1 unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP LAURA LOPES DE OLIVEIRA "A queda da Casa de Usher", de Edgar Allan Poe, e "La chute de la Maison Usher", de Jean Epstein: um estudo do espaço na literatura e no cinema ARARAQUARA – S.P. 2014 2 LAURA LOPES DE OLIVEIRA "A queda da Casa de Usher", de Edgar Allan Poe, e "La chute de la Maison Usher", de Jean Epstein: um estudo do espaço na literatura e no cinema Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Letras. Linha de pesquisa: Teorias e Crítica da Narrativa Orientador: Profª Drª Fabiane Renata Borsato Bolsa: Capes ARARAQUARA – S.P. 2014 3                                                       Oliveira, Laura Lopes de "A queda da Casa de Usher", de Edgar Allan Poe, e "La chute de la Maison Usher", de Jean Epstein: um estudo do espaço na literatura e no cinema / Laura Lopes de Oliveira – 2014 76 f. ; 30 cm Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Faculdade de Ciências e Letras (Campus de Araraquara) Orientador: Fabiane Renata Borsato l. Poe, Edgar Allan, 1809-1849. 2. Espaço. 3. Cinema. 4. Contos. I. Título.         4     Laura Lopes de Oliveira "A queda da Casa de Usher", de Edgar Allan Poe, e "La chute de la Maison Usher", de Jean Epstein: um estudo do espaço na literatura e no cinema Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Letras. Linha de pesquisa: Teorias e Crítica da Narrativa Orientador: Profª Drª Fabiane Renata Borsato Bolsa: Capes Data da defesa: 25/04/2014 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Profª Drª Fabiane Renata Borsato (FCL- Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" - Araraquara ) Presidente e Orientador Profª Drª Maria de Lourdes Ortiz Gandini Baldan (FCL- Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" - Araraquara ) Membro Titular Prof. Dr. Alvaro Luiz Hattnher (IBILCE- Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" - São José do Rio Preto ) Membro Titular Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara 5 Para Jarson e Elvira. 6 AGRADECIMENTOS Meus agradecimentos vão especialmente para meus pais, que deram o costumeiro apoio incondicional e fundamental para o desenvolvimento deste trabalho. Para minha orientadora Profª Drª Fabiane Renata Borsato por ser extremamente paciente e companheira. Para os amigos da pós-graduação de São José do Rio Preto e Araraquara, especialmente a Carol, que me apoiou desde o começo. Para o Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da UNESP de Araraquara. Para a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pela bolsa de estudos, que foi essencial para a elaboração deste trabalho. Para Deus. 7 RESUMO Este trabalho tem como objetivo analisar as estruturas narrativa e fílmica do conto The Fall of the House of Usher (1839), de Edgar Allan Poe (1809-1849), e do filme La Chute de la Maison Usher (1928), dirigido por Jean Epstein (1897-1953), considerando o modo como se constrói o espaço e os sentidos resultantes dessa composição. As obras que tomamos como base teórica para a análise são: Lima Barreto e o Espaço Romanesco (1976), de Osman Lins, A linguagem cinematográfica (2003), de Marcel Martin, A narrativa cinematográfica (2009), de André Gaudreault e François Jost. Assim, analisaremos os procedimentos narrativos utilizados por Poe na composição do espaço e as técnicas cinematográficas que aproximam ou afastam as características do espaço fílmico da narrativa original, o conto. Palavras – chave: Espaço. Edgar Allan Poe. Jean Epstein. A Queda da Casa de Usher. La Chute de la Maison Usher 8 ABSTRACT This study aims to analyze the narrative and filmic structures of the tale The Fall of the House of Usher (1839), by Edgar Allan Poe (1809-1849), and the film La Chute de la Maison Usher (1928), directed by Jean Epstein (1897-1953), considering how space is constructed and the meanings resulting from this construction. The works we considered as theoretical basis for the analysis are: Lima Barreto e o Espaço Romanesco (1976), by Osman Lins, A Linguagem Cinematográfica (2003), by Marcel Martin, A narrativa cinematográfica (2009), by André Gaudreault and François Jost. Thus, we analyze the narrative techniques used by Poe in the composition of the space, and the cinematic techniques which bring together the characteristics of the filmic space of the original narrative, namely the tale, or which set them apart. Keywords: Space. Edgar Allan Poe. Jean Epstein. The Fall of the House of Usher. La Chute de la Maison Usher 9 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 10 2 CAPÍTULO I: EDGAR ALLAN POE 15 2.1 Escritor e teórico 15 3 CAPÍTULO II: JEAN EPSTEIN 19 3.1 Cinema e teoria 19 4 CAPÍTULO III: A QUEDA DA CASA DE USHER 22 4.1 O conto: espaço 22 5 CAPÍTULO IV: LA CHUTE DE LA MAISON USHER 43 5.1 O filme: espaço 43 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS 73 REFERÊNCIAS 10 INTRODUÇÃO O objetivo desta dissertação é analisar de que maneira se dá a construção do espaço na ficção e reafirmar a importância desse elemento nas narrativas literária e fílmica. Desse modo, o conto The fall of the house of Usher1, de Edgar Allan Poe, publicado em 1839, é para nós um campo ímpar na oferta de recursos narrativos que rendem análise. Da mesma forma, a adaptação fílmica deste conto, dirigida por Jean Epstein, em 1928, intitulada La chute de la Maison Usher, nos impele a estudar as relações existentes entre as narrativas literária e fílmica para analisarmos como o espaço, no conto de Poe, e os significados que dele derivam são recriados nas imagens do filme. Por acharmos ambas as obras cativantes, estas são o corpus da presente dissertação. Considerando o espaço fundamental na construção da angústia que toma conta das obras estudadas, é necessário destacar os estudos dirigidos a este elemento (o espaço), a fim de que a fundamentação teórica dialogue com as análises. Osman Lins, em sua obra Lima Barreto e o espaço romanesco (1976), analisa algumas narrativas do autor de seu título, em especial Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá (1919), destacando o espaço como parte elementar da construção de uma narrativa coerente. Para Lins: Observa-se que em algumas narrativas o espaço é rarefeito e impreciso. Mesmo então [...] há desígnios precisos ligados ao problema espacial: intenta-se, por um lado, concentrar o interesse nas personagens ou nas motivações psicológicas que as enredam; pode ser também que se procure insinuar – mediante a rarefação e a imprecisão do espaço – que essas mesmas personagens e as relações entre elas são mais ou menos gerais, eternas por assim dizer, carentes, portanto, de significado histórico ou sociológico: de significado circunstancial. Entretanto, inclusive neste caso, alcançam em geral vibração mais intensa aquelas obras onde o espaço atua com o seu peso. (LINS, 1976, p. 65) Nesse sentido, o espaço é elemento funcional na narrativa de Poe, superando o rótulo de decoração de cenário. Veremos que em A queda da casa de Usher o espaço divide protagonismo com os personagens, pois os cerca de modo que os “sufoca” com seu ambiente de terror e melancolia, influenciando a saúde física e mental de Roderick. No filme de Epstein, também o espaço é influente física e emocionalmente, e os recursos cinematográficos utilizados pelo cineasta francês dão o reforço necessário para que o espaço muitas vezes se sobressaia.                                                                                                                 1 Traduzido por José Paulo Paes, em 1958, como A queda da casa de Usher, versão que será utilizada para esta 11 Os apontamentos sobre conto e filme se mostram semelhantes, mas é importante ressaltar que, de acordo com Sebastião Uchoa Leite Embora sejam, do ponto de vista da ficção, artes narrativas por igual, os seus meios (um a imagem; a outra, a escrita) as dissociam por completo, não só quanto à transmissão da mensagem como quanto a sua recepção. Isto é, cinema e literatura se dissociam radicalmente quanto ao efeito. (LEITE, 2003, p. 143) As sensações que o filme desperta não são as mesmas da narrativa literária, uma vez que o espectador capta o sentido de uma imagem até o momento em que outra toma seu lugar. Isto acaba por provocar, de acordo com Sebastião Uchoa Leite (LEITE, 2003, p. 143) um efeito imediato no observador, já que sua compreensão da imagem é limitada pelo tempo em que esta aparece na tela, o que nos encaminha para as palavras de Uchoa Leite quando diz acerca do cinema e da literatura: “[...] uma tende para a extensão e o desdobramento no tempo, a outra, para a retenção e a condensação no tempo.” (LEITE, 2003, p. 143). Ademais, a história escrita permite ao adaptador cinematográfico leituras diferentes, portanto, resultados e sensações diversas. Podemos dizer que a adaptação engloba a leitura particular do texto literário pelo diretor, o qual cria uma película que é reflexo de sua interpretação do texto- origem. Sendo assim, não privilegiaremos em nossos estudos de La Chute de la Maison Usher a fidelidade ao conto de Poe, mas os novos sentidos recriados pelas imagens fílmicas e seus significados. Vale destacar que em seus primeiros anos de vida o cinema estabeleceu-se como uma arte menor, dependente de empréstimos de recursos da literatura e das outras artes consideradas maiores, como a pintura, o teatro e a música. Na década de 1920, entretanto, Jean Epstein ergue-se a favor do cinema para, junto com a vanguarda artística, o impressionismo francês, retirá-lo dos porões da crítica e alavancar esta arte. Segundo o cineasta (XAVIER,1983, p. 293), as palavras escritas não permanecem na lembrança do leitor, visto que estão distantes do seu referente. As imagens da tela, ao contrário, são mais próximas da realidade representada; são poderosas e indissolúveis na mente e na imaginação do espectador. Dessa maneira, ainda segundo Epstein, a linguagem cinematográfica institui-se como uma arte democrática, pois oferece signos que também se encontram na mente de quem vê as imagens. Nas palavras de Epstein: [...] la secuencia de un encuadre no tiene mucha necesidad de ser analizada según la lógica, para que su sentido penetre en el espectador y lo emocione. 