unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Câmpus de Araraquara - SP MATHEUS PENTEADO PERSONAGENS DA BOLA: análise argumentativa de crônicas de Nelson Rodrigues sobre futebol ARARAQUARA-SP 2012 MATHEUS PENTEADO PERSONAGENS DA BOLA: análise argumentativa de crônicas de Nelson Rodrigues sobre futebol Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) apresentado ao Conselho de Curso de Letras, da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Bacharel em Letras. Orientador: Prof. Dr. Antônio Suárez Abreu ARARAQUARA – SP 2012 Penteado, Matheus Personagens da bola: análise argumentativa de crônicas de Nelson Rodrigues sobre futebol. – 2012 44 f. ; 30 cm Trabalho de conclusão de curso (Graduação em Letras) – Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras, Campus de Araraquara Orientador: Antônio Suárez Abreu 1. Crônicas brasileiras. 2. Análise do discurso. I. Título. MATHEUS PENTEADO PERSONAGENS DA BOLA: análise argumentativa de crônicas de Nelson Rodrigues sobre futebol Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) apresentado ao Conselho de Curso de Letras, da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Bacharel em Letras. Orientador: Prof. Dr. Antônio Suárez Abreu Data da entrega: 13/11/2012 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientador: Prof. Dr. Antônio Suárez Abreu Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Câmpus de Araraquara Membro Titular: Profª Drª Ana Carolina Sperança Criscuolo Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Câmpus de Araraquara Membro Titular: Profª Drª Marta Maria Pagadigorria Ribeiro Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Câmpus de Araraquara Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Câmpus de Araraquara À “vó Irene” (in memoriam), uma batalhadora que não pôde estar presente nesta ocasião tão feliz. AGRADECIMENTOS À minha família, por todos os momentos (bons e ruins) em minha vida, em especial à minha mãe, Regina, e minha irmã, Iasmin – por me aguentarem em casa – e ao meu pai, Osmar, e minha irmã caçula, Maria Laura, que também estão comigo, apesar de mais distantes; Às professoras da Escola Estadual “Dr. João Pires de Camargo” Suzana, de Português, e Aline, de Matemática, uma por ter me convencido a fazer Letras e a outra por ter me ajudado muito desde a sétima série, principalmente na época dos vestibulares; Aos alunos da 57ª Turma de Letras da UNESP (diurno e noturno), câmpus de Araraquara, pelas coisas boas que me ensinaram e pelas saídas para comer coxinhas, pastéis, crepes, churrascos de sala e pelos convites para demais festinhas. Vocês todos foram demais! Não posso deixar de mencionar o Kadu, a Carol Talge e a Natália Macedo, as primeiras pessoas com quem tive contato e que me ajudaram logo no começo, quando entrei na faculdade pela lista de espera (em pleno mês de maio!!!), nem o Éverton, a Carol Lima, a Isabel, a Dayara e o Thiago, por tantos trabalhos em grupo realizados; Ao regente José Ricardo e a todos os membros do coral “Rairaram”, pela alegria proporcionada a cada ensaio e a cada apresentação. O ano de 2011, em que precisei sair do projeto, me mostrou que aquele ambiente faz muita falta; Ao professor Tom Abreu, por aceitar prontamente a ideia de trabalhar com crônicas de futebol, um assunto que interessa muito a orientando e orientador; À Luciana, grande surpresa de 2011 e amiga para muitos anos mais; Aos funcionários do CRASMA-A (Centro de Referência Ambulatorial de Saúde Mental Adulto de Araraquara), por compreenderem os momentos em que estive pensando em “coisas da faculdade”. À amizade de Priscila, Rebeca e Fernando, que supera as eventuais brigas. “Pergunto: – para nós, o que é o escrete? Digamos: – é a pátria em calções e chuteiras, a dar rútilas botinadas, em todas as direções. O escrete representa os nossos defeitos e as nossas virtudes.” Nelson Rodrigues (1994, p. 179) RESUMO O objetivo deste trabalho é fazer uma breve análise da argumentação empregada por Nelson Rodrigues ao escrever sobre seus “Personagens da Semana” em crônicas de futebol publicadas originalmente em jornais, dando ênfase ao modo como ele busca convencer e persuadir os leitores quanto ao mérito de cada escolha. Nessas crônicas, o autor desenvolve teses trabalhando com humor e mesclando o senso comum com um conhecimento de mundo que vai além do espaço específico do futebol. Palavras-chaves: Crônicas de futebol. Convencimento e Persuasão. Argumentação. RESUMEN El objetivo de este trabajo es hacer un breve análisis de la argumentación empleada por Nelson Rodrigues al escribir sobre sus “Personagens da Semana” [Personajes de la Semana] en crónicas de fútbol publicadas originalmente en periódicos, dándole énfasis a la manera como él intenta convencer y persuadir a sus lectores sobre el mérito de cada elección. En esas crónicas, el autor desarrolla tesis trabajando con humor y mezclando el sentido común con un conocimiento de mundo que va más allá del espacio específico del fútbol. Palabras-claves: Crónicas de fútbol. Convencimiento y Persuasión. Argumentación. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 11 2 ORIGENS DA RETÓRICA 13 2.1 Retórica Antiga 14 2.2 Retórica das Figuras 17 2.3 Retórica Nova 19 3 ANÁLISE DAS CRÔNICAS 20 3.1 “A realeza de Pelé” 20 3.1.1 “Meu personagem do ano” 25 3.2 “Pior para os fatos” 27 3.3 “Sobrenatural de Almeida” 29 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS 32 REFERÊNCIAS 33 ANEXOS 34 ANEXO A – A realeza de Pelé 35 ANEXO B – Meu personagem do ano 37 ANEXO C – Pior para os fatos 39 ANEXO D – Semana de Fla-Flu 41 ANEXO E – Sobrenatural de Almeida 43 11 1 INTRODUÇÃO A cultura brasileira é muito rica, pois contempla praticamente todos os tipos de arte existentes, sendo representada em cada um deles por pessoas de grande talento: Carlos Gomes e Heitor Villa-Lobos, na música; Cândido Portinari e Di Cavalcanti, na pintura; na literatura não se pode deixar de destacar escritores ilustres tanto em prosa, como Machado de Assis e Guimarães Rosa, quanto em verso, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Mello Neto, entre muitos outros. Infelizmente, a maioria dos artistas brasileiros não tem o reconhecimento que merece, o que se deve muito ao fato de as pessoas considerarem bom tudo o que é feito nos países chamados “desenvolvidos”, em detrimento do que pertence aos “países do terceiro mundo”. Durante muito tempo, o Brasil não gozou de nenhum prestígio junto às outras nações, que simplesmente ignoravam o país. Essa situação contaminou os próprios brasileiros, submetendo-os a uma visão distorcida de sua realidade. Uma mudança de estado de espírito só começou em meados do século XX, quando o Brasil passou a se destacar no esporte. Com Adhemar Ferreira da Silva, no atletismo (salto triplo), o país levou a medalha de ouro nas Olimpíadas de Helsinque (1952) e Melbourne (1956), além de ter visto o recorde mundial da modalidade ser quebrado consecutivas vezes. No entanto, o ápice ocorreu pouco tempo depois, com o triunfo no futebol, esporte preferido em todo o território nacional. A conquista da Copa do Mundo de 1958, na Suécia, fez o brasileiro se ver grande e abriu espaço para a alegria dos títulos mundiais do basquete masculino, em 1959 e 1963, além dos outros títulos com a bola nos pés (62, 70, 94 e 2002), que fazem do Brasil o maior vencedor do mundial de futebol. Com o sucesso do futebol entre os brasileiros, a atividade de comentarista passou a ter grande importância, pois estes são formadores de opinião para um assunto sobre o qual milhões de pessoas querem opinar. Nelson Rodrigues, consagrado escritor brasileiro, desempenhou a função de comentarista em uma época em que o aficionado pelo futebol dispunha de poucos recursos para acompanhar o time do coração ou a seleção brasileira. Basicamente, a situação era a seguinte: ou o torcedor comparecia ao estádio para dar apoio a sua equipe ou se via na obrigação de confiar nas informações dadas pelos locutores das rádios ou pelos cronistas esportivos nas páginas dos jornais. Atualmente, jornalistas e ex-jogadores dividem espaço na mídia dando seus “pitacos” sobre a escalação das equipes, o desempenho dos jogadores e técnicos, a participação das torcidas e a atuação dos componentes da arbitragem (para esses foi criada a categoria especial 12 de “comentarista de arbitragem”, desempenhada normalmente por um ex-árbitro). Para discorrer sobre uma partida, os comentaristas contemporâneos possuem vários aparatos tecnológicos, como o replay (repetição da jogada), o tira-teima (usado para ver se um jogador estava em posição de impedimento e, consequentemente, se a jogada foi legal), várias câmeras para captar ângulos diferentes do mesmo lance, além de computadores de última geração para pesquisar sobre jogadores, times ou árbitros desconhecidos. A torcida também se beneficia da tecnologia, já que pode acompanhar pela TV, em tempo real, um jogo disputado no Japão, na China ou na Rússia, sem precisar sair de casa. Entretanto, ficou cada vez mais difícil ouvir ou ler um comentário diferente, inovador, carregado de genialidade como os de Nelson Rodrigues, torcedor apaixonado pelo Fluminense, que detestava os “idiotas da objetividade”. Ele foi um dos maiores responsáveis por essa transição de “complexo de vira- latas”, termo que cunhou, nos anos 50, para a euforia de um Brasil vencedor, habitado por pessoas capazes de superar seus próprios defeitos e as virtudes estrangeiras. Neste trabalho serão analisadas quatro crônicas de Nelson Rodrigues que versam sobre o futebol, reunidas nos livros À sombra das chuteiras imortais e A pátria em chuteiras, organizados pelo jornalista Ruy Castro. Pretende-se observar o modo como o autor destaca pessoas, times ou acontecimentos que julga importantes no decorrer da rodada de algum campeonato e os elege seus “personagens da semana” e examinar as técnicas argumentativas utilizadas, bem como o efeito provocado nos leitores. 