Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências Campus de Bauru Sandra Elena Sposito Apontamentos sobre a Apropriação da Teoria Vigotskiana no Ensino de Ciências: problemas conceituais e epistemológicos decorrentes do pluralismo metodológico. 2 Sandra Elena Sposito Apontamentos sobre a Apropriação da Teoria Vigotskiana no Ensino de Ciências: problemas conceituais e epistemológicos decorrentes do pluralismo metodológico. Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências da Universidade Estadual Paulista, Campus de Bauru, para obtenção do título de Mestre em Educação para a Ciência. Orientadora: Drª Sueli Terezinha Ferreira Martins Bauru 2007 3 DIVISÃO TÉCNICA DE BIBLIOTECA E DOCUMENTAÇÃO UNESP – BAURU Sposito, Sandra Elena. Apontamentos sobre a apropriação da teoria vigotskiana no ensino de ciências: problemas conceituais e epistemológicos decorrentes do pluralismo metodológico / Sandra Elena Sposito 2007, 98 f. Orientador: Sueli Terezinha Ferreira Martins. Dissertação (Mestrado) – Universidade Esta- dual Paulista. Faculdade de Ciências, Bauru, 2007. 1. Ciências – Estudo e ensino. 2. Matéria- lismo histórico. 3. Materialismo dialético. 4. L. S. Vigotski. 5. Formação de conceitos. 6. Pluralismo metodológico. 7. Pensamento e lin- guagem. I. Universidade Estadual Paulista. Fa- culdade de Ciências. II. Título. Ficha catalográfica elaborada por Maricy Fávaro Braga – CRB-8 1.622 4 Sandra Elena Sposito Apontamentos sobre a apropriação da teoria vigotskiana no ensino de ciências: problemas conceituais e epistemológicos decorrentes do pluralismo metodológico. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação para a Ciência, Área de Concentração em Ensino de Ciências, da Faculdade de Ciências da UNESP/Campus de Bauru, como requisito à obtenção do título de Mestre em Ensino de Ciências. Banca Examinadora: Presidente: Profa. Dra Sueli Terezinha Ferreira Martins Instituição: UNESP – Botucatu Titular: Profa. Dra. Wanda Maria Junqueira Aguiar Instituição: PUC/SP Titular: Prof. Dr. José Roberto Boettger Giardinetto Instituição: UNESP – Bauru Bauru, setembro de 2007 5 Dedico essa dissertação aos meus pais, Eduardo e Neusa, pela dedicação e carinho com que me criaram e me ensinaram a acreditar no ser humano. 6 Agradecimentos A produção do conhecimento nunca é um processo isolado, pode ser solitário às vezes, mas jamais nenhum conhecimento foi constituído sem a presença de uma multiplicidade de pessoas. São as pessoas que escreveram os livros que li para compor esse trabalho, são aquelas que conviveram comigo nesse período e que me ajudaram a pensar sobre o assunto ou apenas me ajudaram a ter tempo para pensar e escrever. Ou aquelas que mesmo sem saber que eu estava elaborando esse trabalho, passaram pela minha vida e a tornaram mais interessante. Houve também pessoas que incomodaram, que desviaram minha atenção, tiraram minha concentração, mas ao final, foram apenas desafios que tornaram o resultado mais valioso. Então, em primeiro lugar, meu agradecimento é para todas as pessoas fizeram parte desse processo. Contudo, existem algumas pessoas especiais, cuja participação determinou o sucesso desse trabalho e que merecem agradecimento particular: Meu pai e minha mãe, por terem me ensinado a ver o mundo e entendê-lo através do conhecimento científico, por terem me transmitido uma visão ética e moral acerca das relações humanas baseada no respeito, na compreensão, na não-violência, na crença de que um mundo melhor é possível. Minha orientadora, Sueli Terezinha, que com sua infinita paciência e sabedoria, soube me guiar por esse caminho, garantindo minha autonomia e respeitando meus limites. Meus muitos e queridos amigos e amigas que souberam respeitar minha ausência e minha angústia durante os anos em que esse trabalho foi realizado. Todas as pessoas que trabalham comigo no Conselho Regional de Psicologia – Subsede Bauru, pois me isentaram de tantas preocupações para que eu pudesse me dedicar a essa dissertação, são elas: Eni, Orlene, Regiane, Tânia e Ida. Aos meus irmãos e irmãs que também deixaram o computador liberado para meu uso e que respeitaram meus momentos de distanciamento. Para os professores da minha banca: Wanda Maria e Giardinetto, pelo grande incentivo e reconhecimento que tiveram desse trabalho. Enfim, talvez falte citar algumas pessoas, já que são tantas, mas saibam que meu agradecimento é sincero e eterno! 7 Resumo Este trabalho teve como objetivo analisar uma das apropriações da teoria vigotskiana no âmbito do Ensino de Ciências na atualidade e avaliar inadequações conceituais e metodológicas decorrentes da vertente do pluralismo metodológico. Neste caso, a produção escolhida para ser analisada foi proposta por Eduardo Fleury Mortimer e colaboradores, na qual utilizam os pressupostos da teoria de L. S. Vigostski como aporte para o desenvolvimento de conceitos e metodologias de análise da realidade escolar. Para proceder tal análise foi realizada uma pesquisa teórica que resgatou os pressupostos epistemológicos e conceituais da teoria vigotskiana, ou seja, o materialismo histórico dialético e o desenvolvimento do pensamento e da linguagem, respectivamente. E, através de uma revisão da obra de Mortimer a partir dos postulados encontrados na teoria vigotskiana foi possível constatar que há apropriações pouco fidedignas às concepções e conceitos originais de Vigotski, bem como a formulação de uma aproximação equivocada com a corrente construtivista. Tais modos de apropriação do escopo teórico de Vigotski se respaldaram no pluralismo metodológico, que propõe a intersecção de diferentes e até divergentes teorias com a finalidade de apresentar alternativas para a resolução prática de problemáticas no âmbito do processo ensino-aprendizagem. Palavras Chaves: Ensino de Ciências, L. S. Vigotski, Materialismo Histórico Dialético, Formação de Conceitos, Pluralismo Metodológico, Pensamento e Linguagem. SPOSITO, S. E. Apontamentos sobre a apropriação da teoria Vigotskiana no Ensino de Ciências: problemas conceituais e metodológicos decorrentes do pluralismo metodológico. 2007, 97f. Dissertação (Mestrado em Educação para a Ciência). Faculdade de Ciências, UNESP, Bauru, 2007. 8 Abstract This work aimed to analyze one of the appropriations of Vigotskian theory for Science teaching nowadays, and to evaluate conceptual and methodological inadequacies arisen from Methodological Pluralism. For this study we chose to analyze the production of E. F. Mortimer et ali., in which they use Vigotskian theory as support for the development of concepts and methodologies of analysis of school reality. In order to carry out our study we investigated the epistemological and conceptual bases of Vigotskian theory, i.e., Dialectic Historical Materialism and the development of both thought and language. Through a revision of Mortimer’s work using the bases of Vigotskian theory we were able to detect the existence of appropriations that are not very truthful to Vigotski’s original ideas and concepts as well as the formulation of a wrong approach to constructivist theory. Such modes of approach to Vigotskian theory were based upon Methodological Pluralism, which purposes the intersection of different, and even divergent, theories in order to present alternatives for the practical resolution of problems within the context of the teaching/learning process. Keywords: Science teaching, L. S. Vigotski, Dialectic Historical Materialism, Concept Formation, Methodological Pluralism, Thought and Language. SPOSITO, S. E. Notes On The Appropriation of Vigotskian Theory for Science Teaching: Conceptual and Methodological Problems Arisen from Methodological Pluralism. 2007, 97f. Master’s thesis presented to Postgraduate Programm of Science Education - Faculdade de Ciências,UNESP, Bauru, 2007. 9 Sumário 1 – Introdução ..........................................................................................................................11 2 – Metodologia da Pesquisa ...................................................................................................16 3 – Pressupostos Teóricos e Metodológicos 3.1 - Materialismo Histórico Dialético.........................................................................19 3.2 – Produção de Conhecimento..................................................................................21 3.3 – O Conceito de Conceito.......................................................................................25 4 – Método do Materialismo Histórico Dialético em Vigotski – no estudo do Pensamento e da Linguagem............................................................................................................................29 4.1 – A Gênese do Pensamento e da Linguagem..........................................................32 4.2 – O Estudo do Pensamento Verbalizado.................................................................35 5 – Estudos Experimentais sobre a Formação de Conceitos 5.1 – A Questão da Metodologia de Investigação.........................................................37 5.2 – Os Estágios da Formação de Conceitos...............................................................40 5.2.1 – Primeiro Estágio: Sincrético..................................................................41 5.2.2 – Segundo Estágio: Complexos................................................................42 5.2.3 – Terceiro Estágio: Conceitos..................................................................44 5.3 – O Conceito............................................................................................................45 6 – Aprendizagem e Desenvolvimento.....................................................................................47 7 – Conceitos Espontâneos e Conceitos Científicos.................................................................50 7.1 – Conceitos Espontâneos.........................................................................................51 7.2 – Conceitos Científicos...........................................................................................52 10 7.3 – A inter-relação entre Conceitos Espontâneos e Científicos.................................54 7.4 – O Sistema de Conceitos........................................................................................56 8 – Ensino de Ciências no Brasil 8.1 – Contexto Histórico...............................................................................................59 8.2 – Em busca de uma Especificidade.........................................................................63 8.3 – Pluralismo Epistemológico e Metodológico........................................................67 9 – Análise da apropriação da teoria vigotskiana no Ensino de Ciências.................................72 9.1 - Alguns apontamentos sobre a obra: Linguagem e Formação de Conceitos no Ensino de Ciências (2000) de Eduardo Fleury Mortimer.............................................74 9.2 – Problematizações acerca das referências bibliográficas de L.S. Vigotski e de outros autores que discutem sua teoria..........................................................................76 9.3 – Problematizações acerca do uso de conceitos oriundos da obra de Vigotski......80 9.4 - Problematizações acerca do aspecto epistemológico............................................84 9.5 - Outros desdobramentos do uso de conceitos de Vigotski na obra de Mortimer e colaboradores................................................................................................................89 9.6 – Apontamentos Finais............................................................................................94 10 – Referências Bibliográficas................................................................................................96 11 1 - Introdução A humanidade desenvolveu no decorrer de sua existência um grande volume de conhecimento, a partir de sua atividade básica: o trabalho e a luta por melhores condições de existência, sobrevivência e domínio sobre a natureza. As condições reais nas quais os seres humanos estão inseridos foram progressivamente sendo compreendidas de modos cada vez mais complexos e modificadas por conseqüência deste entendimento. Sendo que, a natureza primeira ou intocada pelas mãos humanas não existe mais neste planeta. O ser humano foi capaz de apreender a realidade e modificá-la de acordo com suas necessidades, num longo processo que só pode existir pois foi possível conhecer, ou seja, desvendar o real e transformá-lo, buscando a essência das coisas e dos fenômenos e intervindo nos mesmos. Num movimento de influência recíproca: ao transformar a natureza o ser humano também é transformado. A sistematização deste conhecimento e os caminhos pelos quais foram se constituindo, aprimoraram um constructo chamado “ciência”, que após ser fortalecido pela filosofia racionalista e iluminista dos séculos XVI e XVII, foi, e talvez ainda seja, considerado o maior feito da humanidade. Todo o conhecimento acumulado pela história da humanidade é direito e patrimônio de cada indivíduo que existe, a ciência é para todos, e na atual organização da sociedade, cabe à escola transmitir a cada ser humano esta herança deixada pelos antepassados, e assim contribuir para que as novas gerações compreendam as coisas que foram sendo apreendidas nos últimos milhares de anos, facilitando o entendimento do seu papel na humanidade. 