Instituto de Artes Programa de Pós-Graduação em Artes Mestrado Daniel Malva A série Efemérides: da Fotografia a uma Subversão na Arte Contemporânea SÃO PAULO 2019 Daniel Malva A série Efemérides: da Fotografia a uma Subversão na Arte Contemporânea Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Artes da UNESP - Universidade Estadual Paulista – como exigência parcial para a obtenção do grau de Mestre em Artes Visuais na área de concentração: Processos e Procedimentos Artísticos. Orientador: Prof. Dr. Fernando Luiz Fogliano SÃO PAULO 2019 Ficha catalográfica preparada pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da Unesp R484s Ribeiro, Daniel Malva, A série Efemérides: da fotografia a uma subversão na arte contemporânea / Daniel Malva Ribeiro. - São Paulo, 2019. 123 f. : il. color. Orientador: Prof. Dr. Fernando Luiz Fogliano Dissertação (Mestrado em Artes) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes 1. Fotografia. 2. Arte moderna – Séc. XXI. 3. Arte e tecnologia. 4. Arte narrativa. 5. Instalações (Arte). I. Fogliano, Fernando Luiz. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título. CDD 770 (Laura Mariane de Andrade – CRB 8/8666) Daniel Malva A série Efemérides: da Fotografia a uma Subversão na Arte Contemporânea Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Artes da UNESP - Universidade Estadual Paulista – como exigência parcial para a obtenção do grau de Mestre em Artes Visuais na área de concentração: Processos e Procedimentos Artísticos. Comissão Examinadora Prof. Dr. Fernando Luiz Fogliano SENAC/SP Orientador Profª. Drª. Agda Regina de Carvalho Anhembi Morumbi Prof. Dr. Milton Sogabe UNESP – Instituto de Artes SÃO PAULO 30 de Agosto de 2019 4 5 Esse trabalho é dedicado à minha família e amigos. E também a todos os rebeldes. 6 7 AGRADECIMENTOS Esta pesquisa não seria possível sem a ajuda de pessoas importantes: Agradeço à minha amada esposa Fabiana e minha filha Luiza pelo apoio, amor e paciência. Aos meus pais, Luiz e Marina e irmãos Cassiana e Gustavo que sempre me apoiaram. Ao amigo e professor Fernando Fogliano, por acreditar em mim em minhas empreitadas experimentais desde 2004. Meus companheiros de luta Renato De Cara e Erico Marmiroli, que me acompanham em minhas loucuras e excentricidades. Ao amigo Sergio Venancio, que sem sua paciência e conhecimento boa parte desse trabalho não seria possível. Aos amados Jefferson Barcellos, Leandro Melo, Paulo Rossi, Sérgio Ferreira e Wladimir Fontes. Em memória de João Fávero, sem ele eu não saberia sobre luz. Aos professores Milton Sogabe, Rosangella Leote e Silvia Laurentiz, por compartilhar conhecimento sobre as questões mais estruturais da pesquisa e me acolherem em seus grupos de pesquisa. Aos carinhosos e talentosos: Agda Carvalho, Edilson Ferri e Clayton Policarpo. Aos integrantes do coletivo COM.6, onde aprendi a compartilhar e receber. Aos integrantes dos grupos cAt, GIIP e Realidades, em especial: Bruna Mayer, Carolina Peres, Cleber Gazana, Daniel Seda, Hosana Celeste, Judivan Lopes, Karin Schmitt, Lali Krotoszynski, Lucas Gervilla, Lucas Gorzynski, Marcus Bastos, Melina Furquim, Miguel Alonso, Nicolau Centola, Nigel Anderson e Rodrigo Dorta. Aos meus amados amigos com os quais aprendi muito: Alexandra Kobayashi, Alexandre Kuma, Aline Lata, Ana Claudia V. Rodrigues, Ana Vasques, Andre Spinola, Antonio Saggese, Ariel Spadari, Bianca Reis Verderosi, Carla Romero, Chico Rivers, Daniel Ducci, Daniel Ozana, Daniel Rossi, Danielle Noronha, Danilo Antunes, Eder Chiodetto, Edison Angeloni, Elizabeth Lee, Érico Toscano, Erika 8 Palomino, Eustaquio Neves, Felipe Bertarelli, Felipe Fogaça, Giselle Beiguelman, Guilherme Maranhão, Heloísa Bortz, Helouise Costa, Henrique Siqueira, Joao Pregnolato, José Fujocka, Julia Moraes, Julio Dojcsar, Kenji Ota, Lívia Aquino, Luanna Jimenes, Luciano Ogura, Lucrécia Couso, Marcelo Azevedo, Marcelo Calil, Marcelo Parducci, Marcio Tavora, Marcos Marini, Maria Helena S. Neuwald, Mario Cabral, Marina Klafke Rossi, Mauricio Parra, Monica Caldiron, Patrícia Favalle, Patrícia Yamamoto, Paula Miranda, Pedro Ivo Trasferetti, Rafael Kenji, Sergio Kal, Tatiana Pontes, Ulysses de Paula, Verena Smit e muitos outros que moram no meu coração. Aos meus novos amigos Anna Dora Wallace-Thompson, Bethany Judith, Gareth J Clayton, Marina Caverzan, Luiz Falcão, Paulo Carretta, Paulo Gallina, Richard Hoey, Thiago Gil, Yasmin Klein Mori e Yessica Klein. Aos amigos e professores de mecatrônica e fotografia, em especial Carlos Aurelio Gonzalez Cardozo, Douglas Airoldi, Enzo Marcon Takara, Isa Seppi, Jorge Giles Ferrer, João Kulcsar e Paula Palhares. A equipe da UNIFESP em especial Nilton, Luis e Ricardo. Ao IA UNESP por ter acolhido a pesquisa e a mim. Aos companheiros de trabalho da Fundação Bienal. 9 Padrões estão no coração da Ciência e da Arte: louvado seja aquele que descobre ou cria uma subjacente unidade ou verdade no mundo que nos cerca. Os seres humanos são excepcionais na detecção de padrões, mesmo quando esses padrões estão imbricados num campo de aleatoriedade e desordem (KELSO, 1997, p.3). 10 RESUMO Essa dissertação de mestrado refere-se a uma pesquisa que se enquadra na hibridização de conceitos e práticas que envolvem processos de arte e tecnologia, os que tangem o uso de softwares, nos quais se situa a produção de imagem e as questões da contemporaneidade. Tais questões são levantadas por meio de abordagens sobre os procedimentos tecnológicos e suas múltiplas possibilidades expressivas. A pesquisa teve por objetivo produzir uma série artística em forma da instalação de arte intitulada Efemérides, com base em uma narrativa ficcional, e apresentar o seu percurso, prático e teórico. Percurso este que tem início em um conjunto de fotografias de uma coleção incompleta de crânios humanos do acervo do Departamento de Anatomia da UNIFESP. Para tanto, a pesquisa recorre a autores, filósofos e artistas para situar esta produção no cenário artístico contemporâneo. Palavras–chave: Narrativa ficcional, Arte Contemporânea, Softwares e Fotografia 11 ABSTRACT This MA dissertation refers to research which fits in the hybridization of concepts and practices involving art and technology processes, in which the production of image and contemporary issues are situated. Equally, questions are raised through approaches to technological procedures and their multiple expressive possibilities. The research aimed to produce an art series in the form of the art installation entitled Ephemerides and to present its practical and theoretical course. This path has begun with a set of photographs from an incomplete collection of human skulls from the UNIFESP Anatomy Department collection. To this end, the research resorts authors, philosophers, and artists to situate this production in the contemporary art scene. Keywords: Fictional Narrative, Contemporary Art, Software and Photography 12 LISTA DE FIGURAS Figura 1: Balearica pavonina 110x73cm – Museu de História Natural – 2009..............................32 Figura 2: Panthera leo: cranium 56x43cm – Museu de História Natural – 2009...........................33 Figura 3: Exaerete frontalis 14x14cm ou 80x80cm – Museu de História Natural – 2009..............34 Figura 4: Balaenoptera bonaerensis: cor 80x80cm – Museu de História Natural - 2009..............35 Figura 5: Cōnstēllātiō – Desambiguação – 2014...........................................................................37 Figura 6: Lūcǐdē – Desambiguação – 2014....................................................................................38 Figura 7: Esquema de enquadramento para série Desambiguação..............................................39 Figura 8: Esquema de enquadramento para a série Museu de História Natural...........................39 Figura 9: Nicholas Wilder Studying Picasso – Composição com Polaroids – 48 1/2 x 26 1/2" -- David Hockney – Los Angeles 24 de Março de 1982....................................................................42 Figura 10: Fontes, 6.000 réguas, 1.000 relógios, e 500.000 números de vinyl – Cildo Meireles – 1992................................................................................................................................................45 Figura 11: Fonte – Marcel Duchamp – 1917/1964.........................................................................54 Figura 12: Não intitulado [banheira] – Joseph Beuys – 1960........................................................54 Figura 13: Flower-Shell – Max Ernst – 1927 – óleo sobre tela – 19 x 24 cm................................58 Figura 14: Ti-City Drive-In – Hiroshi Sugimoto – 1993...................................................................59 Figura 15: Retrato gerado por Inteligencia Artificial do coletivo Obvious – 2018..........................65 Figura 16: Painel para escolha de estilo no Deep Dream Generator............................................67 Figura 17: Painel para escolha de resolução e controle de efeitos no Deep Dream Generator. . .67 Figura 18: Painel com o regulamento de uso do Deep Dream Generator.....................................68 Figura 19: Imagem do primeiro resultado com as imagens de crânios no Deep Dream Generator - 2017..............................................................................................................................................69 Figura 20: Desenho feito pelo visitante..........................................................................................71 Figura 21: Retrato do visitante com a aplicação do Deep Style usando o desenho ao lado.........71 Figura 22: Retrato com a aplicação do retrato da figura 23...........................................................72 Figura 23: Retrato com a aplicação do retrato da figura 22...........................................................72 Figura 24: Sequência 40 de autorretratos alterados pelo Deep Style...........................................73 13 Figura 25: Imagens usadas no Deep Style e seu resultado..........................................................74 Figura 26: Anna – Quem Sou Eu Se Não Você Em Mim - 2017...................................................75 Figura 27: Resultado de sobreposição de retratos desenhados pelo Extentio..............................77 Figura 28: Retrato 628_952_d14, 2018. Imagem digital, dimensões não definidas (VENANCIO JÚNIOR, 2019, p. 19).....................................................................................................................78 Figura 29: Imagem gerada por Extentio – Aglomerado 9 Ciclo 1 Movimento 24 Período 3 – 2018 ........................................................................................................................................................80 Figura 30: Imagem de nebulosa.....................................................................................................81 Figura 31: Imagem de tecidos de tabaco por microscopia eletrônica............................................81 Figura 32: Desenho de pólen a lápis..............................................................................................81 Figura 33: Imagem gerada por Extentio – Aglomerado 9 Ciclo 1 Movimento 24 Período 3 – 2018 ........................................................................................................................................................82 Figura 34: Sequência numérica......................................................................................................84 Figura 35: Tabela de distribuição dos números dos crânios para o jogo de sequências..............85 Figura 36: Tabela que faz parte do jogo para sobrepor tabela acima (Figura 35).........................86 Figura 37: Exemplo de uso da fonte True Type dos números criados..........................................86 Figura 38: Croqui da distribuição das obras na instalação Efemérides.........................................88 