12 Ignorante de las ambigüedades, los equívocos, las sobrecargas de la etimología y las sabias interferencias de la sintaxis, una serie de imágenes no necesita pasar largo tiempo en la criba desmenuzadora de la razón. (EPSTEIN, 1957, p. 23-24) Ainda que as palavras de Epstein sejam polêmicas, pois proferidas num contexto de formação da arte cinematográfica, e mesmo que se considere o cinema uma linguagem captada de modo sensível, sem o crivo da razão, convém lembrar que o cineasta francês afirmou que esta arte é capaz de provocar sensações complexas e tornar mais claro o conhecimento do mundo, por parte do espectador. Sob essas condições, o cinema seria uma arte autônoma que, como outras, dialoga com as demais, mas apresenta peculiaridades e marcas únicas. Além de cineasta, Epstein foi um teórico profícuo. Na obra La esencia del cine (1957), ele considera que o cinema deve guiar-se pela lei da fotogenia, isto é, descobrir vida em situações, gestos e objetos aparentemente inertes; captar o que foge ao olhar humano. Nessa perspectiva, o movimento institui-se como a essência do cinema, e se aplica tanto às imagens quanto aos sons. Ainda, não é apenas um movimento externo, mas também interior, psicológico, como podemos perceber nas feições variáveis de um personagem. Ainda seguindo a abordagem de Epstein, o filme pode ser comparado ao sonho, se considerarmos que o pensamento onírico é uma forma espontânea e poética de expressão; um instrumento de fuga da racionalização da vida real, servindo como uma espécie de higiene mental. O cinema surge, então, como uma forma sentimental de compreensão do mundo, uma vez que desvela aspectos do universo que escapam às normas fixas e racionais. Epstein também aborda este assunto em textos como O cinema e as letras modernas, Bonjour cinéma, Realização do detalhe, A inteligência de uma máquina, O cinema do diabo, entre outros. Mas essas anotações sobre Epstein não querem dizer que passamos a considerar a literatura menor que o cinema. Basta observar questão tão óbvia quanto a repercussão da obra de Edgar Allan Poe. Tampouco é possível fundamentar que o texto literário seja incapaz de atingir a grande maioria dos leitores. Entretanto, convém conhecer e compreender a concepção de cinema e literatura de Epstein para analisar sua obra fílmica e seu diálogo com o conto de Poe. Em um de seus ensaios, The Philosophy of Composition (cuja tradução de Oscar Mendes, em 1981, se intitula A filosofia da composição), Poe expõe o processo de criação do poema The raven (1846) que, segundo o escritor, ocorre de maneira racional, como um problema matemático. Ainda que o assunto do ensaio seja a confecção desse poema, o autor 13 também considera suas abordagens aplicáveis a outras obras e gêneros literários, dentre eles o conto. Nessa exposição, o escritor norte-americano define que o todo do texto deve provocar um efeito, uma impressão no leitor, o que só é possível por meio da composição consciente da obra. Mais especificamente, o autor deve construir o texto visando sempre ao efeito que deve provocar no leitor, com o objetivo de fazê-lo apreender essa unidade e essa impressão. De acordo com Poe, Parece evidente, pois, que há um limite distinto no que se refere à extensão: para todas as obras de arte literária, o limite de uma só assentada. [...] Pois é claro que a brevidade deve estar na razão direta da intensidade do efeito pretendido, e isto com uma condição: a de que certo grau de duração é exigido, absolutamente, para a produção de qualquer efeito. (POE, 1981, p. 913) Considerando a abordagem de Poe, o cinema se aproxima do texto literário no que concerne à condensação, pois, assim como a narrativa cinematográfica pede sintetização, como afirma Uchoa Leite, assim também acontece com o conto, pois, para Poe, a “brevidade” assegura o efeito que deve ser provocado no leitor. Em A queda da casa de Usher analisaremos o espaço construído por um narrador que é testemunha dos fatos. Recurso que nos parece ter sido importante para algumas opções estéticas de Epstein no filme. Deste modo, estudaremos, respectivamente, as estruturas narrativas e fílmicas de A queda da casa de Usher e La Chute de a Maison Usher, atentando para a maneira como o espaço é construído e os sentidos advindos dessa construção. Lançaremos também possíveis problemas de pesquisa: como Jean Epstein faz do literário um objeto cinematográfico; como o narrador constrói o espaço; qual é a função do espaço nessas narrativas. Para a avaliação de nossos problemas de pesquisa e para não deixar insolúveis tais questões, dividiremos esta dissertação em capítulos que serão comentados a seguir e que devem viabilizar nosso trabalho. No primeiro capítulo apresentaremos uma breve biografia de Edgar Allan Poe; No segundo capítulo será exposta a biografia de Jean Epstein; No terceiro capítulo, consideraremos o espaço como principal construtor do sombrio no conto A queda da casa de Usher. O quarto capítulo terá a mesma função, mas a análise será sobre o filme La chute de la Maison Usher. Para a análise do conto, estudaremos a construção do espaço segundo a teoria de Osman Lins. Quanto ao filme, faremos um estudo dos termos e das técnicas do cinema, tais como planos, sequências, enquadramentos, com o mesmo objetivo da análise do conto: a construção do espaço. E analisaremos como o espaço do conto é transposto para a 14 linguagem cinematográfica por meio de recursos e procedimentos específicos que constituem o filme. Estudaremos as duas obras, separadamente, dando prioridade às técnicas narrativas que edificam o conto; aos jogos de câmera, técnicas e efeitos visuais do filme. Por fim, na conclusão, discutiremos os resultados advindos da ação do espaço tanto no conto quanto no filme, para reapreciação dos problemas de pesquisa inicialmente propostos. 15 2 CAPÍTULO I: EDGAR ALLAN POE 2.1 Escritor e teórico Edgar Allan Poe nasceu no dia 19 de janeiro de 1809, em Boston, Massachusetts, Estados Unidos. Seus pais eram David Poe, um jovem que abandonou os estudos de Direito para se dedicar ao teatro e acabou se tornando um ator medíocre, não deixando rastros de seu paradeiro após o abandono da família. Elizabeth Poe, também atriz, representava papeis menores na mesma companhia teatral que o marido. A mãe do poeta teve três filhos: William Henry Leonard, Edgar e Rosalie, a caçula. Depois do sumiço de David, Elizabeth rumou para o sul para continuar representando, porém, sua saúde frágil a levou a falecer em 1811. À época de sua morte, a atriz estava na extrema pobreza, e Edgar e Rosalie foram acolhidos por pessoas caridosas. Edgar foi para a casa de John Allan e sua irmã, para a residência de William Mackenzie. Antes do falecimento de Elizabeth, o irmão mais velho de Edgar já vivia em casa de parentes. A família que recebeu o poeta era próspera: o senhor Allan era negociante de tabaco e outros produtos, situação que proporcionou a Edgar uma infância sem problemas financeiros. Mais tarde, os escravos que trabalhavam em sua casa e os folclores de assombrações e morte contados por estes foram forte influência para suas narrativas. Entre os negócios de John Allan havia a representação de revistas inglesas e escocesas, o que levou Poe, ainda muito jovem, a entrar em contato com o mundo literário. Segundo Cortázar, desde cedo Edgar: [...] entrou em contato com um mundo erudito e pedante, “gótico” e novelesco, crítico e difamatório, no qual os restos da engenhosidade do século XVIII se misturavam com o romantismo em plena eclosão, no qual as sombras de Johnson, Addison e Pope abriam lentamente para a fulgurante presença de Byron, a poesia de Wordsworth e os romances e contos de terror. Boa parte da tão debatida cultura de Poe saiu daquelas leituras precoces. (CORTÁZAR, 1999, p. 275). Os Allan dispensavam especial atenção à educação do novo integrante da família. Em 1815, os Allan viajaram para Londres a fim de que John abrisse uma filial de sua empresa e visitasse a família. Em seguida, viajaram para a Escócia, país natal de John e lugar onde Edgar passou uma pequena temporada na Escola de Gramática. Em 1816, o poeta retornou a Londres e foi matriculado em um internato, permanecendo até o verão de 1817. Ainda nesse mesmo ano, ingressou na escola de Manor House. 16 Em 1820, Edgar retornou aos Estados Unidos, já que os negócios de seu pai não foram profícuos. Embora nessa época os Allan estivessem em má situação financeira, Edgar foi matriculado em uma escola na qual estudavam jovens da alta sociedade. Em 1823, passou a frequentar a casa de seu amigo de colégio, Robert Stanard e se apaixonou pela mãe deste, Jane Stanard. Esta foi a primeira paixão do poeta e escritor, talvez porque a senhora Stanard fosse a mulher ideal e inacessível para aquele adolescente que podia apenas sonhar com o amor correspondido. Quando Jane falece, Edgar sente profundamente sua morte, sem poder revelar a razão do seu pesar – talvez este fato tenha influenciado o modo como Poe tratava a morte e a mulher amada em sua obra. No mês de fevereiro de 1826, o poeta entrou para a Universidade de Virgínia, lugar onde passou dificuldades financeiras, embora seu pai tivesse enriquecido novamente, iniciando uma vida de jogatinas e bebedeira. Apesar de ser um jovem excêntrico, Edgar era bem avaliado pelos professores que o consideravam brilhante nas atividades intelectuais e esportivas. Nesses dias, o estudante contraiu dívidas para manter sua posição de jovem rico, o que rendeu uma forte discussão com o pai. A partir daí, pai e filho passaram a ter uma relação conturbada e Edgar, sem recursos, não retornou à universidade. No ano de 1827, depois de romper com o senhor Allan, Edgar partiu para Boston, onde publicou seu primeiro volume de versos, Tamerlane and Others Poems; mas não obteve sucesso. Passando por uma crise financeira, decidiu alistar-se no Exército dos Estados Unidos e, como soldado, destacou-se em serviços especializados. Entretanto, a vida de oficial não lhe agradou, e em 1829 conseguiu sair do exército. No mesmo ano passou a morar em Baltimore, em casa de sua tia, Maria Clemm, depois de uma tentativa frustrada de permanecer com seu pai, momento em que tentou tornar-se literariamente conhecido, conseguindo publicar Al Aaraaf, Tamerlane and Minor Poems. Após este período, voltou para a casa do pai que ambicionava fazer com que seu filho entrasse para a Academia Militar. O objetivo foi alcançado. Na academia, o escritor já não tem mais esperança de receber dinheiro do senhor Allan e, depois de um tempo passando por exercícios pesarosos para seu tipo físico e por falta de fundos, forçou sua expulsão daquela instituição. Embora Edgar não tenha sido feliz no exército, foi nessa época que ele conseguiu publicar, por meio do auxílio dos cadetes do exército, seu terceiro volume de poemas, entre os quais Israfel, To Helen e Lenore. Depois de sua expulsão, decidiu passar um tempo em Nova York, onde publicou Poems, Second Edition. Em 1831, voltou para Baltimore para morar novamente com a tia e começou a se dedicar ao conto, forma narrativa que agradava ao público e aos editores e que 17 lhe rendeu o primeiro prêmio num concurso de contos, em 1833, por MS. Found in a Bottle. Por meio desta premiação, Edgar conhece John P. Kennedy, que o ajudou a publicar alguns de seus contos e o apresentou ao editor do Southern Literary Messenger, de Richmond, em que publicou Berenice. Edgar então começou a escrever críticas e contos para esta revista e em 1835 foi convidado para ser redator-auxiliar em Richmond, onde permaneceu até 1837. Graças a Edgar, a revista triplicou o número de seus exemplares. Ainda colaborando para esta magazine, o escritor passou a ser reconhecido por sua crítica áspera e por publicar narrativas, como as que havia preparado para o Tales of the Folio Club. Atribui-se a essa fase a fragilidade da saúde do poeta, que na época de Baltimore fez uso de ópio e outras drogas sobre as quais relataria em alguns de seus contos. Aproveitando suas conexões com empresários de Nova York, mudou-se, em 1837, para esta cidade. Foi nessa época que Poe tentou reunir e publicar as narrativas de Tales of the Folio Club, as quais foram recusadas. Os editores sugeriram que o escritor criasse uma estória longa e de gosto popular. Criou então The Narrative of Arthur Gordon Pym, publicada em 1838. Este foi mais um período de dificuldades financeiras para Poe: seu livro de prosa não obteve sucesso, além de ter dificuldades para conseguir emprego. Ainda em 1938, Edgar mudou-se para a Filadélfia, publicando um volume que não tinha nenhuma ligação com seu estilo de trabalho literário. Em 1839, empregou-se no Burton’s Gentleman Magazine, em que publicou The Fall of the House of Usher, William Wilson e Morela. No mesmo ano, lançou Tales of the Grotesque and Arabesque; mas durou pouco o bom relacionamento entre chefe e subordinado, e o escritor rompeu com o editor desta revista. Em 1840, entrou para a Graham’s Magazine, que obteve grande sucesso graças à maneira de escrever de Edgar Allan Poe e ao contrato com importantes escritores que contribuíam com artigos. No ano seguinte, publicou The Murders