12 Se o ser humano pode entender que a história na qual está inserido hoje, é resultado da transformação intencional da natureza (trabalho), pode conceber e agir também intencionalmente constituindo uma história totalmente nova no futuro. A escola, na sua concepção atual, abarca, entre outras atribuições, a transmissão do conhecimento científico para crianças, cujas existências desde o nascimento são marcadas pelas conseqüências deste “desvendar” do real (ciência), mas que não possuem consciência do que é isso. Os modos de conhecer e explicar as coisas, nesta fase da vida, ainda são predominantemente distintos da sistematicidade e abstração presentes nas ciências. A ciência opera e sintetiza através dos chamados conceitos científicos, que em termos gerais são nomeações que explicam determinado fenômeno ou objeto de modo generalizável. Tais aspectos possuem implicações diretas para a realidade escolar, que visa ensinar estes conceitos científicos a seus alunos. E assim surge uma das principais questões: como ensiná-los? E se o ensino deve caminhar na lógica da aprendizagem, o que se remete a outra questão: como as pessoas aprendem as coisas? Neste sentido, a psicologia e a pedagogia traçaram várias teorias e efetivaram inúmeros estudos nos séculos XIX e início do XX, que compõem hoje um quadro de diversidades de explicações para as questões acima formuladas. Contudo, somente em meados do século XX, organiza-se em diversos centros de estudos e pesquisas, o que posteriormente viria a se constituir uma área do conhecimento chamada de Educação para a Ciência ou Ensino de Ciências, cuja preocupação fundamental é o entendimento do processo de ensino-aprendizagem implicado especificamente no que tange ao conhecimento científico, além do desenvolvimento de métodos de ensino decorrentes desta compreensão. A intersecção entre o conhecimento científico e a psicologia do desenvolvimento e da aprendizagem, com implicações para o ensino é o lócus de trabalho da Educação para a 13 Ciência. Cada vertente desta área, que busca analisar esta problemática principal, possui muitas vezes divergentes concepções do que é a aprendizagem ou de como ocorre o desenvolvimento psíquico do ser humano e também carregam contrastantes modos de entender o que é a própria ciência. Neste contexto, a necessidade desta pesquisa foi percebida através de nossa apropriação gradual das discussões em voga na área de Educação para as Ciências que se mostrou ainda incipiente em relação ao aproveitamento do trabalho minucioso de L. S. Vigotski na área da formação dos conceitos, bem como de sua concepção sobre as relações entre aprendizagem e desenvolvimento. Percebemos que o contato com sua obra é inicial nesta área do conhecimento no Brasil e que em muitos casos é marcada por uma apropriação muito fragmentada e incompleta. Desta forma, um dos objetivos deste trabalho é promover contribuições ao entendimento de como o ser humano apreende os conceitos científicos à luz da Teoria Sócio- Histórica, proposta pelo psicólogo russo Liev Seminiótich Vigotski1. Apesar de sua obra ter mais de 70 anos, suas idéias foram temporariamente banidas na própria União Soviética na era Stalin, só voltando a público na década de 1950. Porém, sua difusão no Brasil iniciou-se nos anos de 1980, ainda parcialmente, na maioria das vezes em traduções indiretas e fragmentadas oriundas dos Estados Unidos. E somente em 2001, ocorreu a tradução completa diretamente do russo, de sua última obra, traduzida aqui como: A Construção do Pensamento e da Linguagem, sendo o título original “Pensamento e Linguagem”. Neste manuscrito há uma profunda discussão sobre a formação de conceitos e aprendizagem e desenvolvimento que reconhecidamente ainda pouco pode contribuir para a 1. Manteremos os indicativos de Duarte (2004, p.2-3) que esclarecem que existem diversos modos de grafias do nome de Vigotski, tendo em vista a diferença do alfabeto russo em relação ao nosso e nas várias publicações no Brasil o nome do referido autor aparece com grafias diferentes, porém adotaremos a grafia Vigotski que tem sido utilizada nas publicações recentes do autor e respeitaremos a grafia original de acordo com as referências bibliográficas de cada publicação. 14 Educação para a Ciência, não só por ser recente, mas pela predominância de referenciais teóricos que advêm dos estudos de Jean Piaget sobre as mesmas temáticas e a posterior constituição de uma corrente denominada Construtivismo. Tal corrente, apesar de derivada da visão piagetiana começa a incorporar outros autores numa tentativa de ampliar a compreensão da problemática educacional. Neste contexto, até mesmo partes da obra de Vigotski são incorporadas a esta vertente construtivista, sem aprofundamentos e nem cuidados para dar conta das divergências filosóficas e epistemológicas. A compreensão de totalidade do trabalho de Vigotski só poderá ser realizada com o aprofundamento no seu método que é o materialismo histórico dialético proposto por Karl Marx e o entendimento do contexto histórico onde o mesmo se insere, ou seja, o antigo império russo, seguido da Revolução de 1917 e os primeiros momentos de consolidação da União Soviética na ruptura com o sistema de produção capitalista e a implantação do modo socialista. Vigotski foi um árduo defensor da revolução russa e efetivamente ajudou a implantar a proposta socialista. Suas contribuições para a psicologia são marcadas também por esta tarefa, ou seja, lançar as bases para a sociedade e as ciências calcadas no marxismo. Qualquer apropriação e aplicação do escopo teórico de Vigotski não devem se abster deste contexto e deste objetivo, que é de uma concreta modificação das estruturas sociais, econômicas e culturais da sociedade. A partir deste estado de coisas, este trabalho tem como finalidade principal: elaborar uma análise de uma destas apropriações da teoria vigotskiana em alguns autores específicos da área de Ensino de Ciências na atualidade brasileira e apontar usos inadequados de suas contribuições. Especificamente no que tange a produção do pesquisador Eduardo Fleury Mortimer em seu livro Linguagem e Formação de Conceitos no Ensino de Ciências de 2000 e outros textos mais recentes produzidos em parceria com outros pesquisadores (Mortimer & Aguiar Jr., 2005; Mortimer & Scott, 2002). 15 Nos materiais estudados há momentos em que conceitos fundamentais na visão teórica de Vigotski são incorporados à revelia num aporte metodológico e epistemológico extremamente diversificado e eclético. Tal procedimento efetivado por Mortimer e colaboradores é oriundo de uma proposta que defende o pluralismo de interpretações acerca dos processos de ensino e aprendizagem no Ensino de Ciências (NARDI, BASTOS & DINIZ, 2004, p. 9-56), o que possibilita, em certa medida, que os trabalhos de Vigotski estejam associados indiscriminadamente a qualquer outro estudioso no qual algum tipo de junção de idéias for possível. Tal pluralismo, em última instância, desconsidera o aporte marxista inerente à teoria vigotskiana e “descola” estas bases epistemológicas e metodológicas dos contextos de aplicação dos constructos oriundos da perspectiva sócio-histórica. Esta pesquisa visa resgatar estas bases do método nas quais se assentam as contribuições de Vigotski, especificamente no que diz respeito à formação de conceitos. Pelos pressupostos e objetivos expostos anteriormente, este trabalho é metodologicamente estruturado como uma pesquisa teórica, ou seja, prescinde de busca de dados em campo. Tem como foco o arcabouço teórico de Vigotski no texto sobre formação de conceitos e a elaboração de uma análise crítica da interface deste aporte com outros autores que se servem do mesmo para desenvolver seus estudos e pesquisas. Enfim, neste estudo teórico, buscou-se reconhecer as especificidades do Ensino de Ciências e as aproximações que tal área realizou dos estudos de Vigotski pelo prisma do pluralismo e assim apontar problemas conceituais e epistemológicos. 16 2 – Metodologia da Pesquisa Esta é uma pesquisa teórica, pois implica num estudo das produções acadêmicas de diversos autores com uma temática comum: a formação de conceitos, mais especificamente a produção sobre este assunto realizada por L. S. Vigotski. Segundo Moroz & Gianfaldoni (2002, p. 15) “a pesquisa teórica é aquela cujo questionamento incide sobre um determinado sistema/arcabouço teórico conceitual, vigente numa determinada área de conhecimento”. Para Eco (1999, p.11), a pesquisa teórica é uma confrontação com um problema abstrato, ou seja, algo que não pode se apreciar no empírico diretamente. Contudo, no âmbito do materialismo histórico e dialético, o abstrato está em relação com o concreto, constituindo uma unidade de opostos abstrato-concreto, cuja síntese pode ser o próprio conceito ou o concreto pensado. Assim, os postulados teóricos tratados nesta pesquisa, que são abstratos, em nenhum momento prescindem do concreto, pois ambos estão engendrados no movimento dialético. Nesta visão, são decorrentes do processo histórico da humanidade de apreensão do real (concreto) e das subseqüentes generalizações (significados) do mundo empírico, nomeados por palavras (abstrações). Neste trabalho, o esforço teórico busca a fidedignidade e a integridade dos postulados deste autor em relação à sua base metodológica e filosófica, ou seja, o materialismo histórico dialético e estabelece um diálogo crítico com outros autores na área de Ensino de Ciências que lançaram mão da ótica apresentada por Vigotski, avaliando as conseqüências dessa apropriação. Para Demo (1987, p.24): “O confronto crítico é condição fundamental de 17 aprofundamento da pesquisa para se recuperar níveis apenas descritivos, repetitivos, dispersivos e apresentar penetrações originais”. Para o alcance destes objetivos, a metodologia da pesquisa foi planejada em diversas etapas e foi marcada predominantemente por um estudo sistemático de aprofundamento das principais referências presentes no texto sobre formação de conceitos e a análise destes em outros autores que os aplicam a estudos pertinentes ao Ensino de Ciências. Neste sentido, Demo (1987, p.23-24) também afirma que a pesquisa teórica proporciona a montagem de quadros teóricos de referência, ou seja, sistematiza e lança novas luzes interpretativas e possibilidades de abordagem de um corpo teórico estudado em profundidade. A primeira etapa desta pesquisa foi um estudo detalhado do texto de Vigotski sobre formação de conceitos presentes no livro “A Construção