadc; uma jangada desce lentamente o Amazonas e permite explorar suas margens e encontrar os ribeirinhos. A “legenda” prepara a viagem e a “viagem” realiza a legenda (SERRES, 2007, p. 22-23). Serres afirma que Júlio Verne “tornou cultural o saber de seu tempo” (2007, p. 169). Este é justamente nosso objetivo neste trabalho, entender como os escritores brasileiros de ficção científica tornaram o conhecimento eugênico parte da cultura de seu tempo, através da divulgação em obras literárias. Portanto, é nessa perspectiva da relação entre eugenia e ficção científica que trabalharemos no decorrer desta pesquisa, buscando assim entender a contribuição dos escritores brasileiros de ficção científica na divulgação do pensamento eugênico. Mas, se buscamos compreender o movimento científico e social da eugenia no contexto estabelecido pela história das ciências e, como os literatos brasileiros participaram de sua divulgação para o público, temos igualmente 20 que entender as condições sociais de produção do pensamento eugênico e da literatura brasileira de ficção científica na primeira metade do século XX. Para tanto, adotaremos o referencial externalista da etnografia do pensamento e da ciência, proposta por Geertz (1998), para sermos capazes de explicar tanto o perfil sociológico dos produtores culturais, intelectuais e simbólicos, suas representações ideológicas e práticas sociais, quanto o campo particular em que estão inseridos. Segundo o referencial metodológico proposto por Geertz (1997), O pensamento (qualquer tipo de pensamento: o de Lord Russell ou do Barão Corvo, o de Einstein ou de algum caçador esquimó) deve ser compreendido “etnograficamente”, ou seja, através de uma descrição daquele mundo específico onde este pensamento faz sentido. (p. 227) Qualquer estudo que use como referência a etnografia do pensamento deve ser um empreendimento histórico, sociológico, comparativo, interpretativo, e um pouco escorregadiço, tendo por objetivo tornar assuntos obscuros mais inteligíveis (GEERTZ, 1997). Todos esses processos não podem ser tratados de forma que sejam apenas um auxílio na interpretação da obra, pois, tudo aquilo que ela contém em seu interior – seja de caráter científico, literário, cultural ou aquele aglomerado de histórias plausíveis que chamamos de senso comum – é de vital importância para o seu entendimento. Uma das premissas mais importantes desse método é que: As várias disciplinas (ou matrizes disciplinares) humanistas, científicas-naturais, ou sociocientíficas, que compõem o discurso disperso da academia moderna, são mais que simples posições intelectuais vantajosas. São, para invocar uma fórmula de Heidegger, modos de estar no mundo; ou formas de vida, para usar uma expressão wittgensteiniana, ou ainda variedade da experiência intelectual, adaptando de James. (GEERTZ, p. 232) Por conseguinte, devemos nos lembrar que a ciência, seus conceitos, suas teorias e verdades são parte da história e possuem os seus limites nela, porque, entre outras razões, não pode ser pensada independentemente dos sujeitos cognoscentes. 21 A esse método de análise externalista da obra que busca compreender sua totalidade no mundo social, soma-se a análise internalista da obra em si, como proposta por Goldschmidt (1963), o qual nos convida a examinar a produção literária e científica de um autor ou comunidade, recuperando o diálogo interno de sua própria obra e buscando reconstruir a lógica de sua composição interna. A necessidade de se fazer uma análise internalista da obra do autor se dá porque, segundo Rubim (1996): O conhecimento tem origem em nossas próprias experiências. Não é inato e nem aparece espontaneamente ou naturalmente. É preciso esforço e determinação. Mas, se não possuirmos suficiente experiência de vida, uma história que nos proporcione pensar e refletir sobre o que lemos, sobre o legado de nossos antepassados, os clássicos, não teremos condições de produzir conhecimento criativo. Quanto mais rica for essa história, mais poderemos avançar em direção a um conhecimento significativo e original. Neste sentido, um texto pode dizer muito sobre seu autor. Mesmo um texto científico. Em suas linhas e entrelinhas estão implícitas as suas concepções de mundo, de vida e de ciência. (p. 15) A antropóloga Mariza Peirano salienta que a antropologia, que tradicionalmente recorria a etnografias como principalmente fonte de conhecimento, passou a dispor de um novo elenco de alternativas literárias para seu empreendimento de análise, todas elas legítimas e politicamente adequadas, inclusive a ficção científica (PEIRANO, 2006, p. 21), pois em um novo contexto em que: Modificaram-se os campos vizinhos da antropologia (como opositores ou aliados) – em vez de arqueologia, biologia, sociologia ou lingüística de décadas passadas, que eram em síntese uma tentativa da antropologia tornar-se mais ‘científica’, hoje os antropólogos podem ser encontrados nos departamentos de história da ciência, crítica literária ou filosofia. PEIRANO, 2006, p. 17). Assim, a fim de abarcar os objetivos que buscamos, o caráter metodológico de nossa pesquisa se caracterizará, em vários momentos, pela sua flexibilidade, já que trabalharemos com diversas fontes, o que permitirá viabilizar o cumprimento dos objetivos almejados. Como nos diz Becker (1999) “[...] quando estudamos [...] temos que conceber métodos novos apropriados para o segredo que nos confronta [...] à medida que as circunstâncias da pesquisa o exigiram [...]” (p. 13). 22 CAPÍTULO II – Ficção Científica: definições, temas e história. No Brasil, a primeira tentativa de definição da ficção científica foi dada pelo escritor Afonso Schmidt: “as profecias têm uma utilidade: servem, no futuro, para estudar as aspirações populares da época em que foram escritas”16; que é interessantíssima, pois está em conformidade com nossa atual compreensão do papel exercido pela ficção científica, que é antes uma tentativa de externar os anseios e aspirações de uma comunidade para com seu próprio futuro, do que uma tentativa de adivinhação ou futurologia. Essa leitura é o que nos permite, então, fazendo uma curva de 180 graus através dos futuros imaginados no começo do século vinte no Brasil, compreender as aspirações sociais e políticas almejadas por uma geração. 2.1 Definindo o gênero ficção científica O termo ficção científica foi usado pela primeira vez no editorial do nº 1 de Science Wonder Stories, em 1929. Essa era uma das publicações do editor Hugo Gernsback17, que cunhou o termo. Devemos salientar, entretanto, que o termo ficção científica foi criado para nominar algo que já existia a priori. Tanto que Gernsback publicava no início da revista textos de Edgar Allan Poe, Júlio Verne e H. G. Wells, autores cuja produção mais importante já havia sido publicada no século XIX (BAUDOU, 2008). Mas, afinal, em que consiste a ficção científica e por que ela se diferencia de outras literaturas do imaginário? Jacques Baudou oferece uma tentativa de explicação: Nas literaturas do imaginário, a ficção científica está próxima do fantástico e do maravilhoso. Diferencia-se, no entanto, das outras no que toca ao que Pierre Versins designa de ‘conjecturas romanescas racionais’. Assim, o fantástico e o maravilhoso não precisam de justificar a intrusão do sobrenatural, do irracional, do maravilhoso, do inverossímil no real, uma vez que, nos casos em que se tira partido da ambigüidade criada, essa mesma intrusão ou a possibilidade 16 Essa definição, daquilo que classificaríamos como literatura de ficção científica – ainda que seu autor Afonso Schmidt na apresentação de seu romance Zanzalá (Clube do Livro, 1949, p. 13) use o termo profecia, talvez por desconhecer a literatura de ficção científica, e, portanto, não ter outra chave de compreensão e entendimento daquilo que produzia – será útil, no decorrer deste texto, pois é elucidativa sobre as interações entre eugenia e ficção científica. 17 No capítulo IV deste trabalho, voltaremos a falar das contribuições de Gernsback à ficção científica. 