Figura 39: Mapa bidimensional do universo de Efemérides..........................................................90 Figura 40: Representação do momento de início do fluxo de informações em Hairo...................91 Figura 41: Representação bidimensional com os cortes XY com as posições dos aglomerados 9 e 340...............................................................................................................................................92 Figura 42: Representação bidimensional com os cortes XZ com as posições dos aglomerados 9 e 340...............................................................................................................................................93 Figura 43: Mapa para distribuição dos os objetos que representam os 37 aglomerados e apontam para Hairo........................................................................................................................94 Figura 44: 24 posições da escala musical onde os aglomerados se movimentam.......................95 Figura 45: Interpretação esquemática de Cqalök para o fluxo de informação..............................96 Figura 46: Representação do fluxo de informação interpretado pela IA criada por Cqalök..........97 Figura 47: Tiras de tecido com as informações de cada uma das 118 posições dos aglomerados ........................................................................................................................................................98 Figura 48: Linguagem de sinais.....................................................................................................98 Figura 49: ACulpa – OJardim – 2014...........................................................................................105 14 Figura 50: Trecho do riff em partitura e tablatura da música Gates of Babylon..........................111 Figura 51: Cartaz da exposição Efemérides................................................................................121 Figura 52: Tabela “O Registro”.....................................................................................................122 Figura 53: Detalhe do “O Registro”..............................................................................................123 15 SUMÁRIO 1 – INTRODUÇÃO..............................................................................................17 2 – TRABALHOS ANTERIORES E APRESENTAÇÃO DA SÉRIE EFEMÉRIDES.....................................................................................................20 2.1 – CONCEPÇÃO DA SÉRIE EFEMÉRIDES.................................................39 2.2 – MATERIALIDADE EM EFEMÉRIDES.......................................................43 3 – OS CENÁRIOS.............................................................................................46 3.1 – CENÁRIO HISTÓRICO ANTERIOR A MINHA ENTRADA NO CAMPO DA ARTE...................................................................................................................46 3.2 – RAÍZES CONCEITUAIS DO MEU TRABALHO........................................54 3.3 – PÓS-DIGITAL E A ESTRUTURA ATUAL DA MINHA PRODUÇÃO.........58 4 – PERCURSOS E PROCESSOS....................................................................62 4.1 – PRIMEIROS TESTES COM DEEP DREAM GOOGLE............................63 4.2 – DEEP DREAM GENERATOR – DEEP STYLE.........................................65 4.3 – A SÉRIE QUEM SOU EU SE NÃO VOCÊ EM MIM.................................69 4.4 – SALA DOS MILAGRES.............................................................................75 4.5 – O SOFTWARE EXTENTIO........................................................................77 4.5.1 – DADOS DO O REGISTRO E EXTENTIO..............................................78 4.6 – NUMÉRICO E GRAMÁTICO.....................................................................83 5 – ESPECIFICAÇÕES DA INSTALAÇÃO DA SÉRIES EFEMÉRIDES...........87 5.1 – A INSTALAÇÃO EFEMÉRIDES................................................................88 5.2 – CRIAÇÃO...................................................................................................89 6 – DAS NARRATIVAS.......................................................................................99 16 6.1 – CENÁRIOS NARRATIVOS DA SÉRIE EFEMÉRIDES...........................106 6.1.1 – O REGISTRO: O CORPO E O TEMPO...............................................110 7 – CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................114 8 – BIBLIOGRAFIA...........................................................................................116 9 – ANEXO........................................................................................................121 17 1 – INTRODUÇÃO A presente pesquisa se enquadra nas discussões do Programa de Pós-Graduação em Artes da UNESP - Universidade Estadual Paulista – na área de concentração: Processos e Procedimentos Artísticos. O texto contém o percurso da pesquisa que parte dos processos digitais da fotografia e são conduzidos para outros quadrantes da arte contemporânea. Nesse trajeto resgata práticas, que já estavam presentes em outras séries produzidas ao longo de meu percurso artístico. A intenção desta pesquisa inclui estabelecer um cenário para sua produção no qual minha atividade artística pudesse ser contextualizada num panorama mais amplo dado pelo pensamento crítico e sistematizado da arte contemporânea em sua história recente. Com isso pude ter a possibilidade de acesso ao que pensamento filosófico e crítico sobre as transformações da contemporaneidade, lugar no qual meu trabalho habita. A presente pesquisa, que culmina com a produção da série Efemérides, além das suas características híbridas e plurais, foi construída através da contínua exploração de tecnologias computacionais emergentes. Essa prática metodológica heurística, caracterizada pelas experimentações é inerentes aos processos tecnológicos inovadores, que trazem dificuldades para o trabalho artístico, por conta de não possuírem linhas definidas, sobre as quais não se tem completo conhecimento e/ou controle. Este ambiente de experimentação apresentou novas e múltiplas possibilidades, as quais fui assumindo e absorvendo, com o objetivo de concretizar minhas intenções narrativas. Agnus Valente (2015) percebeu, com muita sensibilidade, essa característica da produção artística contemporânea: É importante salientar que não basta que a tecnologia possua um corpo de metodologias para hibridações se o artista não for igualmente híbrido para implementá-las, tornando-as de fato operantes e efetivas (Idem, p.27). Busco um arranjo, em que os recursos tecnológicos e os componentes fantásticos componham minha poética. Prática alinhada ao pensamento de Júlio Plaza, quando infere sobre a teoria da formatividade (1993) de Luigi Payreson, ao escrever: Os artistas querem entender como se processa o fazer, este é seu significado. Este querer- saber-do-fazer é ir ao encontro da metalinguagem própria do artista, ou seja, aquela que diz 18 respeito à Poética como processo formativo e operativo da obra de arte. De tal forma que, enquanto a obra se faz, se inventa o modo de fazer (PLAZA, 2003, p. 46). Por consequência, não há uma linearidade no trabalho, cuja narrativa expressa se apresenta em várias manifestações artísticas contemporâneas, tornando algo complexo de ser colocado em um texto que segue algumas formalidades estruturais como uma dissertação de mestrado exige. Portanto optou-se por uma distribuição dos capítulos que atendesse à demanda de estruturar o texto próximo ao percurso da pesquisa. No primeiro capítulo apresento trabalhos anteriores a série Efemérides, desta pesquisa, que contribuíram para sua concepção e execução. Apresento algumas das práticas que foram apropriadas neste trabalho. Apresento minha busca pela pluralidade, e como ela é uma constante em minha produção desde 2004, quando iniciei minhas atividades no universo da arte. Faço um retrospecto para mostrar os conceitos de hibridização e complexidade presentes no meu trabalho. Aponto as questões sobre o tempo e a morte que igualmente aparecem constantemente nos assuntos e na estética de minhas imagens. Elas podem aparecer em forma de temas narrativos, e/ou em tonalidades e texturas. Apresento os aspectos pessoais, que me acompanham desde criança, e como elas contribuem para a narrativa aqui proposta. No segundo capítulo, olho para 2004, ano em que dou início à minha produção artística. Faço um levantamento histórico, com o objetivo de estabelecer algumas relações do meu percurso com os aspectos históricos e conceituais importantes para a pesquisa com intuito de contextualizar minha produção no universo crítico contemporâneo da arte. Como ponto de partida uso os eventos anteriores que antecedem o cenário da arte contemporânea, no início do século XXI. Relaciono algumas questões que estavam me chamando a atenção naquele momento. Percebo que estava disposto a entender o conjunto de práticas e acontecimentos daquele momento, ao que se referia à fotografia. Meu interesse estava nas convicções inauguradas no pós-modernismo que se apresentavam como uma nova maneira de se apropriar e dar novos significados ao passado, independente de sua origem ou época. Estava, principalmente, disposto a abdicar das principais metas humanistas em relação à verdade fotográfica. 19 Ao contrário do que é sugerido pela defesa humanista da fotografia, a capacidade que a câmera tem de transformar a realidade em algo belo decorre de sua relativa fraqueza como meio de comunicar a verdade. A razão por que o humanismo se tornou a ideologia dominante dos fotógrafos profissionais ambiciosos — retirando do caminho as justificações formalistas de sua busca de beleza — é que ele mascara as confusões sobre verdade e beleza subjacentes à atividade fotográfica (SONTAG, 2004, p.128). No capítulo 3, apresento os procedimentos que envolveram a pesquisa e os relaciono com minhas práticas artísticas. Nesse capítulo busco os elementos que colocaram a série Efemérides no caminho para sua realização. Descrevo os procedimentos metodológicos heurísticos enfatizando aqueles que se referem às práticas de inovar e fazer descobertas. Também apresento algumas ferramentas que foram testadas e como elas prepararam o caminho para a definição dos elementos narrativos da série Efemérides. No capítulo 4 apresento os resultados em forma de uma proposta para a instalação da série Efemérides. Ali estão as obras que contarão um pouco sobre o universo criado para essas imagens. Mostro o conceito central de Efemérides, que está fundamentado no conjunto de dados oriundos daquele produzido para as imagens da série Multis, produzida em 2015 a partir de uma coleção incompleta de crânios humanos do acervo do Departamento de Anatomia da UNIFESP. Nesse capítulo apresento um primeiro conjunto de obras que compõem a série Efemérides. No capítulo 5 trago as discussões que foram realizadas ao longo da pesquisa, pontos centrais para esse trabalho para compor sua narrativa. Apresento as ideias que construíram o sistema temporal que dá origem aos desenhos descritos no capítulo 4. Comparo os aspectos da minha narrativa à produção em outros campos da arte como a música, a literatura fantástica, a ficção científica, o teatro, que influenciam decisivamente meu trabalho, e que influenciam a construção narrativa de Efemérides. 