do Pensamento e da Linguagem”. Neste momento, as principais referências teóricas e metodológicas foram destacadas e aprofundadas utilizando-se também outros de seus trabalhos e de seus colaboradores. As referências metodológicas pertinentes ao método do materialismo histórico dialético sofreram um novo detalhamento, em que outros autores foram chamados a colaborar para estruturar a base filosófica e epistemológica no qual Vigotski respaldou sua teoria. A clareza metodológica e conceitual da obra vigotskiana foi entendida como condição irrevogável para o processo de análise crítica que posteriormente foi realizada em outras obras que utilizam referências do psicólogo russo. Não é possível compreender um autor sem buscar suas raízes, sua visão do mundo e do ser humano. Num segundo momento, resgatou-se um pouco da história e das principais problemáticas que envolvem o Ensino de Ciências no Brasil, dando destaque para as discussões que se articulam com as contribuições da psicologia, principalmente no que diz respeito ao debate sobre o processo ensino-aprendizagem e desenvolvimento humano em 18 interface com os conteúdos específicos desta área de conhecimento. Também se ressaltou a influência do pluralismo epistemológico e metodológico neste âmbito e seus desdobramentos. A conseqüência imediata deste resgate no Ensino de Ciências foi a identificação de obras e propostas teórico-metodológicas que incorporaram as contribuições teóricas de Vigotski. Nesta etapa, foi necessário estabelecer alguns critérios para a seleção destes estudos que foram posteriormente indicados para a realização de uma análise minuciosa. Tais critérios foram: a utilização de conceitos oriundos diretamente do escopo teórico de Vigotski e a vinculação destes conceitos a uma variedade de construções teóricas ou estratégias metodológicas de análise ou pesquisa, divergentes da proposta original de Vigotski. Por último buscou-se uma proposta que reconhecidamente fosse relevante para o ensino de Ciências no contexto brasileiro. Após a identificação deste material, base da investigação dessa pesquisa, procedeu-se a análise dos seus principais pressupostos, que foi estruturada na seguinte lógica: apresentação geral dos textos selecionados, a citação dos trechos em que a obra vigotskiana é referenciada e a elaboração de uma argumentação que dialogou com a obra citada em interface com os pressupostos originais de Vigotski. Desse processo emergiram os seguintes indicativos que demonstraram as características da apropriação das idéias de Vigotski: - Problematizações acerca das referências bibliográficas de Vigotski e outros autores que se utilizaram de suas contribuições. - Problematizações acerca do aspecto epistemológico. - Problematizações acerca do uso de conceitos oriundos da obra de Vigotski. Tais indicativos permitiram visualizar de modo mais específico os motivos que determinaram que as idéias vigotskianas fossem incorporadas pelos autores selecionados neste estudo e em que contextos foram inseridas. 19 3 - Pressupostos Teóricos e Metodológicos 3.1 - Materialismo Histórico Dialético L.S. Vigotski (1896-1934) nasceu e viveu toda sua breve existência (faleceu precocemente de tuberculose aos 37 anos) na Rússia. Nesta época vivenciou intensamente a Revolução Socialista de 1917, sendo um ativo participante da constituição da sociedade socialista. Através de seus estudos e propostas teóricas objetivava a estruturação de uma psicologia marxista em oposição às propostas da psicologia tradicional burguesa que não possibilitavam o enfoque revolucionário necessário à época do estabelecimento da nova sociedade. As bases marxistas que alavancaram o processo da Revolução de 1917 eram reconhecidas nos meios acadêmicos como a única forma possível de se fazer ciência e produzir conhecimento. O desafio dos cientistas da revolução era a implantação de uma ciência para a sociedade que emergia a partir das possibilidades de ruptura com o capitalismo apontadas por Karl Marx no seu método: o materialismo histórico dialético. Neste contexto, toda a produção de Vigotski é resultado do momento histórico sui generis em que está inserido em relação com sua reconhecida genialidade, e seu escopo teórico serve explicitamente para fortalecer e respaldar o entendimento do ser humano a partir do referencial marxista. 20 A compreensão da obra de Vigotski descolada do seu processo histórico e, por conseqüência, alijado do seu método, ou seja, o materialismo histórico dialético, significa alvitrar contra uma de suas maiores contribuições: o entendimento dos processos psicológicos a partir de sua historicidade. A apreensão das suas contribuições só poderá ter sentido a partir do aprofundamento no seu método e o seu posicionamento histórico. SegundoTuleski (2002, p.16): O desejo de Vygotski, [...] era abordar o estudo da mente utilizando-se do método de Marx, opondo-se frontalmente à utilização de citações e junções ecléticas entre os clássicos marxistas e as teorias psicológicas ocidentais, como tentativa de construção de uma psicologia marxista. O desafio de Vigotski representava algo inédito na própria história da psicologia até então, pois conforme afirma Tuleski no trecho acima citado, não havia uma psicologia marxista constituída de maneira coerente com o materialismo histórico dialético, mas sim uma colagem de idéias e conceitos sem a produção de um novo conhecimento. A profunda compreensão que Vigotski possuía acerca do método de Marx foi o pré-requisito fundamental para o surgimento da nova psicologia. Este trabalho procurará retomar esta trajetória para o entendimento das idéias de Vigotski, ou seja, num primeiro momento haverá a explicitação de alguns dos pressupostos básicos do materialismo histórico dialético e, em seguida, a apresentação do estudo sobre formação de conceitos realizado por Vigotski, que só poderá ser apreendido em sua complexidade a partir da compreensão do seu método. Cabe ressaltar que o materialismo, a dialética e a história são princípios que emergem na filosofia em diferentes momentos e são tratados de modos distintos por filósofos de variadas vertentes. Coube a K. Marx, no século XIX, sintetizar e reunir estes pressupostos num método novo e único. 21 3.2 - Produção de Conhecimento Como conhecemos as coisas? É uma questão tão antiga quanto a capacidade de conhecer do ser humano. Particularmente, a filosofia e, em especial, a epistemologia (parte da filosofia que estuda como o conhecimento se produz, também conhecida como gnosiologia) se debruçam sobre esta problemática e durante séculos diversos métodos acerca do processo de conhecer foram elaborados. Tais métodos foram estruturados a partir de concepções sobre o ser humano (sujeito) e sobre as coisas e fenômenos que se apresentam a este ser humano (objetos). Sendo a produção do conhecimento algo que ocorre entre este sujeito e estes objetos, no qual o método é elaborado para explicar esta relação entre ambos (sujeito e objeto). A produção do conhecimento nessa relação foi discutida a partir de dois referenciais distintos: no primeiro existe a prerrogativa de que o sujeito (seu pensamento, sua consciência, seu espírito) surge primeiro e os objetos (o mundo material) são derivados em certa medida do sujeito. No segundo referencial, os objetos surgem em primeiro lugar e o sujeito é sua derivação. Na filosofia se convencionou nomear a primeira concepção de idealista (ou idealismo) e a segunda de materialista (ou materialismo). Politzer et al. (s/d, p.110), procurou demonstrar esta dicotomia da seguinte forma: “Ou a matéria (o ser, a natureza) é eterna, infinita, primeira e o espírito (o pensamento, a consciência) deriva dela; ou então, o espírito (o pensamento, a consciência) é eterno, infinito, primeiro e a matéria (o ser , a natureza) dele deriva.”. 22 Deste modo, o materialismo é a doutrina que postula que o mundo material existe independente da consciência humana, e o ser humano, é também parte do mesmo. Contudo, segundo o marxismo, a partir da atividade sobre a natureza, transformando-a, este sujeito se diferencia e tem a possibilidade de interferir e, por conseqüência, pensar sobre este mundo material. Conforme Andery (1988, p.411) comenta sintetizando a concepção de Marx: A concepção materialista de Marx carrega em sua base uma concepção de natureza e da relação do homem com esta natureza. Para Marx, o homem é parte da natureza mas não se confunde com ela. O homem é um ser natural porque foi criado pela própria natureza, porque está submetido a leis que são naturais (em oposição a sobrenaturais), porque depende da natureza, o homem se diferencia da natureza já que usa da natureza transformando-a conscientemente segundo suas necessidades e, nesse processo, se faz homem. Neste sentido, o conhecimento é oriundo da atividade do sujeito em se diferenciar da natureza (objetos), transformando-a para atender as suas necessidades de sobrevivência, sendo que simultaneamente este ser humano também se modifica, dialeticamente no decorrer da história da humanidade. A lógica é um ramo da filosofia que busca compreender as leis do pensamento humano e atualmente a lógica formal e a lógica dialética constituem as principais formulações que as explicam. Contudo, ambas não comungam das mesmas leis e modos de produzir conhecimento. A lógica formal possui três principais leis: princípio da identidade: uma coisa é idêntica a si mesma (A é A); princípio da não contradição: uma coisa não pode ser, ao mesmo tempo, ela mesma e seu contrário (A não é não-A); princípio do terceiro excluído: entre duas possibilidades contraditórias não há lugar para uma terceira (se A e não-A são contraditórios, determinada coisa é A ou não-A). Deste modo, tal lógica se detém na definição, classificação 23 e qualificação do objeto em si, correndo o risco de ficar apenas na aparência do fenômeno (POLITZER et al., s/d, p. 33-34). Já a lógica dialética se preocupa com a relação entre o objeto e suas negações para chegar à síntese (conhecimento), dentro de um conjunto de relações que o mesmo estabelece. A lógica dialética permitiu a Marx revitalizar a relação sujeito–objeto, sem cair na tradição anterior da filosofia que os isolava e tratava-os separadamente ou os unificavam, como no caso de Hegel2 em especial. Segundo Politzer et al. (s/d) as principais leis da dialética são: tudo se relaciona, ou seja, as coisas mantêm entre si uma ação recíproca e de conexão, sendo assim impossível conhecer o objeto sem considerar estas multideterminações ou, melhor dizendo, sua totalidade. Tudo se transforma, em outras palavras, as coisas são incessantemente modificadas, a matéria está em constante movimento. As mudanças quantitativas ocasionam as mudanças qualitativas, ou seja, há uma superação de um estado qualitativo anterior através da incorporação das mudanças quantitativas. E, por último, a contradição ou luta dos contrários, que implica em afirmar que cada coisa encerra em si (internamente) seu contrário, com o qual forma uma unidade. Além das leis da dialética é necessária também a compreensão do papel das categorias no modo de produção do conhecimento marxista. Segundo Kopnin (1978, p.105), “as categorias são termos mais gerais”. Para Marx (1978, p.121), “as categorias exprimem formas de modos de ser, determinações de existência...”. As categorias expressam aspectos da realidade que foram generalizados e conceitualizados, sendo sempre entendidas em sua unidade de contrários (concreto-abstrato, 2 Hegel, de concepção idealista, afirmava que as leis do pensamento (sujeito) são as leis da natureza, do ser; já que é o pensamento que constitui o ser. As idéias que originam os conceitos é a realidade que se manifesta nestes conceitos, ou seja, o sujeito (pensamento) = Objeto (coisas). (KOPNIN, 1978, p.49-50.) 