in the Rue Morgue e outras narrativas policiais. Em 1842, lançou The Mystery of Marie Roget. Sobre este modo de escrever de Poe, Cortázar diz: “[...] o lado macabro e mórbido corria paralelo à análise fria, e Poe não renunciava aos detalhes arrepiantes, ao clima congênito de seus primeiros contos.” (CORTÁZAR, 1999, p.297). No ano posterior, lançou The Gold Bug, que lhe rendeu um prêmio em um concurso literário. Esta foi uma fase próspera para Poe, uma vez que passou a ser reconhecido por suas narrativas, poesia e crítica; entretanto, tal fase foi encerrada nesse mesmo ano, pois sua esposa, Virginia, estava gravemente doente e Poe tinha se entregado à bebida. Apesar da obstinada procura por emprego, não encontrava meios de sustentar a si e sua família. Talvez essa situação tenha agravado o estado de saúde de Virgínia, e Edgar ainda levaria a mulher doente para morar em outros lugares. Não havendo esperança de uma vida 18 melhor em Filadélfia, Edgar mudou-se novamente para Nova York. Em 1844, o escritor, naquela cidade, ganhou algum dinheiro ao publicar artigos no Columbia Spy, no Godey’s Lady’s Book e no Ladies’ Home Journal, mas ainda não arrecadou quantia necessária para viver dignamente. Em 1845, publicou seu poema mais famoso, The Raven, que agradou ao público e lhe garantiu fama. No mesmo ano, publicou The Raven and Other Poems e contos como The System of Doctor Tarr and Professor Fether e The Imp of the Perverse. Apesar de ser alçado ao sucesso literário, os negócios de Poe continuavam a fracassar e viu-se em dívidas com a falência do Broadway Jounal, do qual conseguiu ser proprietário. Nesse momento, Edgar dependia dos esforços de sua tia para mantê-los alimentados e da caridade de pessoas solidárias. Em 1847, morreu sua esposa e Poe se entregou mais uma vez à bebida. Ainda publicou, neste mesmo ano, o poema Ulalume, na American Whig Review. No próximo ano, 1848, publicou o ensaio Eureka e fez conferências em diversas cidades. Nesse período, ocorreu a publicação de seu conto Mesmeric Revelation, traduzido por Baudelaire, grande fã de Edgar. Retomando o antigo sonho de publicar sua própria revista, tentou colocar em circulação The Stylus, mas não conseguiu cumprir seu objetivo. Em 1849, na cidade de Richmond, Poe retomou uma antiga paixão a qual fora impedido de viver anteriormente. Com esperança de uma vida mais digna ao lado de sua futura esposa, tentou abandonar a bebida sem sucesso. Recebendo uma quantia modesta de dinheiro, partiu para Baltimore, onde morreu miseravelmente depois de uma bebedeira e dias de delírio em um hospital. Para Cortázar (1999), a maioria dos críticos coetâneos a Poe não soube dar valor às correspondências, poemas, narrativas e ensaios críticos do autor. E alguns dias de embriaguez o colocavam mais em evidência do que um mês de árduo trabalho. 19 3 CAPÍTULO II: JEAN EPSTEIN 3.1 Cinema e teoria Jean Epstein nasceu em Varsóvia no dia 25 de março de 1897. Antes de entrar em contato com o cinema, estudou biofisiologia em Lion e colaborou com as edições La Sirène, época em que parte para Paris. Em 1920 passou a trabalhar com cinema e tornou-se assistente de Auguste Lumière. Além de cineasta, Epstein era teórico da arte cinematográfica: em 1921, escreveu La Poésie Aujourd’hui e Bonjour Cinema, este um texto considerado de vanguarda, em que se aborda o cinema como um estado apurado das coisas e, por essa razão, psíquico. Epstein faz parte da vanguarda impressionista francesa juntamente com Germaine Dulac, Marcel l’Herbier, Abel Gance e Louis Delluc, que queriam fazer do cinema uma arte tão respeitada quanto o teatro, a literatura e a música. Os filmes do impressionismo, [...] se caracterizam por um sem-número de proezas técnico-estilísticas, que abrangem sobreimpressões, deformações ópticas e planos subjetivos. Acrescente-se a isso a importância dada à duração dos planos, ao enquadramento e ao ritmo da montagem. Doravante, além disso, os personagens e a trama narrativa deixam de exercer um papel preponderante, uma vez que também objetos e cenários vêm concorrer com a ação do filme. (MARCARELLO, 2006, p. 91) É o que se pode ver em dado momento de La Chute de la Maison Usher, quando Madeline se sente fatigada com a insistência de Usher em querer pintar seu retrato, usando-a, evidentemente, como modelo. Nesse fragmento de filme, há um efeito de sobreimpressão da imagem de Madeline; a sensação de vertigem que a sobreimpressão exerce, comunica o extremo cansaço da personagem feminina. Outro exemplo marcante é o momento em que Usher caminha pelo corredor obscuro que o leva até a sala de estar: a câmera passa a ser subjetiva, o que mostra o olhar do próprio Roderick e dá a sensação de que o espectador enxerga com os olhos da personagem. Esse experimentalismo tem o apoio das produtoras francesas em resposta ao sucesso do cinema americano. É o que acontece em 1923, quando, em contrato com a produtora de filmes Pathé, Epstein realiza L’Auberge Rouge, Coeur Fidèle e La Belle Nivernaise. Ainda no mesmo ano, Epstein trabalha com Abel Gance na filmagem de La Roue e filma Coeur Fidèle. Neste último, a essência da natureza e dos objetos ocupa um lugar na trama tão importante quanto o das personagens, enquanto os ângulos utilizados para captar as imagens 20 exercem função de análise psicológica. Nesse filme, a atenção dada aos elementos inanimados e à natureza talvez tenha sido o ponto de partida para que Epstein começasse a pensar sobre a fotogenia de outros componentes da película que não os atores. Em 1924 é contratado pela Albatros e dirige L’Affiche, momento em que começa a sentir as exigências comerciais. Neste último filme, Epstein valoriza o papel do cenário como aquele que imprime sentidos à obra. Epstein começa a pesquisar o tema e com o lançamento de L’Affiche, os jornais aclamam os cenários do longa, assim como os ângulos das tomadas e a atuação dos atores. Interessante ressaltar também que Epstein tinha problemas em dirigir os atores, pois, segundo o próprio cineasta: [...] quando eles representam, eles são falsos e quando eles não representam eles são rígidos. No fundo, quanto mais um ator é ator, mais ele me desagrada, mais ele é difícil de manipular para que ele não pareça ter o ar de um ator. (LANGLOIS, 1953, p.18, tradução nossa). Apesar de suas palavras sobre os atores, Epstein conseguiu absorver a essência do ser humano para poder dirigi-los em seus filmes. Em 1925, filma Les Aventures de Robert Macaire, um longa de humor situado em paisagens estupendas e que, apesar de todos os esforços, não obteve considerável sucesso popular. Embora não tenha arrebanhado a massa, teve um resultado positivo para a arte do cinema, uma vez que colocou todo o seu talento a serviço desse filme, fazendo dele uma obra não-popular para a época. Em 1926 roda Six et demi onze e em 1927, La Glace à trois faces. Esses são filmes que destacam a maneira como Epstein achava que devia pensar, sem nenhuma relutância, o que mostra sua integridade. No próximo ano, realiza La Chute de la Maison Usher, considerado por Henri Langlois um monumento cinematográfico. Nessa obra nada é por acaso; as técnicas de filmagem, como a sobreimpressão e o slow motion, por exemplo, não estão ali sem motivo, pois sempre terão um papel fundamental no enredo (LANGLOIS, 1953, p. 23). A técnica da desaceleração era bem vista por Epstein, pois, segundo o cineasta: “Com a câmera lenta, toda cena é boa, mesmo um ator que representa mal fica bom com a câmera lenta.” (LANGLOIS, 1953, p. 27). De 1929 a 1932, Epstein realiza vários filmes: Sa tête, Mor Vran, Le Pas de la mule, Notre-Dame de Paris, La Chanson des Peupliers, Le Cor, L'Or des mers, Les Berceaux, La Villanelle des Berceaux, Le Vieux Chaland. Ainda em 1932, filma L’Homme à l’Hispano e em 1933, La Châtelaine du Liban. 21 No ano de 1935, escreve Photogénie de l’Impondérable, texto que aborda a expressividade e o movimento dos objetos e da natureza, isto é, a observação do que nos foge ao primeiro olhar. No mesmo período, realiza Coeur de Gueux e Marius e Olive à Paris. De 1936 a 1946 filma La Bourgogne, La Bretagne, Vive la vie, La Femme du bout du monde, Les Bâtisseurs, La Relève, Eau vive, Artères de France, Le Tempestaire. Ainda em 1946, escreve Intellligence d’une Machine, ensaio sobre o papel da câmera, em que discorre sobre a personalidade dessa máquina, já que representa as coisas de acordo com seu olhar: Nesse ponto, revela-se um mecanismo dotado de subjetividade própria, uma vez que ele representa as coisas não como elas são percebidas pelo olho humano, mas, apenas, como ele mesmo as vê, de acordo com sua estrutura particular, que lhe confere uma personalidade. (XAVIER, 1983, p. 288) No próximo ano, criou o ensaio Cinéma du Diable: a imagem na tela é uma representação semipronta; por essa razão, o espectador não força o raciocínio. O texto, ao contrário, é constituído por símbolos indiretos, afastados da realidade que representam. Dessa forma, o caminho que as palavras fazem para atingir a emoção é mais longo que o das imagens. O cinema apresenta símbolos mais próximos da realidade que representa. Em 1948, realiza Les Feux de la Mer. Jean Epstein não se submeteu às regras dos produtores. Para Jean Cocteau, Epstein: [...] levou uma vida cinematográfica insubmissa. Ele só contava com o coração. As imagens e o ritmo de Epstein envelheceram tão pouco que se desejaria atualmente um ritmo e imagens com essa força e com essa graça. (COCTEAU, 1953, p. 4, tradução nossa). Talentoso, visionário e técnico, Epstein é elogiado por Alexandre Kamenka: Eu encontrei poucos cineastas que conheciam tão perfeitamente as possibilidades da imagem animada, que sabiam utilizar com tal segurança os meios técnicos dos quais nós dispúnhamos para nos expressar. (KAMENKA, 1953, p.7, tradução nossa). Em 1953, Epstein morre, em Paris, mesmo ano em que os Cahiers du Cinema prestam homenagem póstuma ao artista. 22 4 CAPÍTULO III: A QUEDA DA CASA DE USHER 4.1 O conto: espaço Em A Queda da Casa de Usher, Edgar Allan Poe instaura um narrador-personagem, sem nome, que percorre o caminho até a casa da família Usher. Ele havia recebido uma carta de Roderick, seu amigo de infância, pedindo que o narrador passasse alguns dias na casa dos Usher. O motivo desse pedido é que Roderick sofre de um mal físico e mental, agravado pela doença de sua irmã Madeline. O conto tem início com a descrição de um espaço escuro, outonal, enunciado pela voz do narrador-personagem: Durante todo um dia pesado, escuro e mudo de outono, em que nuvens baixas amontoavam-se opressivamente no céu, eu percorri a cavalo um trecho de campo singularmente triste, e finalmente me encontrei, quando as sombras da noite se avizinhavam, à vista da melancólica Casa de Usher. Não sei como foi – mas, ao primeiro olhar que lancei ao edifício, uma sensação de insuportável angústia invadiu o meu espírito. (POE, 1958, p. 145)2 A descrição objetiva dá a perceber o dia de outono, as nuvens, a casa, enquanto os adjetivos imprimem subjetividade à descrição ao revelar sentimentos e impressões particulares – a má sensação que as nuvens causam ao espírito, a tristeza que o campo lhe traz, assim como a angústia que a visão da casa gera ao narrador. Instaura-se aí um discurso ambíguo: o que o narrador informa é o que ali está ou espaço e ambiente são constructos desse personagem, ou seja, fruto de sua imaginação? Há outras impressões lançadas pelo narrador que intensificam a ambiguidade: a casa dos Usher e seus cômodos são responsáveis pela atmosfera de medo, morte e angústia: Olhei para a cena que se abria diante de mim – para a casa simples e para a simples paisagem do domínio – para as paredes frias – para as janelas paradas como olhos vidrados – para algumas moitas de junças – e para uns troncos alvacentos de árvores mortas – com uma enorme depressão mental [...]