23 dessa intrusão é que os define, enquanto na ficção científica , esta, antes de se expandir nas suas extrapolações, deve ser sustentada numa base racional, científica ou então deve ter uma relação de similitude científica (2008, p. 14). Nesse caso, quando nos deparamos com um texto cujo personagem se transforma em um lobisomem em noites de lua cheia, não é necessário justificar essa transformação com alguma teoria entre a influência da lua nas marés e seu correlato de lobisomens. Não cobramos nesse tipo de história uma explicação racional, ou pseudorracional. Contentamo-nos com a lógica interna do texto, ou a falta dela, bem como com relatos de lendas e mitos, pois estamos diante de uma forma de pensar diferente da racionalidade científica ocidental. Para ilustrarmos essa diferença, recorreremos ao mito do vampiro. O vampiro é um personagem folclórico europeu, tendo assumido diversas formas em diferentes tradições culturais: o evocador, o batedor, o visitante, o faminto, o nonicida, o appesart, o pesadelo, o estrangulador, o mastigador e os fantasmas de forma animal (LECOUTEX, 2005). Os vampiros que conhecemos hoje são frutos mais de personagens literários que folclóricos, e são derivados dos textos de John William Polidori, J. Sheridan Le Fanu e Bram Stocker. Todos, escrevendo na mesma época em que Júlio Verne, Edgar Allan Poe e H. G. Wells, davam forma à ficção científica. Claude Lecoutex (2005) nos diz que sempre se tentou explicar “por que os vampiros não se decompõe, por que eles voltam, eles que transgridem todas as regras da natureza e põem em cheque as noções de vida e morte” (p. 34). Era também necessário explicar “a força sobrenatural dos vampiros, sua faculdade de atravessar paredes, seu gosto pelo sangue” (p. 35). Essas explicações viriam não da ciência, mas do místico, da magia e do paranormal: mortos vivos, criaturas satânicas, seres que se sobrepõem ao natural, à morte, portanto estão no domínio do sobrenatural. O mito do vampiro está ligado diretamente ao oculto, ao sobrenatural, à magia e religião. É aquele homem, segundo Louis Vax, que “prolongou a sua vida para além dos limites normais... ora o homem tem a vaga impressão de que só pode prolongar indefinidamente a sua própria vida roubando parte da vida dos outros” (1972, p. 35). 24 No decorrer do século XX e XXI, o mito do vampiro se encontrou com a ficção científica, surgindo aqueles que criaram ficções científicas baseadas nesse mito. O vampiro podia ser um alienígena, portanto outra espécie, algo natural de outro mundo; podia ser resultado de um vírus; espécie humanóide diferente; ou até o resultado de uma viagem no tempo. Para ilustrar, comentaremos o livro Treze Milênios v. 1: Gênese Vermelha de Osíris Reis (CORIFEU, 2006). Osíris justifica a criação e a saga histórica de seus vampiros utilizando o recurso da viagem no tempo. Eurass Brown, “um cientista genial” com poderes de alterar quarks e léptons a serviço da Democracia Intergaláctica (organização política, utópica, supranacional e pan-galáctica do ano 7523), é quem cria a tecnologia da viagem no tempo. No decorrer da experiência realizada por Brown, além dos participantes involuntários voltarem no tempo, na era pré-escrítica (pré-história), mudanças genéticas vão paulatinamente transformando esses “civilizados e éticos” cidadãos da Democracia Intergaláctica em vampiros. Adolf Schindler, médico e telepata, é o único dos sete tripulantes a resistir aos instintos hemofágicos que acometem seus companheiros de viagem. Eurass Brown, por sua vez, não tem nenhum pudor em romper todas as amarras éticas e morais que os seres humanos constituíram ao longo de sua história, escrita ou não. A narrativa se concentra no duelo entre Schindler e Brown, ambos agora na Terra do ano 5.477 a.C. O primeiro tenta a todo custo salvar a continuidade temporal que dará origem a sua utópica Democracia Intergaláctica, enquanto o segundo quer criar um império sob seu governo ainda nessa era pré-escrítica, no qual os vampiros se tornarão a casta dominante, à semelhança do romance Anno Dracula de Kim Newman. Os demais vampiros originais (aqueles vindos do futuro) ou os transformados se alinham a um dos dois lados, conforme suas necessidades momentâneas. Dessa forma, o autor pretende narrar a história da humanidade através da ação dos vampiros entre o ano 5.477 a.C. e 7.523 d.C, unindo romance histórico, vampiros e ficção científica. Podemos observar, após a leitura desse romance, que a diferença entre a ficção científica e a fantasia (ou terror) está justamente na tentativa de explicação. A “ciência” por trás da viagem no tempo ou da transformação dos 25 seres humanos do futuro em vampiros, via genética, pode não convencer ou parecer, para alguns, mais ficção que ciência. Mas ela está lá, e com ela, uma tentativa de explicar o mundo de forma racional. A ficção científica é um gênero literário plural por excelência, abarca diferentes arquétipos e subdivisões temáticas ou mesmo periódicas (FIKER, 1985). Entre os arquétipos mais conhecidos e reconhecidos pelos leitores de ficção científica podemos destacar: viagens em naves interplanetárias e interestelares; exploração e colonização de outros mundos; guerras e armamentos fantásticos; impérios galácticos; antecipação, futuros e passados alternativos; utopias e distopias; cataclismos e apocalipses; mundos perdidos e mundos paralelos; viagens no tempo; tecnologia e artefatos; cidades e culturas; robôs e andróides; computadores, mutantes e poderes extrassensoriais18. Além desses arquétipos, também oferece diversas divisões temáticas, tais como: 1. Ficção científica teológica: em que a religião é tema central da discussão em um ambiente alienígena, como a Trilogia Espacial: Além do Planeta Silencioso (1938), Perelandra (1943) e Aquela Força Medonha (1945), de autoria de C. S. Lewis, o famoso teólogo protestante, e autor das Crônicas de Nárnia e a saga Duna (1965), de Frank Herbert . 2. Space Opera: a série de livros Perry Rhodan, com quase 700 números editados no Brasil pela antiga Tecnoprint e atualmente pela SSPG, é um bom exemplo. São novelas espaciais em que a humanidade geralmente enfrenta perigosos alienígenas. A saga televisiva Star Trekker (Jornada nas Estrelas), é outro exemplo de Space Opera. 3. Guerra Futura: esse gênero literário é muitas vezes um meio termo entre o tratado militar e a ficção propriamente dita. Uma das obras mais conhecidas no Brasil nesse aspecto intitula-se “A Terceira Guerra Mundial: Agosto de 1985”. Escrita pelo General Sir John Hackett, essa obra se apresenta mais como um tratado militar do que como ficção. Há diversas outras subdivisões temáticas, de ficção pré-histórica a histórias alternativas, mundos paralelos, mutantes, tecnologia a vapor superdesenvolvida (steampunk), entre outras. O pesquisador Jacques Baudou 18 Para maiores detalhes ver: FIKER, Raul. Ficção Científica: Ficção, Ciência ou uma Épica da Época. Porto Alegre: L&PM Editores, 1985. 26 (2008), oferece na terceira parte de seu ensaio “A Ficção Científica”, uma detalhada subdivisão temática da ficção científica, bem como Raul Fiker, em seu “Ficção Científica: Ficção, Ciência ou uma Épica da Época?” de 1985. Mas, agora, falemos um pouco dos macroperíodos da ficção científica (dos quais podemos destacar quatro), de algumas de suas características, além de seus autores mais representativos: 1º Era Clássica: Júlio Verne e H. G. Wells – valorização do saber técnico e científico. O cientista é o protagonista. 2º Era de Ouro: Isaac Asimov, Ray Bradbury e Arthur C. Clarke – aposta na ciência para o melhoramento ético e material da civilização humana, e forte influência das ciências HARD. 3º New Wave: J.B. Ballard, Harlan Ellison e Robert Silverberg – maior influência das ciências humanas e preocupações de ordem política. 4º Era Cyberpunk: William Gibson, Bruce Sterling e Vernor Vinge – cenários de alta tecnologia, caos urbano, transhumanismo e valorização dos movimentos de contracultura. 