13 2 ORIGENS DA RETÓRICA A retórica tem origem judiciária e remonta ao ano de 465 a.C., quando os tiranos foram expulsos da Sicília grega e os cidadãos puderam pleitear direitos sobre os bens que haviam sido tomados. Nesse momento, Córax inicia o estudo de uma “arte oratória” e define a retórica como “criadora de persuasão”, cujo objetivo é argumentar a partir do verossímil e não propriamente do verdadeiro, sem se importar em defender causas ruins. Por manter boas relações com a Sicília, Atenas também adota a retórica para resolver seus conflitos judiciários. Com o siciliano Górgias, surge em Atenas a “retórica literária”, que visa a persuadir o ouvinte por meio de um discurso em prosa eloquente, “uma composição tão erudita, tão ritmada e, por assim dizer, tão bela quanto a poesia” (NAVARRE apud REBOUL, 1998, p. 4). Górgias é um dos precursores do discurso epidíctico (elogio público), sendo o autor do famoso “Elogio a Helena”, no qual utiliza a noção de amor como divindade para inocentar o pivô da Guerra de Troia. A sofística vai se ligar à retórica de maneira mais consistente a partir da contribuição de Protágoras, que estabelece um forte relativismo no campo do conhecimento humano. Para ele, “o homem é a medida de todas as coisas; em outras palavras, as coisas são como aparecem a cada homem; não há outro critério de verdade” (REBOUL, 1998, p. 8, grifo do autor). Sob essa perspectiva, cada pessoa tem sua própria verdade, que pode variar com o passar do tempo e de acordo com as cidades. O discurso dos sofistas se volta apenas para a eficácia persuasiva, para o domínio da arte da palavra e seu objetivo é deixar o adversário sem resposta. A partir disso, houve as primeiras tentativas de organização retórica de que se tem notícia e também Deve-se a eles a idéia de que a verdade nunca passa de acordo entre interlocutores, acordo final que resulta da discussão, acordo inicial também, sem o qual a discussão não seria possível. A eles se deve a insistência no kairós, momento oportuno, ocasião que se deve agarrar na fuga incessante das coisas, ao que se dá o nome de espírito da oportunidade ou de réplica vivaz, e que é a alma de qualquer retórica viva. Sim, todos os elementos de uma retórica riquíssima, que serão encontrados depois, especialmente em Aristóteles (REBOUL, 1998, p. 9). Contrariando a retórica dos sofistas, Isócrates não aceita o ensino automático de procedimentos argumentativos, mas incentiva a reflexão de seus alunos, pois acredita que não basta apenas que os alunos aprendam a técnica sistematicamente, mas é preciso também possuir um dom natural, além de muita prática. O filósofo evita o rebuscamento apregoado pelos sofistas, preferindo um discurso mais claro e objetivo, porém não menos harmonioso e 14 moraliza a retórica ao demonstrar que ela deve defender causas honestas e não buscar a persuasão a qualquer preço. Sobre a palavra, Isócrates (apud REBOUL, 1998, p. 12) afirma ser “a única vantagem que a natureza nos deu sobre os animais, tornando-nos assim superiores em todo o resto”. Ele confere à fala todo o poder sobre o conhecimento humano e define a retórica como princípio geral da filosofia, uma vez que a arte oratória abarcaria a cultura geral. Posição mais crítica sobre a retórica tem Platão, que critica os posicionamentos tanto dos sofistas quanto de Isócrates. Para o discípulo de Sócrates, a retórica não tem o poder descrito pelos sofistas, porque não lida com a verdade nem com a justiça, duas chaves para a conquista da felicidade. A retórica deve servir à dialética, pois essa é considerada a única ciência que estimula o conhecimento “verdadeiro”, ligado não aos homens, mas aos deuses. A divergência entre a sofística e a filosofia de Platão abrirá caminho para Aristóteles elaborar seu próprio conceito de retórica. 2.1 Retórica Antiga A expressão retórica antiga é utilizada para fazer referência ao estudo que Aristóteles desenvolveu em sua Arte Retórica, que serve de base para discussões sobre o tema até os dias atuais (a qualificação como “antiga” se vincula à “Antiguidade Clássica”). Essa retórica se coloca como um bem útil, um mecanismo de defesa contra os maus argumentos e funciona como um meio-termo entre a concepção dos sofistas sobre o poder da palavra e o valor negativo conferido por Platão. Ela não se reduz, diz ele [Aristóteles], ao poder de persuadir (subentendido: ninguém de coisa nenhuma); no essencial, é a arte de achar os meios de persuasão que cada caso comporta. Em outras palavras, o bom advogado não é aquele que promete a vitória a qualquer custo, mas aquele que abre para a sua causa todas as probabilidades de vitória (REBOUL, 1998, p. 24). Para Aristóteles, os “meios de persuasão” que devem ser empregados pelo orador podem ser divididos em três tipos: convencer com provas lógicas, conquistando a adesão do interlocutor pela razão; comover pela afetividade (o oponente é conquistado “pelo coração”); e agradar pela beleza do discurso. Quintiliano foi influenciado por essa intenção de agradar o interlocutor, o que o levou a considerar a retórica como arte do “bem falar”, pois a persuasão poderia ser obtida com expedientes alheios ao discurso retórico. Apesar de apresentar essa 15 diferença, Quintiliano aconselhava seus alunos a ganhar a causa que estivessem defendendo e jamais deixou de admirar e divulgar a retórica antiga. O conhecimento humano é dividido por Aristóteles em três áreas: analítica, sofística e dialética. A analítica abrange os raciocínios científicos, os quais partem de premissas e geram certezas, evidenciam a verdade; no extremo oposto da analítica está a sofística, que utiliza argumentos falsos com o objetivo de enganar o ouvinte; por fim, o filósofo atribui à dialética o status de objeto de estudo da retórica, uma vez que lida com raciocínios prováveis, no campo das crenças e da opinião. A retórica antiga está estruturada em três partes que, na verdade, podem ser consideradas apenas duas: a questão (“quaestio”) é a problematização do tema que será discutido pelos litigantes, uma pergunta cujas respostas possíveis formarão opiniões opostas. A questão se subdivide em tese – geral, abstrata, tanto prática quanto teórica – e hipótese – particular, que leva em consideração as circunstâncias que envolve o caso; as partes do discurso (“oratio”) e do orador (“orator”) podem ser analisadas juntas, pois uma pressupõe a outra. Aristóteles distribui os discursos oratórios em três gêneros, conforme a reação do auditório, os valores que são apresentados e a que tempo se referem (passado, presente ou atual e futuro): o discurso laudatório ou epidíctico serve para exaltar ou censurar alguma coisa, fala do tempo presente e predomina o intuito de agradar para conquistar o auditório; o discurso judiciário ou forense procura acusar ou defender algo do tempo passado sob a dicotomia justo/injusto, levando o auditório a condenar ou absolver; o gênero político visa a aconselhar ou desaconselhar o auditório partindo dos valores de útil ou nocivo. O auditório decide sobre um fato futuro, por exemplo, a sentença sobre um crime exposto pelo discurso judiciário. O discurso oratório na retórica antiga possui quatro etapas: invenção (heurésis), disposição (taxis), elocução (lexis) e ação (hypocrisis). Por se tratar de discursos essencialmente orais, os filósofos latinos acrescentaram uma quinta etapa ao sistema, a memória (memoria), que consiste em decorar o discurso para que nada fosse perdido durante a exposição ao auditório. A invenção se caracteriza pela busca de provas para defender um ponto de vista e é estuda pela tópica, uma disciplina criada por Aristóteles para analisar a invenção na retórica e na dialética e que abrange os lugares (tópoi) da argumentação, definidos por Abreu (2006, p. 81) como “[...] locais virtuais facilmente acessíveis, onde o orador pudesse ter argumentos à disposição, em momento de necessidade”. As provas são basicamente de dois tipos, 16 extrínsecas e intrínsecas. As provas extrínsecas não pertencem à técnica retórica, mas se baseiam em fatos e circunstâncias que são manipulados pelo orador, como testemunhas, opinião de especialistas, juramentos, entre outros. As provas intrínsecas, por sua vez, dependem exclusivamente da retórica empregada pelo orador, são construídas pela argumentação. Esse tipo de prova se subdivide em lógicas – silogismos e exemplos que convencem pela razão – e psicológicas, que persuadem pela emoção. As provas psicológicas utilizam argumentos éticos ou patéticos. Os argumentos éticos dizem respeito à imagem que o orador passa de si mesmo para o auditório, a fim de despertar o sentimento dos ouvintes; os argumentos patéticos se voltam para as paixões do auditório e facilitam a adesão ao orador que consegue despertar boas emoções a seu favor. A disposição se refere à organização das partes do discurso. “Propõe-se o plano, o esquema, o roteiro. O orador se comporta como um general que dispõe os argumentos em ordem de batalha, pois o discurso se compara a uma máquina de guerra” (TRINGALI, 1988, p. 81). Há variações no que diz respeito ao estudo das partes do discurso, no entanto, o gênero judiciário consagrou o modelo apresentado por Tringali (1988, p. 82) composto por exórdio (introdução), proposição (tema), partição (roteiro), narração (descrição), argumentação (apresentação das provas) e peroração (conclusão). A elocução é a etapa que se preocupa com a beleza do discurso e pressupõe qualidades como correção, clareza, adequação e elegância para ser bem realizada. Cícero identifica três estilos oratórios: simples, mais próximo à linguagem corrente e que busca convencer, médio ou temperado, que procura agradar e sublime, ligado aos argumentos patéticos e que pretende comover. Na Idade Média, Dante Alighieri associa esses estilos à poesia, classificando-os a partir de obras de Virgílio: o estilo simples foi chamado de elegíaco, exemplificado com as Bucólicas; o médio passou a cômico, com as Geórgicas; e o sublime se transformou em trágico, baseado na Eneida. A ação é a apresentação do discurso ao público e essência da retórica. Cícero, a despeito do entusiasmo que nutre pela elocução, estima a ação como a finalidade da tarefa retórica. E o próprio Cícero conta que quando se perguntava a Demóstenes qual a parte mais principal da Retórica, sempre respondia que, em primeiro lugar era a ação, em segundo lugar, a ação e ainda, em terceiro lugar, a ação (TRINGALI, 1988, p. 98). Essa etapa compreende a pronunciação, a paralinguística (prosódia e gestualidade) e a preparação. A prosódia se caracteriza por elementos supra-segmentais empregados na fala pelo orador, tais como o ritmo, a intensidade e a melodia. A gestualidade serve para reforçar a 17 comunicação verbal, isto é, realça a carga de emoção utilizada para conseguir a adesão do auditório. Para que a comunicação (verbal e não verbal) tenha pleno êxito, é necessária uma preparação física e psicológica por parte de quem vai proferir o discurso. Defeitos como timidez ou excesso de confiança devem ser corrigidos e qualidades como a liderança devem ser aperfeiçoadas, para que o orador possa transmitir uma boa imagem de si a seus ouvintes. 