1 MIGUEL ZIOLI PAULO DUARTE (1899-1984): um intelectual nas trincheiras da memória Tese apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista para a obtenção do título de Doutor em História. (Área de Conhecimento: História e Sociedade) Orientadora: Profª. Drª. Tânia Regina de Luca ASSIS 2010 2 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca da F.C.L. – Assis – UNESP Zioli, Miguel Z79c Paulo Duarte (1899-1984): um intelectual nas trincheiras da memória / Miguel Zioli. Assis, 2010 200 f. Tese de Doutorado – Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Universidade Estadual Paulista. Orientador: Tania Regina de Luca 1. Paulo Duarte, 1899-1984. 2. Jornalismo. 3. Política e cultura. 4. Intelectuais. 5. Memória. I. Título. CDD 305.52 981.611 3 MIGUEL ZIOLI PAULO DUARTE (1899-1984): um intelectual nas trincheiras da memória Tese apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista para a obtenção do título de Doutor em História. (Área de Conhecimento: História e Sociedade) Orientadora: Profª. Drª. Tânia Regina de Luca Aprovada em 07/10/2010 BANCA EXAMINADORA ____________________________ Profª. Drª. Tânia Regina de Luca Orientador (Unesp/Assis) ____________________________ Profª. Drª. Marli G. Hayashi ____________________________ Prof. Dr. Noé F. Sandes ____________________________ Profª. Drª. Silvia M. Azevedo ____________________________ Prof. Dr Antônio C. Ferreira 4 Para Luciano, Cléo e Ig. Agradecimentos Ao CNPq e à FAPESP, que possibilitaram a realização do trabalho através de bolsas concedidas. A minha orientadora, Profª. Drª. Tânia Regina de Luca sempre presente, com indicações precisas. Aos meus amigos e amigas da UNESP/Assis. E a todos que estiveram ao meu lado nessa jornada, em especial, Rosana S-M., Márcia E. de A., Salete E. de S., Maurício M., José Maurício C. I., Iris José dos S., Antônio C. D. P., Luís A. V., Leonardo U. D., Fábio de S. Fábio A.D., Cláudio J. A., Maria G., Julián G., Cristian A. G., Alejandro F., Andrés M., Allan P., André A. G., Carmem S. de A., Ana M. D. O., Ana M. C., Maria de L. F. C., Xosé G., Pável A. G., Laurent D., Roland M. S., Pedro F. Q., Bruno P., José Carlos D. C., Anton M., Ruppert P., Frank D., Ernest ML., Paulo A. B. da S., Edson A. D., L. Alberto V., Ian C., M. Cristina V., Mazinho L. T., Guilherme V. T., Artur V. T., Vera Lúcia V. C., Arnaldo C., Arnaldo V. C., Fátima S., Rodrigo V. C., Francine D. C., Elvira H. D., Cyro V. C., L. Roberto V., Anderson V. D. Jovercina S. V., Sr. Reinaldo V., Alex S.e Marcos, tio Pedro V., tia Idalina P. V., D. M. Zioli, Antônio R. E. e J. P. K. Siqueira. 5 “Há muito tempo, com efeito, nossos grandes precursores, Michelet, Fustel de Coulanges, nos ensinaram a reconhecer: o objeto da história é, por natureza, o homem. [...] Por trás dos grandes vestígios sensíveis da paisagem [os artefatos ou as máquinas,] por trás dos escritos aparentemente mais insípidos e as instituições aparentemente mais desligadas daqueles que as criaram, são os homens que a história quer capturar. Quem não conseguir isso será apenas, no máximo, um serviçal da erudição. Já o bom historiador se parece com o ogro da lenda. Onde fareja carne humana, sabe que ali está a sua caça.” Marc Bloch em Apologia da História ou o ofício do historiador “O chão da história não é cultivado apenas pelos historiadores, ele está, em grande parte, exposto às vicissitudes da conjuntura intelectual.” François Dosse em A História à prova do tempo 6 RESUMO Em tempos de guinada subjetiva no território das ciências humanas, Beatriz Sarlo lembra que vozes marginais em modos de narração antes ignorados, como os diários e as memórias, demandam novas exigências de métodos. Consideradas durante muito tempo pelos historiadores mais tradicionais como documentos pouco objetivos, as chamadas “narrativas do eu”, como memórias, autobiografias, diários, cartas, relatos de viagens, entre outros, têm atraído a atenção dos historiadores como fonte da história. Paul Ricoeur, em A memória, a história e o esquecimento, sugere um novo olhar para esse material. Segundo o pensador francês, é fato que toda memória individual ganha forma na memória coletiva. A novidade de sua reflexão, entretanto, está na introdução de um terceiro conceito que ele denomina "os próximos": uma espécie de filtro entre a memória pessoal e a coletiva. Esses "próximos" seriam representados pela família, pela escola, pela geração, pelo grupo de sociabilidade, pelos amigos ou pelas leituras que contribuem para que "o próximo" seja uma réplica da amizade, a philia, a meio caminho entre o indivíduo e o cidadão. Inspirado por essas questões, o presente trabalho propõe uma leitura das Memórias do jornalista Paulo Duarte (1899-1984) publicadas em dez tomos entre 1974 e 1980, tomadas como fonte da história. Advogado, editor, tradutor, professor universitário, enólogo, ao transfigurar-se em memorialista Paulo Duarte narrou sua formação intelectual, as atividades políticas e culturais das décadas de 1920 e 1930, em especial os bastidores da criação do Departamento de Cultura de São Paulo, sua atuação na Assembléia Legislativa paulista, os dois períodos de exílio e a intransigente oposição ao governo Vargas. Esses escritos memorialísticos travam com as memórias produzidas por seus contemporâneos uma batalha simbólica pelo passado. Revisitar o debate e recolocar os seus termos contribui para lançar luz sobre atividades intelectuais e grupos da cidade de São Paulo nas primeiras décadas do século XX. Palavras-chave: Paulo Duarte (1899-1984), jornalismo, política e cultura, intelectuais, memória. 7 ABSTRACT In times of a subjective turn in Human Sciences, Beatriz Sarlo states that ‘secondary’ voices and the way they are put, such as diaries and memoirs, demand new approaches and method. Considered for a long time as a less objective document by traditional historicians, ‘first person-based’ narrative texts like memoirs, autobiography, diaries, letters, as many others, have attracted attention as a source of History. Paul Ricoeur, in A memória, a história e o esquecimento, suggests a new point of view to this material. According to him, it is a fact that all individual memory gets new shape in collective memoirs. Otherwise what is new about his reflection is a third concept called for him ‘the next’: a sort of filter between personal and collective memoirs. This ‘next’ would be the family, education, generation, social group, friends or the interpretation that together contribute to make this character a reproduction of friendship, the philia, half-path between the individual and the citizen. Based on this, the present work purposes a special lecture of Memórias from Brazilian journalist Paulo Duarte (1899-1984), published in ten volumes between 1974 and 1980, as a source of History. Being a lawyer, editor, translator, university teacher, enologist and turning into a writer of memoirs, Paulo Duarte recorded his intellectual path, cultural and political activities in the 1920s- 1930s, specially the background of the Culture Department of São Paulo foundation, his participation in the legislative assembly of São Paulo and his two periods of exile due to the opposition to Getúlio Vargas intransigent rule. His writings dialogue with other contemporary personalities in a symbolic battle for the past, resulting in a vigorous source that put some light over the intellectual activities in São Paulo in the beginning decades of 20th century. Keywords: Paulo Duarte (1899-1984), journalism, culture and politics, intellectuals, memoirs. 