5º Era Steampunk: neste caso elementos típicos do secúlo XIX, como a tecnologia a vapor, acabam por ter um desenvolvimento para além daquele que realmente tiveram. Podemos citar como exemplo a antologia STEAMPUNK: histórias de um passado extraordinário (Tarja Editorial, 2009). No geral, todos esses arquétipos, divisões temáticas e periodizações são bastante nebulosos: podemos encontrar autores de Space Opera escrevendo excelentes novelas na era cyberpunk, novelas em que ciência hard e reflexão teológica estão juntas, etc. Assim, qualquer dessas divisões, grosso modo, ajudam-nos a entender esse gênero literário, mas é necessário uma certa relativização conceitual e metodológica para compreendermos os mundos da ficção científica, por vezes bastante fluidos. Outra distinção que, para efeito deste trabalho, devemos nos ater é entre ficção científica HARD e SOFT. Nessa proposta de divisão da ficção científica, leva-se em consideração o arcabouço cultural ao qual o autor recorre para sustentar sua narrativa. Se o autor recorrer principalmente ao campo da cultura humana que busca estudar e compreender a natureza, ele estará escrevendo ficção 27 científica HARD (pesada), pois recorrerá às ciências naturais e matemáticas (Química, Astronomia, Biologia, Física, etc.). Tentando descrever ou definir a ficção científica hard, Gregory Benford afirma que, antes de tudo, ela apóia “uma compreensão da Ciência, seus métodos e sua visão de mundo”, enquanto retrata “eventos fantásticos com uma realidade convicente... Benford enumera elementos adicionais que caracterizam a ficção científica hard, que incluem um tom analítico não-emocional, um cara esperto ou experimentado em sua área, como protagonista ou narrador, e um senso de misticismo cósmico (GINWAY, 2005, p.148) Mas, se o autor recorrer ao campo da cultura humana que busca entender a complexidade do próprio ser humano e as relações deles com aqueles de sua própria espécie e/ou consigo mesmo; esse autor estará fazendo ficção científica SOFT, recorrendo, de tal modo, ao campo das ciências humanas. A Ficção Científica Soft seria aquela que se baseia nas ciências conhecidas como humanas: sociologia, psicologia, antropologia, ciência política, historiografia, teologia, linguística, assim como qualquer tecnologia relacionada a elas. E as Histórias Extrapolativas e Especulativas seriam definidas da mesma forma que para a FC Hard, com a diferença de que trata-se de ciências humanas (SHOEREDER, 1986, P. 09-10). Neste trabalho, poderemos verificar que os escritores de ficção científica brasileira da primeira metade do século XX reportavam-se à eugenia (considerada então uma ciência Hard) para extrapolar mundos futuros diferentes socialmente. Isso ocorre, pois esses escritores tinham interesse na eugenia por seu possível caráter transformador da realidade social, não tendo eles interesse em discutir a epistemologia dessa ciência. Portanto, faziam ficção científica mais soft que Hard. 2.2 Nasce a ficção científica: o moderno Prometeu. Mary Shelley (1797-1851), em Frankenstein ou o moderno Prometeu19, é considerada a primeira autora de ficção científica (ASIMOV, 1984). No livro, o jovem Dr. Frankenstein consegue alcançar aquela que considera a maior das conquistas científicas: criar a vida, ou melhor, dar vida novamente a um corpo 19 Ver: SHELLEY, Mary. Frankenstein: ou o moderno Prometeu. Trad. Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2002. 28 inerte. Nesse caso, uma junção de partes de diversos corpos humanos. O ser resultante é tão vil que provoca terror e repulsa: Quem poderia descrever o quadro de minhas emoções diante de tal catástrofe? Que pintor prodigioso poderia esboçar o retrato do ser que a duras penas e com tantos cuidados eu me esforçara por produzir? Seus membros, malgrado as dimensões incomuns, eram proporcionados e eu me esmerava em dotá-lo de belas feições. Belas?! Oh, surpresa aterradora! Oh, castigo divino! Sua pele amarela mal encobria os músculos e artérias da superfície inferior. Os cabelos eram de um branco imaculado. E, em contraste com esses detalhes, completavam a expressão horrenda dois olhos aquosos, parecendo diluídos nas grandes órbitas em que se engastavam, a pele apergaminhada e os lábios retos de um roxo-enegrecido... Eis que, terminada minha escultura viva, esvaía-se a beleza que eu sonhara, e eu tinha diante dos olhos um ser que me enchia de terror e repulsa (SHELLEY, 2002, p. 59). O monstro literário de Mary Shelley vai diferir radicalmente do vampiro e de outros monstros devido a sua origem, que não é mágica e nem sobrenatural, mas, pela primeira vez, científica. Essa mudança de paradigma está explicitamente presente na própria história: Meu pai não era cientista; sem luzes, portanto, para livrar-me da luta em que me debatia cegamente, tendo por aliada apenas a sede desenfreada de conhecimento. Sob a direção de meus novos mestres, atirei-me, nada mais nada menos, à descoberta da pedra filosofal e do elixir da longa vida. Entre os dois, prevaleceu esse último objetivo. A riqueza era uma finalidade secundária, mas quanta glória haveria de coroar a descoberta que permitisse banir a doença do organismo humano, tornando o homem invulnerável a todas as mortes, salvo a provocada por violência! (SHELLEY, 2002, pp. 43- 44). A fim de alcançar seus objetivos, Frankenstein começa seus trabalhos através da “evocação de espíritos ou demônios”, de forma persistente. Não se importando que suas “bruxarias sempre fracassassem”, ele vivia “misturando mil teorias contraditórias”, sem resultados. Certo dia conhece um naturalista, um homem de grande saber, um cientista, e percebe que os senhores de sua imaginação, Cornélio Agripa, Alberto Magno e Paracelso”20, não poderiam em nada contribuir para ele. 20 Para as referências nesse parágrafo, ver: SHELLEY, 2002, p. 44. 29 A autora marca aqui o abandono da magia e do sobrenatural, Frankenstein passará então à descoberta da eletricidade e do galvanismo21, e a estudar “matemática e os ramos de estudo a ela pertinentes, por estar apoiada sobre sólidos alicerces, sendo assim digna de toda a consideração” (SHELLEY, 2002, p. 45). Esse é o momento em que surge a ficção científica, pois a explicação pretende ser toda racional, dentro do escopo dos saberes científicos socialmente aceitos na época da sua produção. Edgar Allan Poe (1809-1849), no conto Os fatos do caso monsieur Valdemar, recorre à ciência do mesmerismo22 para dar continuidade à vida de um homem que está para morrer. No momento da morte de monsieur Valdemar, seu médico consegue, através do mesmerismo, prolongar sua vida, mesmo que quase vegetativa, na qual ele mal consegue proferir algumas palavras, com as quais deixa claro ter ciência de estar morto. Mas o processo não se alonga por mais de uma semana, e, quando a força magnética (mesmerismo) se esvai, o corpo literalmente se dissolve. Em ambos os textos, de Poe e Shelley, recorre-se a extrapolação da ciência da época a fim de dar vida aos mortos. Nada de magia, apenas ciência. 21 Entre os séculos XVIII e XIX, iniciaram-se as primeiras experimentações com eletricidade. Luigi Galvani, médico italiano, iniciou seus experimentos elétricos em rãs mortas. Ao tratar as pequenas rãs com eletricidade, Galvani conseguia alguns espasmos musculares que ele acreditava serem os primeiros passos para reanimar esses animais. Assim foi criado o termo galvanismo, e logo centenas de clínicas de tratamento elétrico foram abertas em toda a Europa. As clínicas eram procuradas, por exemplo, por quem queria tratar de impotência sexual. Giovanni Aldini, sobrinho de Galvani, em 1803, fez experimentos com o corpo de um condenado enforcado. Com um par de varas eletrificadas, ele fazia com que parte do corpo morto se contraísse, o que levava muitos a acreditarem que o corpo iria ressuscitar. Andrew Ure, químico, industrialista, filósofo e médico escocês, por sua vez, fez experiências em um corpo através de pequenas incisões nas quais introduzia sondas elétricas. Nessas experiências, Ure conseguiu que até os olhos do cadáver se mexessem, além de contorcer o rosto e erguer o braço, fazendo o cientista acreditar que, se o corpo não estivesse tão danificado, ele seria capaz de ressuscitá-lo. Por fim, Konrad Dippel, pensador livre, alquimista e médico, chegou a alegar ter trazido corpos à vida, mas foi perseguido por religiosos, que diziam ser ele o próprio demônio encarnado, e por cientistas materialista, que o acusavam de ser alquimista. Ver: SMANIOTTO, 2010. 