2.2 Retórica das Figuras A retórica das figuras surge de um processo de redução às figuras de linguagem da chamada retórica clássica, que durante o Classicismo, havia restringido o conceito de retórica apenas à elocução. A retórica das figuras compreende duas fases: no século XVIII, Dummarsais e Fontanier elaboraram uma extensa lista de figuras, com o objetivo de classificá-las e oferecer exemplos de uso. Entretanto, o Romantismo, já no século XIX, não aceitou o método de ensino dessas figuras, por considerarem-no contrário à liberdade do artista (ainda que admirassem as figuras como recurso persuasivo, como propôs Aristóteles). “Repugna-lhes o interminável número de figuras, as disputas classificatórias e, sobretudo, a extravagância dos nomes como anadiplose, antanáclase...” (TRINGALI, 1988, p. 120); a segunda fase surge no século XX sob o nome de “Retórica Geral”, apesar de entender que a única parte que “sobrou” da retórica antiga tenha sido as figuras. Retórica Geral é uma redução da Retórica às figuras e por que se qualifica de geral? Porque define a “função poética da linguagem” pelo uso das figuras. A função poética da linguagem quer dizer a função artística da linguagem, o que acontece quando a linguagem deixa de ser utilitária, um simples meio de comunicação e se converte em fim em fim em si mesma e obriga a atenção fixar-se nela (TRINGALI, 1988, p. 120). Com a definição da linguagem figurada como centro da “função poética da linguagem”, o problema passa a ser a conceituação do termo figura. A primeira distinção que se faz necessária é entre figuras retóricas e figuras estilísticas: “as figuras retóricas possuem um poder persuasivo subliminar, ativando nossa sistema límbico, região do cérebro responsável pelas emoções” (ABREU, 2006, p105), sendo concebidas de maneira similar na retórica antiga; as figuras estilísticas proporcionam forma artística ao discurso, concentrando- se na “emoção estética” (ABREU, 2006, p. 105). 18 É muito difícil precisar o que seria uma figura de linguagem. O mais comum é considerá-la como um desvio da norma, porém, a própria noção de norma é inexata. Tringali (1988, p. 123) diz que “tem razão provavelmente quem diz que a figura é um desvio do contexto, figura é o que foge de determinado contexto, numa determinada época, um modo diferente de dizer menos comum e que vale enquanto brilha, enquanto chama a atenção”. A classificação das figuras é mais uma tarefa complicada a qual muitos estudiosos se dedicaram ao longo de suas vidas. A retórica geral criou um modelo que separa as figuras pelos níveis que afetam (vocábulo/frase e expressão/conteúdo), conforme o quadro abaixo de Tringali (1988, p. 124, grifos meus): Expressão Conteúdo Vocábulo metaplasmo metassemema Frase metataxe metalogismo Abreu (2006) adota uma classificação em quatro grupos não tão específica quanto à apresentada anteriormente, mas que leva em consideração a natureza das figuras. Elas podem ser de som, de palavra, de construção e de pensamento. As figuras de som trabalham com a sonoridade das palavras com o objetivo de facilitar a fixação de trechos do discurso, conferir eurritmia ao texto e produzir efeitos de sentido que agradem ao auditório. São exemplos de figura de som a paronomásia, que aproxima palavras com sons parecidos e sentidos diferentes; e o homeoteleuto, repetição de som no final das palavras. Como figuras de palavra, se destacam a metonímia e a metáfora. A metonímia consiste em tomar uma parte de alguma coisa como se fosse o todo. Pode-se mencionar a cabeça ou peças de roupa para falar de uma pessoa, uma peça para fazer referência a uma máquina e assim por diante. A metáfora é uma figura mais elaborada, por isso se desdobra em cinco tipos: de restauração (“reparo de algo”), de percurso (relativa a “caminhos percorridos”), de unificação (“associação em grupos”), criativas (“algo que é produzido pelo homem”) e naturais (“o homem não controla”). As figuras de construção se referem à coesão e à coerência do texto. As mais comuns são: pleonasmo (repetição voluntária de algo que já ficou evidente), hipálage (transposição de características humanas para seres não humanos), anáfora (repetição de palavra no início das frases), epístrofe (repetição de palavras no final das frases) e concatenação (início de uma frase com a última palavra da frase anterior). 19 Considerando que o intuito da argumentação é ganhar a adesão do auditório para uma tese, as figuras de pensamento assumem papel primordial, pois causam um impacto maior na percepção do interlocutor. A antítese e o paradoxo, unindo frases com sentidos distintos e ideias contraditórias, respectivamente, causam um estranhamento no ouvinte/leitor e o incitam a buscar a verdadeira significação por trás do caos aparente. A alusão procura prender a atenção do auditório por meio de argumentos de autoridade, como especialistas em determinada atividade ou mesmo personagens fictícias conhecidas pelo público. 2.3 Retórica Nova A retórica nova, fruto das pesquisas do professor belga Chaïm Perelman, no século XX, também se apresenta como uma redução da retórica antiga, porque se atém apenas à etapa da busca de provas (invenção). Perelman segue uma evolução que começou com Descartes, no século XVII, que atribuiu valor apenas à analítica (raciocínios científicos), em detrimento da dialética e da retórica, fragmentando a Lógica, e que teve sequência em Kant, ao associar a dialética com a sofística (entendendo que ambas se prestam a enganar) e prestigiando também apenas a analítica. Perelman se opõe a esse racionalismo absoluto e retoma o estudo dos raciocínios prováveis, que constituirão o cerne do que ele chamou de “lógica da argumentação” (dialética), oposta à “lógica demonstrativa” (analítica). A apropriação do nome retórica para renomear o que seria a dialética de Aristóteles se dá pelo fato de ambas as disciplinas pressuporem um auditório. Entretanto, Perelman “[...] pensa num auditório construído pelo argumentador, auditório virtual de leitores. E menospreza o auditório heterogêneo e de baixo nível da verdadeira Retórica” (TRINGALI, 1988, p. 151). 20 3 ANÁLISE DAS CRÔNICAS 3.1 “A realeza de Pelé” Em “A realeza de Pelé”, a tese principal é a de que Pelé foi o destaque da rodada do Torneio Rio – São Paulo, em 1958, e merece ser o personagem da semana. Para defender essa ideia, o autor utiliza como tese de adesão inicial o desempenho do jogador na partida Santos 5 x 3 América, realizada no estádio do Maracanã, no dia 25 de fevereiro. A tese de adesão inicial é um bom expediente auxiliar para quem argumenta, pois “Uma vez que o auditório concorde com ela, a argumentação ganha estabilidade, pois é fácil partir dela para a tese principal” (ABREU, 2006, p. 46). A tese de adesão inicial aqui apresentada se baseia em um fato: os quatro gols que Pelé marcou na referida partida contra o América. “Sozinho, liquidou a partida, liquidou o América, monopolizou o placar” (RODRIGUES, 1993, p. 43), como sintetiza o cronista. Para convencer o auditório, Nelson Rodrigues lança mão de argumentos quase lógicos, que “[...] pretendem certa força de convicção, na medida em que se apresentam como comparáveis a raciocínios formais, lógicos ou matemáticos” (PERELMAN; OLBRECHTS- TYTECA, 1996, p. 219). O primeiro deles é mostrar que a tese de adesão inicial apresentada é compatível com a tese principal, isto é, os quatro gols marcados por Pelé o credenciam a ser o personagem da semana. Outro argumento quase lógico é a definição expressiva de “realeza”, característica atribuída a Pelé por Nelson Rodrigues. Para ele, realeza “[...] é, acima de tudo, um estado de alma” (RODRIGUES, 1993, p. 42). Pelé é chamado de rei (o que se tornaria clássico no mundo todo) porque “leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: – a de se sentir rei, da cabeça aos pés” (RODRIGUES, 1993, p. 42). A superioridade de Pelé sobre os outros jogadores é confirmada por ele mesmo ao afirmar ser o melhor meia e o melhor ponta do mundo, fazendo com que o autor o projete como “o maior de todas as posições” (RODRIGUES, 1993, p. 43). Além dos argumentos quase lógicos, Nelson Rodrigues também utiliza argumentos fundamentados na estrutura do real, os quais “[...] não estão ligados a uma descrição dos fatos, mas a pontos de vista, ou seja, a opiniões relativas a ele” (ABREU, 2006, p. 58-59). Dentre os vários tipos de argumentos fundamentados na estrutura do real que existem, Nelson trabalha principalmente com dois: a argumentação pelo exemplo, ao estabelecer a confiança de Pelé no próprio talento como parâmetro para os jogadores da seleção brasileira, que disputaria a Copa do Mundo da Suécia, em 1958; e a argumentação pelo antimodelo, 21 empregada no momento em que é lembrado o fracasso do Brasil contra a Hungria na Copa do Mundo anterior, em 1954, na Suíça (jogo que ficou conhecido como “A batalha de Berna”, pela violência dentro e fora do campo). Segundo o autor, o time entrou em campo com medo do adversário, demonstrando excessiva humildade, transfigurada na chamada “alma dos vira- latas” (RODRIGUES, 1993, p. 44). Para dar maior visibilidade ao desempenho de Pelé contra o América, Nelson Rodrigues utiliza recursos de presença, que ajudam o auditório a entender a dimensão que o cronista quer dar ao jogo. Primeiro, ele