8 SUMÁRIO Introdução.............................................................................................................. 09 Capítulo 1 – A trincheira e a escrita..................................................................... 31 1.1 A palavra e a luta: forma-se o intelectual................................................... 32 1.2 O jornalista e sua inserção no mundo intelectual paulista......................... 52 1.3 A escrita como resistência............................................................................. 66 Capítulo 2 – Trincheiras e memórias.................................................................. 76 2.1 Em busca da forma.......................................................................................... 77 2.2- Após o exílio: da ação à memória.................................................................. 95 2.3- Tempos de memórias...................................................................................... 111 Capítulo 3 – Nas trincheiras da memória............................................................ 130 3.1- Os espaços de sociabilidade nas Memórias de Paulo Duarte...................... 131 3.2- Uma ação cultural rememorada: a criação do DC...................................... 151 3.3- “E vai começar uma nova era...”.................................................................... 167 Conclusões possíveis............................................................................................... 179 Referências.............................................................................................................. 183 Anexo 1 – Cronologia............................................................................................. 191 Anexo 2 - Obras de Paulo Duarte......................................................................... 197 9 Introdução Em meados de setembro de 1968, Pablo Neruda (1904-1973) esteve em São Paulo para o lançamento de uma antologia de seus poemas e deveria permanecer na cidade mais alguns dias para a inauguração de uma escultura de Flávio de Carvalho (1899-1973) em comemoração ao 32° aniversário da morte do poeta Federico García Lorca (1898-1936)1, executado no início da Guerra Civil espanhola.2 Problemas na agenda do diplomata e poeta chileno impediram-no de cumprir o compromisso, mas por entenderem que sua participação naquele ato simbólico era fundamental, os organizadores do evento decidiram levá-lo à Praça das Guianas, local onde seria assentada a escultura. A visita ocorreu na madrugada do dia 25 de setembro, ocasião em que o futuro Prêmio Nobel de Literatura proferiu um breve discurso3, ouvido por um pequeno, mas seleto, grupo de intelectuais composto por Francisco (Paco) García Lorca (1902-1976), irmão do homenageado; o poeta espanhol Gabriel Celaya (1911-1991); o diplomata e poeta Vinicius de Morais (1913-1980); Flávio de Carvalho; e Paulo Duarte (1899-1984), presidente da Comissão encarregada de realizar o monumento e um dos idealizadores da homenagem, juntamente com o Centro Democrático Espanhol e significativos nomes do cenário cultural paulista.4 1 Em Prisão, exílio, luta, de 1946 Paulo Duarte fazia referência à morte de García Lorca, sinal de que já na década de 1940 o episódio de sua execução havia ultrapassado as fronteiras espanholas. DUARTE, P. Prisão, exílio, luta. Rio de Janeiro: Editora Zélio Valverde, 1946, p.48 2 TOLEDO, J. Flávio de Carvalho: o comedor de emoções. São Paulo: Brasiliense; Campinas: Editora da UNICAMP, 1994. 651. 3 “Yo comienzo por proclamar y predicar que este es el primer monumento a su memoria. [...] El monumento de Flávio de Carvalho, bello misterioso y transparente es n acontecimiento en nuestras vidas. Esperamos, sin embargo, el mejor monumento a la gloria de Federico García Lorca: la liberación de España”. NERUDA, P. apud TOLEDO, J. op. cit., p. 651-652. 4 Renata Pallotini, Cacilda Becker (1921-1969), Sandro Polloni (1921-1995), Maria Della Costa, José Geraldo Vieira (1897-1977), Maria Bonomi, Décio de Almeida Prado (1917-2000), Murilo Antunes Alves (1919-2010), Esmeraldo Tarqüínio (1927-1982), Ignácio de Loyola Brandão, João Carlos Meireles, Lygia Fagundes Telles, Maria de Lourdes Teixeira. TOLEDO, J. op. cit., p. 649. 10 Próximo de completar setenta anos, Paulo Duarte continuava tecendo uma impressionante rede de sociabilidade intelectual, iniciada nos anos 20 do século XX, quando abandonou o sonho de estudar medicina e ingressou no jornalismo, menos por vocação do que pela necessidade de auxiliar sua família, à época em constantes dificuldades financeiras. Posteriormente, o jornalismo abriu-lhe as portas tanto para a elaboração de projetos culturais quanto para as lutas políticas que lhe valeram um mandato de Deputado Estadual pelo Partido Constitucionalista (1935-1938) e dois períodos de exílio (de novembro de 1932 a setembro de 1933 e de novembro de 1938 a outubro de 1945). Paulo Duarte iniciou sua carreira, em 1919, no Jornal do Comércio, edição de São Paulo, onde permaneceu durante alguns meses até conseguir ser admitido n’O Estado de S. Paulo, um dos mais importantes periódicos brasileiros do início do século passado. N’O Estado, ganhou a confiança do respeitado jornalista Júlio de Mesquita (1862-1927), seu proprietário.5 Tornou-se repórter político e galgou postos na hierarquia do jornal até que, em 1929, com a anuência de seus patrões, foi trabalhar no Diário Nacional, órgão oficial do Partido Democrático (PD). Pela própria natureza da função de repórter político, Paulo Duarte voltou-se às atividades políticas e participou, em diferentes circunstâncias, das revoluções de 1924, 1930 e 1932. Na década de 