. Que era – pensava eu, imóvel – que era isso que tanto me atormentava na contemplação da Casa de Usher? (POE, 1958, p. 145-146)3                                                                                                                 2 During the whole of a dull, dark, and soundless day in the autumm of the year, when the clouds hung oppressively low in the heavens, I had been passing alone, on horseback, through a singularly dreary tract of country, anda t length found myself, as the shades of the evening drew on, within view of the melancholy House of Usher. I know not how it was – but, with the first glimpse of the building, a sense of insufferable gloom pervaded my spirit. (POE, 1938, p. 231) 3 I looked upon the scene before me – upon the mere house, and the simple landscape features of the domain – upon the bleak walls – upon the vacante eye-like windows – upon a few rank sedges – and upon a few white trunks of decayed trees – with an utter depression of soul [...] What was it – I paused to think – what was it that so unnerved me in the contemplation of the House of Usher? (POE, 1938, p. 231) 23 Até mesmo a revelação de uma possível ou impossível rachadura na parede da casa imprime subjetividade à descrição. Segundo o narrador, ela pode inexistir e ser fruto de seu olhar: Nenhuma porção de alvenaria ruíra; e parecia haver uma extravagante incompatibilidade entre a ainda perfeita adaptação das partes e a condição precária de cada pedra. Nisto havia algo que me recordava a integridade aparente de uma velha obra de madeira que apodreceu no transcurso de longos anos nalgum subterrâneo esquecido, sem receber o contato da atmosfera exterior. Além desta indicação de velhice extrema, contudo, a estrutura dava poucos indícios de instabilidade. Talvez o olho de um observador atento tivesse descoberto a única fenda visível, a qual, estendendo-se do teto, na fachada, descia pela parede abaixo, formando ziguezagues, até se perder nas águas sombrias do charco. (POE, 1958, p. 148).4 Este espaço enunciado pelo narrador-personagem desencadeará uma ambientação instável, angustiante, baseada em enigmas e na proximidade da morte. Aqui, ao falarmos de ambientação, partimos para a definição que Osman Lins faz do termo, em que simplifica sua explicação por meio de uma comparação: A personagem diz respeito ao objeto em si; a caracterização, à sua execução. Esta a distância que subsiste entre espaço e ambientação. Por ambientação, entenderíamos o conjunto de processos conhecidos ou possíveis, destinados a provocar, na narrativa, a noção de um determinado ambiente. [...] para ajuizar sobre a ambientação, onde transparecem os recursos expressivos do autor, impõe-se um certo conhecimento da arte narrativa. (LINS, 1976, p. 77, grifo do autor) Em outras palavras, Poe utiliza dispositivos narrativos para dar indícios de um tipo de ambiente. Segundo Thomas Woodson, “Another peculiarity of Poe’s diction is his emphasis on the negative.” (WOODSON, 1969, p. 16)5. Nota-se então que o escritor utiliza palavras de tom negativo (“insuportável”, “opressivamente”, “depressão”) que instituem a ambientação sombria do conto. As peculiaridades do espaço em que Roderick está inserido formam essa ambientação sombria que traz incômodo ao personagem: ele está em uma                                                                                                                 4 No portion of the masonry had fallen; and there appeared to be a wild inconsistency between its still perfect adaptation of parts, and the crumbling condition of the individual stones. In this there was much that reminded me of the specious totality of old wood-work which has rotted for long years in some neglected vault, with no disturbance from the breath of the external air. Beyond this indication of extensive decay, however, the fabric gave little token of instability. Perhaps the eye of a scrutinizing observer might have discovered a barely perceptible fissure, which, extending from the roof of the building in front made its way down the wall in a zigzag direction, until it became lost in the sullen waters of the tarn. (POE, 1938, p. 233) 5 Outra peculiaridade da dicção de Poe é sua ênfase no negativo. (Tradução nossa) 24 mansão escura, isolada, que não oferece o conforto necessário para viver mentalmente sossegado: Ele estava acorrentado, por certas impressões supersticiosas com relação à propriedade onde vivia, e donde, por muitos anos, nunca se afastara – com relação a uma influência cuja força hipotética era exposta numa linguagem demasiado nebulosa para que a reproduza aqui – a uma influência que algumas particularidades de forma e de substância da sua casa de família haviam exercido, à força de um longo sofrimento, sobre o seu espírito [...]. (POE, 1958, p. 150-151)6 Atribuir à casa o tom obscuro não esconde o fato de que o narrador constrói, discursivamente, essa ambientação. Ele é a única testemunha sobrevivente dos eventos, o que sabemos não somente pela emprego do tempo pretérito, como pelo anúncio final da morte dos Usher e da queda da casa. Pensar no narrador como o responsável pela ambiguidade discursiva é pensar na casa como um segundo personagem que com ele empreende um jogo especular: o narrador descreve e dá a ver a casa, como também é modificado por ela: Um invencível tremor gradualmente se apoderou de meu corpo; e, finalmente, instalou-se no meu próprio coração o íncubo do mais absurdo alarme. Fazendo um esforço e com uma arfada, soergui-me sobre o travesseiro e, procurando ver através da intensa escuridão reinante no quarto, pus-me à escuta, levado por uma força instintiva, e ouvi certos sons baixos e indefiníveis que vinham [...] não sei de onde. Dominado por uma intensa sensação de pavor, inexplicável e intolerável, vesti-me depressa [...] e procurei furtar-me ao lamentável estado em que caíra, caminhando rapidamente, para um lado e doutro, ao longo do aposento. (POE, 1958, p. 157)7 Vê-se que a casa, já desde o título, tem a sua importância na narrativa, passando de objeto a personagem. Essa relação de implicação entre espaço e personagem, de acordo com Osman Lins, ocorre da seguinte forma:                                                                                                                 6 He was enchained by certain superstitious impressions in regard to the dwelling which he tenanted, and whence, for many years, he had never ventured forth – in regard to an influence whose supposititious force was conveyed in terms too shadowy here to be re-stated – an influence which some peculiarities in the mere form and substance of his family mansion had, by dint of long sufferance, he said, obtained over his spirit [...]. (POE, 1938, p. 235) 7 An irrepressible tremor gradually pervaded my frame; and, at length, there sat upon my very heart an incubus of utterly causeless alarm. Shaking this off with gasp and struggle, I uplifted myself upon the pillows, and, peering earnestly within the intense darkness of the chambre, hearkened - I know not why, except that an instinctive spirit prompted me – to certain low and indefinite sounds which came [...] I knew not whence. Overpowered by an intense sentimento of horror, unaccountable yet unendurable, I threw on my clothes with haste [...], and endeavored ti arouse myself from the pitiable condition into which I had fallen, by pacing rapidly to and from through the apartment. (POE, 1938, p. 241) 25 [...] o espaço, no romance, tem sido – ou assim pode entender-se – tudo que, intencionalmente disposto, enquadra a personagem e que, inventariado, tanto pode ser absorvido como acrescentado pela personagem [...]. (LINS, 1976, p. 72) Dessa maneira, em uma narrativa, o espaço, delimitando o personagem, se impõe, e os elementos que o formam transferem-se para o primeiro plano, como diz Jean Hankiss: “O meio [...] emancipa-se, [...] para ocupar, na hierarquia dos fatores, um posto mais elevado do que lhe seria assegurado pelo seu caráter de suporte, de atmosfera, de verdadeiro pano de fundo.” (apud LINS, 1976, p. 67). Em outras palavras, o espaço não é mera decoração e “quase nunca se reduz ao denotado.” (LINS, 1976, p. 72). Utilizaremos essa e outras abordagens de Osman Lins sobre o espaço na narrativa, desenvolvidas na obra Lima Barreto e o espaço romanesco (1976), já que estas serão a base teórica que enriquecerá as observações feitas quando da leitura de nosso corpus. No livro, Osman Lins toma a precaução de não estabelecer regras fixas para o estudo do espaço e nós tampouco queremos transformar o conto de Poe e o filme de Epstein apenas em marcações rígidas de categorias espaciais, mas utilizar a teoria para complementar a análise dos sentidos que a espacialidade constrói, pois: De modo algum procuramos, com os exemplos dados, estabelecer mesmo de longe uma tipologia do espaço; eles constituem uma ilustração das suas possibilidades; reforçam, simultaneamente, a importância que pode ter na ficção esse elemento estrutural e indicam as proporções que eventualmente alcança o fator espacial numa determinada narrativa, chegando a ser, em alguns casos, o móvel, o fulcro, a fonte de ação. (LINS, 1976, p. 67) A leitura do conto A queda da casa de Usher dá a ver um espaço dinâmico, construído pelo narrador-personagem, num movimento que parte das imediações da casa à sua interioridade, com sua mobília, objetos peculiares, habitantes. Nota-se a indecisão do narrador na descrição do espaço, “[...] também não consegui compreender as ideias nebulosas que me assaltaram.” (POE, 1958, p. 146)8. A hesitação e a obscuridade que emanam do discurso tornam a narrativa ambígua e permitem ao leitor outras interpretações. Junta-se a estas características a inserção dos elementos espaciais (casa, árvores, lago, cômodos etc) por meio da ação do narrador, e exemplificamos com o quarto de Roderick que aparece na narrativa porque o narrador ali entrou, sendo esta uma ação criadora do quarto e dos objetos que o compõem:                                                                                                                 8 [...] nor could I grapple with the shadowy fancies that crowded upon me as I pondered. (POE, 1938, p. 231) 26 A peça em que me encontrava era muito espaçosa e alta. [...] Tapeçarias escuras pendiam das paredes. A mobília era profusa, sem conforto, antiquada, e encontrava-se em estado precário. [...] Senti que estava respirando uma atmosfera de angústia.” (POE, 1958, p. 148-149)9 Advém da ação que cria os elementos espaciais, a ambientação oblíqua ou dissimulada, de que fala Osman Lins: “A ambientação dissimulada exige a personagem ativa: o que a identifica é um enlace entre o espaço e a ação. [...] Assim é: atos da personagem, nesse tipo de ambientação, vão fazendo surgir o que a cerca, como se o espaço nascesse de seus próprios gestos.” (LINS, 1976, p. 83-84). Assim, quando o narrador caminha pelos arredores da propriedade, quando entra na casa de Roderick e lá permanece, ele mistura essas ações (e também sentimentos) ao espaço que descreve: A tempestade continuava desencadeada, com toda a sua fúria, quando me vi finalmente atravessando o velho caminho pavimentado. De repente, surgiu ao longo do caminho uma luz estranha, e eu me voltei para ver donde poderia ter saído uma claridade tão insólita, pois atrás de mim só havia a mansão com suas sombras. (POE, 1958, p. 161-162)10 Na ambientação oblíqua, então, há de se ficar atento para perceber a ação e o espaço, já