traz toda a indignação de “um americano doente” por meio da citação “Vá jogar bem assim no diabo que o carregue!” (RODRIGUES, 1993, p. 43), ilustrando o efeito que Pelé produziu no adversário; em seguida, descreve de forma lírica a jogada de um dos gols de Pelé, desde o momento em que ele recebeu a bola até a finalização (depois de driblar vários adversários), enfatizando o talento individual do jogador, com “[...] essa plenitude de confiança, de certeza, de otimismo, que faz de Pelé o craque imbatível” (RODRIGUES, 1993, p. 43). Para persuadir os leitores, Nelson Rodrigues tem em mente o medo que os brasileiros sentem de uma nova decepção em Copas do Mundo. Em 1950, no mundial realizado aqui no Brasil, a seleção perdeu o título na última partida do quadrangular final, contra o Uruguai, quando só bastava um empate para garantir o título inédito. Em 1954, na Suíça, a derrota para a Hungria foi referida na própria crônica. Esse medo é uma emoção disfórica que compunha a personalidade do povo brasileiro naquele momento. Contrabalanceando esse medo, Nelson Rodrigues deposita em Pelé a esperança de melhor sorte na Copa que seria disputada dentro de poucos meses. Essa é a emoção eufórica que Nelson quer incutir em seus leitores, por conseguinte, em toda a população. O futebol é um valor ligado ao sensível das emoções eufóricas humanas, servindo para o desfrute dos torcedores. No Brasil, entretanto, sabemos que esse esporte ganha uma conotação mais importante durante a disputa de uma Copa do Mundo, pois acaba sendo o principal fator de união nacional, seja na alegria pela conquista ou na tristeza pela derrota. Ao projetar as qualidades de seu personagem da semana para a seleção brasileira, Nelson Rodrigues não só coloca Pelé como exemplo para os outros, mas como o símbolo de como deve ser um jogador de futebol. Configura-se, portanto, o uso do lugar de essência, o qual “[...] valoriza indivíduos como representantes bem caracterizados de uma essência” (ABREU, 2006, p.90). É interessante ressaltar que essa representação ganhou tanta importância que acabou ultrapassando as linhas do campo e chegou a diferentes atividades profissionais, 22 desportivas ou não. “Pelé” se transformou em adjetivo qualificador para “o melhor” em alguma coisa. Sendo assim, não é difícil se deparar com frases como “Roberto Carlos é o Pelé da música”, “Ayrton Senna foi o Pelé das pistas de fórmula um”, ou ainda um elogio para um vendedor ao dizer que “Fulano é o Pelé das vendas”. Logo no início da crônica, Nelson Rodrigues utiliza a fala de um amigo, Albert Laurence, que compara o jovem Pelé a um antigo zagueiro da seleção brasileira, Domingos da Guia, que, embora atuasse na defesa, é tomado como modelo de jogador de futebol bem- sucedido. As características de Domingos da Guia são transferidas e adaptadas a Pelé, que atuava no ataque. Dentre as técnicas persuasivas trabalhadas por Nelson Rodrigues, as figuras retóricas têm papel de destaque, pois são as mais exploradas pela criatividade do autor. Segundo Abreu (2006, p. 105-106), As figuras retóricas possuem um poder persuasivo subliminar, ativando nosso sistema límbico, região do cérebro responsável pelas emoções. Elas funcionam como cenas de um filme, criando atmosferas de suspense, humor, encantamento, a serviço de nossos argumentos. [...] Podemos dividir as figuras retóricas em quatro grupos: FIGURAS DE SOM, DE PALAVRA, DE CONSTRUÇÃO e DE PENSAMENTO. As figuras de som, formadas por jogos de palavras estabelecidos por meio da sonoridade, são amplamente utilizadas na poesia e na música, pois ajudam a dar ritmo ao texto, além de realçar determinado elemento. Na crônica aqui analisada, Nelson Rodrigues utiliza a paronomásia para produzir humor. Primeiramente, comentando sobre a convicção de Pelé, que se considera o melhor jogador em mais de uma posição, Nelson diz que “Em outro qualquer, esse desplante faria rir ou sorrir” (RODRIGUES, 1993, p. 42, grifos meus), o que evidencia o fato de que a situação seria ridícula, se o jogador em questão não fosse seu personagem da semana; mais adiante, já terminando a descrição de um dos gols de Pelé, o cronista afirma que “Não existia uma defesa. Ou por outra: – a defesa estava indefesa (RODRIGUES, 1993, p. 43, grifos meus). Esse recurso produz para o auditório a imagem exata da impotência em que se encontrou o time do América ao tentar neutralizar as ações de Pelé. Por mais que os adversários se esforçassem, tornaram-se figuras inofensivas, por isso fracassariam em seu principal objetivo, que era proteger a própria meta das investidas do Santos. Como figuras de palavras, Nelson Rodrigues explora metáforas e faz bom uso da metonímia, ao falar dos adversários do Brasil. “Na Suécia, ele [Pelé] não tremerá de ninguém. 23 Há de olhar os húngaros, os ingleses, os russos de alto a baixo (RODRIGUES, 1993, p. 43)”. É evidente que Nelson está se referindo a todas as seleções classificadas para o mundial de 1958, porém, o destaque desses três times não é aleatório: a Hungria trazia o “fantasma” da derrota na Copa de 1954, embora contasse com poucos jogadores remanescentes daquela campanha; a Inglaterra havia vencido a seleção brasileira em 1956 por 4 x 2, no estádio de Wembley, mostrando um futebol muito superior. Infelizmente, os ingleses enfrentaram uma tragédia que abalou o país, em 1958, às vésperas do mundial: o avião que levava a delegação do Manchester United de Munique, na Alemanha, de volta para a Inglaterra, caiu, matando várias pessoas. Uma das jovens revelações do futebol inglês, Tommy Taylor1, estava entre as vítimas fatais; a União Soviética era conhecida por ter uma sólida defesa, encabeçada pelo goleiro Lev Yashin, o “Aranha Negra”, reconhecido como um dos melhores da posição em todos os tempos. De fato, o Brasil enfrentou a Inglaterra e a União Soviética pela primeira fase da Copa de 1958. Empatou sem gols com os ingleses e venceu os soviéticos por dois a zero2. As metáforas são mais variadas no texto e dão vazão ao espírito criativo de Nelson Rodrigues. Ele inverte a “metáfora do conserto”, cuja noção é de reparação de algo que foi danificado, ao afirmar que “[...] sem passar a ninguém e sem a ajuda de ninguém, ele [Pelé] promoveu a destruição minuciosa e sádica da defesa rubra” (RODRIGUES, 1993, p. 43). O autor também adapta a “metáfora biológica”, que busca representar o homem como animal para salientar alguma característica, quando mostra a submissão e a fragilidade de todas as figuras envolvidas na partida diante de Pelé dizendo que ele “[...] acaba intimidando a própria bola, que vem aos seus pés com uma lambida docilidade de cadelinha” (RODRIGUES, 1993, p. 43). Já no fim da crônica, o autor retoma o comportamento excessivamente humilde da seleção brasileira, que prejudicava o rendimento do time em campo, com a seguinte frase: “Com Pelé no time, e outros como ele, ninguém irá para a Suécia com a alma dos vira- latas”(RODRIGUES, 1993, p. 44). Esse pensando reitera a tese de que o comportamento de Pelé deve ser o exemplo para todos, a fim de evitar os insucessos de 1950 e 1954. As figuras de construção trabalhadas na crônica são pleonasmo, hipálage e anáfora. O pleonasmo é mais conhecido como vício de linguagem, por se tratar de uma repetição de algo 1 Nelson Rodrigues homenageou Tommy Taylor na crônica “Vestido de Fogo”, publicada em Manchete Esportiva, no dia 15/02/1958. 2 Pelé não disputou os dois primeiros jogos do Brasil na Copa de 1958 (Brasil 3 x 0 Áustria e Brasil 0 x 0 Inglaterra), por opção do técnico Vicente Feola. 24 que já está explícito, entretanto, quando criado conscientemente, permite reforçar uma ideia. Em dois momentos, Nelson Rodrigues quer destacar características importantes de Pelé: sua pouca idade (contraposta à idade do próprio cronista) – “Examino a ficha de Pelé e tomo um susto: – dezessete anos! Há certas idades que são aberrantes, inverossímeis. Uma delas é a de Pelé. Eu, com mais de quarenta, custo a crer que alguém possa ter dezessete anos, jamais” (RODRIGUES, 1993, p. 42); e seu talento individual (em oposição ao que se convencionou chamar de “futebol solidário”, com a participação de todos em cada jogada) – “[...] sem passar a ninguém e sem a ajuda de ninguém [...]” (RODRIGUES, 1993, p. 43, grifos meus). A hipálage, figura que dá características humanas a seres não humanos, é usada no momento em que Nelson afirma que “[...] até uma cambaxirra sabe que Pelé é imprescindível na formação de qualquer escrete” (RODRIGUES, 1993, p. 43), isto é, a opinião pública era extremamente favorável ao jogador. A anáfora, recurso utilizado para a remissão textual, reforça a já mencionada ideia da versatilidade Pelé, no trecho “[...] o fabuloso craque põe no que diz uma tal carga de convicção, que ninguém reage e todos passam a admitir que ele seja, realmente, o maior de todas as posições. Nas pontas, nas meias e no centro, há de ser o mesmo, isto é, o incomparável Pelé” (RODRIGUES, 1993, p. 42-43). A antítese é a figura de pensamento utilizada por Nelson Rodrigues para ilustrar o comportamento da seleção brasileira na Copa de 1954: “Enquanto os húngaros erguem o rosto, olham duro, empinam o peito, nós baixamos a cabeça e quase babamos de humildade” (RODRIGUES, 1993, p. 43-44). A comparação entre a atitude dos adversários e a dos nossos jogadores demonstra que havia um problema grave que precisava ser corrigido para o mundial de 1958. Outras figuras de pensamento encontradas na crônica são a alusão e o paradoxo. A alusão, “[...] uma referência a um fato, a uma pessoa real ou fictícia, conhecida do interlocutor” (ABREU, 2006, p. 132), aproxima o futebol da literatura, matéria em que Nelson Rodrigues se destaca. São mencionados o “Rei Lear”, personagem da peça homônima de William Shakespeare, e o “imperador Jones”, que também é personagem-título de uma peça teatral, de Eugene O’Neill. A outra alusão feita pelo cronista, na sequência das citadas anteriormente, é “etíope”, uma referência autointertextual de Nelson Rodrigues, pois retoma o epíteto “príncipe etíope de rancho”, usado para representar o jogador Didi. A despeito das outras figuras de pensamento, o paradoxo assume a posição mais importante no texto, pois resume a ideia central do autor acerca de Pelé. São duas situações que se opõem ao que é apregoado pelo discurso do senso comum, causando no leitor a 25 sensação de maravilhamento, “[...] capacidade de voltar a se surpreender com aquilo que o hábito vai tornando comum” (ABREU, 2006, p. 32). Segundo o senso comum, é preciso ter muita experiência em uma atividade para atingir o sucesso, no entanto, com apenas dezessete anos, Pelé se impõe perante seus colegas de time, todos mais experientes que ele. Nelson Rodrigues também inverte a noção de “virtude” que o senso comum admite. Ele diz sobre Pelé que “[...] sua maior virtude é, justamente, a imodéstia absoluta” (RODRIGUES, 1993, p.43), mesmo sabendo que a imodéstia é considerada como desrespeito, falta de educação. Essa atitude é plenamente justificável quando se compara o comportamento de Pelé com o da seleção brasileira em 1954, pois, assim, a “imodéstia absoluta” do personagem da semana passa a ser o antídoto ideal para a humildade vivenciada pelo time até aquele momento. 