24 aparência-essência, forma-conteúdo) e se aplicam ao fenômeno em análise de modo a constituir uma metodologia de estudo científico própria do materialismo dialético. Marx e Engels aplicam a lógica dialética à concepção materialista, o que significa em última instância, que as leis do pensamento são oriundas das leis da natureza (base material), assim os princípios e categorias da dialética representam o que ocorre na realidade. Este pressuposto pode ser mais bem compreendido a partir do chamado “princípio do reflexo”, que segundo Kopnin (1978, p.50), significa: “o reconhecimento do fato de ser a atividade prático- sensorial a base imediata do surgimento de todas as faculdades mentais, inclusive o próprio pensamento.”. Ainda Kopnin (1978, p.52), argumenta que o reflexo da natureza na consciência humana não é algo estático e imutável, mas sim um processo incessante de aprofundamento na essência do objeto. Na afirmação de Lenine (apud POLITZER et.al., s/d, p.87): O conhecimento é o processo pelo qual o pensamento se aproxima, infinita e eternamente, do objeto. O reflexo da natureza no pensamento humano deve ser compreendido, não de maneira “morta”, não abstratamente, não sem movimento, não sem contradição, mas no processo eterno do movimento, do nascimento das contradições e de sua resolução. Sendo assim, as leis do mundo objetivo são refletidas nas leis do pensamento, ou seja, o modo de pensar dialético nada mais é que a apreensão do real (dos objetos), logo existe uma coincidência entre dialética, lógica e teoria do conhecimento. Nas palavras de Kopnin (1978, p.53): Um vez apreendidas, as leis do mundo objetivo se convertem em leis também do pensamento, e todas as leis do pensamento são leis representadas do mundo objetivo; revelando as leis de desenvolvimento do próprio objeto, apreendemos também as leis de desenvolvimento do conhecimento e vice-versa, mediante o estudo do conhecimento e suas leis descobrem-se as leis do mundo objetivo. 25 Em síntese, somente através da atividade sobre e na natureza (o trabalho), o ser humano se diferencia da mesma e inicia a produção de uma natureza humanizada (ou social), contudo para que isso possa ocorra, as sensações concretas sobre o objeto que o ser humano experimenta na atividade devem ser representadas (re-apresentadas) internamente, na sua mente, como pensamentos, conceitos, idéias (abstrações) para então serem novamente redimensionados a partir do entendimento das múltiplas relações que o constituem concretamente. Este movimento dialético que caracteriza o método marxista é sintetizado pelo próprio Marx a partir das categorias concreto-abstrato: o concreto é concreto porque é a síntese de múltiplas determinações, isto é, unidade do diverso. Por isso o concreto aparece no pensamento como o processo de síntese, como resultado, não como ponto de partida, ainda que seja o ponto de partida efetivo e, portanto, o ponto de partida também da intuição e da representação. (MARX, 1978, p. 116-117) A produção de conhecimento na perspectiva do materialismo dialético tem profundas implicações para a psicologia e, em particular, para Vigotski, que reconhece no incessante movimento de apreensão do objeto, no princípio do reflexo, na estruturação da consciência a partir das representações do real, a base para um novo entendimento da constituição psicológica do sujeito. Em seus estudos, estes pilares do método marxista são vistos em profundidade, com destaque especial para a questão do conceito. 3.3 - O Conceito de Conceito Nos estudos filosóficos marxistas, o conceito é, em certa medida, referenciado principalmente como aspecto importante no processo de apropriação do concreto, para representá-lo mentalmente como abstrações (conceitos) que devem reconfigurar novamente o 26 concreto nas suas múltiplas relações e historicidade, tornando-o concreto pensado. Em Marx, este raciocínio surge na explicação de seu método: ...na medida em que a totalidade concreta, como totalidade de pensamentos, como um concreto de pensamentos, é de fato um produto do pensar, do conceber, não é de modo nenhum o produto do conceito que pensa separado e acima da intuição e da representação, e que se engendra a si mesmo, mas da elaboração da intuição e da representação em conceitos. (MARX, 1978, p.117) O conceito se coloca como resultado do processo de abstração do ser humano decorrente do reflexo na sua consciência da concretude do real, trata-se de um “desvendar” do mundo objetivo a partir das possibilidades históricas de apreensão das múltiplas determinações do objeto ou fenômeno. Não há possibilidade de conhecimento sem a elaboração do conceito como produto do movimento concreto-abstrato-concreto pensado na compreensão da totalidade. Em outras palavras, o todo que é primeiramente percebido pelo ser humano precisa ser compreendido no seu aspecto multifacetado, o que implica na possibilidade de reproduzir algumas das suas dimensões e elementos no plano mental (ou ideal), desta forma emerge o conceito. Trata-se do esforço de apreensão do objeto além do seu aspecto sensível (ou sensorial). Segundo Kosik: ...o método da ascensão do abstrato ao concreto é o método do pensamento; em outras palavras, é um movimento que atua nos conceitos, no elemento da abstração. O progresso da abstratividade à concreticidade é, por conseguinte, em geral movimento da parte para o todo e do todo para a parte; do fenômeno para a essência e da essência para o fenômeno; da totalidade para a contradição e da contradição para a totalidade; do objeto para o sujeito e do sujeito para o objeto. (1969, p. 30). Pelo método dialético, o conceito de conceito deve ser compreendido também a partir do seu contrário que no caso é a sensação. A unidade sensação-conceito é uma síntese do 27 processo de produção de conhecimento no materialismo dialético, conforme anteriormente explicitado. Para Politzer et al. (s/d, p.52): A sensação é, com efeito, um reflexo parcial da realidade, que não nos dá, da realidade, senão os seus aspectos exteriores. Mas pela prática social, pelo trabalho, os homens se aprofundam nessa realidade; conseguem conquistar a inteligência dos processos internos, que, a princípio, lhes escapava; ascendem às leis que, para além da aparência explicam o real. Esta conquista é o conceito, qualitativamente novo, em relação às sensações, se bem que estas sejam, pela repetição múltipla, necessárias à elaboração do conceito. O conceito de calor, por exemplo, jamais poderia ter-se constituído se os homens não tivessem tido, em circunstâncias infinitamente numerosas e variadas, a sensação de calor. Mas, para passar das sensações ao conceito atual de calor, como forma de energia, foi preciso uma prática social milenar, que tornou possível a assimilação das propriedades fundamentais do calor: os homens aprenderam a fazer fogo, a utilizar os efeitos dele de mil modos diferentes, para a satisfação de suas necessidades, muito mais tarde aprenderam a medir o calor, a transformar o calor em trabalho, o trabalho em calor,etc. Nesta perspectiva, a relação sensação-conceito também pode ser melhor compreendida através das categorias aparência-essência, pois a sensação corresponde aos aspectos aparentes ou exteriores do objeto ou fenômeno. Já o conceito estaria representando aspectos da sua essência, ou seja, algo que subjaz à aparência, mas que a determina por suas múltiplas relações. O movimento dialético da sensação ao conceito é avaliado por Politzer et al. (s/d, p.63) como a superação das formas inferiores de conhecimento (sensação) para as formas superiores de conhecimento (conceito), ou seja, as mudanças quantitativas ocasionam mudanças qualitativas. Politzer et al. (s/d, p.87, 88) ainda aprofunda esta discussão argumentando que: É assim que a passagem qualitativa da sensação ao conceito. [...] é um movimento que se dá por contradição: a sensação reflete, com efeito, um aspecto singular, limitado do real; o conceito nega este aspecto singular para afirmar o universal; ele supera as limitações da sensação, para exprimir 28 a totalidade do objeto. Neste sentido, o conceito é a negação da sensação [...] Mas, o conceito assim elaborado pela negação da sensação (pela luta contra esse nível inferior de conhecimento) age de volta sobre a sensação. Após tê-la negado, ele lhe dá meios de afirmar-se com nova força, porque percebe-se melhor naquilo que se compreendeu. Assim, sensação e conceito, conceito e sensação, constituem uma unidade de contrários em interação, cada qual se afirmando contra o outro, apesar de se fortalecerem mutuamente. (A sensação, tendo necessidade do conceito que a esclarece, e o conceito tendo necessidade da sensação como ponto de apoio). Enfim, o conceito, nas elaborações filosóficas e epistemológicas do materialismo histórico dialético, está posicionado de modo importante na produção do conhecimento, sendo peça-chave no processo de apreensão do objeto. Neste contexto, o trabalho de Vigotski complementa o estudo sobre o conceito, porém através de estudos experimentais no âmbito da psicologia, buscando uma explicação da complexa elaboração do conceito na consciência humana. 29 4 - Método do Materialismo Histórico Dialético em Vigotski no estudo do Pensamento e da Linguagem Para Vigotski o pensamento e a linguagem são funções psíquicas superiores, ou seja, resultados da etapa mais evoluída no desenvolvimento do ser humano. Para a compreensão desta prerrogativa é necessário retomar a historicidade presente nos seus estudos. O entendimento do psiquismo humano segundo os pressupostos de K. Marx deve conter também a história de seu desenvolvimento, mas não somente uma história factual, fragmentada e pontuada por fatos isolados. Segundo Vigotski: Estudar algo historicamente significa estudá-lo em movimento. Esta é uma exigência do método dialético. Quando em uma investigação se abarca o processo de desenvolvimento de algum fenômeno em todas as suas fases e transformações, desde seu surgimento até seu desaparecimento, isso implica colocar em manifesto sua natureza, conhecer sua essência [...] a investigação histórica do comportamento não é algo que complementa ou ajuda o estudo teórico, mas algo que constitui seu fundamento. (VIGOTSKI, 2000b, 67-68).3 A ausência da historicidade no estudo do desenvolvimento psíquico impossibilitou a compreensão do movimento que foi gradualmente transformando as funções psíquicas primitivas (rudimentares) em superiores. Fato que ocasionou estudos psicológicos destas funções de modo isolado, desvinculados da relação do ser humano com a natureza, tornando- 3 Tradução nossa. No original: Estudiar algo históricamente significa estudiarlo en movimiento. Esta es la exigencia fundamental del método dialéctico. Cuando en una investigación se abarca el proceso de desarrollo de algún fenómeno en todas sus fases y cambios, desde que surge hasta que desaparece, ello implica poner de manifiesto su naturaleza, conocer su esencia, ya que sólo en movimiento demuestra el cuerpo que existe. Así pues, la investigación histórica de la conducta no es algo que complementa o ayuda el estudio teórico, sino que constituye su fundamento. 