1930, logo após regressar do primeiro exílio, tornoi-se assessor jurídico de Fábio Prado (1887-1963), em sua gestão na Prefeitura de São Paulo, entre setembro de 1934 e janeiro de 1938, ocasião em que integrou o grupo de idealizadores do Departamento de Cultura de São Paulo, uma das realizações de que mais se orgulhava e à qual dedicou especial atenção em suas Memórias. Em 1938, um ano após a instituição do Estado Novo foi novamente enviado ao exílio, onde permaneceu até outubro de 1945. Ao retornar ao país voltou a trabalhar n’O Estado. Em 1950 desligou-se do jornal no mesmo período em que passou a editar e dirigir a revista cultural Anhembi, projeto que contribuiu para ampliar a rede intelectual que teceu de modo incessante. Se fosse possível caracterizá-lo em uma palavra, talvez lhe assentasse bem o epíteto “Paulo Duarte, o humanista”, pois era um homem voltado às relações humanas. Não foi por acaso que o escritor gaúcho Érico Veríssimo (1905-1975), autor do prefácio de suas 5 Exemplo dessa fidelidade pode ser percebido já em 1927. Júlio de Mesquita apoiou a criação do Partido Democrático (PD), mas não permitiu que seu jornal se transformasse em porta-voz oficial da nova agremiação. Necessitando de um periódico que expressasse as idéias do partido, os democráticos lançaram significativamente a 14 de julho o Diário Nacional, que congregou em sua redação, jovens intelectuais entusiasmados com a quebra do mono-partidarismo em São Paulo. Entre eles estavam Sérgio Milliet, Mário de Andrade e Paulo Duarte que se transferiu para a redação do Diário Nacional, onde chegou a ser redator-chefe sob as bênçãos dos proprietários d’O Estado. 11 Memórias, enxergou nele “uma figura cuja composição no plano novelesco exigiria a combinação dos talentos inventivos de Balzac, Conrad, Dumas, Kafka, Pirandello e sem dúvida, Cervantes...” 6 Poucos intelectuais brasileiros tiveram uma vida tão atribulada politicamente e com inserções tão significativas no campo cultural quanto ele. Enquanto a saúde não o abandonou, manteve-se intelectualmente ativo e pronto a aceitar novos desafios, mesmo simbólicos, como o daquela madrugada de setembro de 1968 7, em que as palavras de Neruda expressando o desejo da libertação da Espanha das forças fascistas, sintetizavam o sentimento dos que o escutavam, identificando-os na luta comum contra a opressão política em seus países. A polêmica escultura de Flávio de Carvalho provocou a ira de setores conservadores da sociedade paulista e menos de um ano depois, na madrugada de 29 de julho de 1969 foi destruída pelo temido Comando de Caça aos Comunistas (CCC). Indignado com aquele ato de barbárie, Paulo Duarte fez publicar um folheto em que, juntamente com outros intelectuais, manifestava seu repúdio contra mais um ato de violência contra a cultura, tão em voga naquele período final da década de 1960.8 Sua presença na homenagem a García Lorca talvez tenha causado estranhamento entre os que o identificavam com a ideologia liberal, em função de sua estreita ligação com o grupo de intelectuais que gravitavam em torno do jornal O Estado de S. Paulo9, com o qual manteve laços afetivos, mesmo após desligar-se da redação.10 Conta seu amigo Hélio Bicudo que, muitos anos depois de ter se afastado oficialmente d’O Estado, quando Paulo adoeceu e não pode mais trabalhar, ele decidiu informar um dos administradores do jornal sobre as precárias condições financeiras de Paulo Duarte e foi prontamente atendido. Segundo Hélio: 6 VERISSIMO, E. [Paulo Duarte] In DUARTE, P Raízes profundas. São Paulo: HUCITEC, 1975, p. V. 7 A inauguração oficial do monumento ocorreu em 01 de outubro de 1968, com discurso de Paulo Duarte. Na madrugada de 29 de julho de 1969 o monumento foi destruído pelo Comando de Caça aos Comunistas (CCC). O atentado foi repudiado pelos intelectuais da época. Paulo Duarte, presidente da Comissão de realização do monumento publicou um protesto. TOLEDO, J. op. cit., p. 652/3; MORAES, M. C. V., CAMPOS NETO, J. V. Monumento a Federico García Lorca: uma história parada no ar. Anuario Brasileño de Estudios Hispánicos, 6 (1996), 225-234. 8 Idem, p. 232. 9 Sobre a formação de grupos intelectuais, afirma Jean-François Sirinelli que, “todo grupo de intelectuais organiza-se também em torno de uma sensibilidade ideológica ou cultural comum e de afinidades mais difusas, mas igualmente determinantes, que fundam uma vontade e um gosto de conviver. São estruturas de sociabilidade difíceis de apreender, mas que o historiador não pode subestimar”. SIRINELLI, J. F. Os intelectuais – In RÉMOND, R.(org.) Por uma História Política. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ/ FGV, 1996, p. 245. 10 Como destaca Wilson Martins (1921-2010), em resposta a questionário de Marli G. Hayashi, a família Mesquita foi uma das obsessões de Paulo Duarte. HAYASHI, M. G. Paulo Duarte um Dom Quixote brasileiro. Tese de Doutorado. São Paulo: FFLCH-USP, 2001, p. 7. As íntimas relações que manteve com os proprietários d’O Estado de S. Paulo foram fundamentais tanto para a concretização de seus projetos intelectuais, cuja divulgação deu-se pela editora d’O Estado, pela qual publicou seus primeiros livros e pelas páginas do jornal, quase sempre à sua disposição como nas campanhas em prol da preservação da memória arquitetônica paulista, em 1938 quando publicou Contra o vandalismo e o extermínio. 12 [...] Depois que Juanita faleceu, Paulo, sofrendo do mal de Parkinson, não tinha condições financeiras para se manter. Sem poder trabalhar e recebendo uma quantia irrisória por sua aposentadoria na USP, não estava suportando os encargos de uma vida digna. Levei o fato a José Homem de Montes, que atuava na administração do Estado de S. Paulo. Montes e Paulo haviam polemizado muito, trocando até mesmo insultos. Como Paulo havia sido redator chefe do Estadão, expliquei a Montes a situação: ele precisava de um enfermeiro, de uma empregada doméstica e de remédios. Montes não hesitou e concedeu a Paulo todos os meios, do quais ele, ignorando quem era seu benfeitor, desfrutou até sua morte. São atitudes como a de Montes que dignificam o ser humano, e faço questão de registrá-la. Logo depois, em 1984, Paulo morreu. 