22 A ciência do magnetismo foi fundada por Anton Mesmer (1734-1815), um médico cujas primeiras pesquisas versavam sobre os efeitos da gravitação na saúde. Mesmer dizia ser capaz de captar uma energia sutil (o magnetismo) e, através dela, restituir a saúde ao homem. Já em 1772, usava ímã em suas curas energéticas, mas, logo passou a usar apenas as mãos ou água magnetizada. Com ele se cunhou o termo magnetismo animal. Atualmente suas teorias são contestadas e tidas como pseudociência. Ver: SMANIOTTO, 2010. 30 No Brasil, o escritor Machado de Assis também faria uso da ciência no conto O Imortal (1882)23, no qual o filho do imortal revela aos dois cidadãos mais “ilustres de sua vila”, o coronel e o tabelião, as aventuras e angústias de seu pai. É um texto com viés existencialista, a imortalidade, vista muitas vezes como uma bênção, é mostrada pelas amarguras que ela pode trazer ao ser humano. Machado de Assis trata de um dos temas recorrentes na ficção científica, a imortalidade, presente em obras como Os filhos de Matusalém, de Robert Anson Heinlein; em séries populares como Perry Rhodan; e em escritores brasileiros, como por exemplo, na noveleta Quando os humanos foram embora, de Gerson Lodi-Ribeiro. No mesmo conto, Machado de Assis busca dar uma explicação científica para a imortalidade de seu personagem, a qual seria ocasionada por um composto de ervas, ainda que desconhecido, já que o xamã que a revelou ao imortal morre logo depois. No entanto, o imortal cogita levar o composto para uma análise em laboratório da Europa. Há, além disso, diversas referências no conto à “ciência” da homeopatia como princípio explicativo para o composto de ervas. A homeopatia foi criada por Christian Friedrich Samuel Hahnemann, tradutor, médico e estudioso de filosofia por volta de 1790, e até hoje a eficácia dela é debatida por médicos homeopatas e céticos. Machado faz uso de um tema comum à ficção científica: a imortalidade. Ele ensaia uma explicação científica para a causa da imortalidade e faz especulações sobre uma “ciência”, a homeopatia, caminhando, portanto, para explicações científicas. Somando-se a Machado de Assis, na segunda metade do século XIX, um grande número de escritores começou a produzir seus contos inspirados pelo legado e pela forma estipulada por Mary Shelley (1797-1851) em 23 Pode parecer estranho, à primeira vista, colocar Machado de Assis como autor de ficção científica, mas, em seus 205 contos, Machado de Assis escreveu sobre quase tudo, tanto é que seus contos podem ser encontrados em diferentes antologias. Flávio Moreira da Costa incluiu o conto A Cartomante em uma antologia de Contos de Crime (Agir Editora), e o conto A Causa Secreta na antologia Os Melhores Contos de Medo, Horror e Morte (Editora Nova Fronteira). Contos como Conto de Escola e O Apólogo são incluídos em antologias para crianças. Enquanto na série Para Gostar de Ler da Editora Ática diversos contos de Machado de Assis são incluídos em antologias variadas: Histórias Divertidas, Histórias de Amor, Histórias sobre Ética, etc. Uma grande variedade de temas e gêneros. 31 Frankenstein ou o Moderno Prometeu, criando o gênero ficção científica. Entre esses romancistas, encontramos: E. T. A. Hoffmann (1776-1822), Edgar Allan Poe (1809-1849), Nathaniel Hawthorne (1804-1864), Edward Page Mitchell (1852-1927), Robert Ducan Milne (1844-1899), Frank R. Stockton (1834- 1902)24 e Ambrose Bierce (1842-1914)25. Mas foram Júlio Verne, H. G. Wells e Arthur Conan Doyle que se dedicaram quase exclusivamente e criaram os principais temas subsequentes à ficção científica, até então designada por romance de vulgarização científica. Seriam esses autores referências aos trabalhos posteriores dos escritores brasileiros de ficção científica da primeira metade do século XX, e, portanto, dedicar-nos-emos um pouco mais à análise de suas obras. 2.3 Júlio Verne: nasce a ficção científica hard. Júlio Verne inicia sua carreira com a publicação de Cinco Semanas num Balão, em uma coleção patrocinada pelo editor Pierre-Jules Hetzel, que pretendia “publicar uma coleção de livros para a juventude, em que ciências e geografia fossem ensinadas pela ficção, de forma agradável e didática” (CORRÊA, 2005, p. 98). Em Cinco Semanas num Balão26, Verne coloca seus heróis – um inglês, o doutor Samuel Fergusson, seu amigo escocês Dick Kennefy e o empregado Joe – numa aventura de exploração na África, de Zanzibar até o Níger, em um balão. Já em Viagem ao Redor da Lua27, Verne conta a história de três homens, Nicholl e Barbicane (americanos) e Michel Ardan (francês), que se lançam em direção à Lua num “vagão-projétil” de alumínio, impelido por um gigantesco canhão enterrado no solo, o Columbiad. Tudo parte de uma operação empreendida pelos membros do “Clube do Canhão” de Baltimore, que após a guerra civil americana não tinham mais onde empregar seus novos 24 Para conhecer a obra desses autores, recomendamos a coletânea de contos organizada por Isaac Asimov: ASIMOV, Isaac. Lo mejor de la ciencia ficción del siglo XIX. Trad. Domingo Santos e Francisco Blanco. Barcelona/Espanha: Ediciones Martinez Roca S. A., 1983. 25 Para este último autor, recomendamos a coletânea organizada por Isaac Asimov: ASIMOV, Isaac. Histórias de Robôs (Vol. 1). Trad. Milton Persson. Porto Alegre: L&PM, 2005. 26 Usamos para referência a seguinte edição: VERNE, Júlio. Cinco Semanas num Balão. Trad. Otávio de Vasconcelos. São Paulo: M. P., 1965. 27 Usamos para referência a seguinte edição: VERNE, Júlio: Viagem ao Redor da Lua. Trad. Vieira Neto. São Paulo: Hemus, 1971. 32 projetos de engenharia balística. Devido a problemas técnicos, a nave acaba apenas contornando a Lua, mas consegue-se avistar nela água e uma atmosfera. No romance, Verne descreve desde os preparativos da viagem, inclusive a construção do canhão que atiraria o projétil em direção a Lua, até o aparelho que produz oxigênio e retira gás carbônico do ar usado no foguete. Nos dois romances, Verne procura passar ao seu leitor não especulações a respeito de possíveis tecnologias futuras, como vemos na literatura de ficção científica do século XX, mas sim apresentar os conhecimentos científicos de sua época. O crítico literário Roberto de Sousa Causo reconhece esse objetivo: Embora tenha tratado do passado histórico e pré-histórico, e escrito umas poucas narrativas ambientadas no futuro, Verne referia- se ao agora, ao conhecimento fixado pelo homem do século 19. Não importava que falasse de dinossauros ou da Atlântida submersa, sua ficção exsudava uma forte sensação do contemporâneo, integrando- se ao contexto das publicações populares em que seus romances apareciam. Os interesses cotidianos das pessoas do século 19 - viagens, descobertas e feitos científico-aventurescos - eram expandidos e tornados maravilhosos pelas suas viagens extraordinárias; a ciência e a tecnologia vinham impregnar a experiência do homem de então28. 2.4 H. G. Wells: política e sociedade na ficção científica. Herbert George Wells teve grande importância no desenvolvimento da literatura de ficção científica, sendo, possivelmente, o autor mais conhecido do gênero após Julio Verne. Mas, ao contrário de Verne, que sempre se dedicou principalmente à escrita, Wells também foi um pensador social. Como autor de ficção científica, Wells escreveu sobre vários temas que seriam mais tarde centrais nesse gênero literário: a viagem no tempo29, a 28 CAUSO, Roberto de Sousa. VIAGEM EXTRAORDINÁRIA – Ficção científica hard de Verne criou plataforma para a afirmação de autores como Michael Crichton e Willian Gibson, e gêneros como o steampunk e cyberpunk. Revista CULT . São Paulo: Editora Bregantini, Março de 2005. Ano VII, nº 90. p. 59. 29A Máquina do Tempo. [S.T.] Portugal / Mem Martins: Publicações Europa-América, 1992. (Coleção FC-Bolso nº 191). Versão cinematográfica: A Máquina do Tempo (EUA, 2002), Direção de Simon Wells. 