30 as entes abstratos, oriundas de uma realidade espiritual ou reduzidas somente a fatores biológicos. A retomada histórica do desenvolvimento psicológico do ser humano apresentada por Vigotski pressupôs que a medida que a relação dialética do ser humano com a natureza vai se modificando (o real apresenta-se ao homem, que o transforma e ao mesmo tempo é transformado, num esforço de dominação da natureza através do trabalho), as funções psicológicas deste homem também se transformam. E ainda, para ter controle (dominar) a realidade (natureza) no qual esta se apropriando, este ser humano necessita também dominar- se, agir com intencionalidade, “controlar” seu comportamento, “prever” suas ações. Neste sentido, o esforço de dominação da natureza (mundo material) é refletido na busca do domínio do próprio comportamento (mundo subjetivo), num movimento dialético contínuo entre a objetividade e a subjetividade (unidade de contrários), indicando que as “fronteiras” entre o externo (fora de si) e o interno (dentro de si) não são rígidas, nem estáticas. Tanto os seres humanos quanto os animais originalmente reagiam às condições que a natureza impõe para a sobrevivência de modo bastante análogo. A diferenciação entre ambos processou-se gradualmente através da superação, por parte do homem, de reações somente instintivas ou de intervenções isoladas. Esta superação implicou em momentos em que houve uma ruptura (mudança qualitativa) com a realidade imediata e introduziu-se meios auxiliares que orientam a conduta psicológica do ser humano. Desta forma, a relação do ser humano com a natureza progressivamente tornou-se mediada (em contradição a imediata). Para a compreensão da atividade mediadora Vigotski apoiou-se em Engels (2000b, p. 93). Esse último afirmou que a mediação é a propriedade que melhor caracteriza a razão. E que a atividade mediadora possibilita uma relação de influência recíproca entre os objetos de acordo com sua natureza própria, sem que os mesmos participem diretamente (ou sejam consumidos) neste processo, contudo tais objetos ainda mantêm sua finalidade ou objetivo. 31 Em outras palavras, através da mediação é possível apreender as relações entre os objetos, sem que os mesmos sofram uma intervenção direta ou imediata. Num primeiro momento, a forma inicial desta mediação no âmbito do psiquismo foi a utilização de signos, criados pelo próprio ser humano, para ser parte integrante de sua relação com o meio de modo a sinalizar processos de autocontrole, indicar ações ou comportamentos, ou seja, dominar sua conduta. Nas palavras de Vigotski: Chamamos de signos os estímulos-meios artificiais introduzidos pelo homem na situação psicológica, que cumprem a função de auto-estimulação [...] De acordo com nossa definição, todo estímulo condicional criado pelo homem artificialmente e que se utiliza como meio para dominar a conduta – de si próprio ou de outro – é um signo. (2000b, p.83)4 Alguns signos primitivos que remontam aos primórdios da história do desenvolvimento psicológico do ser humano citados por Vigotski são: amarrar um pedaço de barbante no dedo (meio auxiliar) para lembrar de algo, contar com os dedos ou partes do corpo (meios auxiliares) os objetos numa dada situação, tirar a sorte (meio auxiliar) para tomar uma decisão. Cabe ressaltar que tais signos não são simplesmente arbitrários e gerados internamente pelo ser humano, são apropriados da realidade concreta a partir de situações de simultaneidade, similaridade, consecutividade e repetição, dentre outras, que relacionam, por exemplo, o fato que precisa ser lembrado com a disponibilidade de sinalizá-lo com um barbante que se foi encontrado no mesmo momento. Segundo Vigotski: A cada determinada etapa no domínio das forças da natureza corresponde sempre uma determinada etapa no domínio da conduta, na submissão dos processos psíquicos ao poder do homem. A adaptação ativa do homem ao meio, a transformação da natureza pelo ser humano não pode estar baseada na sinalização que reflita passivamente os vínculos naturais de toda sorte de fatores. [...] O homem introduz estímulos artificiais, confere significado a 4 Tradução nossa. No original: Llamamos signos a los estímulos-medios artificiales introducidos por el hombre en la situación psicológica, que cumplen la función de autoestimulación [...] De acuerdo con nuestra definición, todo estímulo condicional creado por el hombre artificialmente y que se utiliza como medio para dominar la conducta - propia o ajena – es un signo. 32 sua conduta e cria com a ajuda dos signos, que atuam de fora, novas conexões em seu cérebro. (2000b, 85).5 A relação mediada com a realidade, portanto, historicamente foi iniciada com a utilização de signos primitivos que possuíam a função de sinalizar (ou indicar) a conduta do ser humano. Posteriormente, tais sinalizações assumem feições mais complexas, superando a finalidade única de sinalizar, iniciando o processo de significar (significação). E a vinculação deste significado com o som é a palavra (linguagem). 4.1 - A Gênese do Pensamento e da Linguagem O manuscrito sobre o pensamento e a linguagem foi a última obra de Vigotski, em que se nota uma tentativa de síntese de uma concepção de consciência e o amadurecimento da aplicação do método marxista à psicologia. O interesse de Vigotski pela problemática do pensamento e da linguagem a partir de estudos da área da psicologia, ocorreu num momento histórico em que esta temática foi muito explorada e vários estudos foram publicados por pesquisadores europeus (Piaget, Stern, Koffka) apresentando seus modelos explicativos. Vigotski retomou o modo como a ciência historicamente tratava esta problemática e apontou que as abordagens anteriores ou contemporâneas aos seus estudos geralmente 5 Tradução nossa. No original: A cada etapa determinada en el dominio de las fuerzas de la naturaleza corresponde siempre una determinada etapa en el dominio de la conducta, en la supeditación de los procesos psíquicos al poder del hombre. La adaptación activa del hombre al medio, la transformación de la naturaleza por el ser humano no puede estar basada en la señalización que refleja pasivamente los vínculos naturales de toda suerte de agentes. [...] El hombre introduce estímulos artificiales, confiere significado a su conducta y crea con ayuda de los signos, actuando desde fuera, nuevas conexiones en el cerebro. 33 cometem dois equívocos: ou separam completamente o pensamento da linguagem ou os igualam como se fossem idênticos. (2000a, p.02) Para esclarecer estes equívocos metodológicos, Vigotski foi buscar as raízes genéticas (a gênese, a origem) do pensamento e da linguagem. Sua primeira estratégia foi conhecer todos os estudos até então realizados sobre esta temática nos animais, particularmente nos macacos. Assim, mediante os resultados apresentados por Bühler, Köhler, Yerkes, Koffka nos seus experimentos com macacos na chamada psicologia comparativa e estabelecendo relações com as conclusões de sua própria pesquisa, Vigotski elaborou alguns apontamentos fundamentais. Primeiramente o reconhecimento de que o pensamento e a linguagem possuem origens diferentes, tanto nos antropóides quanto nas crianças, por isso não podem ser simplesmente igualadas. O pensamento ou intelecto, no estágio inicial, funciona somente para a utilização rudimentar de instrumentos, mas que não se mantêm no pensamento como imagens ou ideação (ou representação). A linguagem existe de modo intenso nos grupos de macaco e nas crianças, mas, de maneira geral, servem apenas para manifestar estados afetivo-volitivos subjetivos, sem se referir a objetos. Neste contexto, a linguagem em nenhum momento está relacionada com o pensamento, ou seja, não existe a capacidade de utilizar palavras ou sons para tentar comunicar algo com relação ao uso de instrumentos ou objetos. Estes resultados apontaram para a conclusão que existe uma fase pré-verbal no desenvolvimento do pensamento e uma fase pré-intelectual no desenvolvimento da fala (2000a, p. 128). No ser humano, a evolução tanto do pensamento quanto da linguagem, que apesar de possuírem raízes distintas, em algum momento estabelecem uma relação e vão se desenvolvendo juntas, constitui o que Vigotski nomeou de “pensamento verbalizado”. Isso não exclui as outras formas de intelecto pré-verbal e de fala pré-intelectual. Em suas palavras: 34 Esquematicamente, poderíamos conceber a relação entre pensamento e linguagem como dois círculos que se cruzam, mostrando que em uma parte desse processo os dois fenômenos coincidem, formando o chamado pensamento verbalizado. Mas este pensamento não esgota todas as formas de pensamento nem de linguagem. Há uma vasta área do pensamento que não mantém relação direta com o pensamento verbal. (VIGOTSKI, 2000a, p. 139) Para a compreensão do surgimento do pensamento verbalizado no ser humano, Vigotski retomou no contexto da psicologia, o fenômeno da internalização (ou em certa medida, o princípio do reflexo6) ao afirmar que (2000a, p.139): “...no comportamento não há efetivamente acentuadas fronteiras metafísicas entre o exterior e o interior, um pode se transformar no outro, um pode desenvolver-se sob a influência do outro” Ainda que não tenha explicitado, neste momento, os pormenores do movimento entre interior e exterior na constituição das funções psíquicas, Vigotski já apontou que existe uma série de mudanças estruturais e funcionais no desenvolvimento tanto da linguagem quanto do pensamento que culminam com o surgimento do pensamento verbalizado. O que possibilita este salto qualitativo na relação pensamento-linguagem, o que nos animais não é possível acontecer, é a experiência sóciocultural da criança (VIGOTSKI, 2000a, p.149). Desta forma, as vivências das crianças no âmbito sócio-histórico permitem as transformações graduais no modo de pensar e de falar que desencadeiam a mudança qualitativa: da primazia do biológico (como nos antropóides) para o especificamente humano (histórico-social). E finalmente, ao retomar a questão do método, Vigotski afirmou (2000a, p.149): 6 Vigotski comenta o princípio do reflexo quando discute a generalização no capítulo: “O problema e o método de investigação”: Mas a generalização, como é fácil perceber, é um excepcional ato verbal do pensamento, ato esse que reflete a realidade de modo inteiramente diverso daquele como esta é refletida nas sensações e percepções imediatas. Quando se diz que o salto dialético não é só uma passagem da matéria não-pensante para a sensação, mas também passagem da sensação para o pensamento, se está querendo dizer que o pensamento reflete a realidade na consciência de modo qualitativamente diverso do que o faz a sensação imediata. Pelo visto, existem todos os fundamentos para se admitir que essa diferença qualitativa da unidade é, no essencial, um reflexo generalizado da realidade. (2000a, p. 09-10). 35 ...o pensamento verbal não é uma forma natural e inata de comportamento mas uma forma histórico-social, e por isso se distingue basicamente por uma série de propriedades e leis específicas, que não podem ser descobertas nas formas naturais do pensamento e da linguagem. Mas a conclusão principal é a de que, ao reconhecermos o caráter histórico do pensamento verbal, devemos estender a essas formas de comportamento todas as teses metodológicas que o materialismo histórico estabelece para todos os fenômenos históricos na sociedade humana. [grifos no original] 4.2 - O Estudo do Pensamento Verbalizado Ao concluir que o pensamento verbalizado constitui a forma mais evoluída de apresentação da relação pensamento-linguagem no ser humano adulto e que o mesmo deve ser estudado a partir de sua história, Vigotski tem diante de si um novo desafio metodológico: como conhecê-lo? No seu entendimento, o pensamento verbalizado representava uma totalidade, uma síntese, e neste sentido, uma importante estratégia metodológica de compreensão do fenômeno pôde ser utilizada: a relação todo-parte ou totalidade-unidade. Tendo em vista que a totalidade não é apreendida pela mente humana de maneira imediata, o caminho para se alcançar este conhecimento é a compreensão das unidades ou partes que a constituem, pois nestas estão contidas, em certa medida, as propriedades do todo. Ou seja, encontrar a unidade fundamental de uma totalidade e estudá-la para implicá-la novamente na totalidade foi uma das metodologias adotadas por Vigotski neste estudo. Esta pode ser qualificada como análise que decompõe em unidades a totalidade complexa. Subentendemos por unidade um produto da análise que, diferente dos elementos, possui todas as propriedades que são inerentes ao todo e, concomitantemente, são partes vivas e indecomponíveis dessa unidade. (VIGOTSKI, 2000a, p.08). 36 Na investigação realizada para identificar a unidade indecomponível que subjaz à questão do pensamento e da linguagem, Vigotski revelou o significado da palavra como unidade. No raciocínio do próprio Vigotski (2000a, p.08): “Que unidade é essa que não se deixa decompor e contém propriedades inerentes ao pensamento verbalizado como totalidade? Achamos que essa unidade pode ser encontrada no aspecto interno da palavra: no seu significado.”