que estes se fundem. O aspecto vacilante da narrativa é constante, uma vez que o narrador não está certo se o que observa é fruto da angústia que o afeta. Isso reforça a obliquidade, pois o lado psicológico do narrador, este de se confundir, se mistura ao espaço. Desse modo, a subjetividade do narrador, combinada com a descrição do espaço, dá à narrativa ambientação dissimulada/oblíqua, indício de um espaço misterioso e instável. A ação do narrador também vai criar outros aspectos em A Queda da Casa de Usher, sendo que os eventos são expostos sob a perspectiva desse personagem. Enquanto caminha pelos arredores da casa, o narrador se aproxima de uma lagoa que reflete alguns troncos e a parte externa da morada. Esses elementos – lagoa, casa, troncos – construídos de modo mórbido, geram no narrador que os observa, angústia: [...] dirigi o meu cavalo para a borda escarpada de uma lagoa, ou antes, de um charco sombrio e lúgubre que formava um sereno espelho perto da residência, e olhei para baixo – mas com uma emoção ainda mais profunda                                                                                                                 9 The room in which I found myself was very large and lofty. [...] Dark draperies hung upon the walls. The general forniture was profuse, comfortless, antique, and tattered. [...] I felt that I breathed an atmosphere of sorrow. (POE, 1938, p. 233-234) 10 The storm was still abroad in all its wrath as I found myself crossing the old causeway. Suddenly there shot along the path a wild light, an I turned to see whence a gleam so unusual could have issued; for the vast house and its shadows were alone behind me. (POE, 1938, p. 245) 27 do que antes para as imagens invertidas das junças cinzentas, e dos troncos espectrais, e das janelas paradas com olhos mortiços. (POE, 1958, p. 146)11 O narrador, cujo olhar dirige as impressões espaciais, se emociona com a casa e suas particularidades. Esse olhar, que imprime sentimentos confusos em sua mente, confere animação a esses elementos do espaço, a ponto de podermos dizer que a casa é uma personagem do conto, uma vez que parece transferir sentimentos angustiantes para o narrador e seus habitantes. Vemos que o narrador até mesmo transforma as janelas da casa em olhos humanos, personificando o objeto. Acerca do poder do olhar sobre o que é inanimado, podemos tomar as palavras de Osman Lins: “Essa influência, que tanto é exercida sobre interiores como sobre exteriores, não se manifesta de maneira concreta e sim subjetivamente, sendo um de seus processos a animização” (LINS, 1976, p. 139, grifo do autor). O mesmo acontece no trecho em que o narrador discorre sobre a aparência do espaço externo da casa de Usher e comenta que a mudança na disposição dos elementos espaciais seria suficiente para aliviar a negatividade dos sentimentos que o invadem: “Refleti que era possível que um simples arranjo diferente dos pormenores do cenário, das minúcias do quadro, seria suficiente para modificar, ou talvez para aniquilar a sua capacidade de suscitar impressões penosas;” (POE, 1958, p. 146)12. Nesse sentido, o coisificado se animiza conforme a percepção do narrador, isto é, os objetos do espaço suscitam emoções porque são organizados sensivelmente pelo narrador que reconhece ser o arranjo espacial o responsável pela ambientação penosa que a casa dos Usher terá. Isso nos leva a pensar que o “arranjo” mencionado pelo narrador está ligado à organização espacial, mas também ao discurso que expressa tal ordem, ou seja, há indícios metalinguísticos nestas palavras do narrador, sendo espaço e ambientação em A queda da Casa de Usher constructos do discurso e de sua ordenação. Podemos tomar como outro exemplo de animização o seguinte trecho: Enquanto os objetos em torno de mim – enquanto as pinturas do teto, as sombrias tapeçarias das paredes, o negrume de ébano dos soalhos, e os fantasmagóricos troféus de armas que retiniam enquanto eu caminhava – eram apenas coisas com as quais eu me acostumara na infância – enquanto eu não vacilava em reconhecer o quanto tudo isto era familiar – ainda me                                                                                                                 11 [...] I reined my horse to the precipitous brink of a black and lurid tarn that lay in unruffled lustre by the dwelling, and gazed down – but with a shudder even more thrilling than before – upon the remodelled and inverted images of the gray sedge, and the ghastly tree-stems, and the vacant and eye-like windows. (POE, 1938, p. 231) 12 It was possible, I reflected, that a mere different arrangement of the particulars of the scene, of the details of the Picture, would be sufficient to modify, or perhaps to annihilate its capacity for sorrowful impression; (POE, 1938, p. 231) 28 admirava de achar quão pouco familiares eram as impressões que as imagens ordinárias me despertavam. (POE, 1958, p. 148)13 Este fragmento do texto revela a distinção entre espaço e ambiente, comentada anteriormente. Enquanto o espaço e os objetos que o compõem são familiares, revelando que o narrador compartilha com os Usher um similar status social, a ambientação sombria é estranha e pouco familiar ao narrador. Outra questão a destacar é que a certa altura do conto, o narrador-personagem reafirma a questão de que o arranjo espacial é responsável pela ambientação: Procurava fazer-me crer que grande parte, se não a tonalidade das minhas impressões, era devida à influência desconcertante da mobília austera e triste do quarto; das tapeçarias escuras e estragadas que, tocadas pelo sopro de uma tempestade iminente, mexiam-se caprichosamente nas paredes e roçavam penosamente nos adornos da cama. (POE, 1958, p. 157)14 Esses e outros fragmentos revelam que a família Usher apresenta ascendência nobre, se pensarmos na contraditória imponência e decadência da casa, e reiteram a importância do solar na narrativa, pois, como percebemos nos trechos citados anteriormente, o narrador apresenta familiaridade com o espaço, mas a ambientação austera, triste, escura e decadente o impressiona. Ainda segundo o narrador, o ambiente do solar afeta a ele e perturba Roderick Usher. A angústia aguda e sensibilidade máxima deste último são assim descritas: Sofria muito de um aguçamento mórbido dos sentidos; o mais insípido alimento era-lhe insuportável; só podia usar roupas de certo tecido; o aroma de quaisquer flores lhe era opressivo; seus olhos eram torturados mesmo por uma réstia de luz; e havia apenas alguns sons peculiares, e estes de instrumentos de cordas, que não lhe causavam horror. (POE, 1958, p. 150)15 E:                                                                                                                 13 While the objects around me – while the carvings of the ceilings, the sombre tapestries of the walls, the ebon blackness of the floors, and the phantasmagoric armorial trophies which rattled as I strode, were but matters to which, or to such as which, I had been accustomed from my infancy – while I hesitated not to acknowledge how familiar was all this – I still wondered to find how unifamiliar were the fancies which ordinary images were stirring up. (POE, 1938, p. 233) 14 I endeavored to believe that much, if not all of what I felt, was due to be bewildering influence of the gloomy funiture of the room – of the dark and tattered draperies, which, tortured into motion by the breath of a rising tempest, swayed fitfully to and fro upon the walls, and rustled uneasily about the decorations of the bed. (POE, 1938, p. 241) 15 He suffered much from a morbid acuteness of the senses; the most insipid food was alone endurable; he could wear only garments of certain texture; the odors of all flowers were oppressive; his eyes were tortured by even a faint light; and there were but peculiar sounds, and these from stringed instruments, which did not inspire him with horror. (POE, 1938, p. 235) 29 As condições desta sensibilidade tinham sido aqui, segundo ele imaginava, cumpridas na metódica justaposição das pedras – na ordem da sua disposição, tanto como na dos muitos que se espalhavam por elas, e das árvores existentes no terreno – acima de tudo, na longa e intacta duração dessa disposição, e na sua reduplicação nas águas paradas do pântano. (POE, 1958, p. 154-155)16 A condição sensível de Roderick, típica de um personagem do romantismo com seu gosto pela reclusão e ambientes escuros, resulta em angústia e depressão, dialogando com as características da “[...] mansão de melancolia.” (POE, 1958, p. 146)17, associação que permite construir uma relação especular entre casa e seus habitantes, anunciada pelo narrador- personagem desde o princípio do conto, momento em que ele ainda apresenta o espaço e o ambiente exterior (as janelas e as árvores mortas causam angústia no narrador). Adiante lê-se a seguinte descrição de Roderick: “A atual palidez cadavérica da pele e o atual brilho milagroso dos olhos, acima de tudo, causavam-me admiração e mesmo pavor.” (POE, 1958, p. 149)18. É evidente a correspondência entre a impressão causada pela lividez de Roderick e a sensação causada pela soturnidade do solar. A casa espelha tanto a imagem de seus atuais proprietários, como de toda a genealogia Usher. A decadência dos irmãos Usher é decorrência de uma genealogia construída e mantida pelo autofechamento familiar: Embora em nossa meninice tivéssemos sido companheiros muito íntimos, eu realmente conhecia pouca coisa do meu amigo. A sua reserva sempre fora excessiva e habitual. Sabia, contudo, que a sua família, muito antiga, se distinguia, através de muito tempo, por uma particular sensibilidade de temperamento, assinalando-se, em muitas gerações, por muitas obras de arte exaltada, e que tivera, recentemente, gestos repetidos de caridade generosa, embora cheia de discrição, manifestando uma devoção apaixonada pelas sutilezas [...]. (POE, 1958, p. 146-147)19 A morte de seus últimos integrantes, Roderick e Madeline, quando da ruína e desmoronamento da casa sobre os dois personagens, simboliza a queda de uma dinastia. Resta o narrador que, conforme anunciamos acima, pertence a classe social semelhante e pode                                                                                                                 16 The conditions of the sentence had been here, he imagined, fulfilled in the method of collocation of these stones – in order of their arrangement, as well as in that of the many fungi which overspread them, and of the decayed trees which stood around – above all, in the long undisturbed endurance of this arrangement, and its reduplication it the still waters of the tarn. (POE, 1938, p. 239) 17 [...] mansion of gloom. (POE, 1938, p. 232) 18 The now ghastly pallor of the skin, and the now miraculous lustre of the eye, above all things startled and even awed me. (POE, 1938, p. 234) 19 Although, as boys, we had been even intimate associates, yet I really knew little of my friend. His reserve had been Always excessive and habitual. I was aware, however, that his very ancient family had been noted, time out of mind, for a peculiar sensibility of temperamento, displaying itself, through long ages, in many works of exalted art, and manifested, of late, in repeated deeds of munificente yet unobtrusive charity, as well as in a passionate devotion to the intricacies [...] (POE, 1938, p. 232) 30 analisar o espelhamento entre espaço e personagens: “Enquanto observava mentalmente a perfeita concordância do caráter da propriedade com o suposto caráter dos habitantes e enquanto especulava sobre a possível influência que um [...] podia ter exercido sobre