20 2 – TRABALHOS ANTERIORES E APRESENTAÇÃO DA SÉRIE EFEMÉRIDES A pluralidade vem sendo uma busca constante em minha produção desde 2004 quando comecei. Olhando para trás percebo que conceitos como hibridização e complexidade estão presentes no meu trabalho desde seu início. Igualmente questões sobre o tempo e a morte aparecem constantemente nos assuntos e na estética das imagens, seja em forma dos temas narrativos, ou uso de tonalidades e texturas, para citar alguns. Eu refuto a ideia de fechar definições ou enquadramentos que possam reduzir minhas produções, mas vejo que as mesmas questões são recorrentes, deixando claro para mim que a narrativa é o ponto central em todas elas. Não seria diferente para a série Efemérides (2017-19), resultado do trabalho de pesquisa desenvolvido dentro do Mestrado em Artes UNESP, parte da linha de pesquisa Processos e Procedimentos Artísticos. Comumente divido as minhas imagens em conjuntos que classifico como séries. Muitas vezes as séries produzidas se encerram, tem suas narrativas terminadas, mas algumas vezes elas podem originar a outras séries, que surgem por exemplo de uma questão que venha surgir durante o processo de execução ou de uma estética descoberta, etc. No caso de Efemérides, tem início na série fotográfica Multis (2015). Um conjunto de imagens de crânios humanos pertencentes a uma coleção do Departamento de Anatomia da Universidade Federal De São Paulo (UNIFESP). Essa coleção que teve seu início em 1930, recebia doações advindas de pacientes que faleciam nas instalações do hospital universitário. Para essa série de imagens dos crânios eu planejei uma leitura da coleção como um conjunto de universos, onde cada um dos crânios poderia ser um universo autônomo e completo, com um grupo de características que os ligariam entre si, mas que ao mesmo tempo não teriam relação entre si, fazendo com que cada um desses crânios fossem únicos. Isso obviamente é uma verdade, pois somos únicos. Mas não podemos negar o conjunto de regras que nos fazem pertencer a uma espécie por 21 exemplo. Portanto esses crânios são manifestações de multiversos diferentes e iguais ao mesmo tempo. Esta série, foi finalizada, nela vejo que cumpri um passo em meu trabalho. Mas nela muitos questionamentos surgiram em minha pesquisa. Se há tantas possibilidades, se há tantos universos, o que essa sequência de imagens de crânios representa em minha produção? Pensando como um todo, vi que ela me mostrava uma gama muito maior em meu trabalho. O interessante que me vi refletindo sobre tudo o que tinha produzido até aquele momento. E principalmente vi meu trajeto desde o início, mesmo antes de dar buscar minha carreira artística. Ainda quando eu nem pensava em ser artista ou nem imaginava como seria minha vida. Então, olhando para trás vi um trajeto, uma vida inteira dedicada a narrativas. E quando me deparei com isso vi que minha investigação ia além de criar fotografias. Todo esse turbilhão de ideias e questões surgiram principalmente quando percebi que as imagens não existentes dos crânios desaparecidos da coleção da universidade eram mais importantes para mim do que as imagens que eu tinha. Prestando atenção nesses indícios, seria mais certo dizer, no que mexe com minhas entranhas, e vejo neles algo que é relevante no meu processo criativo. Essas questões mexeram comigo e essa ausência me fez levar essa pesquisa adiante e é nessa ausência das imagens dos crânios que está a narrativa da série Efemérides. O texto que se segue, neste capítulo, é uma breve apresentação dos pontos cruciais de minha pesquisa artística partindo dos primeiros projetos com início na fotografia e mostrar os vínculos com o trabalho atual que possui uma natureza diferente. Mostrarei a importância do colecionismo e sequenciamento de imagens, os quais são os pontos que levaram esses elementos serem presentes na estrutura narrativa do meu trabalho e finalmente apresentar o projeto Multis, série de crânios citada acima, como início da série Efemérides. A ideia é apresentar o trajeto percorrido por mim, partindo dos primeiros trabalhos fotográficos até a presente pesquisa, com outros sistemas tecnológicos de criação de imagens. Gostaria de dizer que, já no início de minhas produções, eu havia deixado de lado a objetividade fotográfica. Acredito que ela é uma falsa relação construída pelo senso comum, e com minhas imagens nunca tive o compromisso com a verdade e, tão pouco, uma relação com o Documento fotográfico. Isto tem 22 sido um dos aspectos em minhas séries, através delas firmo esse abandono adotado por mim, da Verdade e da Naturalidade, de conceber “algo natural” (FLORES, 2011, p. 31), pautado na objetividade em que a fotografia foi criada. Todavia, como observa Flores, [o distanciamento da objetividade] “não deve ser visto como um juízo de valor” em meu trabalho, pois não tenho o anseio de abrir mão ou de abraçar totalmente um formato, um modelo, um estilo ou um movimento único, por outro lado, eu tento apoiar minha produção no que autora pontua, em olhar de forma global as coisas que estão a minha volta: A naturalidade da Visão Objetiva deve simplesmente ser considerada um modelo para a compreensão da base ideológica e das propostas de realidade da cultura ocidental, expressas pela Pintura até a invenção da Fotografia (FLORES, 2011, p. 31). Isto posto, pretendo criar uma linha que tem início nos trabalhos que precedem a produção da série Efemérides (2018-19), o intuito é apresentar os conceitos e as conexões existentes entre o que eu vinha produzindo e o trabalho atual. Ao percorrer esse trajeto, espero construir uma base para jogar luz nos pontos que são importantes para esta produção artística, como ela pode ser classificada em termos particulares (como um trabalho autoral e suas buscas) e onde ela se enquadra na arte contemporânea. O tom autobiográfico deste capítulo foi escolhido por se entender que as questões apresentadas são para conectar com os trabalhos que desenvolvi, incluindo a série Efemérides e as que porventura saíram como subproduto desta pesquisa (algo a ser visto nos apêndices), juntamente pontos externos inerentes ao nosso tempo. Minha intenção, de trazer esses trabalhos anteriores para discussão, construir uma rede de conexões entre os trabalhos executados, a série resultante dessa pesquisa (e suas questões artísticas particulares) e as questões da contemporaneidade. Entendo que essa é uma maneira possível de se traçar uma linha compreensível para essa pesquisa, já que esta produção artística possui muitas características não lineares dificultando uma reflexão mais aprofundada. Percebo que minha produção, desde seu início em meados de 2004, segue o que a autora Katia Canton (1962) em sua pesquisa salienta que os artistas, já no final da modernidade e efetivamente na pós- modernidade, estavam mais interessados em reorganizar os elementos conceituais e técnicos disponíveis em novos contextos, do que pretensões de inovação. Canton 23 (2009a, p.49) aponta que esta tendência na arte contemporânea existe com intuito de expandir os campos de realidade, para a autora à arte contemporânea não interessa uma leitura linear e direta, interessa sim operar na não-linearidade, o que ela chamou de “narrativas enviesadas”. Tais narrativas: Também contam histórias […]. No lugar do começo-meio-fim tradicional, elas se compõem a partir de tempos fragmentados, sobreposições, repetições, deslocamentos. Elas narram, porém não necessariamente resolvem as próprias tramas (CANTON, 2009b, p. 15). Olhando a minha produção acredito que ela esteja engajada no contexto apontado pela autora. Além da ligação com essa agenda, é claro para mim que há nela uma prática de inclusão de procedimentos de natureza diversas, ao qual se pode reconhecer os conceitos pertencentes à hibridização, à pesquisa sobre matéria- prima, ao colecionismo, à repetição e à criação de procedimentos. Esta prática de inclusão é característica buscada pela maioria dos artistas contemporâneos, assim como veem os autores Best e Kellner (1997, p. 242) que consideram esse aspecto inclusivo no campo da ciência e da arte, quando observam o pós-modernismo caracterizado muito mais em termos construtivos ou revisionários do que desconstrutivos ou eliminativos que caracterizaram o modernismo, ponto que retomarei no próximo capítulo. Minha intenção é traçar um caminho que vai de uma visão mais geral do meu trabalho, e sigo em direção para particularizar minha perspectiva, que é apresentada de uma produção artística, enxergando como ponto de partida a fotografia e se conectando à pluralidade de processos contemporâneos. Vejo que nos meus primeiros trabalhos há questões inerentes a fotografia do final do século XX e início do XXI, muito bem apontadas por Antonio Fatorelli. Os procedimentos híbridos da fotografia pós-moderna, suas estratégias de serialidade, repetição, apropriação, pastiche e cenarização, como os “quadros vivos” de Sandy Skoglund (n.1946), criteriosamente elaborados para serem fotografados, evidenciaram as distâncias entre a produção fotográfica expandida, manifestamente plural, e a prática, circunscrita aos pressupostos técnicos e formais sancionados pela estética hegemônica (FATORELLI, 2013, p.48). Durante esses anos, venho desenvolvendo minha pesquisa em torno dos processos fotográficos referente às práticas artísticas que envolvem a produção de imagens em 24 um contexto contemporâneo. Visivelmente a fotografia tornou-se ponto central no cenário da arte contemporânea do século XXI (COTTON, 2013, p.21), e com isso faz surgir inúmeras abordagens de uso e difusão dessas imagens que passam a pertencer a este cenário apontado pela autora. Embora minha produção, desde o início não buscava referências objetivas, a que a autora se refere quando situa a produção fotográfica do início do século XXI próxima aos ideais estéticos do casal Becher (COTTON, 2013, p.15). As sequências do casal Becher, deslocam o registro documental taxonômico para a arte conceitual (COTTON, 2013, p.16), enquanto, de forma semelhante, porém divergente, o que me interessa, - o que me acompanha desde 2004 – é deslocar o recurso narrativo da taxonomia científica objetiva para o relato ficcional de realidades imaginadas. Portanto acredito ser razoável enquadrar minha produção em parte nesse contexto apontado por Cotton, já que a pesquisa certamente é reflexo da hibridização contemporânea da produção de imagem. A história recente dos meios visuais e audiovisuais é uma trama de assimilações, de contágios e de confrontações recíprocas entre as diferentes formas, em flagrante desacordo com as pretensões modernistas de purismo e de autonomia (FATORELLI, 2013, p.20) Ainda, dentro deste contexto contemporâneo, olhando de uma forma macroscópica para os trabalhos que produzi até o momento, percebo que posso dividi-lo em etapas. Entre anos de 2004 e 2008 (primeira metade), a produção tangenciou as questões que envolviam os processos de criação de imagens dentro das práticas de base da fotografia (laboratório preto e branco, criação de reveladores, construção de lentes, etc). A partir da segunda metade, de 2008 até 2015, ainda dentro do campo da fotografia, a minha pesquisa buscou olhar os diversos suportes e meios fotográficos disponíveis naquele momento, incluindo os múltiplos recursos tecnológicos digitais, conduzindo as primeiras interferências nos software das câmeras e construção de aparatos óticos para serem usados nas câmeras analógicas e digitais. Naquele momento, ainda de forma tímida, assumi que minha produção poderia contemplar outros caminhos. Isto me faz acreditar que, naquele período, minha produção se encaixava nos anseios pós-modernos e caminhava para a pós-fotografia (algo que atualmente vejo de outra maneira essas questões, por serem muito complexas e tentarei abordar 25 isso de melhor forma mais adiante), que são de agregar práticas para criar novas narrativas. Ainda, sobre os trabalhos executados até o início de 2015, saliento que as séries se mantinham a forma fotográfica, mesmo que caminhassem dentro de um contexto contemporâneo, portanto a pesquisa até aquele momento sempre estava voltada aos processos fotográficos (analógico e digital) e como eles poderiam compor outras narrativas. Evidentemente que há uma clara distinção do que as pessoas veem e do que eu pretendo dizer, não tenho pretensão alguma em conduzir a leitura do que produzo, todavia externo com meu trabalho um ponto de vista sobre o que faço e