11 Mas, conforme lembra Cláudio Abramo, Paulo Duarte era um homem contraditório12, “ferozmente antifascista, era igualmente fero adversário dos comunistas, aos quais, entretanto, reconhecia o direito de trabalhar e de fazer política” 13, posição que o levou a colecionar desafetos tanto à direita e quanto à esquerda, num século caracterizado pelo constante alinhamento ideológico dos intelectuais. A relação de amizade com o jurista Hélio Bicudo é exemplar para a compreensão dos princípios que regiam a conduta intelectual de Paulo Duarte, para quem o homem e a amizade que este lhe devotava eram mais importantes do que as opções políticas ou ideológicas que viessem a expressar. Um de seus melhores amigos nos últimos anos de vida foi o jurista Hélio Bicudo, um homem que apesar de ter uma formação liberal, assim como Paulo Duarte, tinha concepções políticas mais à esquerda no espectro ideológico, tanto que em 1980, ao lado de Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) e Florestan Fernandes (1920-1995), ambos igualmente amigos de Paulo Duarte, foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT), fato que não o afastou da convivência com o casal Duarte. Cabe ressaltar que, embora se considerasse socialista, Paulo Duarte não era um homem ligado a partidos políticos e jamais se aproximou formalmente da esquerda brasileira.14 11 BICUDO, H. Minhas memórias, São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 59 a 62. 12 Para Marli Hayashi, “o posicionamento de Paulo Duarte perante o golpe de 1964 precisa ser analisado com cuidado” [...]. O jornalista dizia, em relação ao golpe, que ao mesmo tempo em que confiou um pouco, desconfiou muito. Isso porque havia os homens sérios, mas havia os desonestos. E alguns homens de bem com respeitável passado de lutas pela liberdade de pensamento e dignidade humana tornaram-se inquisidores com ódio e raivosidade contra intelectuais livres, estudantes e professores. Ele não negava participação na conspiração, quando teria atuado como representante do jornal O Estado de S. Paulo ao lado de Fausto Figueiredo de Melo”. HAYASHI, M. G. op. cit., 2001, p.136/7. 13 ABRAMO, C. A regra do jogo: o jornalismo e a ética do marceneiro. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p.73 14 “[...] cheguei a pensar em inscrever-me no Partido Comunista e não o fiz devido a cautelas que sempre tive em aderir a agrupamentos quaisquer sem amadurecer bem a idéia. O próprio Partido Democrático, apesar do entusiasmo de Alcir Porchat, teve negada a minha participação na sua fundação, porque não acreditava muito na 13 No plano religioso as diferenças se mantinham, pois Hélio Bicudo é um homem profundamente ligado ao catolicismo, enquanto Paulo Duarte fazia questão de se apresentar como agnóstico. 15 Entretanto, estas concepções foram insuficientes para abalar a amizade construída ao longo de mais de trinta anos de convivência desde que Paulo o convidou para escrever artigos sobre Direito e Justiça para Anhembi. Segundo Hélio, Paulo Duarte foi um dos homens mais combativos com quem conviveu.16 Como era comum aos homens de sua geração, Paulo Duarte embrenhou-se em distintos campos das Ciências Humanas sem especializar-se em nenhum deles. Foi jornalista, advogado, tradutor 17, editor, professor universitário e, em seus últimos anos de vida, reconhecido também como memorialista e enólogo. Após idealizar vários projetos culturais, alguns malogrados, como o Instituto de Criminologia, ou bruscamente interrompidos, como o Departamento de Cultura, recolheu-se a seu apartamento e ancorado em seu arquivo, dedicou-se a seu último e mais coeso projeto, a escrita de suas Memórias, objeto e fonte principal deste estudo. A coleção dos nove volumes de Memórias, publicados entre 1974 e 1979, acrescida, em 1980, da reedição de O espírito das catedrais, cujo lançamento original era de 1958 e que foi incorporado às Memórias como seu volume X, constitui um significativo corpus documental, com mais de três mil páginas que ao longo das últimas décadas têm servido de fonte a pesquisadores interessados em temas políticos e culturais, com particular destaque para a história do Departamento de Cultura de São Paulo. Contudo, as Memórias, no seu conjunto ainda não foram objeto de nenhum estudo específico. O objetivo principal deste trabalho é propor uma leitura dessa narrativa como fonte da história. Por tratar-se de uma fonte com forte teor subjetivo, há historiadores que evitam utilizá-la e quando o fazem entendem ser necessário expressar uma dose adicional de cuidado, nem sempre explicitada em relação a outras fontes históricas. Cabe destacar que as narrativas memorialísticas de intelectuais abrem interessantes perspectivas para o trabalho do historiador sinceridade dos homens ricos ou conservadores de mais que o fundaram, a começar pelo conselheiro Antônio Prado.” DUARTE, P. Memórias...vol. III, p. 60. 15 “Mas os incréus, os céticos e os agnósticos como eu são obrigados a concluir que o Vinho é Deus mesmo.” DUARTE, P. Memórias...vol. I, p. 39. 16 BICUDO, H. op cit., 2006, p. 60. 17 Paulo Duarte traduziu uma coletânea de versos do poeta italiano Cesare Pascarella (1858-1940) sob pseudônimo Trilussa. Versos de Trilussa teve sua primeira edição publicada pela editora d’O Estado de S. Paulo, em 1928. Em 1954 saiu a segunda edição pela Anhambi e a terceira edição em 1973, pela editora Marcus Pereira. Segundo Antonio Candido, “Trilussa era um poeta do passado na tradição satírica, métrica e lingüística [...] também foi central na ideologia modernista: o sarcasmo demolidor que limpa o caminho”. CANDIDO, A. [...]. CANDIDO, A. [Prefácio] In DUARTE, P. Mário de Andrade por ele mesmo. São Paulo: HUCITEC; SCCT- SP, 1985, p.XVI. 14 ao lançar luz sobre a tênue fronteira entre o público e o privado, uma vez que trazem à tona redes de sociabilidades subterrâneas que documentos oficiais nem sempre conseguem alcançar. O projeto original de Paulo Duarte consistia em escrever XV tomos, dos quais, no entanto, apenas IX foram concluídos e publicados. Esses volumes possuem uma estrutura uniforme com quatro capítulos, exceto o volume VIII que possui apenas três. Da mesma forma, os três capítulos iniciais constituem um bloco único e o último capítulo de cada volume narra acontecimentos de um tempo anterior, exceto o volume I em que o primeiro capítulo, “Razões de defesa por ter vivido...,” é uma espécie de prólogo a todo o projeto. Ao longo de sua epopéia narrativa, Paulo Duarte trata de uma impressionante galeria de personagens que congrega, além de familiares, destacados intelectuais e políticos brasileiros até pessoas comuns que, em alguma medida, tiveram significado em sua vida. O marco cronológico da narrativa cobre significativo período de sua vida. No entanto, há a predominância do tempo que se inicia em sua infância e segue até 1923, incluindo um momento pretérito, comum ao gênero memorialístico, em que trata de seus ancestrais. Os chamados escritos revolucionários, compostos pela trilogia Agora nós!, Que é que há? e Palmares