33 invasão alienígena30, a manipulação biológica31, a guerra total32 e a invisibilidade33. Para a escritora socialista Beatrice Webb, Wells foi mais que um escritor, tendo sido um filósofo político34. Os Webb consideravam a literatura, como praticada por Wells, um meio indispensável de propagar as ideias socialistas35. H. G. Wells fez uma verdadeira cruzada por uma nova ordem social em mais de 44 romances e livros, além de ensaios e artigos de sociologia e história. 30A Guerra dos Mundos. Trad. Marcos Bagno. São Paulo: Editora Nova Alexandria, 2000. A Guerra dos Mundos (EUA, 1954), Direção de Byron Haskin. 31A Ilha do Dr. Moreau. [S.T.] Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora, 1983. (Coleção Mestres do Horror e da Fantasia). Versão cinematográfica: A Ilha do Doutor Moreau (EUA, 1996), Direção de John Frankenheimer. 32O Alimento dos Deuses. [S.T.] São Paulo: Editora La Selva, 1964. (Coleção Espacial nº 5). Versão cinematográfica: A fúria das feras atômicas (EUA, 1976), Direção de Bert Gordon. Um novo título foi dado na versão cinematográfica. 33 O Homem Invisível. [S.T.] Portugal / Mem Martins: Publicações Europa-América, 1992. (Coleção FC-Bolso nº 190). Versão cinematográfica: Homem Invisível (EUA, 1933), Direção de James Whale. 34 Segundo Beatrice Webb, esposa de Sydney Webb, dois dos mais prolíferos escritores da história do socialismo, H. G. Wells fazia parte de um grupo de escritores ingleses que ela denominava edwardians, juntamente com Arnold Bennett e John Galsworthy. Eram aqueles que podiam ser considerados representantes do romance sociológico. “Gostamos muito dele [H. G. Wells], - é completamente autêntico e todo inventividade, um especulador, uma espécie de jogador, mas completamente consciente de que suas hipóteses não estão comprovadas. Num certo sentido é um romancista estragado pela escrita de romances, mas que no estado atual da sociologia é útil tanto para Grdgrinds como para nós, porque nos fornece generalizações livres que podemos utilizar como instrumentos de pesquisa. E somos-lhe úteis também, porque lhe oferecemos uma enorme quantidade de fatos cuidadosamente peneirados e uma ampla experiência com a administração pública.” (WEBB apud LEPENIES, 1996. Pág. 149). 35Beatrice Webb e Sydney Webb, em uma de suas primeiras e mais conhecidas obras, intitulada Industrial Democracy, rejeitam a ideia de que os trabalhadores pudessem gerir democraticamente suas próprias indústrias sob o socialismo. Afirmavam que os trabalhadores não tinham nem a intenção nem a capacidade de administrar empresas. Segundo eles, na futura democracia industrial socialista, as indústrias seriam controladas por administradores profissionais que, por sua vez, seriam responsáveis perante a população, uma vez que prestariam contas a um parlamento democraticamente eleito, aos governos locais e às cooperativas de consumidores. Rejeitaram também a ideia de que o socialismo implicaria a transferência da propriedade de toda a indústria para o governo nacional. A propriedade deveria ser exercida tanto pelo governo nacional quanto pelas inúmeras pequenas unidades administrativas locais ou regionais. O alcance das atividades de cada empresa e a parcela da população atingida por essas atividades determinariam, segundo eles, o tipo de propriedade em que se enquadraria a empresa. Na obra intitulada A Constitution for the Socialist Commonwealth of Great Britain, propuseram a criação de dois parlamentos distintos, ambos eleitos democraticamente. O primeiro se ocuparia das questões políticas, e o segundo cuidaria dos assuntos econômicos e sociais. Sugeriam também a adoção de um sistema de governos locais, baseados em unidades locais com limites geográficos definidos. Os governos locais se combinariam de várias maneiras para formar unidades administrativas encarregadas de supervisionar e controlar. Ver: LEPENIES, Walf. O Romance Jamais Escrito: Beatrice Webb. In: As Três Culturas. Trad. Maria Clara Cescato. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1996. P. 115-145.) 34 A militância político-social de Wells fez com que ele se aproximasse da Sociedade Fabiana e, mais tarde, torna-se membro dela. Wells via nessa sociedade um meio de lutar contra o socialismo predominantemente acadêmico que imperava então na Inglaterra. Ele defendia um socialismo militante: “Devemos nos associar a alguma organização – falava eu – Devemos realizar coisas... Devemos sair pelas ruas. As pessoas estão desinformadas” (WELLS, 1990, p. 109). Mas, não era objetivo dos fabianos constituir um partido de massa. Contentavam-se em ser um grupo pequeno e seleto, empenhado em educar e preparar a classe média para o socialismo. Uma visão mais perto do socialismo acadêmico que Wells criticava do que com o movimento social de massas que ele esperava ver realizado em terras inglesas. Não tendo encontrado entre os fabianos a recepção esperada para suas ideias, já que os fabianos publicavam grande quantidade de tratados e panfletos denunciando a pobreza e as injustiças que imperavam nos primeiros anos do século XX na Inglaterra, sem, no entanto se empenhar na luta social diretamente, Wells abandonou a Sociedade Fabiana em 1908, passando a fazer severas críticas a essa sociedade. Vejamos as observações de George Ponderove (personagem de um romance de Wells), um socialista disposto a fazer uma carreira de ação política dentro dessa sociedade: Depois de muitos sacrifícios, nós descobrimos o escritório da Sociedade Fabiana, escondido num porão de Clement’s Inn. Entramos e interrogamos um secretário de ar desencorajador que se encontrava em frente ao fogo e que nos questionou com severidade acerca de nossas intenções... — Quantos membros há na Sociedade Fabiana? ... — Cerca de 700... — Como estes aqui? ... — Estes socialistas não têm sentido de proporção – disse ele. — O que você pode esperar deles? (WELLS, 1990, p. 110-111) Vemos, no trecho acima, a preocupação de Wells em tornar a Sociedade Fabiana em um movimento de massa, ao invés do grupo de discussão política, de caráter acadêmico, que Wells identificava nos Fabianos. Não conseguindo ver suas propostas serem aceitas pela Sociedade Fabiana, Wells passou a 35 dedicar-se exclusivamente à escrita (tanto de ficção científica, quanto de artigos com temas sociais e históricos), defendendo uma educação científica entre os socialistas – que eram até então poetas, intelectuais aventureiros, professores e funcionários públicos. Wells participou ativamente dos fóruns da Sociological Society, da qual foi membro fundador em 1903, defendendo suas ideias de reforma social. Em um desses fóruns, em 26 de fevereiro de 1906, ele apresentou uma palestra com o título “The So-Called Science of Sociology”. Nessa conferencia, Wells criticava as pretensões da sociologia de ser uma ciência. Escritor de ficção científica, Wells via no socialismo uma aproximação maior com as literaturas utópicas do que com o realismo científico. Os verdadeiros sociólogos não seriam, então, os acadêmicos que se dedicavam a escrever textos de analise social, mas os escritores que, como ele, projetavam em suas obras imaginárias novas utopias sociais. Seriam, assim, os verdadeiros sociólogos homens como: Platão, Morus, Bacon, Swift, Edgar Allan Poe e até aquele Comte que criara uma utopia ocidental altamente pessoal. Wells tentava literarizar suas reflexões acerca da sociedade, tornando seus romances cada vez mais sociológicos e transformando-os em fonte de propagação de suas ideias socialistas, segundo sua própria concepção de romance: “...o moderno romance... é o único meio com que podemos discutir a grande maioria dos problemas... que o desenvolvimento social atual traz consigo” (WELLS apud LEPENIES, 1996, p. 155). Mais tarde, Wells escreveu um livro, relatando a história mundial, Resumo da História (1920), traduzido em quase todas as línguas, vendeu 2 milhões de exemplares. Dez anos mais tarde, com a colaboração dos biólogos G. P. Wells (seu filho) e Dr. Julian Huxley, escreveu A Ciência da Vida, um vasto manual de biologia para todos os interessados. Escreveu ainda uma volumosa