como penso nas questões a nossa volta. Enxergo em minha produção um meio de expressão e vejo em sua matéria (todo os componentes com que trabalho) algo de importância e não a utilizo apenas para produzir um conjunto de imagens. Busco, e sempre busquei, explorar as essências desses conjuntos de imagens aprimorando as técnicas e materiais de forma mais intuitiva procurando o seu caráter simbólico. Avalio que meu caminho é percorrido sem limites, portanto, sem barreiras para a experimentação, no intuito de criar uma produção artística. Para mim tudo pode se transformar em matéria-prima para criação dessas peças quiméricas. Ao me afastar da objetividade fotográfica, já presentes nos primeiros trabalhos, vi-me interessado nas possibilidades ficcionais das narrativas neles presentes. Nesse sentido, o trabalho lida com uma possível realidade imaginada e questiona a objetividade fotográfica como o faz André Rouillé (2009), quando considera que a crença sobre esse aspecto da produção da imagem fotográfica se dá apenas por motivo de “ingenuidade, cegueira ou espírito polêmico” uma vez que “nem o exato nem o verdadeiro são inerentes à fotografia” (Idem, p.62). Arlindo Machado (2015) é outro importante autor a refletir sobre a verdade fotográfica em seu “A Ilusão Especular”, sua primeira edição publicada em 1984. Ali ele discute sobre a crença infundada sobre a objetividade da fotografia e seu mito em torno da fidelidade. Não obstante, esse mito ainda hoje parece estar presente em alguns meios de comunicação. Exemplo emblemático desse fato foi a rescisão do prêmio da World Press Photo Award, de 2015, depois da descoberta que a foto vencedora havia sido encenada. A rescisão se deu após o consultor Jim Colton alegar que “as imagens criadas não têm lugar no World Press Photo Contest. 26 Talvez, além da categoria de retrato… onde o fotógrafo controla o ambiente no qual está colocando o assunto […]” A fotografia, como tecnologia e fruto da ciência tem como característica de criar padrões de permitir a experiência intersubjetiva por conta da uniformidade nos processos de sua construção o que permite que a experiência do olhar seja compartilhada em base comum, permitindo o compartilhamento intersubjetivo. Vale dizer que isto tem base nos seus primórdios e lembrando que isso não é algo particular da fotografia, mas faz parte da natureza humana de tentar normatizar a sociedade. Por outro lado, a fotografia passa paradoxalmente a ter esse papel de validar essa ânsia humana de classificar, segregar. Isso pode ser visto em trabalhos científicos que usaram a fotografia para tentar dar respaldo a comportamentos preconceituosos, xenofóbicos e maniqueístas. Cito um trecho do texto de Fontcuberta sobre a eugenia e o uso da fotografia para reforçar a busca de produzir uma seleção abrindo mão das coletividades humanas. Retratar os afligidos pela loucura e os criminosos e depois confeccionar atlas com seus dados fisionômicos se tornou, pois, uma das obsessões da época. A fotografia policial e forense alcançou seu apogeu com Alphonse Bertillon, da Prefeitura de Polícia de Paris. Pioneiro na técnica de inventariar impressões digitais – técnica inventada pelo infatigável Galton –, Bertillon estava empenhado em estabelecer um sistema no qual os mais invariáveis traços da aparência de uma pessoa pudessem ser codificados e discernidos, mais além das transformações produzidas pela idade ou de uma intenção deliberada de maquiagem ou disfarce. (FONTCUBERTA, 2015, p.147). Sob a influência de Darwin, quando as espécies deixavam de ser entidades criadas diretamente por Deus e passavam a ser entendidas como capazes de evoluir de umas a outras, as sequências de Camper e White começaram a considerar uma “ascensão” evolutiva: uma “melhora”. Disso derivavam duas conclusões. A primeira era que os tipos fisionômicos com feições mais próximas às simiescas denotavam raças mais primitivas. A segunda era que se uma raça se comportava de uma forma “bestial” significava que era regressiva. A criminalidade passava, portanto, a ser conceituada como uma regressão na escala evolutiva humana, ou seja, como um retorno ao símio (FONTCUBERTA, 2015, p.145). 27 Não tenho intenção de me aprofundar nesse aspecto da fotografia já que ela não faz parte da minha produção, mas vejo que é importante mostrar quais são os pontos que me conduzem e que me afastam desse contexto e desse tipo catalogação eugênica onde a fotografia faz parte. Para mim, este trabalho usa destes contradições da fotografia, como bem destaca Annateresa Fabris (2005), a fotografia cria em si mesma uma grande armadilha conceitual, ao mesmo tempo que sua estrutura técnica propõe uma conexão com um referente e uma realidade em um instante no tempo, ela mesma se contradiz com a própria verdade, já que é uma representação daquele instante e não o instante em si. Esses conflitos reforçam e impulsionam minha produção e vejo como ela tem uma importância como um ponto possível para uma discussão acadêmica, isso pelo seu escopo que se enquadra em questões que já vinha sendo discutidas pela pós- modernidade, e principalmente no que se refere a arte neste contexto (CAUQUELIN, 2005, p 129). A aparente objetividade das imagens técnicas é ilusória, pois na realidade são tão simbólicas, quanto o são todas as imagens. Devem ser decifradas por quem deseja captar-lhes o significado (FLUSSER, 1998, p 34). Com base nisto, ao usar representações definidas como substituições do referente (BARTHES, 1984) e, ao mesmo tempo, questionar a veracidade dessas imagens em mostrar a fragilidade das técnicas de origem mecanicista. Acredito que, no percurso do meu trabalho, caminhei no cenário da Arte Contemporânea, como descrito por Cotton (2013), desde o início, até o presente. Minha trajetória começou no laboratório preto e branco, e durante a graduação na pesquisa sobre reveladores preto e branco e cor. Na segunda metade da graduação tive contato com a linguagem do vídeo e produzi algumas experiências. Uma delas foi levar a visualidade dos trabalhos analógicos que estava desenvolvendo, para dois vídeos de longa duração. O trabalho de pesquisa foi contemplado com uma 28 bolsa PIBIC de Iniciação Científica, quando se deu a primeira parceria com o meu atual orientador, Fernando Fogliano. Vejo que nos meus trabalhos há ciclos, que criam redes de conexões entre eles. O que me dá um certo alívio, admito, pois vejo que mesmo com espaços significativos de tempo, eles continuam conectados, coerentes com minha visão de mundo. Um aspecto importante de minha produção está relacionado ao colecionismo. Apesar de não colecionar imagens, algumas vezes fotografo coleções. O conjunto resultante das imagens, admito, não deixa de ser uma coleção. Não obstante, posso afirmar que os meus interesses não estão nas coleções, mas na intenção dar novas narrativas a elas e em suas catalogações. Acredito que minha prática converge para o que Jean Baudrillard (2015) chama atenção, quando critica o ato de colecionar, afastando-me da mera posse dos objetos e da simples acumulação. A coleção emerge para a cultura: visa objetos diferenciados que têm frequentemente valor de troca, que são também “objetos” de conservação, de comércio, de ritual social, de exibição, — talvez mesmo fonte de benefícios (Idem, p.112). Assim como o autor, considero que “tanto quanto por sua complexidade cultural, é pela falta, pelo inacabado que a coleção se separa da pura acumulação” (Idem, p.112). Estou próximo do sentimento de guardar, regulamentar, normatizar, e do interesse pela ausência, que solicita daqueles que das coleções estão próximos a procurar pelos objetos ausentes, ensejando um discurso social: “todavia é preciso se render à evidência: raramente é a presença do objeto, mas frequentemente sua ausência que leva a tal discurso” (Idem, p.112). O que reside nas minhas séries é possibilidade narrativa a que as ausências potencialmente conduzem. A falta com efeito é sempre exigência definida deste ou daquele objeto ausente e esta exigência ao se traduzir como procura, paixão, mensagem aos outros, basta para quebrar o encantamento mortal da coleção onde o indivíduo se abisma em pura fascinação (Idem, p.112). Essa perspectiva se aproxima da criação de uma biblioteca, algo que se refere ao conhecimento, ou a uma coleção de linguagens, elementos que possam ser usados com uma gramática. Criar um gabinete de curiosidades1 com uma coleção de peças 1 Os gabinetes de curiosidades podem ser considerados como os precursores dos atuais museus de arte. 29 exóticas. Essas questões vêm pautando minhas séries desde 2008 e, desde lá venho caminhando nesse ambiente de coleções (museus e coleções particulares). Para descrever um pouco sobre essa parte da minha pesquisa, escolhi séries anteriores que possuem algumas características que suscitaram a concepção da série Efemérides. Elas possuem particularidades que presentes nas práticas de arquivo/colecionismo/sequenciamento como prática de produção. O trabalho Museu de História Natural (2009) que gostaria de apresentar primeiramente, trata-se de uma série composta por imagens de animais em museus de zoologia e em coleções particulares. Esse projeto tem relação com minha primeira empreitada acadêmica, que passou pela biologia e engenharia genética2. A série do mesmo modo traz a relação que tenho com meus sonhos. Não busco sua interpretação literal mas a expressão das emoções experienciadas e trazidas novamente à lembrança ao acordar. Meus sonhos são muito reais, pois tenho estímulos muito parecidos como quando estou acordado. Sinto gostos, cheiros, sensações táteis, auditivas, leio e assim por diante. Por ter uma visão cética sobre esses eventos, ou seja, não considero tais experiências na esfera do misticismo ou espiritualismo. Os vejo como sugestões criativas para interpretar experiências vividas no cotidiano que posso levar para meus projetos. Em um desses sonhos, ou viagens, chame como quiser, fique à vontade; mais do que o tema, o que me chamou a atenção foi que eu estava numa sala repleta de objetos, a sala era grande com janelas que iam do chão até o teto, uma espécie de museu. O curioso do sonho era havia um lençol em mim, assim como aqueles fantasmas de desenho animado. Isso fazia com que eu visse as coisas de uma forma no mínimo particular, como se houvesse uma bruma ou uma névoa. O sonho em si, não era algo esclarecedor, tampouco revelador, mas, depois de pensar sobre ele na manhã seguinte, me veio a ideia de construir ou modificar uma lente de câmera para gerar imagens que pudessem produzir aquela estética. Paralelamente a construção de lentes, eu já estava estudando uma maneira de modificar os 2 Tenho uma formação incompleta em Licenciatura em Biologia e Engenharia Química, o que me garantiu um trabalho de 4 anos (1997-2001) no projeto genoma brasileiro. Minhas experiências profissionais anteriores à fotografia são muito diversas, (que passaram por ser garçom a pintar enfeites de geladeira) e foram motivadas por questões econômicas (sempre fui uma pessoa de periferia e sem dinheiro ou bens, por esse motivo fui obrigado por uma necessidade básica iniciar minha carreira no trabalho muito cedo, com 12 anos tive a sorte de trabalhar num estúdio desenhando. Mas não vou estender isso). Com relação a Biologia gostaria de deixar registrado que não sou Biólogo ou tão pouco um Biólogo que virou artista ou qualquer combinação de Artista/Biólogo que queiram fazer. Para mim sou um artista interessado em Ciências, qualquer que seja ela. Meu trabalho está ligado a Ciência que vem do latim scientia, que pode ser traduzido por “conhecimento”. 