. Não existe um pensamento humano ou uma palavra pronunciada que não encerre um significado. Assim, o estudo desta unidade é o caminho para a compreensão do pensamento verbalizado. Contudo, o que é o significado? É, antes de tudo, o resultado do movimento das contradições entre sensação e conceito, como visto anteriormente. A sensação se apresenta no pensamento a princípio como um todo que gradualmente vai sendo reconhecido em aspectos ou parte (abstração) e assim conceitualizado, tendo como base o processo de generalização. Portanto, a compreensão do objeto não é feita de modo particularizado ou individualizado, se ocorresse deste modo, cada coisa na face da terra deveria ser conceitualizada ou nomeada. Trata-se de abstrair dialeticamente as diferenças e semelhanças presentes nos objetos que constituem a totalidade e apreender as suas inter-relações. Logo, a generalização é o significado, na medida em que sintetiza o modo de apreender e nomear os objetos ou fenômenos a partir de suas características ou propriedades. Enfim, se toda a palavra possui um significado, obviamente também implica numa generalização. Conforme Vigotski (2000a, p.9): “A palavra nunca se refere a um objeto isolado mas a todo um grupo ou classe de objetos. Por essa razão cada palavra é uma generalização latente, toda palavra já generaliza e, em termos psicológicos, é antes de tudo uma generalização.” 37 5 - Estudos Experimentais sobre a Formação de Conceitos 5.1 - A Questão da Metodologia de Investigação Para desenvolver seus estudos sobre a formação de conceitos, Vigotski primeiramente realizou uma análise crítica dos métodos de investigação até então utilizados pelos estudiosos de sua época. Existiam dois métodos considerados incompletos: o método de definição e o método da abstração. O método da definição contempla os estudos que visam conhecer os conceitos que a criança já adquiriu, buscando que a mesma relate verbalmente, ou seja, dê uma definição deste conceito, relate com outras palavras o que significa o conceito em estudo. Vigotski afirmou que este método possui duas limitações: a primeira é que a investigação recai somente sobre os conceitos prontos, não estudam o processo de sua formação; a segunda é a centralização do estudo na palavra, negligenciando o material sensorial que, principalmente na criança, compõe o vínculo essencial para a formação do conceito (2000a, p.151-152). Já o método da abstração consiste em buscar que a criança identifique um aspecto semelhante a partir da apresentação de diferentes objetos ou outros dados sensoriais e concretos. Tal metodologia, segundo Vigotski, também é incompleta pois simplifica o processo de abstração, reduzindo-o somente a um aspecto, sem considerar a complexidade do processo sintético que subjaz à palavra (2000a, p.152-153). 38 Em busca de alternativa para a investigação da formação de conceitos, Vigotski viu no método desenvolvido por Ach um grande avanço para a pesquisa que realizou posteriormente. Chamado de método sintético-genético, seu objetivo é estudar o processo de construção do conceito e seu desenvolvimento (2000a, p.153). Trata-se de uma proposta que apresenta às crianças, palavras artificiais, sem sentido num primeiro momento e que a partir do desenvolvimento de uma série de relações com diferentes objetos, tais palavras podem se constituir como conceitos. Vigotski analisou os resultados dos estudos de Ach, Rimat e Uznadze realizados com o método sintético sobre a formação de conceitos, considerando alguns pontos importantes como a negação do associacionismo enquanto explicação para a formação de conceitos e o estudo das relações funcionais que permitem o surgimento do conceito. Por outro lado, considerou que faltava uma análise mais profunda e consistente filosoficamente, em suas palavras: Esses estudos, que superaram definitivamente a concepção mecanicista da formação de conceitos, ainda assim não revelaram a efetiva natureza genética, funcional e estrutural desse processo e se perderam na explicação puramente teleológica das funções superiores; tal explicação se restringe a afirmar que o objetivo cria por si mesmo, com o auxílio das tendências determinantes, uma atividade correspondente voltada para um fim, e que em si mesmo o problema já contém a sua solução (VIGOTSKI, 2000a, p.163). Desta forma, Vigotski e seu colaborador Sákharov, desenvolveram uma metodologia de estudo da formação de conceitos denominada de método funcional de dupla estimulação, pois: estudam-se o desenvolvimento e a atividade das funções psicológicas superiores com o auxílio de duas séries de estímulos: uma desempenha a função do objeto da atividade do sujeito experimental, a outra, a função dos signos através dos quais essa atividade se organiza. (VIGOTSKI, 2000a, p.164). 39 Este novo método de estudo da formação do conceito possui algumas diferenças em relação ao modelo proposto por Ach, pois este começava o experimento com um período de memorização dos objetos e seus nomes para, em seguida, apresentar o problema a ser resolvido. Já no método modificado, não ocorre esta fase de memorização. A finalidade da atividade já é apresentada desde o início. De modo resumido, a metodologia proposta por Sákharov e Vigotski, possuía o seguinte procedimento: foram colocadas à disposição do sujeito várias figuras geométricas, que possuem variações de cores, tamanhos e formas. Em cada figura geométrica estava inscrita uma palavra artificial que a designava. Cabia ao sujeito identificar o significado da palavra a partir da análise das propriedades de cada figura e suas relações. E tais palavras artificiais representavam novos conceitos anteriormente desconhecidos pelo sujeito, por exemplo, a palavra “pas” indicava figuras grandes e altas, a palavra “bik” representava as figuras grandes e chatas, dentre outras. (VIGOTSKI, 2000a, p.166; LURIA, 1984, p.69-70). Neste contexto em que cada palavra representava um conceito, ou seja, possuía um significado oriundo das relações entre os objetos (figuras) que eram utilizados pelo sujeito, cabia ao participante descobrir através de uma análise das semelhanças e diferenças destas figuras a possibilidade de generalização que contemplasse a relação adequada entre as figuras e seu nome (conceito ou palavra). Os estudos promovidos por Vigotski e seus colaboradores, baseados nesta nova metodologia, foram realizados com crianças, adolescentes e adultos, totalizando mais de trezentas pessoas (VIGOTSKI, 2000a, p.167). Os resultados apresentados serão expostos no próximo capítulo. 40 5.2 - Os Estágios da Formação de Conceitos O desenvolvimento dos conceitos tem sua raiz na fase mais precoce da criança e evolui num movimento que configura as funções psicológicas em diferentes etapas e em modos de funcionamento diversos, que possuem um papel funcional distinto em cada uma delas. Vigotski identificou estes modos de funcionamento dinâmico causal que predominam num determinado momento do desenvolvimento da formação de conceitos e sua funcionalidade, e procurou sistematizá-los em estágios, porém sem uma proposta de delimitar faixas etárias ou padrões de normalidade. Ao identificar os fatores que levam ao desenvolvimento, Vigotski já apontou que o meio social é o desencadeador de demandas que motivam o percurso por entre os estágios da formação de conceitos. Ao discutir esta questão abordando o adolescente, Vigotski afirmou: ...onde o meio não cria os problemas correspondentes, não apresenta novas exigências, não motiva, nem estimula com novos objetivos o desenvolvimento do intelecto, o pensamento do adolescente não desenvolve todas as potencialidades que efetivamente contém, não atinge as formas superiores ou chega a elas com um extremo atraso. (VIGOTSKI, 2000a, p.171). Desta forma, a adoção de um modelo que se assenta sobre padrões etários adequados de desenvolvimento da formação de conceitos é equivocada, na medida em que as forças determinantes desta evolução do pensamento estão colocadas fora do indivíduo, logo dependem prioritariamente do contexto onde o sujeito em desenvolvimento se insere. Vigotski identificou três estágios básicos na formação de conceitos: o primeiro estágio apresenta três fases, o segundo se desenvolve em cinco etapas e o terceiro em duas fases. 41 5.2.1 - Primeiro Estágio - Sincrético O primeiro estágio da formação de conceitos se inicia na tenra infância e tem como característica principal um pensamento conceitual indiscriminado, ou seja, a criança não consegue estabelecer uma relação entre o objeto e seu significado, ela faz um “amalgáma” das suas percepções, ações e vivências dos objetos e os nomeia de modo desconexo. Por isso o uso do termo sincretismo para descrever o modo de conceituar da criança neste estágio, implica na junção de uma diversidade de objetos e significados. Segundo Vigotski, o estágio sincrético, pode ser descrito: Neste estágio do desenvolvimento, o significado da palavra é um encadeamento sincrético não enformado de objetos particulares que, nas representações e na percepção da criança estão mais ou menos concatenados em uma imagem mista. Na formação dessa imagem cabe o papel decisivo ao sincretismo da percepção ou da ação infantil, razão por que essa imagem é sumamente instável. (VIGOTSKI, 2000a, p.175) Nota-se que a percepção é um fator de grande influência no modo de pensar da criança neste estágio, pois em alguns momentos o modo de perceber é o modo de significar. Também indica que os vínculos criados que dão algum significado aos objetos são totalmente subjetivos, ou seja, tem como pressuposto critérios não objetivos. Por exemplo uma criança de dois anos ao observar um cachorro, que chama de “au-au”, brincando com uma bola, pode passar em seguida a chamar a bola também de “au-au”. Na primeira etapa desta fase, a criança estabelece uma relação instável entre o grupo de objetos juntados desordenadamente e o significado, tentando apontar provas aleatórias que justifiquem a escolha certa. Quando verifica o erro, muda constantemente a prova. Em seguida, os vínculos entre os objetos e os significados são baseados na proximidade espacial entre os objetos e na temporalidade dos contatos entre eles, também de modo desconexo e fortuito. 42 No último momento, a criança consegue sobrepor, pelo menos, duas imagens sincréticas e identificar elementos particulares nestas duas séries, porém não consegue atribuir significado aos mesmos, sempre articulando a relação objeto – significado de forma desconexa. 5.2.2 - Segundo Estágio – Complexo Neste segundo momento da formação de conceitos, ocorre uma modificação importante no pensamento conceitual da criança, devido ao surgimento da possibilidade de atribuir significado baseado em vínculos objetivos. Em outras palavras, a imagem desconexa e a percepção subjetiva dos vínculos com os objetos evoluem para um pensamento concreto factual objetivado, capaz de realizar generalizações mais complexas. Vigotski afirmou que neste estágio: “...a criança começa a unificar objetos homogêneos em um grupo comum, a complexificá-los já segundo as leis dos vínculos objetivos que ela descobre em tais objetos. (2000a, p.179)”. Contudo, o pensamento por complexos ainda não constitui os conceitos verdadeiros, apenas modos de generalização mais próximos do conceito e que se diferenciam deste basicamente por que os vínculos com os objetos são concretos e factuais e diversificados, ou seja, podem modificar sua base de identidade na qual a generalização foi elaborada. Os elementos, traços ou características dos objetos que foram unificados numa generalização podem ser alterados e transformados conforme a criança consiga relacionar outros novos elementos. Neste sentido, foram observados cinco momentos pela qual o complexo vai se desenvolvendo, gerando formas de generalização diferentes. 