pelo avesso cobrem parte do hiato de sua narrativa memorialística (1923-1932), que recomeça a partir de 1932 e segue até 1940. O primeiro volume intitulado Raízes profundas foi publicado em 1974. No ano seguinte publicou A inteligência da fome. A boa receptividade dos dois primeiros tomos junto à crítica e à intelectualidade animou-o a dar continuidade à empreitada. O terceiro e o quarto volumes, Selva oscura e Os mortos de Seabrook, foram publicados em 1976. No ano seguinte saíram o quinto e o sexto volumes, Apagada e vil mediocridade e Ofício das trevas. O sétimo, Miséria universal, miséria nacional e minha própria miséria e o oitavo, Vou-me embora pra Pasárgada..., vieram à luz em 1978. O último volume, o nono da coleção, E vai começar uma nova era, apareceu em 1979, pouco antes de Paulo Duarte adoecer. Em 1980, foi reeditado O espírito das catedrais, originalmente publicado em 1958 e integrado à coleção memorialística do intelectual como seu décimo volume. As Memórias de Paulo Duarte narram uma trajetória política e cultural bastante peculiar. No campo político, apresenta um perfil progressista, pois ele esteve entre os jovens que apoiaram, em 1926, a criação do Partido Democrático (PD), partido de feição liberal que tinha como uma de suas principais bandeiras de luta a moralização dos costumes políticos subvertidos pelos quase quarenta anos de hegemonia do Partido Republicano Paulista (PRP) no Estado. 15 Sob o ponto de vista cultural, Paulo Duarte foi um jovem conservador que teve como seu principal mentor, na década de 1920, o jornalista e poeta Amadeu Amaral (1875-1929), excluído do cânone literário e considerado um epígono neoparnasiano18. Embora o tivesse alertado para a importância do movimento que se vislumbrava no horizonte cultural brasileiro, Amaral não se identificava com a estética literária preconizada ao tempo da Semana de Arte Moderna de 1922. Paulo Duarte também não participou e tampouco foi simpático ao movimento. A leitura de suas Memórias evidencia admiração pelos poetas parnasianos, sobretudo Olavo Bilac (1865-1918) e Alberto de Oliveira (1857-1937), com quem chegou a se encontrar em São Paulo, em 1926 e pela literatura portuguesa desde Camões até os nomes mais consagrados do realismo. Pelas leituras que fazia não surpreende que fosse, assim como seu mestre Amadeu Amaral, um defensor do uso tradicional da língua portuguesa. Seu percurso político e cultural contrasta com o de alguns celebrados modernistas, como Menotti Del Picchia (1892-1988) e Cassiano Ricardo (1895-1974), intelectuais literariamente abertos à revolução estética, mas politicamente conservadores. Derrotados em 1930, esses homens trilharam um caminho contrário ao de Paulo Duarte. Se em 1930 eram os perdedores enquanto Paulo Duarte apoiou a Revolução que levou Getúlio Vargas ao poder, no decorrer da década de 1930, enquanto Paulo passava a criticar o novo governo, eles aderiram a Vargas e reconstruírem sua vida pública à sombra do novo regime, sobretudo após o Estado Novo. Convém não esquecer que ambos trabalharam para que Getúlio Vargas fosse eleito para a Academia Brasileira de Letras em 1941.19 A postura literária conservadora de Paulo Duarte, não foi obstáculo, ao tempo da fundação do PD, para que se aproximasse de modernistas, como Mário de Andrade (1893- 1945), Sérgio Milliet (1898-1966), Rubens Borba de Morais (1899-1986) Alcântara Machado (1901-1935). Tais laços de amizade alertam contra o estabelecimento de correspondências diretas e simplistas entre cultura e política e convidam a explorar as relações humanas, frutos de afetos e desafetos que resistem às racionalizações das narrativas históricas. O elo entre Paulo e os modernistas foi Carlos de Morais Andrade (1889-1971) 20, irmão de Mário, um personagem praticamente esquecido pela história, ao lado de quem Paulo esteve 18 BOSI, A. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1979, p. 247. 19 Getúlio Vargas foi eleito em 07 de agosto de 1941 para a cadeira número 37 na vaga de Alcântara Machado (1875-1941). Tomou posso em 29 de dezembro de 1943 sendo recebido pelo ministro Ataulfo de Paiva (1867- 1955). http://www2.academia.org.br/ Acessado em 21/08/2010. 20 Carlos de Moraes Andrade nasceu na Capital Paulista em 9 de novembro de 1889. Foi professor de Filosofia do Ginásio Oswaldo Cruz, do Curso Superior da Escola de Comércio Álvares Penteado e da Faculdade Paulista de Letras e Filosofia. Em 1930, com a vitória da Revolução da Aliança Liberal, foi delegado da Ordem Política de São Paulo. Membro da Assembléia Constituinte de 1934, foi eleito deputado federal por São Paulo de 1935 a 1937. Foi em 1945, um dos fundadores da União Democrática Nacional, Seção de São Paulo, e da Associação 16 preso nos tempos da militância democrática. O fato de Paulo Duarte afirmar não se lembrar de quando conheceu Mário de Andrade leva a crer que a amizade começou de viés, ou seja, através dos vínculos do jornalista com o irmão do escritor, consolidando-se provavelmente na redação do Diário Nacional, onde Paulo trabalhou como redator e os modernistas passaram a escrever quando o periódico dos democráticos passou a ocupar lugar de destaque na imprensa paulista como um novo e destacado veículo de comunicação. Juntos, Paulo Duarte e os modernistas viveram a crise política do final da década de 1920 e sonharam novos tempos em meio à agonia da República Velha e, segundo Antônio Cândido, eles formaram, dentro ou na periferia do Partido Democrático, uma espécie de esquerda moderada, que se manifestou sobretudo como arrojada vanguarda cultural. Enquanto no campo político seguiam apenas mais ou menos, ou de todo não seguiam as normas do Partido Democrático e suas encarnações posteriores, no campo cultural manifestavam atitude mais avançadas, que depois, quando a gente do partido chegou ao poder sob outros rótulos, resultariam na política de democratização (...).21 Em O espírito das catedrais, Paulo Duarte confessou não ter “a mania de fazer, mas a de saber, conhecer tudo, sem, entretanto, especializar-se em coisa alguma”. Via-se como “um cigano espiritual [que] gostava de viajar por todos os continentes do saber, sem sedentarizar- se num só ponto. Nômade intelectual, acabou jornalista...” 