exposição da economia cotidiana, Trabalho, Riqueza e Felicidade da Humanidade (1932). Em um de seus romances mais conhecidos, A Guerra dos Mundos, relata uma invasão marciana e suas consequências para a humanidade, apresentando várias ideias sociais e científicas. O livro é uma crítica ao 36 imperialismo britânico, mas o mito do invasor alienígena criado por ele tornou- se persistente na cultura ocidental, gerando, inclusive, pânico social36. Wells começa seu relato comparando o homem, frente aos marcianos, como simples protozoários: Ninguém teria acreditado, nos últimos anos do século XIX, que este mundo estava sendo observado com atenção e bem de perto por inteligências maiores que a do homem e, no entanto, tão mortais quanto a dele próprio; que os homens, enquanto se ocupavam com diferentes problemas, eram examinados e estudados, talvez tão minuciosamente quanto alguém com um microscópio pode examinar as efêmeras criaturas que pululam e se multiplicam numa gota d’ água. Com infinita satisfação, os homens iam e vinham por este globo cuidando de seus pequenos afazeres, serenos na certeza de seu império sobre a matéria. É possível que os protozoários sob o microscópio ajam do mesmo modo. (WELLS, 2000, p. 11) Em outra parte do livro, um soldado britânico diz que aquilo que estava havendo não era uma guerra, afinal não existem guerras entre humanos e formigas, no geral o ser humano só passa por cima delas, não lhes dando muita atenção. Vez ou outra são, no máximo, um incômodo passageiro do qual logo o homem se livra, exterminando o formigueiro. No relato de Wells os marcianos são cinzentos com tons marrons, tem “olhos negros bem grandes” com grande intensidade, não possuem narinas 36 Wells atingiu seu intento com tamanha destreza que a “Guerra dos Mundos” viria mais tarde a causar pânico e desespero nos Estados Unidos e no Brasil. No dia 30 de outubro de 1938, Orson Welles apresenta na CBS uma adaptação radiofônica da obra homônima de Wells. Mais de um milhão de americanos saem às ruas em pânico, aterrorizados com as supostas notícias que anunciavam uma invasão marciana e a destruição de Nova York. A íntegra da transmissão foi publicada no Brasil. Ver: HOWRAD, KOCB. A Guerra dos Mundos. In: Antologia Cósmica – Primeiros contatos com seres extraterrestres. Fausto Cunha (org.). Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora, 1981. Para uma análise mais aprofundada desse caso, recomendo o livro do jornalista Homero Fonseca, que fez um estudo a respeito em Viagem ao Planeta dos Boatos (Rio de Janeiro, Record, 1996), ou o filme Radio Days (A Era do Rádio), de 1987, no qual Woody Allen mostra diversos episódios interligados __ entre eles a invasão marciana preconizada por Welles __ pela presença constante do rádio, que age poderosamente sobre os membros de uma família judia no bairro do Queens nos anos 30 e 40. O mais estranho é que, em 22 de novembro de 1954, na cidade mineira de Caratinga, a transmissão radiofônica da mesma obra gerou tanto tumulto e foi encarada com tanta seriedade que a Aeronáutica chegou a enviar um grupo de oficiais em um C-47 20-53 para averiguar o acontecido, ao mesmo tempo em que manteve outras aeronaves prontas para o combate. O fato voltaria a se repetir em 30 de outubro de 1971 em São Luís (Maranhão), com outra novelização baseada Wells, chegando mesmo a mobilizar uma esquadrilha da Aeronáutica. Para maiores informações ver: VALIM, Alexandre Busko. Os marcianos estão chegando. Revista de História da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro: Edições Biblioteca Nacional, 2005 (04): p. 64-69. Todos estes casos evidenciam a força da obra de Wells. 37 nem lábios, uma pele lustrosa, sem pelos e uma grande cabeça. Comunicam- se por telepatia. Em vez de mãos e braços, teriam tentáculos, oito de cada lado – fica fácil identificá-los como polvos. Esses seres extraterrestres construiriam máquinas bizarras semelhantes à forma de seu próprio corpo. As máquinas marcianas seriam gigantes mecânicos andando sobre três longas pernas. A parte superior, acima do tripé, teria a forma de disco. Esse “monstro mecânico” ainda possuiria longos tentáculos metálicos. Talvez nada seja mais admirável para um homem do que o curioso fato de estar ausente aquela que é a forma dominante de quase todos os aparelhos mecânicos humanos – a roda está ausente. Em todas as coisas que eles trouxeram para a Terra não há vestígio nem sugestão de que usem rodas. Seria de esperar que surgissem pelo menos na locomoção. E, quanto a isso, é curioso notar que mesmo aqui na Terra a natureza nunca precisou da roda, ou preferiu outros expedientes para seu desenvolvimento. E os marcianos não somente desconhecem (o que é incrível) ou dispensam a roda: em seus aparatos também se faz um uso singularmente restrito do pivô fixo, com os movimentos circulares em torno dele delimitados a um único plano. (WELLS, 2000, p. 151) Esse é um livro de crítica aos valores britânicos que, ao mesmo tempo em que valorizavam a ciência e a tecnologia, condescendiam com o genocídio de um povo considerado inferior. Atribui-se a inspiração para a história às notícias da extinção dos nativos da Tasmânia (Austrália)37 pelos colonizadores ingleses que estabeleceram lá uma colônia penal. Em “A Guerra dos Mundos”, Wells faz com que os britânicos sejam o povo inferior, os nativos da Tasmânia, a serem massacrado por marcianos38 (os próprios britânicos). 37 Entre os anos de 1815 (após a queda de Napoleão) e praticamente até a Primeira Guerra Mundial, os grandes conflitos armados ocorreram distantes da Inglaterra. Eles eram travados nas colônias, ou na periferia da Europa (Guerra da Criméia, 1853), ou não envolviam diretamente a Inglaterra (Guerra Franco-Prussiana, 1870). Wells critica justamente essa posição distante dos Ingleses para com os povos que estavam conquistando, atitude semelhante a dos marcianos, que estavam travando uma guerra tão longe de seu próprio mundo, quanto os ingleses em suas colônias. 38 Na época, o interesse pela existência de outros mundos já se encontrava bastante difundida, embora as pesquisas astronômicas estivessem voltadas para a mecânica celeste e astrometria. Mas em 1877, o astrônomo italiano Giovanni Schiaparelli publicou um artigo notificando a existência de canali na superfície marciana. Nos Estados Unidos, um erro de tradução do italiano para o inglês, disseminou a ideia de que havia um sistema de canais artificiais em Marte. Percival Lowell, defendia a ideia de que havia um sistema de canais com a finalidade de trazer água dos pólos para uma civilização marciana sedenta. Daí, para eles invadirem a Terra atrás de nossa água, era uma questão de tempo. Wells soube usar esse mito muito bem, afinal na época ele era tão difundida quanto as modernas observações de UFOs. Uma história mais detalhada pode ser verificada no livro: A Conquista de Marte de Willy Ley (Rio de Janeiro: Edições Bloch, 1967) 38 Wells questiona, assim, a ideia bastante difundida de que o progresso do conhecimento científico traria consigo progresso também em relação aos valores morais. Não foi o que ocorreu. Já em A Máquina do Tempo, os seres humanos evoluem para as raças “Elói e Morlock”, uma de cientistas que viraram monstros e outra de jovens que parecem viver uma utopia, mas não são nada além de alimento das aberrações. Já em “A Guerra dos Mundos”, Wells afirma que as duas raças de marcianos já foram uma só, provavelmente humanoide, deixando implícito que ela evoluiu artificial e voluntariamente rumo a uma raça de cérebro com tentáculos, mas sem sistema digestivo; e outra que permaneceu humanoide ao resistir a modificar a si própria, mas que acabou virando simples comida dos cérebros com tentáculos. Temos uma evolução dirigida, da engenharia genética, de como os seres inteligentes tomam as rédeas da natureza e de sua biologia, transcendendo sua própria natureza através da ciência. Mas tudo o que fazem é se transformarem em aberrações. Ainda que Wells em outros momentos defenda explicitamente teses eugênicas, pode-se identificar aqui uma crítica ao pensamento eugenista, afinal