30 software das câmeras digitais. A série Museu de História Natural é, portanto, o resultado de dois conjuntos distintos de pesquisa: o primeiro envolvia a construção de lentes usando elementos ópticos de qualquer origem (nesta série usou-se uma tampa transparente de xampu); o segundo, centrado em modificações de software em câmeras digitais. As imagens não têm pós-tratamento ou retoque, e a estética apresentada é a soma da lente com elemento de baixa qualidade e com o software modificado da câmera. As obras, que foram capturadas em Museus de Zoologia do interior de São Paulo e em coleções particulares, possuem escala próxima da dos objetos fotografados. Ela possui 95 imagens, incluindo insetos, esqueletos, e animais taxidermizados ou em recipientes com solução de formaldeído. Desde 2009 este trabalho já foi exposto em São Paulo, Londres, Oslo e Portugal. Algumas das obras estão em processo de aquisição pelo Museu da Cidade de São Paulo e fazem parte de acervos de colecionadores. 31 Figura 1: Balearica pavonina 110x73cm - Museu de História Natural - 2009 32 Figura 2: Panthera leo: cranium 56x43cm – Museu de História Natural – 2009 33 Figura 3: Exaerete frontalis 14x14cm ou 80x80cm - Museu de História Natural - 2009 34 Figura 4: Balaenoptera bonaerensis: cor 80x80cm - Museu de História Natural - 2009 35 Outra série que contribuiu para a elaboração da presente pesquisa, é o conjunto de imagens Desambiguação (2014). Essa série segue a mesma rotina de catalogação do Museu de História Natural. Desta vez a ênfase recai sobre a narrativa ficcional e na semântica. Enquanto na série anterior, quando meu objetivo era criar uma leitura da estética usando um assunto mais familiar e identificável (itens relacionado com a natureza e ao colecionismo dos museus), na série Desambiguação busquei firmar minha pesquisa no universo da imaginação, e na invenção de histórias centradas em uma visão íntima das minhas experiências. O ponto principal do conjunto é a retomada de uma prática de quando estava com 8 anos de idade. Era um jogo criado por mim, que consistia em inventar novos nomes para tudo a minha volta, as palavras eram direcionadas a utensílios caseiros e coisas cotidianas. Em 2014, eu modifiquei o jogo para a série Desambiguação (Figuras 5 e 6) que consistia em usar a imagens fotográficas para relacioná-las ambiguamente a palavras. Um jogo invertido daquele original, de quando era criança e inventava palavras. Criei dois polípticos, e neles, objetos não relacionados como os nomes originais são fotografados para dar novas imagens, escolhi representar as constelações e algumas estrelas. No caso das constelações usei 88 ovos de codorna, e para as 48 estrelas mais brilhantes vistas da terra usei dentes humanos. Nessa série, cada imagem dos polípticos trazem as denominações, em latim, das constelações e das estrelas. Assim como nas pesquisas anteriores, eu estava continuando minha investigação sobre os procedimentos básicos da fotografia. Os dois polípticos foram fotografados usando uma câmera de grande formato (5x7 polegadas) com objetiva construída por mim, diferente daquela usada na série Museu de História Natural. A objetiva da série Desambiguação é constituída de vidro óptico e, portanto de melhor qualidade, que confere nitidez maior para as imagens produzidas. 36 Figura 5: Cōnstēllātiō - Desambiguação - 2014 37 Figura 6: Lūcǐdē - Desambiguação - 2014 38 Outra prática trazida das séries, Museu de História Natural e Desambiguação, para Efemérides, foi o uso das regras tipográficas. Nas duas primeiras, usei a técnica para os enquadramentos uma regra de posicionamento de letras no papel, usadas na tipografia e confecção de livros. Uso esse recurso como se as imagens fossem caracteres de uma fonte (Figura 7 e 8). Figura 7: Esquema de enquadramento para série Desambiguação Figura 8: Esquema de enquadramento para a série Museu de História Natural Todas as séries que produzi até o momento usam uma ou mais dessas regras de composição tipográfica, seja no momento de fotografar, ou na finalização, para serem impressas. Crio a partir daquelas regras as minhas próprias para compor, e isso cria camadas que se agregam às narrativas que crio. Na série Efemérides uso algumas proporções utilizadas para formatar páginas, essas proporções estão relacionadas a notas musicais. Elas são usadas há anos para compor páginas de livros, ou na arquitetura, por exemplo. Uma página – como um edifício ou uma sala – pode ter qualquer tamanho e proporção, mas algumas são mais agradáveis que outras, e algumas têm conotações bem específicas. […] Os escribas e os seus tipógrafos, assim como os arquitetos, têm configurado espaços visuais há milhares de anos. (BRINGHURST, 2011, p.159-160). 39 As séries supracitadas reforçam minha pesquisa dentro dos processos fotográficos e minha intenção, naquele momento, em seguir minhas discussões na fotografia. Não obstante, as pesquisas esboçam minha busca por outros elementos para construir narrativas que vão além das proposições fotográficas, que tornam essas séries importantes para Efemérides. Elas forneceram alguns elementos iniciais que contribuem para o estágio atual de minha pesquisa, objetivo deste mestrado. Nelas, identifico que já havia uma intenção em criar camadas narrativas, mesmo que subliminares na obra. Acredito que esse percurso fez parte de um conjunto de decisões tomadas influenciado por um ambiente contemporâneo favorável à fotografia, algo que Cotton (2013) descreve em seu livro sobre a importância da fotografia para a arte contemporânea. Ela vê nela um meio em constante transformação de acesso para muitos artistas, que a usam para expor suas inquietações. A autora vê nas histórias criadas por estes artistas uma forma de se destilar as possíveis narrativas em busca de uma imagem. Nesse contexto, torna-se cada vez mais evidente que a fotografia artística contemporânea é impulsionada pelas escolhas sagazes e ativas de seus produtores, cujas obras conservam a brilhante natureza dialógica de uma forma de arte dentro de uma paisagem fotográfica mais ampla em permanente mutação (COTTON, 2013, p.8). Essas práticas reforçam minha convicção sobre meu trabalho e como enquadrá-lo na produção artística contemporânea. A fotografia foi a plataforma para outros caminhos de minha produção. No quinto capítulo vou aprofundar-me sobre a questão da narrativa em meu trabalho e como ela se tornou ponto principal em minha produção. 2.1 – CONCEPÇÃO DA SÉRIE EFEMÉRIDES Devo chamar a atenção de que esse mestrado é uma produção artística que difere das anteriores, por caminhar no ambiente acadêmico, que me conduziu a conciliar o rigor científico com a liberdade artística. Os relatos pessoais serão trazidos com o intuito de tornar evidente sua presença como elemento imaginário que compõe esta e as outras produções do meu trabalho. Busco, no teor poético-teórico a possibilidade de conexão entre eles para a criação da série Efemérides. 40 No final de 2015, em busca de material para minhas narrativas, estava imerso em uma coleção de anatomia humana quando fui colocado em contato com uma coleção incompleta de crânios humanos pertencentes a UNIFESP. Nesta coleção eu produzi uma série de imagens desses crânios. No final do estágio de revelação dos negativos, o fato da coleção não estar completa me fez perceber o quanto aquilo poderia abrir um outro campo narrativo a ser explorado. Decidi terminar a série dos crânios, que denominei Multis, dividindo o montante de 450 imagens capturadas em grupos de 5 imagens, formando 90 polípticos. Ao terminar todo processo de digitalização desses negativos, esbocei uma ideia, no campo da fotografia. Essa proposta, influenciada pela obra de David Hockney (1937) (Figura 9), consistia em compor um conjunto de colagens com as imagens dos crânios. 41 Figura 9: Nicholas Wilder Studying Picasso – Composição com Polaroids - 48 1/2 x 26 1/2" -- David Hockney - Los Angeles 24 de Março de 1982 Os primeiros testes foram profundamente frustrantes, o que me fez abandonar a prática da colagem. Mas, a ideia de compor novas imagens usando a fotografia ainda me parecia uma boa estratégia. Passei a planejar com mais cuidado. No terceiro capítulo pretendo descrever mais detalhadamente o processo. Ao aprofundar-me na questão da colagem percebi um caminho que estava além das técnicas fotográficas. Já distante da fotografia pura3, entendi que deveria olhar para aquelas imagens como fonte de informação. Entendi que poderiam ter outro papel na construção narrativa. As fotografias da série Multis fariam parte desse novo 3 A quintessência da criação fotográfica direta: apenas um objeto, luz e papel fotográfico, nada no meio, nada que se interponha por meio de manipulação. 42 projeto embora a fotografia não seria mais a técnica central na construção da obra. O trabalho que compõe esta pesquisa, a série Efemérides, marca uma mudança de estratégia tecno-estética no qual a narrativa assume a centralidade e a fotografia assume papel coadjuvante. A intenção de criar possíveis apresentações para esse conjunto de informações oriundas de fontes diversas, utilizando as características contidas em outros planos, não visíveis, da estrutura dos arquivos digitais. Frieder Nake (2016) assim se refere as essa abordagem sobre a imagem digital: Imagens como imagens digitais não são visíveis. Eles são, de alguma forma ainda a serem determinadas, dois-em-um! A imagem em tempos pós-modernos, em tempos de algoritmos e cálculos, existe em um modo duplo. Eu costumo chamá-lo de sinal algorítmico. Mas, no decorrer deste ensaio, usarei uma expressão mais simples. Eu vou dizer, a chamada imagem digital é uma superfície e subfície. Podemos lidar com isso como uma imagem digital apenas se considerarmos que é um par de superfície visível e uma subfície manipulável. A superfície é analógica, a subfície é digital (Idem, p.13, tradução nossa). Os dados das imagens digitais passam a ser indícios da existência daquelas imagens faltantes da coleção de crânios, mesmo que, ao final, essas imagens nunca remetam às imagens faltantes. É a narrativa ficcional que se incumbe de trazer à experiência da construção daquelas imagens ausentes. Considero a fotografia incapaz de captar esse nível abstrato de existência ou em qualquer nível de realidade, e nesse ponto, exponho a fragilidade da fotografia quando ela é usada como verdade absoluta. O realismo fotográfico e seus valores subjacentes são uma questão de fé. Porque não há nenhum indício racional convincente que garanta que a fotografia, por sua própria natureza, tenha mais valor como índice do que o laço feito em um dedo ou a relíquia (FONTCUBERTA, 2010, p.55). Aproprio-me dessa fragilidade e utilizo componentes não visíveis das imagens de crânios para criar outras imagens que se distanciam da realidade objetiva. Na arte, a poiética estuda apenas a conduta criadora… Passando da estética, cujo objetivo é imenso, à poiética, ocupada unicamente com a conduta humana no que ela tem de criador, remontamos não só de um objeto amplo a um objeto cerrado, mas, por uma mutação de consideráveis consequências, da filosofia da sensibilidade à da ação (Passeron,1997, p 108). 43 Ao fazer isso abro mão do que é específico à fotografia e reúno outras formas narrativas em busca de uma Poïética (Idem) que conecte todos os elementos que são materializados na série Efemérides. 2.2 – MATERIALIDADE EM EFEMÉRIDES Nos anos de pesquisa sobre a materialidade da fotografia (analógica e digital) e que formaram a base para minha prática, fundada na premissa de o conhecimento dos materiais e seu domínio sobre os processos, mesmo que isso signifique trabalhar algumas vezes com o acaso, são essenciais no processo de concretização das ideias contidas no meu pensamento e nas narrativas que crio. Ter controle não significa engessar um processo, tampouco desprezar possibilidades não previstas, controlar é, para mim, estar ciente do que está acontecendo. Ao considerar a coleção de fotografias da série Multis como matéria-prima para série Efemérides, as imagens dos crânios tornam-se parte principal na confecção e execução para as novas imagens, e como matéria em estado bruto a ser trabalhada, e se recorro às técnicas distantes das práticas fotográficas e mais próximas das tecnologias que envolvem programação e matemática. É no intuito de transformá-las em outro objeto, onde ele se torna a convergência de múltiplas linguagens: a fotografia, a literatura, arte generativa, matemática, etc. Cria-se, portanto, a necessidade de entender o que são essas imagens em termos da sua composição como uma fonte de informação, um mapa de coordenadas. A importância de compreender esses arquivos como fonte de matéria, me fez considerá-las como um elemento fluido, por conta das suas múltiplas possibilidades de leitura. A ideia de utilizar elementos que podem ter aspectos iniciais conflitantes, prática recorrente de artistas plásticos como Cildo Meireles (1948) em especial a instalação Fontes (Figura 10), que trata, em sua produção, da ambiguidade material, onde esta possui ao mesmo tempo a característica de matéria–prima e símbolo (AMARAL, 2001, p. 68). 