3.1.1 “Meu personagem do ano” Devido à conquista inédita do título da Copa do Mundo de 1958, na Suécia, o jornal Manchete Esportiva lançou uma edição especial em janeiro de 1959, contendo uma crônica de Nelson Rodrigues que buscava eleger o principal jogador daquela seleção, o qual seria alçado à categoria de seu “personagem do ano”. O cronista, embora tivesse diante de si uma missão reconhecidamente difícil, em virtude da qualidade técnica da equipe e do bom futebol apresentado no Mundial, optou por Pelé, escolha que se transformou na tese principal defendida pelo texto. Como tese de adesão inicial, Nelson Rodrigues se baseia em uma presunção, pois considera o jogador “um gênio indubitável” (RODRIGUES, 1994, p. 53). Nesse ponto, utiliza o lugar de essência para reforçar a genialidade de Pelé, comparando-o a Michelangelo (a quem Nelson se refere pela forma aportuguesada Miguel Ângelo), Homero e Dante Alighieri, que representam a essência de um indivíduo genial, seja nas artes plásticas, caso de Michelangelo, ou da literatura, como Homero e Dante. Nelson Rodrigues recupera duas noções apresentadas na crônica “A realeza de Pelé”, analisada anteriormente: a de que Pelé representa a essência do jogador de futebol, ao aprofundar a comparação com Michelangelo e com as pessoas “comuns”, dizendo que “[...] assim como Miguel Ângelo é o Pelé da pintura, da escultura, Pelé é o Miguel Ângelo da bola. Um e outro podem achar graça de nós, medíocres, que não somos gênios de coisa alguma, nem de cuspe à distância” (RODRIGUES, 1994, p. 53); e o paradoxo sobre a pouca idade do jogador versus seu papel de destaque perante os outros jogadores, reiterado pela alusão aos filmes da atriz francesa Brigitte Bardot, censurados a menores de idade, e pela oposição ao discurso do senso comum nos anos 50 sobre os adolescentes de dezessete anos, que estariam 26 “quebrando vidraça, ou jogando bola de gude, ou raspando perna de passarinho com canivete” (RODRIGUES, 1994, p. 53). Mais adiante, a “realeza de Pelé” também é retomada pelo cronista, entretanto, aparecendo transfigurada na menção a Gustavo V, rei sueco. Mais uma vez o discurso do senso comum é desconstruído, pois o jovem Pelé deixa para trás os jogos de cartas e os gibis (que seriam mais condizentes a sua idade) e consegue ter uma “experiência real”. Nesse ponto, Nelson Rodrigues faz uma alusão a Luís de Camões, grande escritor da língua portuguesa, para mostrar que a saudação do rei Gustavo a Pelé foi um momento épico. O convencimento buscado por Nelson Rodrigues em “Meu personagem do ano” se baseia principalmente em argumentos fundamentados na estrutura do real. O comportamento dos brasileiros na volta da seleção ao país depois da conquista da Copa do Mundo é considerado um antimodelo, pois o autor não concorda com “[...] os descontentes, os fartos, os saturados” (RODRIGUES, 1994, p. 54). Nota-se uma antítese entre a tristeza profunda provocada pela derrota em 1950 – “nação que quase toma formicida” (RODRIGUES, 1994, p.54) – e o “hábito instantâneo à glória jamais imaginada” (RODRIGUES, 1994, p. 54) que recaiu sobre os brasileiros após o triunfo em 1958. Embora Nelson reconheça que “o brasileiro é assim mesmo” (RODRIGUES, 1994, p. 54), sua insatisfação é tanta que, ao empregar o recurso de presença da citação “Estão exagerando! Já é demais!” (RODRIGUES, 1994, p. 54), ele utiliza uma metáfora biológica, comparando a fala dos torcedores ao rosnar dos cães. Em oposição à perda precoce de entusiasmo por parte dos brasileiros e à insistência do senso comum em afirmar que “Pelé não pode ser craque! Com dezessete anos, ninguém pode ser craque!” (RODRIGUES, 1994, p. 54), o cronista coloca a reportagem da revista francesa Paris-Match como exemplo para o Brasil, apesar das ressalvas feitas aos exageros cometidos na publicação acerca de homenagens que Pelé não recebeu. O brasileiro, no entanto, é representado com um comportamento diferente, ao que Nelson chama de “[...] gratidão amarga e quase ressentida” (RODRIGUES, 1994, p. 54). A partir dessa constatação, o autor estabelece um paralelismo formal entre “mas o brasileiro é assim mesmo” – imediatamente após vencer a Copa – e “mas é que o brasileiro não é disso” (RODRIGUES, 1994, p. 54) – ao discorrer sobre a ingratidão da população. No fim da crônica, Nelson Rodrigues aproveita esse comportamento do brasileiro para sintetizar sua opinião sobre Pelé e persuadir o auditório, utilizando um argumento definitivo para caracterizar o jogador: “um Pelé é inesquecível/Pelé é imortal” (RODRIGUES, 1994, 27 p.55), o que se configura no uso do lugar de qualidade, pois potencializa a noção de jogador raro já referida n“A realeza de Pelé”. 3.2 “Pior para os fatos” Para analisar a crônica “Pior para os fatos”, é necessário levar em consideração que Nelson Rodrigues utiliza o recurso da autointertextualidade, uma vez que faz referência ao texto “Semana de Fla-Flu”3, publicado pelo jornal O Globo, três dias antes. Nessa crônica, Nelson aposta na vitória do Fluminense sobre o Flamengo, na final do Campeonato Estadual do Rio de Janeiro de 1963, chegando a dizer que “O profeta já anunciou: - ‘Fluminense, campeão de 63!’” (RODRIGUES, 1993, p. 106); entretanto, a partida terminou empatada em 0 x 0, resultado que deu o título ao Flamengo. Diferentemente das crônicas anteriores, o objetivo de Nelson em “Pior para os fatos” não é eleger um personagem propriamente dito, mas demonstrar ao auditório que o Fluminense mereceria o título de campeão estadual daquele ano, sendo essa a tese principal do texto. A tese de adesão inicial empregada pelo cronista é baseada na presunção (embora tenha classificado o feito como “verdade límpida e total” de que o “[...] o Fluminense jogou mais!” (RODRIGUES, 1993, p. 107) e é compatível com a tese principal. Para ilustrar esse argumento quase lógico, Nelson Rodrigues descreve duas oportunidades de gol desperdiçadas pelo Fluminense, fazendo alusão a duas personagens históricas e uma fictícia (criada a partir de uma personagem bíblica) para dar maior visibilidade aos lances: Nelson se coloca em pé de igualdade com Maomé, grande profeta para o Islamismo, Moisés, personagem do filme Os Dez Mandamentos (The Ten Commandments), do diretor Cecil B. de Mille, e Joana D’Arc, francesa queimada em praça pública, no século XV, por supostas práticas de bruxaria, ao afirmar que nenhum desses profetas seria capaz de prever os erros e a falta de sorte do Tricolor. Na primeira jogada mencionada, Escurinho “[...] deu a bola na bandeja como se fosse a cabeça de são João Batista” (RODRIGUES, 1993, p. 107), metáfora utilizada para evidenciar a ineficiência do chute desferido contra a meta do Flamengo; em seguida, o mesmo Escurinho acertou uma bola na trave do adversário, levando o autor a concluir que “[...] nenhum gol foi tão merecido” (RODRIGUES, 1993, p. 107). Outro fator que chamou a atenção de Nelson Rodrigues durante o Fla-Flu foi a proposta de jogo excessivamente defensiva do técnico flamenguista Flávio Costa, “[...] que 3 Texto completo no Anexo D. 28 armou o time para o hediondo 0 x 0” (RODRIGUES, 1993, p. 108). O cronista utiliza um recurso de presença para justificar seu posicionamento ao relembrar que esse sistema de jogo do rubro-negro já havia sido empregado na partida anterior, contra o Bangu, em que o jogador Oldair teria marcado dois gols “por indisciplina tática” (RODRIGUES, 1993, p. 108). É importante salientar que Nelson antecipa e utiliza em favor de sua linha de raciocínio a negação de Flávio Costa sobre a “retranca” do Flamengo – “Dirá o próprio que não foi esta a sua intenção” (RODRIGUES, 1993, p. 108) –, empregando, dessa forma, o argumento da retorsão. À parte da tese principal defendida pelo texto, Nelson Rodrigues reconhece a importância da torcida do Flamengo, vista como verdadeira merecedora do título, ao invés do próprio time. Mais uma vez o cronista recorre a um recurso de presença para ilustrar a argumentação, porém com elementos novos: o “crioulão” que passou por Nelson é a representação metonímica de milhões de flamenguistas que contagiavam a cidade do Rio de Janeiro com sua alegria. A caracterização do torcedor se dá pela alusão a São Sebastião (cuja imagem é retratada com o corpo seminu atingido por flechas); pela metáfora biológica da “baba elástica e bovina”, recorrente nas crônicas do autor; e pela menção ao vampiro Conde Drácula, personagem da obra homônima de Bram Stoker, que é tomado como a essência da maldade por Nelson Rodrigues para evidenciar o fato de que a alegria daquela torcida poderia tocar os sentimentos de todos. O tamanho dessa alegria não pode ser medido, por isso Nelson a identifica com metáforas de fenômenos naturais – “alegria que ensopa, que encharca, que inunda a cidade” (RODRIGUES, 1993, p. 108, grifos meus). A escolha de Marcial, goleiro do Flamengo, como personagem da semana é apenas uma estratégia para ratificar o bom desempenho do Fluminense. Nelson Rodrigues deixa clara sua intenção ao afirmar “[...] que nessa escolha, está dito tudo. Quando o goleiro é a figura mais importante de um time, sabemos que o adversário jogou melhor” (RODRIGUES, 1993, p. 108), contrapondo seu personagem ao goleiro Castilho, do Fluminense. Na sequência, Nelson instaura um paradoxo interessante: enquanto a maior parte dos discursos se prende aos fatos como forma de demandar credibilidade, o texto aqui analisado contraria esses fatos, buscando persuadir o auditório por meio da inversão do lugar do existente. Segundo Abreu (2006, p. 92), “[...] o lugar do existente dá preferência àquilo que já existe, em detrimento daquilo que não existe”. Na leitura de Nelson Rodrigues sobre a final do Campeonato Estadual do Rio de Janeiro de 1963, o fato de o Flamengo haver conquistado a taça não é mais importante do que o título “profetizado” anteriormente, que não aconteceu. 