a evolução artificial gerou monstros, e não humanos perfeitos. Em “Antecipações”, publicado em 1901, Wells defendeu a ideia de um Estado Mundial liderado por uma elite de pessoas cultas e educadas. Essa elite visionária tomaria controle das armas de guerra, pacificaria e unificaria o mundo e criaria uma nova era de prosperidade indefinida, mas nunca uma revolução de proletários. Na contramão de “Antecipações”, em Tono Bungay 39, ele defende o governo da maioria proletária ao invés de um grupo elitista intelectual. Wells foi um intelectual múltiplo, escritor e ensaísta, ora defensor, ora crítico da ciência. Suas ideias políticas variavam entre uma defesa da participação social das massas e uma veneração por uma elite intelectual de governantes esclarecidos, que trariam a paz social e o progresso científico. Democrata, 39 Tono Bungay: Temos nesse livro elementos de ficção científica, tais como a experiência de George com sua máquina voadora e seu destróier, assim como especulações sobre a natureza radioativa do imaginário “quap”. A comédia social é centralizada no tio Edward Ponderevo, ao tentar junto com sua mulher adquirir a etiqueta da nobreza britânica. Já a “novela de ideias” aparece quando Wells comenta e mostra as mudanças sociais e as condições comerciais na Inglaterra. 39 manteve um diálogo particular com Joseph Stalin40, que durou quase três horas, e foi grande admirador dos progressos sociais soviéticos. Wells, pode-se concluir, tentou fazer de sua ficção científica, mais do que literatura de entretenimento, uma sociologia de futuros possíveis. Certamente, ele se via mais como um cientista social do que como um escritor, e tentou tornar suas ideias, ainda que infrutiferamente, parte do programa social da Sociedade Fabiana. Mas, por fim, foi na literatura de ficção científica que encontrou espaço para sua militância política e social em favor de uma nova utopia social. 2.5 Arthur Conan Doyle: em busca de mundos perdidos. O autor britânico Arthur Conan Doyle é conhecido principalmente por ter criado o personagem de literatura policial Sherlock Homes, o qual teve cerca de sessenta histórias escritas por Doyle. Para além de Sherlock Homes, Doyle criou outro famoso personagem: o professor Challenger. É com as aventuras literárias desse cientista que Conan Doyle dará sua contribuição ao gênero de ficção científica. Esse interessante personagem é caracterizado no romance O Mundo Perdido41: Challenger, George Edward. Nasc.: em Largs N.B., em 1863. Educ.: Largs Academy; Universidade de Edimburgo. Assistente no Museu Britânico, 1892. Assistente-Encarregado do Departamento de Antropologia Comparada, 1893. Demitiu-se nesse mesmo ano após acrimoniosa troca de correspondência. Ganhador da medalha Crayston para Pesquisas Zoológicas. Membro estrangeiro de... Sociedade Belga, Academia Americana das Ciências, La Plata, etc. Ex-presidente da Sociedade de Paleontologia. Secção H, British Assotiation... Publicações: 'Algumas observações sobre sobre uma coleção de crânios calmucos'; 'Grandes linhas da evolução dos vertebrados'; e numerosos artigos de revistas, entre os quais: 'O erro de base da teoria de Weissmann', que suscitou calorosas discussões no congresso zoológico de Viena. Distrações favoritas: a marcha a pé, o alpinismo. Morada: Enmore Park, Kensington, West (1982, p. 19). Em “O Mundo Perdido”, o professor Challenger é o cientista de personalidade forte e inflexível, que persegue seus objetivos em busca de 40 Diálogo recentemente publicado no Brasil. Ver: ALTMAN, Fabio (org.). A Arte da Entrevista. São Paulo: Boitempo Editora, 2004. 41 Para efeito deste trabalho, usamos a seguinte edição: DOYLE, Arthur Conan. O Mundo Perdido. Trad. Luiz Horácio da Matta. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982. 40 novos conhecimentos, não importando como isso afeta sua vida pessoal. No romance, o professor Challenger, o aventureiro Lorde John Roxton, o jornalista Ed. Malone e o Prof. Summerlee (este último a serviço da Royal Society a fim de desmascarar Challenger como um possível charlatão) partem em busca de um platô, na Amazônia brasileira, onde possivelmente ainda habitariam feras pré-históricas. Esse platô é inspirado no Monte Roraima, um lugar onde o Professor Challenger descobre feras pré-históricas e até uma raça de homens macacos. Todo o romance é permeado por críticas a uma visão restrita da academia, que na perspectiva do professor Challenger, ou Conan Doyle, seria preconceituosa e limitada, incapaz de lidar com novas descobertas que contrariem seus postulados, e, portanto, levando cientistas mais ousados ao ostracismo. Fig. o1: Monte Roraima: http://www.novastrilhas.com.br/wp-content/uploads/2010/12/foto011.jpg É interessante constatar que Arthur Conan Doyle passou sua vida lutando em vão a fim de que os mesmos cientistas da Royal Society levassem em consideração suas pesquisas espiritualistas e provas da existência de vida 41 após a morte, sendo o professor Challenger uma resposta crítica ao que ele considerava uma limitação da ciência oficial em considerar fenômenos novos42. Mas é em outro romance, “A nuvem envenenada”43, que Doyle, através das falas do professor Challenger, acaba por permear sua obra com elementos de orientação eugenista. Na trama que segue o romance, uma nuvem cósmica com radiação mortal aos seres humanos penetra no sistema solar, levando quase toda a humanidade à morte. O professor Challenger consegue sobreviver com mais alguns companheiros que conhecera durante uma viagem à América do Sul em busca do Mundo Perdido. É através da ciência que ele se livra engenhosamente dos efeitos venéficos da nuvem, e passa a explorar uma Inglaterra deserta à procura de sobreviventes. No romance, conforme os efeitos da nuvem penetram na Terra, há diversas reflexões sobre como algumas raças, devido a sua inferioridade, morrem com mais facilidade, e outras, notadamente brancos europeus, resistem mais tempo aos efeitos da nuvem envenenada. Segundo aquilo que até agora foi possível averiguar, a este primeiro estágio, que varia conforme as raças...as raças menos desenvolvidas foram as primeiras a sucumbir à influência do veneno. Chegaram notícias assustadoras da África, e parece que também os aborígenes da Austrália já foram exterminados. Até agora as raças setentrionais mostraram-se mais resistentes do que as meridionais (Doyle, 1996, pp. 26-27). Como podemos verificar, os romances científicos de Conan Doyle não escapavam de certo pensamento de superioridade racial branca. Mas sua maior contribuição à ficção científica seria a figura do cientista solitário que leva a ciência muito à frente de seu tempo, mesmo que contra os postulados da academia. Esse cientista, por vezes, deve desbravar mundos perdidos, seja em lugares distantes como a Amazônia, ou na própria Inglaterra, ao travar conhecimento com o espiritualismo. Neste segundo capítulo, esperamos ter conseguido dar ao leitor uma visão ampla do que é a ficção científica: sua história e temáticas. Os quatro autores comentados: Shelley, Verne, Wells e Doyle foram os principais autores, 42 Ver: LACASSIN, Francis. Conversar com os mortos ou por que Conan Doyle se tornou espiritualista. Revista Planeta, novembro de 1976, nº 50. pp. 75-88. 43 Para efeito deste trabalho usamos a seguinte edição: DOYLE, Arthur Conan. A Nuvem Envenenada. Trad. Mario Fondelli. Rio de Janeiro: Clássicos Econômicos Newton, 1996. 