22 A leitura de suas Memórias, no entanto, parecem contradizê-lo, pois, ao contrário do que afirmava, sua narrativa atesta que o jornalismo abriu-lhe as portas para que pudesse “viajar por todos os continentes do saber” e o inseriu na vida intelectual paulista e brasileira. Além da produção de textos escritos especificamente para o jornal, publicou mais de trinta obras 23, entre livros e opúsculos que podem ser arbitrariamente catalogadas em quatro vertentes distintas: textos referentes às campanhas nas quais esteve envolvido, publicadas no calor dos acontecimentos; crônicas sobre sua participação nos conflitos armados de 1924, 1930 e 1932, os quais, apesar das diferenças narrativas, formam uma trilogia das revoluções que permitem estudar sua atuação nesses conflitos; um terceiro grupo formado pelos esboços biográficos sobre intelectuais que tiveram relevância em sua vida, todos com referências à sua própria vida pública, e o conjunto dos dez volumes que constituem suas Memórias. dos Cavaleiros de São Paulo. Faleceu em São Paulo em 9 de janeiro de 1971.http://www.dicionarioderuas.com.br/LOGRA.PHP?TxtNome=RUA%20DOUTOR%20CARLOS%20DE% 20MORAIS%20ANDRADE&dist=87&txtusuario=&%20TxtQuery=1 Acessado em 20/08/2010. 21 CANDIDO, A. op. cit, 1985, p. XVI. 22 DUARTE, P.. Memórias... vol X, p. 55. 23 Segundo Sirinelli as “estruturas de sociabilidade difíceis de apreender” passam necessariamente pela pesquisa e pela “exegese de textos, e particularmente textos impressos, primeiro suporte dos fatos de opinião, em cuja gênese, circulação e transmissão os intelectuais desempenham papel decisivo; e sua história social exige a análise sistemática de elementos dispersos com finalidade prosopográficas. SIRINELLI, J. F. op. cit., p. 245. 17 Porém, antes de entrar no conteúdo dessa vasta produção, em especial nas obras que podem ser incluídas no chamado gênero memorialístico, sem dúvida de difícil classificação e sobre o qual há certa divergência entre os especialistas que se dedicam ao tema, é necessário fazer uma breve incursão a tais considerações teóricas, tanto no âmbito das Letras, quanto no âmbito da própria História. Para Jean-Philippe Miraux24, por exemplo, as memórias fariam parte de um gênero mais abrangente que Georges Gusdorf denomina as escritas do eu, composto também pela autobiografia, reminiscências, anti-memórias e diários íntimos. Segundo Miraux, [...] em sua forma estrita, [as memórias] devem ser escritas por alguém que desempenhou um papel importante na História, alguém que foi testemunha de acontecimentos históricos notáveis, que freqüentou e observou aos grandes deste mundo, aqueles que em maior ou menor medida influenciaram na vida de uma nação, nas decisões de um Estado, no espírito de um povo. Nas memórias, salvo célebres exceções a escrita não se centra na história pessoal do escritor, e o narrador apresenta-se mais como um relator, como um cronista e não como personagem central25. A definição de Miraux, no entanto, coloca questões, sobretudo para o campo da História. Como definir um “papel importante na História”? E se, nas memórias, a escrita centra-se na História pessoal do escritor? Nesse caso a narrativa que Paulo Duarte intitulou “memórias” não seria digna de tal nomenclatura? Os estudiosos da Literatura não apresentam uma distinção clara entre memória e autobiografia. Para Gusdorf, por exemplo, mais importante do que definir um gênero narrativo é tentar elucidar a significação e a intenção de uma obra e não rotulá-la arbitrariamente para inseri-la numa determinada convenção.26 Entretanto, outros críticos, como Luiz Costa Lima, independente da classificação que se dê ao gênero memorialístico, entendem que tais textos não serviriam como documento histórico por sua alta dose de teor subjetivo: A autobiografia não pode ser tomada como documento histórico, pois é o testemunho do modo como alguém se via a si mesmo, de como formulava a crença de que era o outro que atendia pelo nome do eu, um outro sem dúvida aparentado ao eu que agora escreve, com reações semelhantes e uma história idêntica, mas sempre uma outra, a viver sob a ilusão da unidade. 27 24 MIRAUX, J. P. La autobiografía – Las escritas del yo. Buenos Aires: Nueva Visión, 2005, p.17 25 Idem. Traduções nossa. 26 GUSDORF, G. Apud HERVOT, B. & SAVIETTO, M. do C. A escrita autobiográfica In CARLOS A. M & ESTEVES, A. R.[Orgs.] Narrativas do eu – a memória através da escrita. Assis: FCL/UNESP Publicações; Bauru: Canal6, 2009, p. 17. 27 LIMA, L. C. Sociedade e discurso ficcional. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1984. Apud HERVOT, B. & SAVIETTO, M. do C. A escrita autobiográfica In CARLOS A. M & ESTEVES, A. R.[Orgs.] Narrativas do eu – a memória através da escrita. Assis: FCL/UNESP Publicações; Bauru: Canal6, 2009, p. 34. 18 Em tempos de guinada subjetiva no campo das Ciências Humanas, conforme expressão de Beatriz Sarlo, caracterizada pelo retorno do interesse pelos percursos individuais 28, obstáculos como os colocados por Costa Lima parecem inócuos e os historiadores não têm como ignorar a grande quantidade de publicações que podem ser identificadas como escritas do eu. Esta mudança de paradigma parece ter ocorrido tanto pelo vigor apresentado pela historiografia do presente, que tem entre suas principais fontes a captação de depoimentos orais, quanto pelo fortalecimento da História do Cotidiano, que contribuiu igualmente para que a memória individual ganhasse relevo como fecunda fonte da História. Sarlo lembra que: [...] as “histórias da vida cotidiana”, produzidas, em geral, de modo coletivo e monográfico no espaço acadêmico, às vezes tem um público que está além desse âmbito, justamente pelo interesse “romanesco” de seus objetos. O passado volta como quadro de costumes em que se valorizam os detalhes, as originalidades, a exceção à regra, as curiosidades que já não se encontram no presente. [...] Esses sujeitos marginais, que teriam sido relativamente ignorados em outros modos de narração do passado, demandam novas exigências de método e tendem à escuta sistemática dos “discursos de memória”: diários, cartas, conselhos, orações.29 Estudada pela Filosofia, Sociologia, Antropologia e Psicologia há quase um século, foi somente com o advento da chamada Nova História que os estudos sobre a memória entraram na oficina do historiador. Nas palavras de Beatriz Sarlo, as relações entre História e memória são de desconfiança, “porque nem sempre a história consegue acreditar na memória e a memória desconfia de uma reconstituição que não coloque em seu centro os direitos da lembrança (direitos de vida, de justiça, de subjetividade).” 