29 3.3 “Sobrenatural de Almeida” Seguindo o ponto de vista de que os fatos não são primordiais na análise dos jogos de futebol, Nelson Rodrigues criou Sobrenatural de Almeida, um fantasma que traz em si o fator imponderável que permeia esse esporte. A tese principal defendida pela crônica é a de que esse personagem era o principal destaque do “Robertão4”, em 1968, por conta de situações supostamente inexplicáveis que aconteceram em alguns jogos, naquele torneio. Como tese de adesão inicial, Nelson faz alusão a Horácio, personagem da peça teatral Hamlet, de William Shakespeare, com a famosa frase “há mais coisas entre o céu e a terra do que supõe a nossa vã filosofia”, presumindo que o mistério seja próprio da vida. Por meio de um argumento fundamentado na estrutura do real – a analogia – Nelson aproxima esse mistério dos clubes de futebol, primeiro o Flamengo e depois o Botafogo: Se Horácio fosse torcedor rubro-negro diria a mesma coisa, por outras palavras: - “Há coisas na vida do Flamengo que só o Sobrenatural de Almeida explica”. [...] Não há clássico e não há pelada sem um mínimo de absurdo, sem um mínimo de fantástico. Por exemplo: - o que está acontecendo com o Flamengo. E não só com o rubro-negro. Com o Botafogo também (RODRIGUES, 1994, p. 138). A fim de conquistar maior credibilidade para Sobrenatural de Almeida, Nelson Rodrigues narra sua história, aproveitando para questionar o papel da imprensa brasileira. O personagem era tratado com indiferença pelos jornais, que “o sepultavam num cavo silêncio” (RODRIGUES, 1994, p. 138), metáfora que lança mão de elementos do frame da sepultura (“esquecimento”, noção de “término”) para corroborar a afirmação de que “o mistério pertence ao futebol” (RODRIGUES, 1994, p. 138). A metáfora do claro-escuro utilizada na frase “Mas, enquanto o esqueciam, o torpe indivíduo agia na sombra” (RODRIGUES, 1994, p. 138) trabalha com o frame de sombra (“obscuridade”, “impalpabilidade”) para demonstrar que a ação de Sobrenatural de Almeida era feita de forma oculta. A narrativa é construída a partir de figuras retóricas que visam a persuadir o auditório sobre os malefícios que esse personagem oferece às equipes de futebol e apresenta uma tese secundária defendida pelo texto: Nelson Rodrigues conclui que o sentimento de “horror aos 4 O Torneio Roberto Gomes Pedrosa (também chamado de Taça de Prata, a partir de 1968) foi disputado entre 1967 e 1970 e precedeu o atual Campeonato Brasileiro. Em 2010, a CBF unificou os títulos nacionais (Taça Brasil, Torneio Roberto Gomes Pedrosa, Copa União, Copa João Havelange e Campeonato Brasileiro), definindo-os como Campeonato Brasileiro (PESSANHA, 2010). 30 homens e aos clubes” (RODRIGUES, 1994, p. 139) que Sobrenatural de Almeida possui se deve às condições precárias de vida que ele leva. Como tese de adesão inicial, o cronista observa que a decadência do personagem começou após a perda de seu status de fenômeno midiático, na Idade Média. Dentre as figuras retóricas empregadas na crônica encontram-se uma de construção – o pleonasmo – e as de pensamento – alusão, paradoxo e antítese. O pleonasmo pode ser observado na repetição de adjetivos negativos usados para referir a Sobrenatural de Almeida no decorrer do texto, tais como “torpe”, “tenebrosa (história)”, “miserável”, “hediondo”; esses adjetivos ajudam a construir uma imagem ruim do personagem para os leitores do jornal. Além do momento histórico da Idade Média, menção importante para situar os fatos narrados, Nelson Rodrigues faz alusão à imprensa, criando um paradoxo, pois leva para a Idade Média três elementos que lhe eram contemporâneos: a coluna social do jornalista Ibrahim Sued era publicada pelo jornal O Globo na década de 60 (a exemplo das crônicas de Nelson Rodrigues); a revista Manchete Esportiva, para a qual Nelson escreveu diversos textos sobre futebol na década de 50, havia encerrado suas atividades em 1959 (VOGEL, 2007); e a Revista do Rádio, publicação especializada em comentar a vida dos artistas de rádio (atores de radionovelas, cantores, entre outros) foi editada entre 1948 e 1970 (CASTRO, 2002). A antítese, figura de pensamento mais abundante no texto, reitera a superioridade de que Sobrenatural de Almeida gozava na Idade Média. No auge da bonança, ele possuía um “big automóvel” e um “escravo núbio”, ao passo que “os outros andavam de bonde e, inclusive, de taioba” (RODRIGUES, 1994, p. 138); entretanto, essa figura também dimensiona sua decadência através dos séculos. Sobrenatural de Almeida perdeu o “mordomo de casaca” (referido em outras crônicas, como “Defuntos literários”) e teve de trocar seu palácio por um “quarto infecto, em Irajá”, além de ser obrigado a “entrar na fila do banheiro coletivo”. Todo o dinheiro acumulado durante a Idade Média foi “reduzido ao salário mínimo”, na Renascença, e se esgotou no século XX, quando Sobrenatural de Almeida chegou ao ponto de pedir esmola nas ruas. A figura do então arcebispo de Olinda e Recife, Dom Hélder Câmara, aludida em um pedido de esmola rejeitado, dá a noção de que todas as pessoas estavam contra Sobrenatural de Almeida, pois nem mesmo um sacerdote indicado ao Prêmio Nobel da Paz quis ajudá-lo (por isso o autor considera a situação como “a suprema desfeita”). Por fim, Nelson Rodrigues utiliza um recurso de presença para evidenciar a atuação de Sobrenatural de Almeida nas partidas de futebol, contando dois lances em que o personagem 31 teria prejudicado Botafogo e Flamengo por meio de intervenções no trabalho do árbitro Armando Marques. O “pênalti fantástico” contra o Botafogo e a validação de um gol irregular para o Fluminense contra o Flamengo confirmam o péssimo momento vivido por esses clubes no Torneio Roberto Gomes Pedrosa e, somados as goleadas sofridas na rodada seguinte, funcionam como uma “tese de adesão final” da crônica, isto é, formam o argumento definitivo que convence o auditório sobre a volta de Sobrenatural de Almeida e também o persuade, à medida que Nelson Rodrigues tira os leitores de O Globo de uma suposta “alienação”, haja vista que até então “ninguém desconfia[va] que a grande figura do ‘Robertão’” (RODRIGUES, 1994, p. 139) era seu personagem da semana. 32 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Durante as análises das quatro crônicas aqui apresentadas, nota-se que as teses de adesão inicial são majoritariamente baseadas em presunções, no entanto, o autor as descreve como se fossem verdades absolutas, para impressionar o leitor. Desse modo, Nelson Rodrigues determina que Pelé é “um gênio indubitável” para considerá-lo seu “personagem do ano”, afirma que o Fluminense jogou melhor que o Flamengo na final do estadual do Rio de Janeiro de 1963 para defender sua “profecia” frustrada e também relaciona a vida com fatos inexplicáveis e os aproxima do futebol para promover Sobrenatural de Almeida. Nenhuma dessas teses pode ser confirmada inequivocamente, mas a voz do autor as transforma em fatos, muitas vezes recorrendo a alusões a pessoas ou personagens famosas, um tipo de argumento de autoridade que ajuda o texto a “[...] ultrapassar os limites do ‘real’ e superar a maneira de compor simples e direta do jornalismo (VIANA, 2008, p. 54)”. Mesmo quando se baseia em algo concreto, como os quatro gols de Pelé contra o América, Nelson Rodrigues faz uma bela descrição de um dos gols e contrapõe a jogada com o desespero de um torcedor adversário, o que agrada o leitor, que geralmente se identifica com as situações narradas. A proposta de Nelson Rodrigues é satisfatória porque se preocupa mais em persuadir seus leitores acerca dos “personagens da semana” do que em convencê-los, trabalhando principalmente com as figuras retóricas e os lugares da argumentação para realçar as emoções do auditório. Para confirmar suas teses diante dos leitores, o autor não se prende ao retrato fiel dos daquilo que acontece no gramado, muito menos atribui notas aos jogadores, como muitos de seus colegas de trabalho faziam, mas aproveita o futebol como pretexto para fazer arte, misturando o jogo com literatura, cinema, teatro e, principalmente, com a vida. 33 REFERÊNCIAS ABREU, Antônio Suárez. A arte de argumentar: gerenciando razão e emoção. 9ed. Cotia: Ateliê Editorial, 2006. CASTRO, Ruy. A era do rádio. O estado de São Paulo, São Paulo, 16 nov. 2002. Disponível em: . Acesso em: 28 out. 2012. MOSCA, Lineide do Largo Salvador. Velhas e novas retóricas: convergências e desdobramentos. In: ______ (org.). Retóricas de ontem e de hoje. 3ed. São Paulo: Humanitas, 2004, p. 17-54. PAGADIGORRIA, Marta Maria. Recursos de presença nas crônicas de Millôr Fernandes. 100f. Dissertação (Mestrado em Linguística e Língua Portuguesa) – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Araraquara, 2006. PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação: a nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 1996. PESSANHA, Klima. Unificação de títulos traz mudanças importantes nas estatísticas. Globoesporte.com, Rio de Janeiro, 16 dez. 2010. Disponível em: . Acesso em: 28 out. 2012. REBOUL, Olivier. Introdução à retórica. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 1998. RODRIGUES, Nelson. À sombra das chuteiras imortais: crônicas de futebol. Organização e notas de Ruy Castro. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. ______. A pátria em chuteiras: novas crônicas de futebol. Organização e notas de Ruy Castro. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. TRINGALI, Dante. Introdução à retórica: a Retórica como crítica literária. São Paulo: Duas Cidades, 1988. VIANA, Rodrigo Silva. Crônica de futebol: o drible entre a literatura e o jornalismo. 94f. Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Araraquara, 2008. VOGEL, Daisi Irmgard. Nelson Rodrigues em Manchete Esportiva: crônicas da alma brasileira. Estudos em jornalismo e mídia, Florianópolis, Ano IV, n. 2, p. 147-156, jul./dez. 2007. 34 ANEXOS 35 ANEXO A – A realeza de Pelé Depois do jogo América x Santos5, seria um crime não fazer de Pelé o meu personagem da semana. Grande figura, que o meu confrade Albert Laurence chama de “o Domingos da Guia do ataque”. Examino a ficha de Pelé e tomo um susto: - dezessete anos! Há certas idades que são aberrantes, inverossímeis. Uma delas é a de Pelé. Eu, com mais de quarenta, custo a crer que alguém possa ter dezessete anos, jamais. Pois bem: - verdadeiro garoto, o meu personagem anda em campo com uma dessas autoridades irresistíveis e fatais. Dir-se-ia um rei, não sei se Lear, se imperador Jones, se etíope. Racialmente perfeito, do seu peito parecem pender mantos invisíveis. Em suma: - ponham-no em qualquer rancho e a sua majestade dinástica há de ofuscar toda a corte em derredor. O que nós chamamos de realeza é, acima de tudo, um estado de alma. E Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: - a de se sentir rei, da cabeça aos pés. Quando ele apanha a bola, e dribla um adversário, é como quem enxota, quem escorraça um plebeu ignaro e piolhento. E o meu personagem tem uma tal sensação de superioridade que não faz cerimônias. Já lhe perguntaram: -“Quem é o maior meia do mundo?”. Ele respondeu, com a ênfase das certezas eternas: -“Eu”. Insistiram: - “Qual é o maior ponta do mundo?”. E Pelé: - “Eu”. Em outro qualquer, esse desplante faria rir ou sorrir. Mas o fabuloso craque põe no que diz uma tal carga de convicção, que ninguém reage e todos passam a admitir que ele seja, realmente, o maior de todas as posições. Nas pontas, nas meias e no centro, há de ser o mesmo, isto é, o incomparável Pelé. Vejam o que ele fez, outro dia, no já referido América x Santos. Enfiou, e quase sempre pelo esforço pessoal, quatro gols em Pompéia. Sozinho, liquidou a partida, liquidou o América, monopolizou o Placar. Ao meu lado, um americano doente estrebuchava: - “Vá jogar bem assim no diabo que o carregue!”. De certa feita, foi até desmoralizante. Ainda no primeiro tempo, ele recebeu o couro no meio do campo. Outro qualquer teria despachado. Pelé, não. Olha para a frente e o caminho até o gol está entupido de adversários. Mas o homem resolve fazer tudo sozinho. Dribla o primeiro e o segundo. Vem-lhe ao encalço, ferozmente, o terceiro, que Pelé corta sensacionalmente. Numa palavra: - sem passar a ninguém e sem ajuda de ninguém, ele promoveu a destruição minuciosa e sádica da defesa rubra. Até que chegou um momento em que não havia mais ninguém para driblar. Não existia 5 Santos 5 x 3 América, 25/02/1958, no Maracanã, pelo Torneio Rio - São Paulo. Foi a primeira crônica de Nelson sobre Pelé – e a primeira em que o jogador foi chamado de “rei”. [Nota do organizador] 36 uma defesa. Ou por outra: - a defesa estava indefesa. E, então, livre na área inimiga, Pelé achou que seria demais driblar Pompéia e encaçapou de maneira genial e inapelável. Ora, para fazer um gol assim não basta apenas o simples e puro futebol. É preciso algo mais, ou seja, essa plenitude de confiança, de certeza, de otimismo, que faz de Pelé o craque imbatível. Quero crer que a sua maior virtude é, justamente, a imodéstia absoluta. Põe-se por cima de tudo e de todos. E acaba intimidando a própria bola, que vem aos seus pés com uma lambida docilidade de cadelinha. Hoje, até uma cambaxirra sabe que Pelé é imprescindível na formação de qualquer escrete. Na Suécia, ele não tremerá de ninguém. Há de olhar os húngaros, os ingleses, os russos de alto a baixo. Não se inferiorizará diante de ninguém. E é dessa atitude viril e mesmo insolente que precisamos. Sim, amigos: - aposto minha cabeça como Pelé vai achar todos os nossos adversários uns pernas-de-pau. Por que perdemos, na Suíça, para a Hungria? Examinem a fotografia de um e outro time entrando em campo. Enquanto os húngaros erguem o rosto, olham duro, empinam o peito, nós baixamos a cabeça e quase babamos de humildade. Esse flagrante, por si só, antecipa e elucida a derrota. Com Pelé no time, e outros como ele, ninguém irá para a Suécia com a alma dos vira-latas. Os outros é que tremerão diante de nós. [Manchete Esportiva, 8/3/1958] 37 ANEXO B – Meu personagem do ano Amigos, o meu personagem do ano tem de ser um jogador do escrete que levantou o Campeonato do Mundo. Mas é um problema catar, num time invicto, imbatível, um jogador que seja, exatamente, o símbolo pessoal e humano desse time e desse escrete. E logo um nome me ocorre, de uma maneira irresistível e fatal: - Pelé. Olhem Pelé, examinem suas fotografias e caiam das nuvens. É, de fato, um menino, um garoto. Se quisesse entrar num filme da Brigitte Bardot, seria barrado, seria enxotado. Mas reparem: - é um gênio indubitável. Digo e repito: - gênio. Pelé poderia virar-se para Miguel Ângelo, Homero ou Dante e cumprimentá-los, com íntima efusão: - “Como vai, colega?”. De fato, assim como Miguel Ângelo é o Pelé da pintura, da escultura, Pelé é o Miguel Ângelo da bola. Um e outro podem achar graça de nós, medíocres, que não somos gênios de coisa nenhuma, nem de cuspe à distância. E que coisa confortável para nós, brasileiros, saber que temos um patrício assim genial e assim garoto! Vejam: - dezessete anos! Na idade em que o pobre ser humano anda quebrando vidraça, ou jogando bola de gude, ou raspando perna de passarinho a canivete, Pelé torna-se campeão do mundo. Estava lá um rei, Gustavo, da Suécia. E viu-se, então, essa coisa que estaria a exigir um verso de Camões: - o rei desceu do seu trono e foi cumprimentar, foi apertar a mão do menino Pelé. Então, pergunto: - que experiência real teria o menino de cor? Havia de conhecer, no máximo, rei de baralho ou o Rei Patusco do gibi. Gustavo foi o primeiro rei autêntico que lhe mostrou os dentes num soberano sorriso. Eu sei que, na recepção ao escrete, houve quem rosnasse por aqui: - “Estão exagerando! Já é demais!”. Está claro que não era demais, era de menos. Mas o brasileiro é assim mesmo. Em 50, quase houve um suicídio nacional quando não fomos campeões do mundo. Éramos, todos nós, brasileiros, uma nação que quase toma formicida. Pois bem: - e em 58, ao conquistarmos o título, eis que houve, aqui, um hábito instantâneo à glória jamais imaginada. O nosso pileque cívico durou até o desembarque do escrete. Já no dia seguinte, porém, havia os descontentes, os fartos, os saturados. Um conhecido meu veio protestar: - “Pelé não pode ser craque! Com dezessete anos, ninguém pode ser craque!”. Na minha cólera, tive vontade de subir pelas paredes como uma lagartixa profissional. Mas o meu consolo foi que, ao mesmo tempo, saía no Paris-Match, que é uma revista mundial, uma vasta, erudita e compacta reportagem sobre Pelé. Lá vinha escrito: - “Pelé, rei do Brasil”. Enquanto, aqui, o brasileiro achava exagerado o próprio 38 entusiasmo, uma revista parisiense punha o garoto brasileiro nas nuvens. Direi mais: - Paris- Match comportava-se diante de Pelé com a histeria de uma macaca-de-auditório. Mas o que impressionou, na reportagem, foi a mentira que a entupia, de cabo a rabo. Nunca se mentiu tanto em seis páginas de revista! O repórter escrevia, por exemplo, que, na sua euforia ululante, o Brasil dera o nome de Pelé a ruas, praças e obeliscos. Então, eu concluí que, apesar de todo o seu passionalismo, a imprensa brasileira ainda é das mais sóbrias e das mais contidas. Aqui, nenhum jornal, nenhuma revista, teria o descaro de inventar reis, de inventar fantásticas homenagens nacionais. Não que Pelé e, de resto, todo o escrete não as merecessem. Por meu gosto, confesso: - eu teria enfiado no peito de Pelé a própria Legião de Honra. Mas é que o brasileiro não é disso. Sim, amigos: - o brasileiro reage ao bem que lhe fazem com uma gratidão amarga e quase ressentida. Que fez o escrete? Deu-nos a maior alegria de nossa vida. Tornou qualquer vira-lata em campeão do mundo. Mas a nossa gratidão logo secou como uma bica da Zona Sul. Tratamos de esquecer a jornada estupenda. Mas eu vos digo: - “esquecer” não é bem o termo. Ou por outra: - o brasileiro pode “esquecer” da boca para fora. Mas na verdade um Pelé é inesquecível. Insisto: - apesar de toda a nossa ingratidão, Pelé é imortal. E por isso, porque ninguém pode enxotá-lo da nossa memória, eu o promovo a meu personagem do ano. [Manchete Esportiva, edição especial, janeiro de 1959] 39 ANEXO C – Pior para os fatos Amigos, ao terminar o grande Fla-Flu, o profeta tratou de catar os trapos e saiu do Maracanã, mas de cabeça erguida. Era um vencido? Jamais. Vencido, como, se temos de admitir esta verdade límpida e total: - o Fluminense jogou mais! Não cabe, contra a evidência da nossa superioridade, nenhum argumento, sofisma ou dúvida. Alguém dirá que o profeta não previa o empate. Exato. Mas vamos raciocinar. Houve lances, no Fla-Flu, que escapariam à vidência até de um Maomé, até de um Moisés de Cecil B. de Mille. Lembro-me de um momento em que Marcial estava batido irremediavelmente. O arco rubro-negro abria seus sete metros e quebrados. E que fez o Escurinho? Enfiou a bola na caçapa? Consumou o gol de cambaxirra? Simplesmente, Escurinho levantou para Marcial. Deu a bola na bandeja como se fosse a cabeça de são João Batista. E eu diria que nem Joana D’Arc, com suas visões lindas, ou Maomé, pendurado no seu camelo, ou o Moisés de Cecil B. de Mille, do alto de suas alpercatas – podia imaginar tamanha ingenuidade. Escurinho teria de chutar rente à grama, ou alto, se quisesse, mas teria de chutar e nunca suspender a bola. E tem mais. Os profetas de ambos os sexos jamais poderiam contar com a trave. No segundo tempo, Escurinho mandou uma bomba. Nenhum gol foi