o outro [...].” (POE, 1958, p. 147, grifo nosso)20. Este jogo de espelhos em que os antepassados de Roderick e Madeline estão representados no espaço e ambiente da mansão, bem como seus atuais habitantes, os irmãos Usher, aproxima-se do mito de Narciso no que se refere ao processo de autoconhecimento e destruição. O belo filho de Céfiso, deus do rio, e da ninfa Liríope, numa primeira versão do mito, não apresenta interesse por nenhuma mulher, fato que causa a morte da ninfa Eco por desgosto, devido à paixão que nutre pelo rapaz, sendo este amor não correspondido. O pedido por vingança das outras mulheres, também menosprezadas pelo jovem, desperta a ira da deusa Nêmesis. Para vingar a morte de Eco, a deusa [...] induziu Narciso, depois de uma caçada num dia muito quente, a debruçar-se numa fonte para beber água. Nessa posição ele viu seu rosto refletido na água e se apaixonou por sua própria imagem. Descuidando-se de tudo mais ele permaneceu imóvel na contemplação ininterrupta de sua face refletida e assim morreu. (KURY, 2009, p. 278) Narciso, impressionado com o próprio reflexo, conhece a si mesmo por meio da contemplação causadora da morte. Se antes nunca tinha visto sua face, porque essa era a condição para ter uma vida longa, agora ele conhece a si mesmo ao abaixar para beber da fonte. O movimento de inclinação que leva o personagem do mito a ver a própria imagem dirige o pensamento para a interioridade do ser, para o conhecimento tanto da fisionomia quanto da alma. Roderick, algumas vezes é descrito como alguém de “[...] olhos estavam fixamente perdidos no espaço, e em todo o seu rosto havia uma rigidez de pedra.” (POE, 1958, p. 160-161)21 que não vê e não ouve mais que sua própria interioridade e medos, ignorando até mesmo a presença do amigo narrador-personagem. Roderick ainda se espelha na casa quando vemos a similitude de seu corpo maltratado – “criatura descorada” e “Os cabelos sedosos também tinham crescido à vontade [...]” (POE, 1958, p. 149)22 – com as particularidades sombrias da moradia – “[...]as pinturas do teto, as sombrias tapeçarias das paredes, o negrume de ébano dos soalhos, e os fantasmagóricos troféus de armas [...]” (POE,                                                                                                                 20 [...] while running over in thought the perfect keeping of the character of the premises with the accredited character of the people, and while speculating upon the possible influence which the one [...] might have exercised upon the other [...] (POE, 1938, p. 232) 21 His eyes were bent fixedly before him, and throughout his whole countenance there reigned a stony rigidity. (POE, 1938, p. 244) 22 The silken hair, too, had been suffered to grow all unheeded [...] (POE, 1938, p. 234) 31 1958, p. 148)23. Ainda em relação ao mito de Narciso, há a correspondência entre o enclausurar de Roderick e da irmã Madeline, que os leva à introspeção e morte – “A sua reserva sempre fora excessiva e habitual.” (POE, 1958, p. 146)24 –, além do isolamento da casa, pois os poucos personagens que habitam o solar sugerem que o acesso ao lugar não se dá facilmente. Os Usher são apresentados como uma dinastia autocentrada a expor, por meio do relato do narrador-personagem, seu medo do fim: – Vou morrer, disse-me ele, tenho de morrer desta deplorável loucura. Aqui, e só aqui está o meu fim. Tenho medo dos acontecimentos futuros, não por eles mesmos, mas por seus efeitos. Estremeço à ideia de qualquer incidente, mesmo do mais trivial, que possa influir nesta intolerável agitação do espírito. Na verdade, não tenho aversão ao perigo, exceto no seu efeito absoluto – no terror. Nesta condição precária, sinto que mais cedo ou mais tarde chegará a ocasião em que terei de abandonar, a um tempo, a vida e a razão, nalguma luta com o cruel fantasma: o MEDO. (POE, 1958, p. 150)25 A mente de Roderick é um ambiente melancólico que forma, em seu entorno, uma ambientação perturbadora, o que é corroborado pelo espaço físico ligado à história da família Usher: A crença, entretanto, estava ligada (como anteriormente aludi) às pedras cinzentas do lar dos seus avós. [...] A prova – a prova da sensibilidade – devia-se observar, disse ele (e aqui estremeci quando ele falou), na condensação gradual, mas certa, da atmosfera própria a essas águas e a essas paredes. O efeito era perceptível, acrescentou ele, nessa muda, mas importuna e terrível influência que durante séculos tinha formado os destinos de sua família, e que fez dele o que agora eu estava vendo: o que ele era. (POE, 1958, p. 154-155)26 A casa apresenta três traços fundamentais para compreensão da ambientação mórbida: duração, ordem e reduplicação. Estes traços remetem à tradição familiar                                                                                                                 23 [...] the carvings of the ceilings, the sombre tapestries of the walls, the ebon blackness of the floors, and the phantasmagoric armorial trophies [...] (POE, 1938, p. 233) 24 His reserve had been always excessive and habitual. (POE, 1938, p. 232) 25 “I shall perish”, said he, “I must perish in this deplorable folly. Thus, thus, and not otherwise, shall I be lost. I dread the events of the future, not in themselves, but in their results. I shudder at the thought of any, even the most trivial, incidente, which may operate upon this intolerable agitation of soul. I have, indeed, no abhorrence of danger, except in its absolute effect – in terror. In this unnerved, in this pitiable, condition I feel that the period will sooner or later arrive when I must abandon life and reason together, in some struggle with the grim phantasm, FEAR.” (POE, 1938, P. 235) 26 The belief, however, was connected (as I have previously hinted) with the gray stones of the home of his forefathers. [...] Its evidence – the evidence of the sentience – was to be seen, he said (and I here started as he spoke), in the gradual yet certain condensation of an atmosphere of their own about the waters and the walls. The result was discoverable, he added, in that silente yet importunate and terrible influence which for centuries had moulded the destinies of his Family, and which made him what I now saw him – what he was. (POE, 1938, p. 239) 32 solidamente construída, espelhada na casa e em seu reflexo na água parada da lagoa, conforme realce na citação acima. A influência secular e um modo de ser e de viver estão inscritos nas paredes sólidas da casa, nas águas pantanosas, na hera que medra e esconde as instabilidades da construção e, metaforicamente, de seus habitantes. A concretização do medo e de um modo de ser introspectivo dá-se, portanto, pela construção de um espaço físico, histórico, social e psicológico imbricados. Segundo a abordagem de Osman Lins: “[...] mesmo a reflexão, oriunda de uma presença sem nome, evoca o espaço onde a proferem e exige um mundo no qual cobra sentido.” (LINS, 1976, p. 69). Queremos afirmar que a condição psicológica e física dos Usher é reflexo da característica taciturna da casa secular e de uma tradição aristocrática que se mantém à custa de uma ordem rigorosa, baseada na exclusão da alteridade e permanência da reduplicação, o que reforça a leitura de uma condição narcísica da família Usher, ao relacionar as personagens e o espaço da casa com seu entorno à história de uma tradição familiar. Roderick, um dos últimos componentes da família Usher, encerrado na morada, dá a ver sua interioridade psíquica com seus pensamentos de morte, temor e angústia fortemente associados à tradição familiar. Gaston Bachelard afirma: “Nosso inconsciente está ‘alojado’. Nossa alma é uma morada. E quando nos lembramos das ‘casas’, dos ‘aposentos’, aprendemos a ‘morar’ em nós mesmos. Vemos logo que as imagens da casa seguem nos dois sentidos: estão em nós assim como nós estamos nelas.” (BACHELARD, 1978, p. 197). Os cômodos onde Roderick passa o tempo são seus espaços de intimidade, lugares que carregam os sofrimentos do personagem e, por isso, lugares de interiorização. Nesse sentido, os cômodos têm função similar à da mente de Roderick, a de guardar suas impressões e histórias de vida. O espelhamento de Roderick que o dirige para a interiorização chama a atenção para um outro movimento de interiorização do personagem-narrador. Ao chegar ao campo que circunda a casa, sua primeira ação é caminhar por ele e perceber o aspecto sombrio do lugar, composto por troncos de árvores mortas, nuvens carregadas, uma lagoa, além da estrutura externa da casa. Este espaço exterior gera ambientação reflexiva e soturna. A lagoa chama a atenção do narrador e acaba por desviar o olhar desse personagem que antes estava centrado na morada. O movimento do narrador de olhar para a lagoa não nos permite crer que o personagem realiza tal ação apenas para descrever esse elemento espacial. Ao contrário, o olhar para baixo e para o interior da lagoa é o primeiro índice de uma relação de espelhamento que será recorrente no conto, conforme já anunciado: entre os irmãos, entre o narrador-personagem e o amigo de infância Roderick, entre os Usher e a aristocracia em crise, 33 entre o espaço da casa dos Usher e a casa familiar do narrador, entre a casa e seus habitantes. A lagoa que parece distrair o narrador, e consequentemente o leitor, será o espaço que “engolirá” a casa no final do conto: “[...] houve um longo e tumultuoso estrondo, com mil vozes de água – e a profunda e sombria lagoa aos meus pés fechou-se funebremente por sobre os destroços da casa ‘Casa de Usher’.” (POE, 1958, p. 162, grifo do autor)27. Isso indica que o trecho constrói um ambiente oblíquo, a ação do personagem de olhar para dentro da lagoa é similar ao que ocorrerá daí por diante: o movimento de interiorização espacial do narrador- personagem que vai dos arredores da casa até os aposentos íntimos de Roderick terá espelhamento no movimento de interiorização psíquica dos personagens e de suas angústias e medos. Nas águas da lagoa, a imagem da casa e de outros elementos espaciais aparece em sentido contrário, porque é reflexo – “imagens invertidas das junças cinzentas, e dos troncos espectrais, e das janelas paradas com olhos mortiços.” – o que sugere mais uma vez a obliquidade do fragmento narrativo, sendo que a inversão da imagem contribui para confundir o olhar do narrador e, consequentemente, sua impressão, intensificando o medo e a angústia; as incertezas do narrador igualmente conferem obliquidade ao ambiente, pois o discurso desse personagem dissimula o que pode ou não ser tomado como verdadeiro (se considerarmos a ambiguidade do narrar), e o leva a criar sua versão do espaço, conduzindo-nos às palavras de Osman Lins quando este diz que as ações do personagem criam o espaço à sua volta (1976, p. 84). O narrador não nos apresenta somente a estrutura externa da casa, mas também o espaço que a circunda: “[...] percorri a cavalo um trecho de campo singularmente triste [...]” (POE, 1958, p. 145)28; “Olhei para a cena que se abria diante de mim – [...] para a simples paisagem do domínio [...]” (POE, 1958, p. 145)29. Em seguida, prende seu olhar à estrutura da casa: [...] examinei mais de perto o aspecto real do edifício. A sua feição principal parecia ser a de uma antiguidade excessiva. A ação dos séculos fora profunda. Ínfimos fungos cobriam-lhe todo o exterior, formando um debrum finamente tecido, que pendia dos beirais. Entretanto, não havia estragos mais acentuados. (POE, 1958, p. 147-148)30                                                                                                                 27 [...] there was a long tumultuou shouting sound like the voice of a thousand waters – and the deep and dank tarn at my feet closed sullenly and silently over the fragments of the “House of Usher”. (POE, 1938, p. 245) 28 [...] I had been passed alone, on horseback, through a singularly dreary tract of country [...]