44 Figura 10: Fontes, 6.000 réguas, 1.000 relógios, e 500.000 números de vinyl - Cildo Meireles - 1992 O que sempre me interessou em termos da materialidade fotográfica, está na prata, no processo de sensibilização, no procedimento químico para sua revelação e, quando digital, nos pixels, que se manifestam em telas ou nas superfícies dos papéis. Grosso modo, de maneiras diversas, tanto os pixels, quantos os grãos de prata, assumem papéis semelhantes na construção das imagens. A materialidade da fotografia argêntica corresponde ao universo da química, ao desenvolvimento do aço e da ferrovia, à maquinaria e à expansão colonial incentivada pela economia capitalista. A fotografia digital, por sua vez, é consequência de uma economia que privilegia a informação como mercadoria, os capitais opacos e as transações informáticas invisíveis. Tem como material a linguagem, os códigos e os algoritmos; compartilha a substância do texto ou do som, e pode existir em suas próprias redes de difusão (FONTCUBERTA, 2015, p. 7). Percebo que a fotografia é um meio e não um fim em meu trabalho, pois vejo que nela há um grande leque de caminhos possíveis, repleto de possibilidades experimentais. Essas possibilidades, nos últimos anos, vem me impulsionando para 45 outros caminhos em direção à compreensão da imagem. Isto me aproximou de componentes não ligados diretamente a fotografia, principalmente conceitos relacionados ao pós-digital para onde convergem inúmeras linguagens e materialidades. O que me levou à essência do arquivo digital: o número. Assim como a modelagem e queima estão para a cerâmica, os números estão para Efemérides. Por ora, basta dizer que, nesse projeto, o número ocupa posição destacada. Não menos importante em sua construção está presente meu encantamento pelo funcionamento dos processos, incluindo os fotográficos – analógicos e digitais – e na sua plasticidade material. Na série Efemérides fui buscar o que poderiam ser esses materiais, já que tinha certeza que gostaria de trabalhar no âmbito invisível e constituinte da imagem digital. O artista e pesquisador Paulo Laurentiz (1953-1991), afirmava que a “matéria é a coisa física manipulada pelo artista, já a materialidade abrange o potencial expressivo e a carga de informação do suporte, é uma qualidade que um determinado meio dá à obra” (LAURENTIZ, 1991, p.102). A potência simbólica e expressiva existente na materialidade, que abarca as práticas artísticas da contemporaneidade, se evidencia nas artes plásticas a partir da segunda metade do século XX quando se desdobram em trabalhos, como os de Joseph Beuys (1921-1986), que rompe com os tradicionais suportes da arte e passa a desenvolver trabalhos que contemplavam mais a propriedade da matéria que constitui a obra, no sentido que “antes da matéria e, se se pode dizer assim, antes da forma, antes de dar a forma, Beuys convida a aprender das próprias substâncias as potencialidades que elas encerram” (BORER, 2001, p. 15). Segundo Borer, aquele artista possibilitou, com seu trabalho, uma abertura para um novo olhar na produção artística. Ele concede à matéria um caráter de significação e potencialidade independentes. Essa nova agenda propõe transferir uma presença para o material que passa a compor o trabalho, criando uma proximidade e/ou conexão entre um objeto de arte a um organismo vivo, por exemplo, que é mutável e em constante transformação. Da mesma maneira, em Efemérides, o pixel expressa valores simbólicos, presentes na estrutura sua narrativa, impregnados nas subfícies das imagens. 46 Essa relação descrita por Borer a respeito do trabalho de Beuys, sobre essa modificação sobre a agenda nas artes é um dos pontos que retomo no próximo capítulo juntamente a ambientação histórica dos eventos que antecederam e prepararam o cenário para Efemérides. 3 – OS CENÁRIOS 3.1 – CENÁRIO HISTÓRICO ANTERIOR A MINHA ENTRADA NO CAMPO DA ARTE No capítulo anterior pretendi conectar a presente pesquisa, que envolve a produção da série Efemérides, ao meu trajeto artístico que a antecedeu, em especial os trabalhos que contribuíram para a construção desta série. Neste capítulo, o meu objetivo é estabelecer algumas relações desse trajeto com aspectos históricos e conceituais importantes para a pesquisa. Meu intuito é criar uma conexão sobre o que produzi, até o momento, com o pensamento e à produção contemporânea no campo das artes. Miro principalmente aquela produção na qual sua mediação e concretização apresentem em sua gênese as tecnologias – analógicas e digitais – de forma mais evidente em seu momento histórico. Para contextualizar a produção da série Efemérides nesse cenário, considerei importante iniciá-la num momento histórico particularmente significativo para arte contemporânea que antecedeu o momento artístico no qual dei início a minha carreira na arte e que antecede inclusive o “momento no qual a natureza da visualidade se transforma provavelmente de modo mais radical (CRARY, 2012, p.11)”. Trata-se do período em que se discutia a própria “morte da arte”, e momento quando se “denuncia a morte do pensamento metafísico como um todo, inclusive na filosofia (FIANCO, 2012, p.378),” e surgem importantes transformações conceituais que vieram a influenciar muitos dos aspectos da minha produção e da arte contemporânea. Arthur Danto assume um papel importante nessa discussão, pois sua visão baseia- se numa “leitura da história da arte” e reconhece que nela há, “um pensamento completamente hegeliano”, e argumenta: “que o fim da arte consiste na tomada de consciência da verdadeira natureza filosófica da arte” (DANTO, 2006, p.34). 47 No despontar dos anos 1980, tornou-se evidência incontestável aquilo que apenas se insinuava nos anos 1960. Foi justamente nesse contexto que as teses do fim da arte, proclamadas por Danto e outros autores, assumiam uma franca oposição em relação à linha hegemônica da crítica de arte nos Estados Unidos, representada pela figura emblemática de Clement Greenberg, o famoso crítico oficial do modernismo. Uma vez que essa crítica pertencia a uma arte crepuscular, Danto surgiu como arauto da arte que nascia depois do fim da arte (SANTAELLA, 2009, p.139). Sublinhe-se que aquela discussão, iniciada na década de 1980, estava relacionada com o fim de um modo de ver, ou o conjunto de valores, que orientavam as narrativas que vinham sendo construídas na arte nesse longo período até meados da década de 1960. Danto e outros autores não se referiam a morte da arte, propriamente dita, mas o ponto de vista defendido por eles “de que, qualquer que fosse a arte que se seguisse, ela seria feita sem o benefício da narrativa legitimadora, na qual fosse vista como a próxima etapa apropriada da história. (DANTO, 2006, p. 5)”. Ele se referia ao nascimento de um novo paradigma, que não seria uma continuação daquela estratégia narrativa, que esta, que seria denominada pós-modernismo, seria algo novo e que apontaria para outros caminhos. O fim da arte é o fim de uma narrativa histórica que colocava o critério de arte ou não arte na vinculação da obra a um determinado estilo predominante, o que será substituído por esse período de pluralidade de estilos e de universalidade de produção artística. […] no qual essa multiplicidade de estilos é entendida como um impedimento para que se continue a pensar em termos de uma narrativa mestra, ou seja, um critério e um estilo correto para avaliar e classificar o que seria ou não arte e para diferenciar arte boa de arte ruim. Isso cria, então, a verdadeira necessidade de uma reflexão filosófica sobre arte, que não seja apenas a reprodução de um discurso ideológico alheio, mas que seja capaz de transitar por entre seus critérios imanentes (FIANCO, 2012, p.378). Particularmente importante nesse contexto é o diálogo entre Arthur Danto (1924- 2013) e Clement Greenberg (1909-1994). Sussekind (2014) reflete sobre esse embate e traz à discussão como Danto, em sua abordagem crítica, contesta os modelos estabelecidos na história da arte, quando o autor faz uma análise sobre seus rumos naquele período: As reflexões de Arthur Danto sobre a tese do fim da arte, retomando em novo contexto o célebre tema hegeliano, assumem essa dupla tarefa de discutir os rumos da arte contemporânea e de pensar os limites das narrativas que procuram explicar e classificar o 48 que os artistas produzem. Seu questionamento dos modelos teóricos põem em xeque tanto a concepção tradicional, que marcou o desenvolvimento da história da arte desde o Renascimento, quanto a crítica renovada no século XX a partir das exigências impostas pela produção artística moderna (SUSSEKIND, 2014, p.1). Fianco (2012) completa esse pensamento sobre a obra de Danto: Nesse sentido, quem desaparece não é propriamente a arte, mas sim a sua “narrativa legitimadora”, possibilitando que a estética crie sua própria autoconsciência e inaugurando especificamente a filosofia da arte, que será pensada mediante critérios que lhe sejam imanentes e não mediante critérios exteriores, criados pela filosofia isoladamente e depois aplicados a ela pela força dos conceitos e do ambiente cultural (Idem, p.378). É importante para compreensão das questões que Danto levantou, entender que o autor faz uma distinção clara entre estilo4 e momento histórico. Da mesma forma que “moderno” não é simplesmente um conceito temporal, significando, digamos, “o mais recente”, tampouco “contemporâneo” é um termo temporal, significando tudo o que esteja acontecendo no “presente momento”, mas o autor pondera ao defender que ao longo do tempo “a história da arte evoluiu internamente, a contemporânea passou a significar uma arte produzida dentro de certa estrutura de produção jamais antes vista em toda a história da arte” (DANTO, 2006, p. 5). A intenção de Danto está em refletir sobre um momento de crise, marcado por indefinições e incertezas que dominaram o campo das artes naquele período marcado pela ruptura. Da mesma forma enxerga que o autor se depara com, pelo menos, dois desafios: O primeiro desses desafios o levou a pensar a “transfiguração do lugar-comum”, como a caracterização de uma distinção entre objetos artísticos e não artísticos sem se basear em critérios formais ou visuais. O segundo desafio o levou a definir a arte contemporânea como sendo “pós-histórica”, no sentido de não mais adequar-se a uma narrativa progressiva que determina ou limita a produção artística. (SUSSEKIND, 2014, p.7). Danto busca estabelecer uma teoria para se obter respostas sobre uma possível definição para “determinados objetos ou ações como obras de arte, mas também de 4 Neste capítulo estaremos nos referindo ao 'estilo' na arte em inúmeros momentos. A palavra estilo define um conjunto de características que define um conjunto de obras de arte ou um período artístico. A arte contemporânea a que estamos nos referindo distingue-se pela ausência de estilos. Portanto, quando estivermos nos referindo ao estilo na arte contemporânea, estaremos nos referindo àquela ausência de padrões identificáveis. O padrão contemporâneo é caracterizado pela ausência de padrões. 