tão merecido. Pois bem: - vem a trave e salva. Além do mais, que Maomé, ou que Moisés podia calcular que o treinador Flávio Costa ia fazer jogo para empate? Dirá o próprio que não foi esta a sua intenção. Mas o fato incontestável é que ele armou o time para o hediondo 0 x 0. É óbvio que, desde o primeiro minuto, o Fluminense teria de se atirar para a frente. Era preciso forçar a decisão, o gol, a vitória, já que o empate seria a catástrofe. O tricolor jogou bem e, no entanto, não deu, nunca, a sensação de fome e sede de gol. Faltavam uns quinze minutos, e os nossos jogadores ainda tramavam, ainda faziam tico-tico, ainda perdiam tempo com passes curtos, para os lados e para trás. Sim, o Fluminense jogou bem e não cabe preciosismo num último Fla-Flu. Já no jogo do Flamengo contra o Bangu, aconteceu o seguinte: - sempre que Oldair avançava, eis que Flávio erguia-se na boca do túnel e fazia um comício. Oldair marcou dois gols por desobediência e, repito, por indisciplina tática. Ontem, ele estava cá atrás, defendendo um empate que seria a vitória do Flamengo. Vejam que tristeza horrenda: - nós, do Fluminense, jogamos bem e errado. Dizia eu que o profeta estava certo no mérito da questão. O tricolor é o melhor, foi melhor, teve mais time. Mas há, claro, um campeão oficial, que é o Flamengo. E, aqui, abro 40 um capítulo para falar da alegria rubro-negra, santa alegria que anda solta pela cidade. Nada é mais bonito do que a euforia da massa flamenga. À saída do estádio, eu vi um crioulão arrancar a camisa diante do meu carro. Seminu como um são Sebastião, ele dava arrancos medonhos. Do seu lábio, pendia a baba elástica e bovina do campeão. Mesmo que um fosse um Drácula, teria de ser tocado por essa alegria que ensopa, que encharca, que inunda a cidade. Não sei se o time do Flamengo, como time, mereceu o título. Mas a imensa, a patética, a abnegada torcida rubro-negra merece muito mais. Cabe então a pergunta: - quem será o personagem da semana de um abnegado Fla-Flu tão dramático para nós? Um nome me parece obrigatório: - Marcial. E, nessa escolha, está dito tudo. Quando o goleiro é a figura mais importante de um time, sabemos que o adversário jogou melhor. Castilho teve muito menos trabalho. Claro que eu não incluo, entre os méritos de Marcial, o gol que Escurinho não fez. Tampouco falo na bomba que o mesmo Escurinho enfiou na trave. Assim mesmo, Marcial andou fazendo intervenções decisivas, catando bolas quase perdidas. Amigos, eu sei que os fatos não confirmaram a profecia. Ao que o profeta pode responder: - “Pior para os fatos!”. É só. [O Globo, 16/12/1963] 41 ANEXO D – Semana de Fla-Flu Amigos, de vez em quando eu esbarro num rubro-negro desvairado. Ainda ontem, encontrei, no posto 6, o Walter Clark. Nunca vi ninguém tão Flamengo! Entre parênteses, Walter Clark é um homem que vive tropeçando em milhões. Tem um ar típico do garoto do Pedro II fazendo gazeta na Quinta da Boa Vista. Conta-se que ele arranca contratos de publicidade até em velórios, até em cemitérios. Pois bem: - e o Walter Clark só pensa no Fla- Flu. Assim que me viu, ele me arrastou para um canto. Conversamos na varanda da TV Rio, diante do mar. Um cálido sopro marinho devastou-lhe o chuca-chuca de menino prodígio. Simplesmente, ele queria falar da batalha das batalhas. Em cima dos seus sapatos, pôs-se a exaltar o Flamengo. E eu senti, desde o primeiro momento, que a sua euforia é inteiramente errada, inteiramente imprópria. Falta-lhe o sentimento trágico do Fla-Flu. Com sua cara de garoto, cara de Mozart aos sete anos, ele faz-me a seguinte inconfidência: - vai comemorar a vitória com busca-pé, desfile, bombinhas, fogos diversos. Comprou um automóvel branco, nupcial, imaculado, forrado de arminho. E esse carro de noiva vai puxar a passeata. Pensa, também, numa charanga wagneriana para dar o tom alto à comemoração. Eu ouço o Walter Clark e calo. Mas há qualquer coisa de suicida nessa alegria prévia. Amigos, sempre que vai estourar uma catástrofe, o ser humano cai num otimismo obtuso, pétreo e córneo. Foi assim, em Hiroshima, na manhã dominical da bomba. Nenhum presságio, nenhuma tensão, nada que turvasse a ternura da cidade. Pastores, senhoras, crianças e babás tinham a mesma inconsciência de um bodinho de charrete. E, de repente, há o clarão hediondo. Eis o que me pergunto: - com suas comemorações antecipadas, o Walter Clark não estará arranjando a sua Hiroshima particular? Todavia, esse estado de tensão dionisíaca não é apenas do jovem tubarão da publicidade. As reportagens descrevem a mesma euforia em todo o mundo rubro-negro. O treinador Flávio Costa está calmo, e repito: - é a tal calma da catástrofe. Ao passo que todo o Fluminense sente, na carne e na alma, a angústia que anuncia as vitórias deslumbrantes. Mas vejam a dupla experiência que está reservada ao Walter Clark: - ele hoje canta a vitória rubro-negra, para domingo chorar a vitória tricolor. Foi assim também 1919. Naquela ocasião, os eternos rivais quebraram lanças numa batalha gigantesca. Quarenta e quatro anos já rolaram depois disso. Acidade estava, como agora, cálida de Fla-Flu. Lembro que, no dia 42 do jogo, alguém morreu na minha rua. E, no caixão, o defunto estava de cara amarrada, porque não ia ver o clássico eterno. Mas como eu ia dizendo: - com o mesmo otimismo trágico do Walter Clark, o Flamengo preparou a apoteose. Quatro corneteiros, de casaca e esporas, esperavam, com os respectivos cavalos, o final do match. E venceu o Fluminense. Creio quem não existe, na história de um clube, nada que se compare ao nosso triunfo naquele Fla-Flu. Quatro a zero. Pode-se ter uma idéia da ira e frustração dos corneteiros. Os cavalos baixaram as orelhas desoladas, e mais pareciam tristíssimos jumentos. Assim aconteceu há 44 anos. E agora? O profeta já anunciou: - “Fluminense, campeão de 63!”. Desta coluna, eu já fiz um apelo aos tricolores, vivos ou mortos. Ninguém pode faltar ao Maracanã domingo. Incluí os fantasmas na convocação, e explico: - a morte não exime ninguém de seus deveres clubísticos. Em certos clássicos, cada adversário arrisca o passado, o presente e o futuro. Precisamos pensar nos títulos já possuídos. Ai do clube que não cultiva santas nostalgias. Com os torcedores de hoje e os fantasmas de velhíssimos triunfos: - ganharemos o mais dramático Fla-Flu de todos os tempos. [O Globo, 13/12/1963] 43 ANEXO E – Sobrenatural de Almeida Amigos, dizia Horácio que há mais coisas entre o céu e a terra do que supõe a nossa vã filosofia. Está aí uma clara ilusão ao Sobrenatural de Almeida. Se Horácio fosse torcedor rubro-negro diria a mesma coisa, por outras palavras: - “Há coisas na vida do Flamengo que só o Sobrenatural de Almeida explica”. Os idiotas da objetividade não vão além dos fatos concretos. E não percebem que o mistério pertence ao futebol. Não há clássico e não há pelada sem um mínimo de absurdo, sem um mínimo de fantástico. Por exemplo: - o que está acontecendo com o Flamengo. E não só com o rubro-negro. Com o Botafogo também. O curioso é que o Sobrenatural de Almeida andava sumido. Ou melhor dizendo: - não tinha imprensa. Ora, nós sabemos que sem promoção ninguém é nada neste país. O sujeito pode ser um gênio da cabeça aos sapatos. Mas ou sai nos jornais, ou passará a vida rosnando de impotência e frustração. Era justamente o que estava acontecendo, nos últimos tempos, com o Sobrenatural de Almeida. Os jornais o sepultavam num cavo silêncio. Mas, enquanto o esqueciam, o torpe indivíduo agia na sombra. Vocês conhecem a sua tenebrosa história. A grande fase do Sobrenatural de Almeida ocorreu na Idade Média. Era ele, na época, a figura mais adulada, mais promovida. Todos os dias, seu nome saía na coluna do Ibrahim. Quantas vezes não apareceu, em página dupla, na Manchete? Enquanto os outros andavam de bonde e, inclusive, de taioba, o miserável usava um big automóvel. (Diga-se que o seu carro tinha cascata artificial, com filhote de jacaré.) Nos dias quentes, um escravo núbio o abanava com a Revista do Rádio. Com o fim da Idade Média, começou a decadência do Sobrenatural de Almeida. O primeiro a se despedir, exigindo pesada indenização trabalhista, foi o mordomo de casaca, que era uma das atrações turísticas de seu palácio. Na Renascença, o Sobrenatural ficou reduzido ao salário mínimo. E assim veio rolando, de humilhação em humilhação. Certa vez, cruzou com dom Hélder, na esquina de Sete com Avenida. Correu para o ilustre arcebispo de mão estendida. Eis a resposta do nosso Hélder: - “Não tenho trocado”. Era a suprema desfeita. Hoje, o Sobrenatural mora num quarto infecto, em Irajá. E pior: - todas as manhãs, ao acordar, tem de entrar na fila do banheiro coletivo. Daí o seu horror aos homens e aos clubes. Seu campo de ação está limitado ao futebol. Podia gostar de um clube. Não. Quer ver a caveira de todos. No momento, derramou seus malefícios sobre o Flamengo e sobre o Botafogo. 44 O rubro-negro apanhou de 4 x 0. E o Botafogo de 4 x 1. No penúltimo jogo do alvinegro, o Armando Marques marcou um pênalti fantástico. Não houve nada, absolutamente nada. Mas o Sobrenatural de Almeida soprou no ouvido do árbitro: - “Pênalti, pênalti!”. Armando foi na conversa e apitou a penalidade máxima. No Fla-Flu, houve o que houve: - o ponta tricolor Hílton tirou, com a mão, a bola de Marco Aurélio, e fez o gol. O Sobrenatural de Almeida sussurrou ao ouvido do Armando Marques: - “Gol legítimo, do escocês!”. Mais uma vez, o juiz foi na conversa. E ninguém desconfia que a grande figura do “Robertão” é o hediondo Sobrenatural de Almeida. [O Globo, 27/10/1968] CAPA FOLHA DE ROSTO FICHA CATALOGRÁFICA BANCA EXAMINADORA DEDICATÓRIA AGRADECIMENTOS EPÍGRAFE RESUMO RESUMEN SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 2 ORIGENS DA RETÓRICA 2.1 Retórica Antiga 2.2 Retórica das Figuras 2.3 Retórica Nova 3 ANÁLISE DAS CRÔNICAS 3.1 “A realeza de Pelé” 3.2 “Pior para os fatos” 3.3 “Sobrenatural de Almeida” 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS REFERÊNCIAS ANEXOS ANEXO A – A realeza de Pelé ANEXO B – Meu personagem do ano ANEXO C – Pior para os fatos ANEXO D – Semana de Fla-Flu ANEXO E – Sobrenatural de Almeida