. (POE, 1938, p. 231) 29 I looked upon the scene before me – upon [...] the simple landscape features of the domain [...]. (POE, 1938, p. 231)     30 [...] I scanned more narrowly the real aspect of the building. Its principal feature seemed to be that of an excessive antiquity. The discoloration of ages had been great. Minute fungi overspread the whole exterior, 34 O espaço exterior é apresentado de modo panorâmico. Entretanto, veremos que a imagem aberta do espaço vai fechando conforme o narrador adentra a morada. Depois de observar o espaço que compõe o exterior do solar, o personagem passa a observar a estrutura interna da casa quando segue seu caminho: “Um criado tomou meu cavalo e eu penetrei na arcada em estilo gótico do vestíbulo. Um outro criado de passos furtivos conduziu-me depois, em silêncio, através de muitos corredores escuros e intrincados, para o studio do seu amo.” (POE, 1958, p. 148)31. O movimento do narrador, exterior-interior, também pode ser tomado como a interiorização psicológica desse personagem, visto que o amigo de Usher descobre que é propenso à superstição – “Não pode haver dúvida de que a consciência do rápido progresso da minha superstição [...] serviu principalmente para acelerar esse mesmo progresso.” (POE, 1958, p. 147)32 e “Eu sentia a subirem em mim, lenta mas seguramente, as bizarras influências das suas próprias superstições, fantásticas mas também impressionantes.” (POE, 1958, p. 157)33. Ainda anuncia a capacidade de sua mente de impressionar-se com os móveis do solar: os móveis sombrios, as tapeçarias desgastadas do quarto em que dormia, movimentando-se com os ventos da tempestade que se aproxima, são capazes de perturbar o personagem-narrador. Há a revelação da interioridade do narrador se considerarmos a gradação da intensidade do desequilíbrio psicológico desse personagem. Falamos sobre o quarto, mas antes seria pertinente acompanharmos a ordem do movimento de interiorização do narrador. Continuando, o personagem entrega seu cavalo ao criado da casa e chega ao cômodo onde Roderick repousa: As janelas eram compridas, estreitas e pontudas e colocadas a uma distância tão grande do sombrio soalho de carvalho que se tornavam inteiramente inacessíveis pela parte de dentro. [...] A mobília era profusa, sem conforto, antiquada, e encontrava-se em estado precário. [...] Senti que estava respirando uma atmosfera de angústia. Um sopro de profunda, penetrante e irremediável tristeza andava no ar e tudo invadia. (POE, 1958, p. 148-149)34                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                           hanging in a fine tangled web-work from the eaves. Yet all this was apart from any extraordinary dilapidation. (POE, 1938, p. 233) 31 A servant in waiting took my horse, and I entered the Gothic archway of the hall. A valet, of stealthy step, thence conducted me, in silence, through many dark and intricate passages in my progress of the studio of his máster. (POE, 1938, p. 233) 32 There can be no doubt that the consciousness of the rapid increase of my superstition [...] served mainly to accelerate the increase itself. (POE, 1938, p. 232) 33 I felt creeping upon me, by slow yet certain degrees, the wild influences of his own fantastic yet impressive superstitions. (POE, 1938, p. 241) 34 The room in which I found myself was very large and lofty. The windows were long, narrow, and pointed, and at so vast a distance from the black oaken floor as to be altogether inaccessible from within. Dark draperies 35 A desordem e a fragilidade do aposento são também reflexo do estado de vida decadente de Roderick e da dinastia Usher, assim como a fragilidade da nobreza no final do século XIX. A descrição do aposento em que se encontra Roderick e seu amigo faz mais que exibir os elementos espaciais que compõem o lugar, indicando que tais objetos não possuem somente finalidade decorativa. O que se percebe é a relação desses objetos com Roderick, pois formam uma extensão da maneira de ser desse personagem, reforço da ideia de que espaço e personagem apresentam uma relação de implicação: enquanto o cômodo está em “estado precário” e a falta de organização se mostra evidente, Roderick apresenta-se frágil, de aparência moribunda e emoções em desordem: “Um rosto de cor cadavérica [...]. A atual palidez cadavérica da pele e o atual brilho milagroso dos olhos, acima de tudo, causavam-me admiração e mesmo pavor.” (POE, 1958, p. 149)35; “As maneira de meu amigo logo me chamaram a atenção em virtude de uma incoerência [...].” (POE, 1958, p. 149)36. Acerca da função do espaço de representar a maneira de ser do personagem, Michel Butor, citado por Osman Lins, diz: Michel Butor, por sua vez, ocupando-se especificamente dos móveis, sublinha que estes, no romance, não desempenham apenas um papel “poético” de proposição, mas de reveladores, “pois tais objetos são bem mais ligados à nossa existência do que comumente o admitimos.” Continua: “descrever móveis, objetos, é um modo de descrever os personagens, indispensável”. Apenas repetimos esses estudiosos da arte romanesca, quando indicamos, no espaço – notadamente no espaço doméstico -, a função de, situando a personagem, informar-nos, mesmo antes que a vejamos em ação, sobre o seu modo de ser. (BUTOR apud LINS, 1976, p. 97) Considerando essa semelhança entre espaço e personagem, voltamos mais uma vez ao reflexo narcísico. Tem-se aí, então, a questão da função do espaço de ser uma extensão do modo de ser do personagem, e a ideia do espelhamento, visto que casa e personagem apresentam semelhanças. O espaço em que Roderick recebe o amigo é amplo, uma sala de vastas dimensões, mas fechado, elemento que restringe e interioriza ainda mais o campo de visão do narrador,                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                           hung upon the walls. The general furniture was profuse, comfortless, antique, and tattered. Many books and musical instruments lay scattered about, but failed to give any vitality to the scene. I felt that I breathed an atmosphere of sorrow. An air of stern, deep, and irredeemable glom hung over and pervaded all. (POE, 1938, p. 233-234) 35 A cadaverousness of complexion [...]. The now ghastly pallor of the skin, and the now miraculous lustre of the eye, above all things startled and even awed me. (POE, 1938, p. 234) 36 In the manner of my friend I was at once struck with an incoherence [...]. (POE, 1938, p. 234) 36 antes externo e aberto. Ali, Roderick se fecha, isolado em sua sensibilidade aguda e no medo de presenciar a morte da irmã e a própria: Confessou entretanto, ainda com hesitação, que grande parte da angústia que assim o atormentava podia ser atribuída a uma origem mais natural e muito mais palpável – à enfermidade longa e implacável – em verdade de um aniquilamento evidentemente próximo de uma irmã ternamente amada, sua única companheira através dos longos anos, seu único e último parente na terra. (POE, 1958, p. 151)37 Podemos observar o movimento de interiorização do narrador em direção à intimidade de Roderick e da casa dos Usher. Dentro da casa, o narrador conhece mais profundamente o aspecto físico do solar e o que vai na mente de Roderick. Se antes de visitar a mansão o narrador-personagem recebe, por meio de uma carta, poucas informações de Usher – “A letra evidenciava uma agitação nervosa. Falava numa doença física aguda – num distúrbio mental que o atormentava [...]” (POE, 1958, p. 146)38 – nota-se, entretanto, que essa condição muda quando o narrador-personagem entra na mansão. Às hipóteses sobre a razão da falta de sanidade mental de Roderick, correspondem espaços claustrofóbicos que fazem parte da casa, como o anunciado no momento em que Madeline é dada como morta. Roderick, mentalmente abalado com a morte da irmã, decide colocar o corpo da defunta no subsolo da morada: Posto o corpo num ataúde, nós ambos, sozinhos levamo-lo para o seu repouso. O carneiro onde o colocamos (e que permanecera por tanto tempo fechado que as nossas tochas, quase extintas pela sua atmosfera opressiva, deram-nos pequena oportunidade para investigação) era pequeno, úmido e inteiramente privado de luz; ficava a grande profundidade, imediatamente abaixo da parte do edifício em que estava situado o meu próprio quarto de dormir. (POE, 1958, p. 156)39 O tamanho restrito do porão, a profundidade e a falta de iluminação revelam um ambiente sufocante, reforçado por uma rigorosa vedação: “[...] estavam cuidadosamente                                                                                                                 37 He admitted, however, although with hesitation, that much of the peculiar gloom which thus afflicted him could be traced to a more natural and far more palpable origin – to the severe and long – continued illness – indeed to the evidently approaching dissolution – of a tenderly beloved sister, his sole companion for long years, his last and only relative on earth. (POE, 1938, p. 235-236) 38 The MS. gave evidence of nervous agitation. The writer spoke of acute bodily illness – of a mental disorder which oppressed him [...] (POE, 1938, p. 232) 39 The body having been encoffined, we two alone bore it to its rest. The vault in which we placed it (and which had been so long unopened that our torches, half smothered in its oppressive atmosphere, gave us little opportunity for investigation) was small, damp, and entirely without means of admission for light; lying, at great depth, immediately beneath that portion of the building in which was my own sleeping apartment. (POE, 1938, p. 240) 37 forrados com cobre. A porta, de ferro maciço, fora também protegida do mesmo modo.” (POE, 1958, p. 156)40. Os Usher habitam espaços de morte e de fechamento, fortemente associados ao porão, lugar de reiteração da ascendência nobre da família Usher – “Esse subterrâneo fora utilizado, em remotas épocas feudais, como cárcere [...].” (POE, 1958, p. 156)41. Essa condição “natural” ou naturalizada da dinastia Usher para lidar com espaços de opressão e morte é mencionada em outros momentos do conto: Eu soubera, também, do fato muito notável de que o tronco genealógico de Usher, venerável como era, em nenhum período da sua existência dera origem a algum ramo que se conservasse; [...] ocorreu-me que essa falta de ramos colaterais e a consequente transmissão direta, de pai para filho, do patrimônio e do nome, tinha, finalmente, identificado a ambos de tal forma que dissolvera o título original da propriedade na denominação equívoca e estranha de “Casa de Usher” – denominação que parecia incluir, na mente dos camponeses que a usavam, a família e o solar da família. (POE, 1958, p. 147)42 A intrincada trama que une os irmãos num estado de medo e morte é fortemente atribuída à ascendência dos últimos sobreviventes da dinastia Usher. A semelhança entre os irmãos é explicada no aparente detalhe de serem Madeline e Roderick gêmeos. A empatia fraternal “de uma natureza dificilmente inteligível” surge para o narrador como uma novidade não percebida durante o convívio da infância dos amigos: Uma notável parecença física entre o irmão e a irmã pela primeira vez feriu então minha atenção; e Usher, adivinhando talvez os meus pensamentos, murmurou algumas palavras pelas quais soube que a finada e ele tinham sido gêmeos, e que afinidades de uma natureza dificilmente inteligível sempre