43 Nesta primeira fase o complexo é associativo, ou seja, a unificação dos objetos se estabelece a partir de um de seus traços, este se transforma, então, no núcleo do complexo com o qual os outros objetos podem se associar. Este vínculo associativo estabelecido pela criança, apesar de ser concreto, é marcado pela desordenação e variedade. Podem se associar ao núcleo, objetos que se assemelhem pela forma ou pela cor ou pelo tamanho, dentre outros aspectos objetivos. Em seguida, o complexo formado implica numa generalização que permite formar grupos especiais, chamados de coleção. A criança seleciona os objetos de modo a buscar um exemplar de cada cor ou formato, agrupando-os em conjunto, segundo um critério de contraste entre os elementos. No terceiro momento do pensamento por complexo, a criança inicialmente elege um traço do objeto e os agrupa segundo este critério, contudo no decorrer deste processo modifica o elemento do objeto que lhe servia de base por outro e assim sucessivamente. Esta transferência de critérios de generalização funciona em cadeia, ou seja, o significado é transmitido pelos elos (critérios) estabelecidos pela criança. No caso, ela pode escolher primeiramente objetos de uma determinada cor, caso um deles seja triangular, passa a agrupar todos neste mesmo formato, caso um deles seja achatado, pode começar o agrupamento por este novo critério. Na fase do complexo difuso, há uma confusão constante no estabelecimento de vínculos com os objetos concretos, os traços utilizados como critérios de generalização tornam-se totalmente flutuantes. A criança vai juntando os objetos por critérios oscilantes e tudo pode ser incluído neste agrupamento, não há limites. Na última fase do pensamento por complexos, a criança manifesta adequadamente o significado das palavras, realiza as generalizações necessárias para transmitir um conceito, mas tal raciocínio descobre-se falso (pseudoconceitos). Primeiramente porque tais 44 generalizações ainda estão baseadas nas relações concretas e factuais entre os objetos, ou seja, não pressupõe a abstração. E também porque o significado das palavras presente no discurso das crianças decorre da assimilação destes significados transmitidos pelos adultos com o qual ela convive. 5.2.3 - Terceiro Estágio – Conceitos Neste estágio a criança começa a desenvolver os atributos de pensamento necessários à formação dos conceitos verdadeiros, ou seja, a capacidade de análise e síntese. Incluindo também a capacidade de abstração e decomposição. Para Vigotski é o início da transformação dos complexos (na forma de pseudoconceito) para o pensamento conceitual, no qual definiu: Mas o conceito, em sua forma natural e desenvolvida, pressupõe não só a combinação e a generalização de determinados elementos concretos da experiência mas também a discriminação, a abstração e o isolamento de determinados elementos e, ainda, a habilidade de examinar esses elementos discriminados e abstraídos fora do vínculo concreto e fatual em que são dados na experiência. (2000a, p.220) Na primeira fase, considerada muito próxima ainda ao pseudoconceito, a criança almeja o agrupamento dos objetos concretos buscando a máxima semelhança entre eles. A partir de um modelo dado, a criança abstrai os traços que o caracterizam e tenta identificar em outros objetos a máxima igualdade com os elementos do modelo. Neste segundo momento, a criança abstrai traços ou atributos dos objetos concretos e tais características servem de base para a inclusão de um novo objeto ao conjunto, implica em discriminá-las e assim generalizá-las em outros objetos. No momento em que a abstração se consolida e os elementos dos objetos podem ser generalizados para outros, há uma quebra 45 com os vínculos concretos, a criança começa a operar com os atributos somente (sem a necessidade do objeto). 5.3 - O Conceito Todo o processo descrito anteriormente fornece as condições necessárias para o estabelecimento do pensamento conceitual lógico e abstrato. Trata-se do relato de uma evolução que se inicia com os objetos concretos sendo apreendidos de forma desconexa pela criança, seguida de tentativas mais complexas da apreender a realidade concreta, tentar criar vínculos e critérios de inter-relação entre os objetos ainda com base em traços instáveis e difusos, até que por intermédio do compartilhamento de significados com os adultos, a compreensão dos vínculos entre os objetos se dá de modo muito semelhante com os conceitos, mas ainda são falsos, pois carecem da abstração. Contudo, lançam as bases para que a criança perceba que os atributos antes vinculados somente aos objetos concretos, possam ser utilizados de modo diferente, ou seja, abstraídos. Nas palavras de Vigotski: “O conceito surge quando uma série de atributos abstraídos torna a sintetizar-se, e quando a síntese abstrata assim obtida se torna forma basilar de pensamento com o qual a criança percebe e toma conhecimento da realidade que a cerca.” (2000a, p.226) Em síntese, o conceito é uma generalização, ou seja, uma maneira de dar significado aos objetos e fenômenos, e se expressa na palavra. Todos os estudos realizados por Vigotski e seus colaboradores tiveram como foco a palavra e como se atribui significado a ela, enfim como o ser humano vai, ao longo de sua história, desenvolvendo significados. Neste sentido, num primeiro momento, a palavra assume uma função indicativa, pois esta se refere ou nomeia um atributo ou característica do objeto, baseada totalmente na 46 situação concreta e factual. Já em seguida, a função da palavra passa a ser significativa (a palavra é um signo) que representa uma síntese de impressões e traços concretos que foram abstraídos (2000a, p.237). A palavra (conceito) carrega em sua base diversas modalidades de relação com a realidade concreta e factual, mas ao mesmo tempo se distancia desta base na medida em que dá significado a formas de representações abstraídas desta base concreta. Esta contradição (concreto-abstrato) que é inerente à palavra, para Vigotski se expressa na constante tensão entre o pensamento por complexos e o pensamento conceitual que acompanha o desenvolvimento do significado das palavras no ser humano, ou seja, a palavra que nomeia as coisas no mundo e a palavra que dá significado é, na maioria das vezes, a mesma palavra, mas seus significados evoluem e se transformam, não só no decorrer da vida do indivíduo, mas também através da história da humanidade. Por exemplo, a palavra ar, para uma criança acostumada a ouvir frases do tipo: “solte o ar pela boca” ou “puxe o ar pelo nariz”, ou “vou tomar um ar fresco”; a referência ao significado de ar é concreta e diz respeito a um tipo de vento e que pode ser sentido na pele. Posteriormente a palavra ar poderá ser entendida do ponto de vista conceitual como uma mistura gasosa que constitui a atmosfera, uma concepção abstrata que carece de concretude. Assim, o desenvolvimento de significados da palavra ar percorre dois caminhos: o que está vinculado às experiências concretas cotidianas da criança e outro que é proporcionado pela educação formal. Estas diferenças de trajetórias apontaram, para Vigotski, a necessidade de aprofundamento na discussão sobre a relação entre conceitos espontâneos e conceitos científicos. 47 6 - Aprendizagem e Desenvolvimento Para a compreensão da relação entre aprendizagem e desenvolvimento, Vigotski e sua equipe de colaboradores realizaram uma série de investigações junto a crianças em situação escolar, ou seja, no processo de aquisição de vários tipos de conhecimentos: leitura e escrita, gramática, aritmética, ciências naturais e ciências sociais. (VIGOTSKI, 2000a, p.310) Os resultados desses estudos são considerados complementares para a análise da relação entre conceitos espontâneos e conceitos científicos, como será exposto no próximo capítulo. A aprendizagem diz respeito à apreensão de hábitos, habilidades, significados, conhecimentos realizados por um ser humano no decorrer de sua vida e inicia-se desde a mais tenra infância, tornando-se mais sistematizada e intencional a partir do ingresso no âmbito escolar, ou seja, para Vigotski o estudo da aprendizagem não deve ocorrer somente na idade escolar, mas desde o início da vida da criança. Contudo, a aprendizagem das matérias escolares é qualitativamente diferente da que ocorre no cotidiano da criança. O desenvolvimento se refere ao processo de maturação das funções psíquicas superiores no indivíduo, ou seja, da linguagem, do pensamento, da memória seletiva, da atenção arbitrária, entre outras, que vão se inter-relacionando de modo complexo e propiciando diferentes maneiras de compreender a realidade. A maturação para Vigotski não se relaciona a aspectos orgânicos ou endógenos presentes no ser humano por sua natureza biológica, mas sim ao processo de desenvolvimento das funções psíquicas superiores. E tais funções são configuradas na consciência humana num mecanismo que se movimenta primeiramente de fora para dentro, ou seja, aspectos presentes 48 na realidade externa do ser humano que se internalizam. Em síntese, o progresso na aquisição destas funções representa o nível de maturação. Nas palavras de Vigotski (2001, p.114): Todas as funções psicointelectuais superiores aparecem duas vezes no decurso do desenvolvimento da criança: a primeira vez, nas atividades coletivas, nas atividades sociais, ou seja, como funções interpsíquicas: a segunda, nas atividades individuais, como propriedades internas do pensamento da criança, ou seja, como funções intrapsíquicas. Uma das preocupações de Vigotski nos seus estudos sobre o desenvolvimento e a aprendizagem é tentar identificar o nível de maturidade das funções psíquicas no momento do ensino das matérias escolares. (2000a, p. 311) Quando o conteúdo da matéria começa a ser ensinado ao aluno significa que o mesmo já atingiu o nível de desenvolvimento necessário para aprendê-lo? As conclusões que Vigotski apresenta demonstraram que a resposta à pergunta anterior é “não”, significa que as funções nos quais se assentam o aprendizado de cada uma das matérias na escola, estão imaturas no início deste processo: “...o aprendizado da aritmética, da gramática, das ciências naturais, etc, não começa no momento em que as respectivas funções estão maduras. Ao contrário, a imaturidade das funções no momento em que se inicia o aprendizado é lei geral e fundamental...” (VIGOTSKI, 2000a, p.318-319). Outro aspecto investigado pelos estudos de Vigotski foi a relação temporal entre desenvolvimento e aprendizagem (2000a, p. 324): as questões a serem respondidas eram: o processo de aprendizagem ocorre ao mesmo tempo em que o de desenvolvimento? Ou seria antes? Ou depois? Definitivamente a conclusão foi que a aprendizagem sempre acontece antes do desenvolvimento, pois é observável na criança a utilização de algumas habilidades ou alguns 49 hábitos (oriundos da aprendizagem) que não são compreendidos de forma consciente (no nível de desenvolvimento adequado das funções psíquicas superiores). São atos ou expressões não arbitrários, não relacionados a uma sistematização de conhecimento e que não proporcionam um modo mais estruturado de compreender a realidade. Um exemplo relacionado à gramática: desde antes da escola a criança já possui na sua fala diferentes formas de conjugação verbal; porém não conhece realmente o sistema de conjugações presente em sua língua nem suas diversas aplicações. O fato de a criança ter aprendido algumas formas de conjugação não significa que ela desenvolveu todas as funções necessárias para apreender o sistema e a lógica de todas as formas de conjugação verbal de seu idioma. 