30 Parece não haver dúvidas, entretanto, de que a historiografia, ao apropriar-se da memória como mais uma de suas fontes, a apreendeu primordialmente em sua dimensão social, portanto, coletiva. Como ressalta André Burguière, no período em que este processo começou a se configurar, “a atenção prioritária dos historiadores a partir dos Annales [passou a ser] concedida aos grupos e não mais aos indivíduos, às estruturas sócio-econômicas e não 28 Segundo Sarlo: “Há décadas o olhar de muitos historiadores e cientistas sociais inspirados no etnográfico deslocou-se para a bruxaria, a loucura, a festa, a literatura popular, o campesinato, as estratégias de cotidiano, buscando o detalhe excepcional, o vestígio daquilo que se opõe à normalização e as subjetividades que se distinguem por uma anomalia (o louco, o criminoso, a iludida, a possessa, a bruxa) porque representam uma refutação às imposições do poder material ou simbólico. Mas também se acentuou o interesse pelos sujeitos “normais”, quando se reconheceu que eles não só seguiam itinerários sociais traçados, como protagonizavam negociações, transgressões e variantes”. SARLO, B. Tempo passado – cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Cia das Letras; Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007, p.15-16. 29 SARLO, B. op. cit., 2007, p. 17. 30 Idem, p.9. 19 mais aos acontecimentos [fato que] teve a vantagem de reconciliar os historiadores com as exigências científicas que as ciências sociais fizeram avançar. 31 Após a longa era das utopias coletivas, representada pela crítica literária estruturalista e pela leitura marxista da História, assiste-se ao crescente interesse pelo indivíduo, expresso no boom editorial de biografias e “discursos de memória”. Mas, por tratar-se de fonte até pouco tempo não mobilizada, parece haver uma vulnerabilidade teórica, um descompasso entre a prática e a teoria. Os manuais historiográficos não fazem referência à memória individual como conceito nem como fonte da História, ainda que não seja difícil perceber o uso dessa fonte em determinados campos da historiografia. 32 O Dicionário das Ciências Sociais, de André Burguière, por exemplo, inclui o verbete “Memória coletiva”, mas não faz alusão à “Memória individual”. Em História e Memória, Jacques Le Goff, ao tratar das relações entre história e memória coletiva, esclarece que o conceito de memória é crucial, pois entende que “a memória coletiva foi posta em jogo de forma importante na luta das forças sociais pelo poder” 33. Entretanto, seu texto, apenas incidentalmente, faz referências à memória individual. E quando Pierre Nora fala em lugares de memória ou quando, na expressão de Arno Mayer, vive-se “um frenesi de memória” 34, é na questão da memória coletiva que esses historiadores centram sua atenção e não na memória individual. Esta situação tem suscitado interessantes discussões sobre a questão. Um exemplo significativo pode ser encontrado em textos como o de Jacy Alves de Seixas, cujo propósito é discutir a questão da memória no âmbito dos estudos históricos. Para a historiadora, trata-se de um [...] fenômeno novo e salutar que está na raiz de importantes movimentos identitários (sociais e/ou políticos) e de afirmação de novas subjetividades, de novas cidadanias [...] Responsável, por um debate que teve como desdobramento o aparecimento de novas noções como as de “memórias subterrâneas”, “lembranças dissidentes”, “lembranças proibidas”, “memórias enquadradas”, “memórias silenciadas, mas não esquecidas” e outras que buscam dar conta da complexidade do fenômeno contemporâneo da memória [...] 35 31 BURGUIÈRE, A. (org.). Dicionário de ciências históricas. Rio de Janeiro: Imago, 1993, p. 52. 32 Exemplo dessa afirmação é O mestre dos livros: Rubens Borba de Morais, em que a autora trabalhou fundamentalmente com o texto memorialístico inédito de Rubens Borba de Morais. Cf. BANDEIRA, S. P. O mestre dos livros: Rubens Borba de Morais. Brasília: Briquet de Lemos/Livros, 2007. 33 LE GOFF, J. História e memória. Campinas: Ed. da UNICAMP, 2003 p.422 34MAYER apud SEIXAS, J. A. de. Percursos de memória em terras de história: problemas atuais In BRESCIANI, S & NAXARA, M. Memória e (res)sentimento. Campinas: Editora da UNICAMP, 2004, p.43 35 SEIXAS, J. A. Percursos de memória em terras de história: problemas atuais In BRESCIANI, S & NAXARA, M. Memória e (res)sentimento. Campinas: Editora da UNICAMP, 2004, p. 43. 20 Segundo Alves de Seixas, as dificuldades atuais na relação história-memória residiriam no fato de que a oposição que se construiu entre elas ocorreu sem rupturas com a tradição aristotélica que apreendeu a memória em sua função cognitiva, ou seja, apenas como conhecimento do passado, em detrimento da memória-ação e da memória-afetiva que comporiam a tri-funcionalidade da memória 36. Tal concepção parcial do conceito é que teria tornado problemática sua historicização, pois neste “movimento inexorável e sem volta [em que] toda memória hoje em dia é uma memória exilada, que busca refúgio na história, restando-lhe, assim, os lugares de memória (de uma memória que vive sob ‘o olhar de uma história reconstituída’) como seu grande testemunho” 37, a História teria deixado de lado a memória-ação e a memória-afetiva.38 No âmbito da Literatura, Marcel Proust (1871-1922), autor de Em busca do tempo perdido, um dos mais festejados clássicos da literatura mundial, mostrou-se mestre em trabalhar com os fios da memória involuntária, percebendo por outro ângulo a questão da memória. Para Proust, a memória voluntária, a outra face da mesma moeda, seria, “[...], sobretudo, uma memória da inteligência e dos olhos [que] nos dá do passado apenas faces sem verdade ” 39. Seguindo o pensamento de Proust, Jacy Alves de Seixas explica que essa memória voluntária é uma memória uniforme e em grande medida enganadora, pois opera com imagens que, apesar de representarem a vida, não “guardam nada dela”. Assim, ao apreender a memória como fonte, a historiografia a teria apreendido como memória voluntária, excluindo de seu campo a memória involuntária, esta sim carregada de afetividade. Isto teria ocorrido porque a própria historiografia, no decorrer do século XIX, ao procurar constituir-se como ciência, o fez importando o modelo das Ciências Naturais, estratégia que demandava fontes objetivas que a auxiliassem na produção de uma narrativa de cunho realista, pretensamente isenta de subjetividade, na intenção de evitar ou ao menos afastá-la do que P. Tétart chama de as indeterminações da história. 40 Cabe indagar se seria possível, 36 Idem, p. 39. 37 Idem, p. 41. 38Jacques Le Goff lembra que Mnemosyne, a titânide, que personifica a memória é mãe das musas, entre as quais Clio, a musa da história. Em seu verbete “Memória”, da Enciclopédia Einaudi propõe uma relação dialética e generativa entre memória e história: “a memória, onde cresce a história, que por sua vez a alimenta”. LE GOFF, J apud NEVES, M. de S. Nos compassos do tempo. A história e a cultura da memória in SOIHET, R.