tinham existido entre ambos. (POE, 1958, p. 156)43 Isso nos faz retomar a isotopia do autofechamento da família Usher. Apesar de amigos, Roderick nunca revelou ao narrador-personagem que possuía uma irmã gêmea. Além                                                                                                                 40 [...] were carefully sheathead with copper. The door, of massive iron, had been, also, similarly protected. (POE, 1938, p. 240) 41 It had been used, apparently, in remote feudal times, for the worst purposes of a donjon-keep [...] (POE, 1938, p. 240) 42 I had learned, too, the very remarkable fact, that the stem of the Usher race, all time-honored as it was, had put forth, at no period, any enduring branch; [...] it was this deficiency, perhaps, of collateral issue, and the consequent undeviating transmission, from sire to son, of the patrimony with the name, which had, at length, so identified the two as to merge the original title of the estate in the quaint and equivocal appellation of the “House if Usher” – an appellation which seemed to include, in the minds of the peasantry who used it, both the family and the family mansion. (POE, 1938, p. 232) 43 A striking similitude between the brother and sister now first arrested my attention; and Usher, divining, perhaps, my thoughts, murmured out some few words from which I learned that the deceased and himself had been twins, and that sympathies of a scarcely intelligible nature had Always existed between them. (POE, 1938, p. 240) 38 disso, a ligação de caráter incompreensível que existe entre os irmãos sugere a existência de um segredo familiar, o que enfatiza a ideia da ambientação oblíqua preponderante no conto se considerarmos o olhar restrito do narrador para estes fatos da história de vida dos Ushers. O narrador nem mesmo tenta explicar esse relacionamento de caráter incompreensível. A falta de explicação nos dá a entender que a construção do discurso não segue o sentido das informações desveladas; ao contrário, o narrador, em momentos como este, desvia-se das revelações da família Usher e acaba construindo um discurso um tanto quanto enviesado/oblíquo, permitindo que o leitor dele duvide. Acreditamos que a ambientação oblíqua se revela também nas dúvidas e falta de informação do narrador, porque o estado de incerteza do narrador, quando se pronuncia sobre a família Usher e seus sentimentos, gera um ambiente ambíguo, duvidoso e oblíquo que se reforça, não podemos esquecer, com as características dos elementos que formam o espaço, pois ambiente e espaço estão imbricados. Nesse momento analisado, os personagens estão no porão, e junto com o tom ambíguo do discurso, tornam-se um forte indicador do aspecto sombrio da casa. Segundo Bachelard: Bem entendido, é graças à casa que um grande número de nossas lembranças estão guardadas e se a casa se complica um pouco, se tem porão e sótão, cantos e corredores, nossas lembranças têm refúgios cada vez mais bem caracterizados.” (BACHELARD, 1978, p. 202) É no porão da casa que se revela uma peculiar característica do mal que acomete Madeline: “A doença que assim levara ao túmulo aquela mulher em pleno vigor da mocidade, deixara, como acontece em todas as moléstias de caráter estritamente cataléptico, a ironia de um leve rubor no seio e no rosto [...].” (POE, 1958, p. 156) 44 . Quer dizer que o enrubescimento de Madeline, que é uma característica de quem tem catalepsia (portanto ainda viva), confere que Roderick quis de fato enterrar a irmã viva. Esta informação antecedida de outra sobre o modo de perpetuação da família Usher faz supor uma história familiar marcada por casos de incesto que agora estariam enterrados com Madeline, “[...] a família inteira só se perpetuava por descendência direta, e sempre se conservara assim, com variações muito temporárias e efêmeras.” (POE, 1958, p.147)45. Além disso, o enterro da irmã ainda viva, no                                                                                                                 44 the disease which had thus entombed the lady in the maturity of youth, had left, as usual in all maladies of strictly cataleptical character, the mockery of a faint blush the bosom and the face [...]. (POE, 1938, p. 240-241) 45 [...] that the entire family lay in the direct line of descent, and had always, with the very trifling and very temporary variation, so lain. (POE, 1938, p. 232) 39 porão, “Nós a pusemos viva no túmulo!” (POE, 1958, p. 161, grifo do autor)46, permite entrever o drama sutilmente desvelado da família Usher. Segundo Bachelard: Para o porão também encontraremos, sem dúvida, utilidade. Nós o racionalizaremos enumerando suas comodidades. Mas ele é em primeiro lugar o ser obscuro da casa, o ser que participa das potências subterrâneas. Sonhando com ele, concordamos com a irracionalidade das profundezas. (BACHELARD, 1978, p. 209, grifo do autor) Roderick comete um ato irracional ao enterrar a irmã viva. Nessa esteira, podemos tomar mais uma vez as palavras de Bachelard: “O porão é pois a loucura enterrada, dramas murados. As narrações dos porões criminais deixam na memória marcas indeléveis, marcas a que não gostamos de nos referir;” (BACHELARD, 1978, p. 210). O porão é espaço de enterramento dos dramas familiares e a presença dele marca mais fortemente o processo de interiorização do narrador-personagem na casa. Seu quarto de dormir evidencia isso, situado acima do porão, numa verticalidade aterrorizante. Depois do enterro de Madeline, Roderick, segundo a percepção do narrador, piora sua condição mental: “E agora, passados alguns dias de grande amargura, uma visível mudança operou-se no aspecto do distúrbio mental do meu amigo. As suas maneiras habituais alteraram-se.” (POE, 1958, p. 156)47. No quarto de dormir, o narrador sente mais fortemente o vacilo de suas impressões, “Eu lutava por dominar o nervosismo que se apoderara de mim. [...] instalou-se no meu próprio coração o íncubo do mais absurdo alarme.” (POE, 1958, p. 157)48. Neste aposento, o narrador experimenta com mais intensidade as impressões angustiantes que o dominam psicologicamente, índice de que este espaço, fechado como o porão, é também espaço de intimidade e de confissão. Vemos que no decorrer do conto o narrador descreve poucos cômodos da casa, mesmo que a narrativa indique uma morada nobre e ampla. Isso contribui para o fechamento da extensão do olhar do narrador-personagem e favorece o estado de terror e medo por ele vivenciado. As ações/sensações ocorrem, predominantemente, no cômodo onde Roderick toca um instrumento, pinta um quadro e lê livros antigos, sendo espaço onde o narrador faz divagações acerca do estado mental de Usher. Desse modo, observa-se que no interior da casa há espaço mais para devaneios e reflexões que para a ação, especialmente no momento em                                                                                                                 46 We have put her living in the tomb! (POE, 1938, p. 245) 47 And now, some days of bitter grief having elapsed, an observable change came over the features of mental disorder of my friend. His ordinary manner had vanished. (POE, 1938, p. 241) 48 I struggled to reason off the nervousness which had dominion over me. [...] there sat upon my very heart an incubus of utterly causeless alarm. (POE, 1938, p. 241) 40 que o narrador permanece em seu quarto de dormir, quase paralisado diante do terror que o invade. Somente haverá retorno à ação mais intensa quando o narrador-personagem sai da casa ao se surpreender com o reaparecimento de Madeline e a morte dos irmãos: Por um momento ela ficou trêmula, a vacilar no umbral – depois, com um pequeno grito lamentoso, caiu pesadamente para dentro, por sobre o corpo de seu irmão, e, na sua violenta e agora final agonia, o que ela arrastou para o chão foi apenas um cadáver, a vítima dos horrores que ele mesmo previra. Daquele quarto e daquela casa, eu fugi espantado. (POE, 1958, p. 161)49 Assim sendo, nota-se que há um movimento do narrador que vai da ação, “[...] percorri a cavalo um trecho de campo singularmente triste [...]” (POE, 1958, p. 145)50, à inação, “Uma sensação de estupor me oprimia enquanto o meu olhar seguia os seus passos de retirada.” (POE, 1958, p. 151)51; “Foi principalmente ao recolher-se um pouco tarde, na noite do sétimo ou oitavo dia depois do encerramento do corpo de lady Madeline no carneiro, que experimentei todo o poder de tais impressões.” (POE, 1958, p. 157)52, e novamente à ação, “Daquele quarto e daquela casa, eu fugi espantado.” (POE, 1958, p. 161)53. Podemos dizer que essa trajetória (açãoèinaçãoèação) é espelho, ou reflexo, do movimento espacial do narrador, ou seja: exteriorização (cavalgar com o cavalo até o solar dos Usher) è interiorização (entrar na casa e passar por alguns aposentos, isto é, a sala onde encontra Roderick, o porão e o quarto de dormir) è exteriorização (quando foge e observa a queda da casa e dos irmãos). Neste caso, exterior e interior informam a distância concreta entre o narrador e Roderick: enquanto aquele está ainda nos arredores da casa, este permanece na solidão de seu quarto; quando a casa está desmoronando, os irmãos estão dentro da casa, enquanto o narrador está fora. No exterior do solar, o narrador tem espaço suficiente para si e seu cavalo, dado que permite ao personagem praticar a ação de andar pelas imediações da propriedade. Dentro da casa, o narrador permanece a maior parte do tempo no mesmo cômodo onde está Roderick. Um jogo de aproximação e afastamento gera a ambientação instável e angustiante do conto.                                                                                                                 49 For a moment she remained trembling and reeling to and for upon the threshold – then, with a low moaning cry, fell heavily inward upon the person of her brother, and in her violent and now final death-agonies, bore him to the floor a corpse, and a victim to the terrors he had anticipated. From that chamber, and from that mansion, I fled aghast. (POE, 1938, p.245)   50 I had been passing alone, on horseback, through a singularly dreary tract of country [...]. (POE, 1938, p. 231) 51 A sensation of stupor oppressed me as my eyes followed her retreating steps. 52 It was, especially, upon retiring to bed late in the night of the seventh or eighth day after the placing of the lady Madeline within donjon, that I experienced the full power of such feelings. (POE, 1938, p. 241) 53 From that chambre, and from that mansion, I fled aghast. (POE, 1938, p. 245) 41 Em termos de direcionalidade, podemos dizer que o conto constrói horizontal e verticalmente o espaço da casa a fim de revelar o que se passa com seus habitantes. A horizontalidade e a sucessão prevalecem no anúncio dos espaços exteriores, isto é, o narrador caminha rumo à casa e vai compondo os seus arredores sucessivamente. No interior da casa, por sua vez, há a verticalização rumo ao porão e o retorno ao quarto de dormir do narrador. O interior é também espaço da simultaneidade, pois o que se passa na leitura do romance de cavalaria Mad Trist (ruídos, por exemplo) ocorre sincronicamente na casa, anunciando novamente a relação especular: espelhamento do romance de cavalaria e da situação de Madeline enterrada viva. A relação metonímica e metafórica entre espaços exterior e interior oferece à narrativa uma ambientação fortemente baseada na sugestão e na hesitação. O discurso do narrador é construído por fragmentos de informações, espaços e histórias ou por aproximações fundamentadas em similitude e parecença, fatores que favorecem a atmosfera angustiante que cerc