49 compreender a nova relação que as obras estabelecem com a história” (SUSSEKIND, 2014, p.7). A questão do pós-histórico é crucial, pois por meio dessa agenda, a arte contemporânea passa a ser caracterizada por uma mudança de perspectiva – o declínio da Visão Objetiva (FLORES, 2011, p. 29). A crise das ideias racionalistas sobre a objetividade, a verdade objetiva e universal em favor do multiperspectivismo e da subjetividade. O conceito de universal perde força nos processos artísticos e narrativos. Do ponto de vista da teoria da história em geral e do papel da narratividade em especial, observamos que as categorias “universalidade” e “contingência” se mostram problemáticas na medida em que a “crise dos paradigmas” é, sobretudo, uma crise de aplicação das categorias. (BERBERT JÚNIOR, 2017, p.161). A pós-modernidade, diante da fragilidade gerada pela falta de limites definidos na arte daquele momento, fez crescer o sentimento de insegurança e, por consequência, o conflito ante as inúmeras possibilidades do mundo contemporâneo. Flores (2011) vê nisso a causa mais importante de uma crise que persiste até os dias de hoje: Se as múltiplas e heterogêneas manifestações pós-modernas pudessem ser reduzidas a um denominador comum, este seria o da dicotomia indivíduo/cultura. Na cultura pós-moderna, o indivíduo se vê reduzido a um sujeito ontologicamente “fraco”, que não consegue se afirmar completamente por medo de cair no univocismo totalizador do pensamento racionalista contra o qual ele se rebelou. (IDEM, p. 252). Essa crise parece estar longe do fim. O artista não assume um caráter definido, oscilando entre o moderno e o pós-moderno hesitando entre os dois paradigmas. Dentro dessa estrutura surge um sentimento de não definição dentro da arte, ou seja, há até os dias atuais a falta de um “estilo identificável” entre o que se vem produzindo. Danto considerava que esse é o principal ponto em comum da arte contemporânea. [essa falta de estilo identificável] … na verdade é a marca das artes visuais desde o final do modernismo, que como o período se define pela falta de uma unidade estilística, ou, pelo menos, do tipo de unidade estilística que pode ser alçada à condição de critério e utilizada 50 como base para o desenvolvimento de uma capacidade de reconhecimento […] (DANTO, 2006, p. 15). Berbert Júnior (2017) consegue elencar as linhas de raciocínio dos principais pensadores sobre esse assunto e os embates que isso gerou em torno dessa discussão. É nesse debate que a reflexão sobre o papel da narratividade torna-se o centro de uma disputa que, tendo como eixo principal uma crise de paradigmas, revela uma crise de orientação, uma vez que não há mais consenso sobre o lugar do significado na teoria da história (BERBERT JÚNIOR, 2017, p17). O autor enumera algumas dessas rupturas que geraram a crise instaurada com o rompimento das narrativas com a verdade. […] podemos constatar a ruptura entre as seguintes categorias: 1) particularidade e universalidade; 2) narratividade e objetividade. Esse segundo tipo de ruptura leva a uma terceira que se liga às categorias de conjuntura e estrutura. O conjunto dessas rupturas insere-se em outra mais abrangente, qual seja: narratividade e referência. O produto final dessas rupturas é a crise que se instaura quando rompido o vínculo entre a narratividade e a verdade (BERBERT JÚNIOR, 2017, p.162). O termo “pós”, para estes autores, abarca o sentimento de que as grandes narrativas e os seus objetivos tinham mudado e que não cabiam mais num contexto modernista. Para citar alguns pensadores, Lyotard, Danto e Belting, já tinham observado essa dissonância, da pós-modernidade de repudiar a abdicação do passado como prática, preceitos referentes ao “mito de ruptura modernista”, que era muito “mais limitado do que dá a entender o alarde que o cerca” (CRARY, 2012, p.14). O prefixo “pós” aponta para algo depois do moderno, embora com certa hesitação e senso de inadequação semântica, sugerindo algo emergente e derivado, ainda que claramente delineado e formulado como um termo positivo em si mesmo. O pós-moderno, como seus afiliados pós-modernismo, pós-modernidade e pós- modernização, tira seu ímpeto da modernidade. (VENN e FEATHERSTONE, 2006, p. 462). Fica claro para mim, que os autores estavam sugerindo um fracasso, por parte do modernismo, ao adicionarem o termo “pós” ao moderno. Isto é, ao remontar o 51 percurso da arte e entender que a “condição pós-moderna” (LYOTARD, 2011) pode significar a perda de confiança nas metanarrativas que vinham sendo construídas. Entendida inicialmente como um novo estilo na arquitetura e nas artes, a expressão “pós- moderno” também reverberou na dança, música, fotografia, cinema até tomar conta de quase todas as práticas e teorias culturais, alcançando a política e até mesmo as ciências. Essa reverberação foi grandemente devida à efervescência do debate, nos inícios dos anos 1980, envolvendo filósofos de fama internacional. Em 1979, Jean-François Lyotard publicou A condição pós-moderna, que funcionou como um grande marco no deslanchar desses debates (SANTAELLA, 2009, p.140). Sobretudo, vê-se naquele momento, que as mudanças eram impulsionadas pela descrença nas ideias que surgiram do Iluminismo ocidental do século XVIII e propunham uma direção linear para a história e um horizonte em expansão de possibilidades nas “grandes histórias” do progresso, ciência, direitos humanos e cidadania (Cf. VENN e FEATHERSTONE, 2006). […] disposição geral da modernidade em definir os elementos de um discurso num discurso sobre estes elementos combinam-se com o restabelecimento da dignidade das culturas narrativas (populares), já no humanismo renascentista, e diversamente no iluminismo, no Sturm und Drang, na filosofia idealista alemã, na escola histórica na França. A narração deixa de ser um lapso da legitimação (LYOTARD,2011, p. 54). Flores (2011), usando o campo das artes, mais especificamente da fotografia e da pintura, aponta que mesmo com essas mudanças significativas trazidas pela pós- modernidade, ainda persistem alguns aspectos que não caberiam neste contexto contemporâneo, elas agem como resíduos acumulados em todo o trajeto da arte até o momento. O efeito acumulado de tantos séculos de representação natural/ótica é tão grande que, ainda agora, na alvorada do século XXI, persiste a mesma atitude de compreender as imagens “realistas” como algo natural: as imagens funcionam como apresentações, e não como representações da realidade (FLORES, 2011, p. 31). A autora reforça essa ideia que na pós-modernidade, a arte ainda é regida por conceitos antagônicos estabelecidos na modernidade. 52 Embora novos conceitos e valores pós-modernos tenham se incorporado à teoria, à crítica e às práticas das artes a partir de uma perspectiva pós-moderna (a morte do autor, a apropriação, a hibridização dos gêneros, o pós-estruturalismo, a crítica institucional, a politização da arte etc.), eles não foram suficientemente poderosos para acabar com o status quo moderno (IDEM, 2011, p. 215). Todavia, este ambiente contemporâneo regido por esse choque de múltiplas possibilidades e indeterminações, causadas, principalmente, pela aleatoriedade e causalidade, podem ser um ambiente fértil para a produção artística. Desde as vanguardas, o panorama é de uma miscelânea de ideias, crenças e práticas presas entre a modernidade e a pós-modernidade (IDEM, 2011, p. 215). Marcel Duchamp (1887-1968), que inicia as vanguardas, quando rompe com as estruturas artísticas ao “substituir o essencial do meio, material tinta, por seu substituto industrial, o tubo de tinta” (FLORES, p.213). Esse gesto fez com que a pintura tenha uma modificação em sua agenda, que até aquele momento tinha em sua base, buscar propostas em uma formalidade e materialidades inspiradas em “pensamento auto reflexivo pictórico” (IDEM). Para Flores a partir da ação de Duchamp, a pintura, e consequentemente os outros campos da arte contemporânea, têm uma virada “puramente linguística” (IDEM). Os desvios poéticos de Duchamp que, subvertem a hierarquia entre materialidade e conceito, são “atentados ao conteúdo e à forma” (FIGUEIREDO, 2007, p.31) Duchamp, com sua obra, soube problematizar a questão da arte, não somente como uma questão estética, mas também como questão de ordem crítica. Os deslocamentos de seus readymades, possibilitados pela utilização de objetos do cotidiano e imagens de domínio público (confiscadas de livros, revistas e material impresso) inseridos no contexto das artes, rompem com a ideia da aura da obra de arte e questionam o papel do artista, avalizado frequentemente por sua maestria técnica (IDEM). Alain Border (2001) similarmente segue na mesma direção, quando considera a definição sobre a arte: Pode bem ser que a “a obra de arte” mais marcante do século XX seja o urinol. Depois dele – do urinol –, a arte será simplesmente o que eu decidir, uma “obra de arte” ou o que for, tão logo eu o afirme. O mais banal dos objetos se torna sagrado a partir da minha decisão de colocá-lo num museu, assim, em um único lance (como se diz no xadrez), cai por terra o museu (o lugar onde a convenção é exposta) (BORDER, 2001, p.11). 53 Posso afirmar que os interesses, no início de minhas atividades artísticas, dialogavam com as ideias resultantes das reflexões acerca do período em que a arte rompia com o modernismo, que Fianco (2012) sintetiza: Por fim, a pós-historicidade em arte não é apenas uma produção desse campo específico nem mesmo suas consequências se restringem a ele; a necessidade de autocrítica e autorreflexão de todas as áreas do conhecimento humano é um dos fenômenos mais interessantes e promissores da pós-modernidade, na qual a criatividade, a flexibilidade e a tolerância são valores cada vez mais importantes (FIANCO, 2012, p.382). Uma avaliação sobre a arte no final do milênio, colocando o urinol de Duchamp (Figura 11) ao lado da banheira (Figura 12) de Joseph Beuys (1921-1986) para contrapor o senso de que “o século XX deveria ser reduzido a Duchamp e Malevitch” (BORDER, 2001, p.11). […] Beuys propõe nada menos que cruzar a linha supostamente intransponível, superando a aporia à qual o ato de Duchamp aparentemente conduz. Foi mesmo explicitamente contra Duchamp que Beuys estruturou o seu projeto: sonhando com um confronto, uma espécie de provocação a um duelo […] (BORDER, 2001, p.11). Figura 11: Fonte – Marcel Duchamp - 1917/1964 Figura 12: Não intitulado [banheira] – Joseph Beuys - 1960 54 A contradição a que se refere Border implica em considerar que as mudanças conceituais na arte não se limitaram ao urinol. A banheira de Beuys simboliza a contínua trajetória de mudanças até os dias de hoje e, certamente em direção ao futuro. 