50 7 - Conceitos Espontâneos e Conceitos Científicos O modo de conceber as coisas, ou seja, a conceituação se apresentou nos estudos psicológicos por dois caminhos: a compreensão espontânea que implica numa concepção das coisas que emerge do cotidiano e outra compreensão denominada científica que é resultado da sistematização do conhecimento acumulado em relação a um determinado fenômeno ou objeto. Vigotski procurou o entendimento do processo de conceituação tanto o espontâneo quanto o científico e suas inter-relações visando ter uma visão de totalidade da consciência humana. A trajetória dos estudos de Vigotski sobre esta temática ficou incompleta devido a sua morte prematura, mas no livro: “A Construção do Pensamento e da Linguagem” (sua última obra), especificamente no capítulo 6 – “Estudo do desenvolvimento dos conceitos científicos na infância”, cujo subtítulo é “Experiência de construção de uma hipótese de trabalho”, há uma série de apontamentos e diretrizes ainda não totalmente verificadas experimentalmente (naquele momento histórico), que trouxeram à tona novas reflexões sobre a questão dos conceitos espontâneos e científicos. À guisa de retomada, o conceito é uma generalização que encerra um significado. Todo conceito se expressa através de pelo menos uma palavra, ou seja, a palavra é um conceito. A generalização, enquanto ato abstrato, só é possível quando se apreende o movimento de discriminação entre semelhanças e diferenças em relação aos objetos ou fenômenos presentes na realidade concreta. Dar significado (criar uma palavra) é nomear esta 51 classificação (decorrente da generalização) realizada pela apreensão da realidade. Logo não existe significado que não emerge da concretude do real. O entendimento da realidade atingiu níveis complexos de apreensão e representação dos objetos e fenômenos, de modo que alguns conceitos, principalmente os científicos, só podem ser compreendidos tendo como base uma série de outros conceitos. Um exemplo é o conceito de condensação, que em química é entendido como a transformação de uma substância ou corpo do estado gasoso para o estado líquido. Não é possível entender tal conceito sem antes terem sido esclarecidos os estados da matéria e mais anteriormente o que é matéria. Por outro lado, se a palavra condensação for apreendida por uma criança ainda não escolarizada, pode representar um significado completamente diverso do científico, por exemplo ser entendida como o ato de juntar ou agrupar coisas que se aderem, como massinhas de modelar. Neste contexto, a palavra referida se constitui por dar significado a fatos ou objetos empiricamente vivenciados pela criança. A partir deste raciocínio, Vigotski estabeleceu algumas bases para a diferenciação dos conceitos espontâneos e científicos, ressaltando que esta separação inicial entre ambos os conceitos não é uma dicotomia, mas sim derivada da necessidade de buscar o desenvolvimento genético destes processos no ser humano. 7.1 - Conceitos Espontâneos É indiscutível que mesmo antes de ingressar na escola, a criança aprende muitas coisas e uma das suas principais aquisições é a linguagem verbal: as palavras vão sendo assimiladas a partir da convivência com outras pessoas que transmitem no cotidiano os significados dos objetos e fatos que ocorrem a sua volta. 52 Como visto no capítulo sobre formação de conceitos, existem diversas fases pelas quais transitam os significados das coisas para a criança (sincrética, complexos, pré-conceitos e conceitos) e inicialmente toda a possibilidade de nomear algo está relacionada à realidade empírica da criança, ou seja, a sua percepção dos objetos e, em seguida, à tentativa de estabelecer relações entre os objetos a partir de determinados atributos que também são empiricamente observados. Esta supremacia dos objetos e fenômenos empíricos no processo inicial de conceituação se apresentou para Vigotski como a base da formação dos chamados conceitos espontâneos. Na época em que a criança está imersa no sincretismo e nos diferentes complexos, o conceito científico ainda não é uma possibilidade de apreensão de significados. O vínculo empírico com o objeto direciona a atenção da criança somente para a representação deste objeto. Apesar de operar com o conceito oriundo desta representação, não tem consciência do mesmo. É da própria natureza dos conceitos espontâneos não serem conscientizados. As crianças sabem operar espontaneamente com eles mas não tomam consciência deles. [...] Tudo indica que, por si mesmo, o conceito espontâneo deve necessariamente não ser conscientizado, pois a atenção nele contida está sempre orientada para o objeto nele representado e não para o próprio ato de pensar que o abrange. (VIGOTSKI, 2001, p. 290) Neste sentido, Vigotski concluiu que as principais características dos conceitos espontâneos são: a não-conscientização, a utilização não-arbitrária do mesmo e, por conseqüência, a ausência de sistematicidade. 7.2 - Conceitos Científicos 53 No processo de escolarização a criança inicia o contato formal com o conhecimento historicamente acumulado pela humanidade que é transmitido através dos conceitos científicos. Ainda operando com os conceitos espontâneos que não estão conscientizados e são utilizados de modo não arbitrário, a criança aos poucos inicia o processo de tomada de consciência, ou seja, começa a operar com os conceitos de maneira consciente e arbitrária, dentro de uma sistematicidade. A tomada de consciência é algo fundamental no entendimento de Vigotski sobre o desenvolvimento das funções psíquicas, pois possibilita ao ser humano agir com intencionalidade frente as suas atividades psicológicas. E este processo só é engendrado pois as generalizações provenientes dos conceitos científicos são internalizadas e apreendidas como um novo modo de compreender a realidade e a si mesmo. A passagem para um novo tipo de percepção interior significa passagem para um tipo superior de atividade psíquica interior. Porque perceber as coisas de modo diferente significa ao mesmo tempo ganhar outras possibilidades de agir em relação a elas. [...] Tenho consciência de que me lembro, isto é, faço da minha própria lembrança um objeto de consciência. Surge a discriminação. Toda a generalização escolhe de certo modo um objeto. É por isso que a tomada de consciência, entendida como generalização, conduz imediatamente à apreensão. Desse modo, a tomada de consciência se baseia na generalização dos próprios processos psíquicos, que redunda em sua apreensão. (VIGOTSKI, 2001, p. 289, 290). Nos conceitos espontâneos as generalizações eram oriundas dos contatos empíricos e imediatos com os objetos, já nos científicos as relações com os objetos são mediadas por outros conceitos que se organizam dentro de uma sistematicidade que pressupõe hierarquia interior e complexas inter-relações. 54 O sistema de conceitos progressivamente se constitui no desenvolvimento humano através de diferentes etapas das estruturas de generalização (sincretismo, complexos, pré- conceito e conceito), ou seja, os significados das palavras (conceitos) e a apreensão da realidade vão modificando-se. Com a tomada de consciência, o sistema assume tamanha complexidade que o conceito passa a não só pressupor uma generalização, mas também abarca relações de generalidade, ou seja, os vínculos e entrelaçamentos deste conceito científico com outros através dos quais medeia sua relação com os objetos. No âmbito dos conceitos científicos “...a generalização significa os mesmo tempo tomada de consciência e sistematização de conceitos” . (VIGOTSKI, 2001, p.292). 7.3 - A Inter-relação entre conceitos espontâneos e científicos Com a apreensão dos conceitos científicos e a estruturação de uma sistematicidade de conceitos, os conceitos espontâneos não deixam de existir, mas assumem uma outra configuração na medida em que se organizam também na lógica deste sistema. Se o conceito espontâneo é referenciado fortemente pela base empírica (pelos objetos e suas propriedades) e os conceitos científicos são elaborados a partir de outros conceitos (abstratos), pode-se afirmar que ambos se desenvolvem de acordo com trajetórias opostas. Ao analisar a complexidade dos dois distintos processos, Vigotski afirmou que: ...o conceito espontâneo da criança se desenvolve de baixo para cima, das propriedades mais elementares e inferiores às superiores, ao passo que os conceitos científicos se desenvolvem de cima para baixo, das propriedades mais complexas e superiores para as mais elementares e inferiores. Essa diferença está vinculada à referida relação distinta dos conceitos científicos e espontâneos com o objeto. (VIGOTSKI, 2001, p. 348) 55 Este aparente antagonismo presente nos caminhos de desenvolvimento dos conceitos espontâneos e científicos não implica em separação, mas em complementaridade, pois no momento que todos os conceitos (independentemente de sua origem) estão funcionalmente ligados num sistema, há uma aproximação ou formação de vínculos entre eles. Esta inter-relação entre os conceitos não se constitui automaticamente, com a lógica do sistema: é um processo gradual no qual os conceitos (ou significado das palavras ou generalizações) vão se desenvolvendo e estabelecendo vínculos que permitem cada vez mais uma compreensão mais ampla da realidade. O movimento dos conceitos espontâneos para os científicos e vice-versa visa à abertura de vias de desenvolvimento e estruturação para a apreensão cada vez mais complexa dos objetos. O desenvolvimento dos conceitos científicos começa no campo da consciência e da arbitrariedade e continua adiante, crescendo de cima para baixo no campo da experiência pessoal e da concretude. O desenvolvimento dos conceitos espontâneos começa no campo da concretude e do empirismo e se movimenta no sentido das propriedades superiores dos conceitos: da consciência e da arbitrariedade. (VIGOTSKI, 2001, p.350) Tendo em vista que o conceito científico é apreendido no âmbito escolar e pressupõe a presença de um professor (ou adulto) que atua em colaboração com o aluno, Vigotski afirmou que tal processo se efetiva na zona de desenvolvimento imediato. A apreensão dos conceitos científicos, resultantes da atuação nesta zona, possibilita também novas configurações no nível atual de desenvolvimento da criança. Desta forma, pode-se compreender a inter-relação entre conceitos científicos e espontâneos através do vínculo entre a zona de desenvolvimento imediato e o nível de desenvolvimento atual da criança, pois operam na zona de desenvolvimento imediato os processos de apreensão dos conceitos científicos. O movimento de complementaridade e 56 reciprocidade entre ambos os tipos de conceitos é correspondente ao vínculo entre a zona de desenvolvimento imediato e o nível de desenvolvimento atual. O conceito científico então é um fator que desencadeia processos de desenvolvimento, pois possibilita a tomada de consciência, a arbitrariedade e novas estruturas de sistematicidade. Apreender um conceito científico implica em realizar generalizações inovadoras que reconfiguram a relação do indivíduo com os objetos, atuando em complementaridade ou possibilitando novos significados aos conceitos espontâneos. 7.4 - O Sistema de Conceitos O sistema de conceitos é o lócus funcional no qual se movimentam os conceitos espontâneos e científicos. Como anteriormente convencionado, os conceitos científicos estão numa posição superior, são mediados por outros conceitos, e se desenvolvem de cima para baixo, é uma generalização que está afastada do contato direto com os objetos empíricos e neste movimento descendente estabelece vínculos com os conceitos espontâneos. Esses, por sua vez, são generalizações oriundas das relações diretas com os objetos no mundo empírico e se desenvolvem de baixo para cima, também se aproximam e vinculam-se gradativamente aos conceitos científicos. Este movimento dos conceitos no sistema é que promove a aproximação dos conceitos científicos dos objetos e que, por oposição, garante que os conceitos espontâneos possam ser vinculados aos científicos como subordinados, numa relação de complementaridade e reciprocidade. O sistema de conceitos pressupõe uma hierarquia de conceitos, ou seja, existem conceitos superiores (científicos) que necessitam de outros conceitos para que possam ter 57 significa