42 seja por seu pioneirismo ou pela significância histórica e influência literária até os anos quarenta do século XX. Os escritores brasileiros do período em que abarcamos neste trabalho, 1922 a 1949, citam por vezes, em seus próprios textos, esses quatro autores. Em seu estudo Ficção Científica, Fantasia e Horror no Brasil (1875- 1950), o escritor Roberto de Sousa Causo (2003) justamente destaca Doyle, Verne, Shelly e Wells como as referências presentes nos textos de ficção científica brasileira até os anos 1950, pelo menos, visto que esses autores europeus eram traduzidos para o português ou lidos em francês. Já a ficção científica norte-americana só viria a ser melhor conhecida e traduzida após os anos cinquenta. Assim, o poder reformador da ciência, como defende Verne, pode ser identificado nos romances a serem analisados neste trabalho44. Afinal, os eugenistas eram tão seguros no poder de transformação da ciência eugênica, como Verne no progresso humano via tecnologia. O papel do cientista como protagonista dos destinos do homem comum, um sábio para além da compreensão do simples mortal, ou seja, o professor Challenger de Doyle, foi um mito presente em boa parte da ficção científica, o famoso “cientista louco”, capaz de tudo por suas ideias, mesmo que colocando outros em risco. Pode ser identificado com o professor Benson (O Presidente Negro), ou com Mariangela de Albuquerque (a presidente de Sua Excia. a Presidente da República no ano 2500), ou outros cientistas presentes na obra de Berilo Neves, como o Dr. Finemberg (do conto “O Homem Synthetico”). Este último conto trás influencia direta do Frankenstein de Mary Shelley. Já H. G. Wells foi outra influencia duradoura na ficção científica brasileira. Monteiro Lobato escreveu o seu O Presidente Negro “sob certa influencia de Wells” (OTERO, 1987, p. 186). O mesmo Wells é citado por Afonso Schimidt em “Zanzalá” e por Jeronymo Monteiro em “3 meses no Século 81”, sendo assim um dos escritores de maior influência intelectual entre os escritores brasileiros de ficção científica naquele período. 44 Ou seja: O Presidente Negro ou O Choque das Raças (Monteiro Lobato, 1922); Sua Excia. a Presidente da República no ano 2500 (Aldazira Bittencourt, 1929); A Costela de Adão, a Mulher e o Diabo, e Século XXI (Berilo Neves, 1929/1931 e 1934 – respectivamente); Zanzalá (Afonso Schmidt, 1938); 3 Meses no Século 81 (Jerônymo Monteiro, 1949). 43 CAPÍTULO III – Darwinismo, racismo e eugenia. Se no capítulo anterior buscamos compreender o que se entende por ficção científica, neste capítulo buscaremos entender o que caracterizou o pensamento eugênico e suas diferenças em relação a outras formas de racismo. Para tanto, iremos expor brevemente a teoria darwiniana da evolução, seguida por um esboço de alguns tipos de racismos pré-eugênicos, para então mapearmos o surgimento e as principais ideias eugenistas. A biologia antes de Darwin era um exercício de catalogação da vida, em que naturalistas buscavam e encontravam um organismo depois do outro para, então, ordená-los e classificá-los, enviando exemplares, posteriormente, para museus naturais e sociedades zoológicas. Faltava, entretanto, uma teoria que explicasse o grande número de dados obtidos. Havia, lógico, a explicação bíblica da origem da vida e diversas outras tentativas de entender seu processo, inclusive noções evolucionistas: A ciência tinha sido exemplarmente internacional no desenvolvimento dessa doutrina: Kant havia falado na possibilidade de os macacos se tornarem homens; Goethe havia escrito sobre “a metamorfose das plantas”; Erasmo Darwin e Lamarck haviam proposto a teoria de que a espécie evoluíra de formas mais simples pela herança dos efeitos do uso e do desuso... (DURANT, 1996, p. 331). Tanto em Lamarck como em Erasmus Darwin (avó de Charles Darwin e autor do livro Zoonomia), tivemos a elaboração de noções evolucionistas, mas elas ainda careciam de um maior arcabouço teórico e observacional, que seria dado por Darwin. “Não se tratava, aqui, de mera noção vaga de evolução, de espécies superiores evoluindo, de algum modo, de inferiores; mas uma detalhada e ricamente documentada teoria do modo e do processo real da evolução” (DURANT, 1996, p. 332). Charles Robert Darwin nasceu em Shrewsbury em 12 de fevereiro de 1809, membro de uma tradicional família britânica, formada por médicos, profissão que seu pai desejava que ele seguisse. Entretanto, apesar das condições materiais favoráveis, Darwin nunca se encantou pela profissão pretendida por seu pai, passando longo tempo entre caçadas e colecionando besouros. No período em que estudava medicina, interessava-se mais pelas 44 aulas de Ciências Naturais que pela prática médica, cogitando abandonar a medicina pela teologia (DESMOND e MOORE, 2000). Na Universidade, Darwin estabelece amizade com o professor Robert Edmond Grant, com o qual discute as ideias de Lamarck e a evolução das espécies (MESQUITA, 2011). Participou da Plinian Society, onde alunos trocavam experiências sobre suas pesquisas, e nela leu para os sócios seu primeiro artigo, um texto sobre as larvas da Flustra foliácea, que tinham a capacidade de se locomover através de cílios (MESQUITA, 2011). Darwin se mostrou um atento observador da vida natural, mas acabou por se bacharelar em teologia. Em Cambridge, enquanto cursava teologia, conheceu o professor John Stevens Henslow, botânico, com o qual travou longa amizade. Mais tarde, Henslow seria convidado a ser naturalista chefe a bordo do navio HMS Beagle, ofício que recusou, por não querer abandonar suas atividades como professor, e recomendou, para seu lugar, Charles Darwin. Sobre a viagem no Beagle, Darwin escreveu: A viagem no Beagle foi, sem dúvida, o acontecimento mais importante da minha vida e determinou toda a minha carreira. [...] Nessa viagem, tive a primeira formação ou educação verdadeira de minha mente. Fui levado a prestar uma atenção rigorosa a vários ramos da história natural e, com isso, aprimorei minha capacidade de observação, embora ela já estivesse bastante desenvolvida (DARWIN, 2000, p. 66). Nos anos subsequentes a sua viagem no Beagle, em 1836, Darwin se tornou um renomado naturalista. Mas, além da pesquisa em lugares exóticos, Darwin procurava conversar com horticultores e criadores, já que há muito tempo eles procuravam cruzar os animais que gerariam características que desejavam (MESQUITA, 2011). Assim, Darwin teve contato com a seleção artificial, que mais tarde os eugenistas tentariam aplicar aos seres humanos. Até 1º de julho de 1858, ou seja, por cerca de duas décadas, Darwin trabalharia em sua teoria da evolução das espécies. A grande questão que Darwin enfrentava era quanto às variações hereditárias e as condições do ambiente. Inicialmente, Darwin proporia que o ambiente influenciaria no desenvolvimento das variações; mais tarde, entretanto, concluiria que as variações ocorrem ao acaso e são, 45 posteriormente, selecionadas por meio da luta pela sobrevivência. Aquelas variações favoráveis permitem que um indivíduo sobreviva e, portanto, são passadas adiante, enquanto que as não favoráveis dificultam a vida do indivíduo e, desse modo, têm menos chances de serem passadas adiante. Pode-se constatar, então, que a variação ocorre por acaso e, somente depois, pode-se ser selecionada como melhor ou não para o indivíduo. Não há, nesse caso, uma orientação teleológica rumo a um progresso da espécie, mas o domínio do acaso. Nas palavras de Darwin: Como cada espécie tende, pela sequência da progressão geométrica da sua reprodução, a aumentar em número descomunalmente, e os descendentes modificados de cada espécie tendem a multiplicar-se tanto quanto mais diversos costumes e conformações apresentarem, de modo a poderem apoderar-se do maior número de lugares diferentes na economia da natureza, a seleção natural deve tender constantemente a conservar os descendentes mais divergentes de uma espécie qualquer. Resulta que, no decurso seguido das modificações, as pequenas diferenças que caracterizam as variedades da mesma espécie tendem a crescer até chegar ás diferenças mais salientes que caracterizam as espécies do mesmo gênero. As variedades novas e aperfeiçoadas devem substituir e exterminar, inevitavelmente, as variedades mais antigas, intermediárias e menos perfeitas, e as espécies tendem a tornar-se assim mais distintas e melhor definidas. As espécies dominantes, que participam dos grupos principais de cada classe, tendem a dar origem a novas formas dominantes, e cada grupo principal tende sempre a aumentar e, ao mesmo tempo, apresentar características sempre mais divergentes. Mas, como nem todos os grupos podem abrangê- los, os predominantes avançam sobre os predominados (DARWIN, [S.D], p. 442-443). O paleontólogo George Gaylord Simpson (19