3.2 – RAÍZES CONCEITUAIS DO MEU TRABALHO A produção artística Efemérides se estabelece no campo onde meus trabalhos se imbricam com as múltiplas linguagens, no cenário de convergência tecnológica, num ambiente de transformação das mídias, que migraram de sistemas analógicos para digitais. A distribuição das informações digitalmente produzidas e em escala colossal, se dá de forma controlada e sistemática, calculada e estendida. O contínuo desenvolvimento dessas novas tecnologias, impõe, em paralelo, uma contínua mudança de hábitos. Para Crary essas mudanças são mais significativas do que as havidas nos próprios dispositivos tecnológicos ocorridos no final século XX. Essa caracterização geracional supostamente confirma que, em algumas décadas ou antes disso, uma fase de transição terá se encerrado e haverá bilhões de indivíduos dotados de níveis similares de competência tecnológica e pressupostos intelectuais básicos. Estabelecido o novo paradigma, haverá inovação, mas nesse cenário ela ocorrerá no interior dos parâmetros conceituais e funcionais estáveis e duradouros dessa era “digital”. No entanto, a realidade bastante diversa de nosso tempo se caracteriza pela manutenção calculada de um estado de transição contínuo (CRARY, 2014, p. 33). Percebendo a importância dessas mudanças, minha preocupação deixou de ter seu foco nas tecnologias propriamente, para dirigir-se para o sentimento por elas provocado. O uso das tecnologias deixam de ser uma influência do momento e tornam-se uma questão dependente das necessidades impostas por minhas motivações. Isso implicava considerar os aspectos subjetivos envolvidos na interação com as tecnologias. Como consequência, assumiu relevância no meu trabalho a questão narrativa. Minhas práticas, desde então, tendem a confluir para questões que envolvem diretamente a narrativa, que tem origem na linguagem, de forma a suscitar uma produção que se estabelece no ciclo criativo do pensamento abstrato e a 55 concretização técnica – a obra de arte (FOGLIANO, 2013, p.87). A partir dessa dinâmica, busco atribuir centralidade e protagonismo para a primeira, e a função de suporte e mediação para a segunda - questão que retomo no último capítulo da dissertação. Trato de considerar a tecnologia, em todo seu espectro, no papel de plataforma para a narrativa. Considero a tecnologia a serviço da expansão dos limites da produção artística, que não mais se define em termos das tecnologias, eliminando a compartimentação modernista das artes e suas linguagens. A “deslimitação” do conceito tradicional de obra artística através de várias formas de borramento de fronteiras e a mudança metodológica em direção à categoria de experiência desafiaram as narrativas modernistas e com elas os juízos críticos sobre a arte, a filosofia e da história da arte. As produções realizadas a partir da década de 1960 dissolveram os limites entre os gêneros artísticos estabelecidos pelo projeto modernista apoiado num desenvolvimento histórico homogêneo e contíguo (REBENTISCH, 2011, p. 219). Essa deslimitação inclusive corrobora com a observação dos autores Best e Kellner (1997, p. 242) que consideram este aspecto inclusivo bem como no campo da ciência, quando observam o pós-modernismo caracterizado muito mais em termos construtivos ou revisionários do que desconstrutivo ou eliminativos. Na arte contemporânea o passado é visto como algo disponível, e o que fixa o sentido dessa arte “são as inter-relações entre as diferentes áreas do conhecimento humano” (CANTON, 2009b, p. 49), O passado da arte é “para qualquer uso que os artistas queiram lhe dar” (DANTO, 2006, p.7). Couchot (2003) define essa agenda pós-moderna como um movimento que “considera as coisas como um reservatório de empréstimos indiferenciadas, espécies de ready-mades históricos prontos para o uso” (IDEM, p.307). Nessa nova relação com passado os artistas que não veem mais nos museus um ambiente de arte morta sem função, “mas como opções artísticas vivas” (DANTO, 2006, p.7) e não lineares. Nessas obras, assim como em Efemérides, há uma intencionalidade de contar histórias, mas sem um compromisso de criar “narrativas cujo o sentido seja fechado em si mesmo” (IDEM, p.16). Efemérides é uma obra aberta, um dos aspectos que podem caracterizar a arte contemporânea. Nela há uma busca pela ambiguidade, onde se busca pela possibilidade de compartilhar ou de criar um jogo de troca com quem vê, lê e interage com a obra. 56 Visando a ambiguidade como valor, os artistas contemporâneos voltam-se consequentemente e amiúde para os ideais de informalidade, desordem, casualidade, indeterminação dos resultados; daí por que se tentou também imposto o problema de uma dialética entre “forma” e “abertura”: isto é, definir os limites dentro dos quais uma obra pode lograr o máximo de ambiguidade e depender da intervenção ativa do consumidor, sem contudo deixar de ser “obra” (ECO, 1991, p. 23). Ainda que existam limites tecnológicos em sua estruturação, a obra de arte não possui limites para sua interpretação. Sua criação não possui o compromisso de explicar suas intenções, ao contrário, o artista deixa de forma intencional que a narrativa seja aberta, fazendo com que a obra seja compartilhada a partir de uma dinâmica de troca, sem que se perca as intenções originais do artista. Entendendo-se por “obra” um objeto dotado de propriedades estruturais definidas, que permitam, mas coordenem, o revezamento das interpretações, o deslocar-se das perspectivas (IDEM, p. 23). No contexto contemporâneo da arte, considero que, para o artista, fica a incumbência de propor, através de seu trabalho, as narrativas e compartilhar com o público, que fica responsável em construir outros possíveis significados. Essas narrativas, além de criar uma conexão de via dupla como o público, modificam o sentimento de lugar e pertencimento que as estruturas de tempo possuem quando rompem com a cronologia passado-presente-futuro, colocando-as em outro status (CANTON, 2009b, p. 25). Estes jogos “que misturam justaposição, sobreposição e repetição, configuram outras formas de produzir histórias e criar sentido” (IDEM). 57 Figura 13: Flower-Shell - Max Ernst - 1927 - óleo sobre tela - 19 x 24 cm A não linearidade, característica nessas práticas, aparece na intersecção e colagem, onde há um entrelaçamento entre as diversas formas de manifestação artísticas. Técnicas, tecnologias e linguagens integram-se para atender as demandas da narrativa. Ao olhar dos artistas como Max Ernst (Figura 13), elas se tornam aptas para serem trabalhadas juntas, sobrepostas. Um exemplo sobre o uso de artifícios narrativos não lineares está presente na série Ti-City Drive-In (1993), de Hiroshi Sugimoto, sobre os drive-ins dos EUA. O artista encapsula toda extensão de um filme de cinema dentro de um único fotograma. Sugimoto (Figura 14), ao fotografar aqueles extintos cinemas nos convida a rever aquele momento da cultura americana. 58 Figura 14: Ti-City Drive-In - Hiroshi Sugimoto - 1993 O trabalho do Sugimoto é um exemplo emblemático para a discussão que se pretende aqui, onde se discute deslocamento das tecnologias em detrimento das narrativas que assumem sua posição de centralidade. “A sobreposição em um único negativo dos inúmeros fotogramas do filme, projetados a 24 quadros por segundo, ocasiona, na perspectiva do registro o apagamento da imagem” (FATORELLI, 2013, p. 106). O apagamento das imagens projetadas é o aspecto que mais me interessa nesse trabalho, pois discute o limite da reflexão sobre a arte contemporânea a partir das tecnologias, aqui representadas pela tela em branco. 3.3 – PÓS-DIGITAL E A ESTRUTURA ATUAL DA MINHA PRODUÇÃO Não se pode avançar nessa discussão sem trazer para a cena o conceito de pós- digital. Assim como todos os pós-ismos contemporâneos, recaem sobre ele muitas críticas e desconfianças. Ademais, falta um senso crítico consolidado acerca das questões que envolvem a tecnologia, parte disso é efeito de sua complexidade, que pode ser atribuída igualmente a uma “tecnofobia” (MACHADO, 2010, p.37). Porém, podemos considerá-lo pragmaticamente com um termo capaz de expressar um: 59 desencantamento contemporâneo com sistemas de informação digital e dispositivos de mídia, ou um período em que nossa fascinação por esses sistemas e gadgets se tornou histórica – assim como a era pontocom finalmente se tornou histórica (CRAMER, 2014, p.3). Galloway (2012) considera o efeito da tecnologia como ferramenta de linguagem para narrativas produzidas no contexto do assim chamado pós-digital, que vai além das telas como sugere a série de Sugimoto. Josephine Bosna reputa Galloway como um dos primeiros autores a discutir a produção artística com tecnologias digitais desprendido dos modelos firmados para a arte eletrônica que, viam nelas o aspecto de remediação, isto é, como complementos tecnológicos (BOSNA, 2014, p.3). Para o autor, os avanços tecnológicos permitem o surgimento de linguagens que englobam e complexificam as existentes. Ao estilo pós-digital pode ser atribuído o aumento na diversidade artística, decorrente do aumento dessa complexidade, que abrange tanto a técnica e tecnologia quanto as linguagens, como bem percebia Danto. […] o contemporâneo é, de determinada perspectiva, um período de desordem informativa, uma condição de perfeita entropia estética. Mas é também um período de impecável liberdade estética. Hoje não há mais qualquer limite histórico (DANTO, 2006, p. 15). Jonathan Crary, concordando com autores contemporâneos como Galloway, reflete sobre algumas práticas em relação às novas tecnologias e meios de consumo que, em um curto período, ressignificaram cânones culturais. Um dos pressupostos mais tediosamente repetidos em discussões a respeito da cultura tecnológica contemporânea é que teria ocorrido um deslocamento histórico em um intervalo de tempo relativamente curto, no qual as novas tecnologias de informação e comunicação teriam suplantado um amplo conjunto de formas culturais mais antigas (CRARY, 2014, p. 56). Na arte pós-digital a linguagem quer ser negligenciada5, ou seja, apropriada precisamente para que possa funcionar como jogo metafórico, “um sistema sintático e semântico projetado para especificar e articular. Esse é um sentido em que a linguagem, que em si não está necessariamente ligada à visão ótica, pode, não obstante, ser ‘visual’” (GALLOWAY, 2012, p.62). Ao considerar a metáfora como prática, busca-se uma visão aproximada e subjetiva de uma forma ou evento, ou, em outras palavras, tem-se a experiência estética como objetivo. 5 No texto original “overlooked”. 60 Retomando a importância da subjetividade da experiência frente ao objeto artístico, ou como Galloway sintetiza, a tecnologia e seus efeitos, é importante considerar a rápida modificação na tecnologia exerce influência na sociedade também pelo ritmo célere de suas inovações. A invenção acelerada de novos dispositivos e produtos tecnológicos, como os telefones celulares, altera padrões comportamentais, reformulando incessantemente valores e hábitos. A ideia de que estamos em meio a uma fase de transição, passando de uma “era” a outra, e apenas no começo da nova, é frequentemente repetida. Isso pressupõe um interlúdio incerto de adaptações sociais e subjetivas que podem se estender por uma ou duas gerações, antes que uma nova era de relativa estabilidade se firme. (CRARY, 2014, p.57) Há uma relação cada vez maior entre as necessidades individuais e os programas funcionais e ideológicos onde todo novo produto está embutido. Esses “produtos” não são apenas os aparelhos ou instrumentos físicos, mas os diversos serviços e interconexões que rapidamente se tornam o padrão ontológico dominante ou exclusivo da nossa realidade social (IDEM, p. 37). Os processos culturais estão se desenrolando com tamanha velocidade que se tornaram imediatos, tirando-nos a oportunidade de qualquer aprofundamento para além da superfície das telas. As metáforas da “rede” e da “convergência” nas subculturas criativas (por exemplo, músicos, artistas, designers, escritores) são vistas como operações ao vivo ou em condições recebidas e refeitas, não apenas abstrações. A partir dessa perspectiva mais recente, viver em hibridismo remixado é, portanto, uma obrigação, não uma escolha, uma vez que é a base para a participação em uma cultura viva, em rede e globalmente conectada (IRVINE, 2013). Os modelos de pensamento, ou hábitos culturais que o indivíduo traz consigo são necessários à compreensão de objetos da arte. Experiência dos processos e eventos necessitam aprofundamento para serem abarcados para além da superficialidade das telas (BOSNA, 2014, p.6). Não obstante, devemos considerar que o modelo de arte nesta discussão é apenas uma tentativa de ver estruturas para além da objetividade. A partir das discussões aqui trazidas, propôs-se considerar a importância da subjetividade para a visualização e entendimento das obras de arte dos nossos tempos e, portanto, equilibrar a busca pela precisão e objetividade, atendendo a modelos precisos, com a diversidade da experiência do sujeito 61 (BOSNA, 2014, p.11). A arte de nossos tempos não se submete à clausura dos