[et. al.] Mitos, projetos e práticas políticas: memória e historiografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 26. 39 PROUST apud SEIXAS, J. A. op. cit., 2004, p. 46. 40 Questões para a história do presente. CHAUVEAU, A & TÉTARD, P [Orgs.] Bauru: EDUSC, 1999, p. 100. 21 efetivamente, separar a memória voluntária da involuntária no instante de materializá-la em texto, uma vez que o produto final é a narrativa e esta só se configurará como construção. Para os historiadores que utilizam a memória como fonte da história, uma nova perspectiva teórica abriu-se com A memória, a história e o esquecimento, de Paul Ricoeur,41 obra na qual o pensador francês propõe um novo olhar, positivo, sobre o problema das relações entre a memória e História. Segundo Ricoeur: [...] apesar das armadilhas que o imaginário arma para a memória, pode-se afirmar que uma busca específica da verdade está implícita no olhar sobre a coisa passada [...] Essa busca da verdade especifica a memória como grandeza cognitiva. Mais precisamente, é no momento do reconhecimento, no qual se conclui o esforço da lembrança, que essa busca da verdade se declara. Sentimos e sabemos então que algo se passou, que algo aconteceu, que nos implicou como agentes, como pacientes como testemunhas.42. Em sua defesa em favor da memória, o pensador francês lembra que apesar das críticas endereçadas à memória pelo alto teor de subjetividade, ela é o único caminho possível entre o presente e o passado e, se a memória é acusada de ser pouco confiável, isso ocorre por que [...] ela é o nosso único recurso para significar o caráter passado daquilo de que declaramos nos lembrar. [...] Para falar sem rodeio, não temos nada melhor que a memória para significar que algo aconteceu, ocorreu, se passou antes que declarássemos nos lembrar dela.43 Ricoeur também tece considerações sobre o conceito de memória coletiva, elaborado por Maurice Halbwachs (1877-1945), e que foi retomado por historiadores de distintos matizes. O pensador francês indaga-se se não haveria “um plano intermediário de referência no qual se operam concretamente as trocas entre a memória viva das pessoas individuais e a memória pública das comunidades às quais pertencemos”.44 A resposta evidencia a novidade de seu pensamento: esse plano seria o da relação com os próximos, a quem temos o direito de atribuir uma memória de um tipo distinto. Os próximos são as pessoas que contam para nós e para as quais significamos, são pessoas situadas numa faixa de variação das distâncias na relação entre o si e os outros.45 E completa: Variação de distância, mas também variação nas modalidades ativas e passivas dos jogos de distanciamento e de aproximação que fazem da proximidade uma relação dinâmica constantemente em movimento: tornar-se próximo, sentir-se próximo. Assim, a proximidade seria a réplica da amizade, dessa philia celebrada pelos Antigos, a meio caminho entre o 41 RICOEUR, P. A memória, a história e o esquecimento. Campinas: Editora da UNICAMP, 2007. 42 RICOUER apud LORIGA, Memórias e narrativas (auto)biográficas. CASTRO GOMES, A & SCHMIDT B. B [Orgs]. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2009, p. 19 43 RICOEUR, op. cit., p. 40 44 Idem, p. 141 45 Ibidem. 22 indivíduo solitário e o cidadão definido pela sua contribuição à politéia, à vida e à ação das polis.46 Ricoeur levanta ainda outra questão. Ele se indaga em qual trajeto de atribuição da memória se situam esses próximos? Para ele, a ligação com os próximos “corta transversal e eletivamente tanto as relações de filiação e de conjugabilidade quanto as relações sociais dispersas, segundo as formas múltiplas de pertencimento ou as ordens respectivas de grandezas. 47 Nesse sentido, é possível pensar que os textos memorialísticos criam novas zonas de comunicabilidade entre grupos aparentemente desconexos ou ainda estabelecem zonas de interdependência entre o público e o privado. Ao pensar positivamente a memória individual, Paul Ricoeur está indiretamente propondo um novo olhar para o papel do memorialista. Ele não o percebe como um simples auxiliar do historiador, mas como um elo na cadeia entre o historiador fincado no presente e o passado que este busca reconstituir através de suas pesquisas. Parece evidente que o historiador possa e deva desconfiar da imparcialidade das narrativas memorialísticas, afinal todo memorialista confessa que vai contar uma verdade, verdade esta que materializa uma visão particular dos fatos, mas o historiador sabe que tal verdade é parcial e seu trabalho residiria em confrontá-la com os fatos que se cristalizam pela produção de outros documentos e pela própria memória dos demais personagens que participaram e narraram a sua verdade dos mesmos fatos. Ainda no âmbito escritural, Philippe Lejeune destaca que o fato de a identidade individual, na escrita como na vida, passar pela narrativa não significa de modo algum que ela seja uma ficção. Ao se colocar por escrito, o indivíduo apenas prolonga aquele trabalho de criação de “identidade coletiva” em que consiste qualquer vida. É claro que, ao tentar ver-se melhor, continua se criando, passando a limpo os rascunhos de sua identidade e nesse movimento vai provisoriamente estilizá-los ou simplificá-los. Mas esse indivíduo não brinca de se inventar. Ao seguir as vias da narrativa, ao contrário, ele é fiel à sua verdade: todos os homens que andam na rua são homens-narrativas; é por isso que conseguem parar em pé. Se a identidade é um discurso imaginário, a autobiografia que corresponde a esse imaginário está do lado da verdade. Não há nenhuma relação com o jogo deliberado da ficção. 48 Embora no prólogo de seu projeto denominado “Razões de defesa por ter vivido...”, Paulo Duarte deixe transparecer certa dose de mágoa em relação ao resultado de seus projetos, 46 Id. Ib.. 47 Id. Ib.. 48 LEJEUNE, P. O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Belo Horizonte: UFMG, 2008, p. 104. 23 não se pode negar que ele tenha sido generoso ao narrá-los. Ao fazê-lo, não omitiu deliberadamente os insucessos e as frustrações ao longo de sua atribulada vida e, talvez, sua maior contribuição resida justamente no fato de ter revelado, conscientemente ou não, ainda que com certa aura romântica, esses tropeços, além de apresentar uma fantástica galeria de personagens inseridos numa rede de sociabilidade tecida com os fios da fraternidade. A partir das palavras de Lejeune, pode-se afirmar que a narrativa memorialística de Paulo Duarte ganha relevo porque, num primeiro momento, o autor não tinha muito claro o projeto discursivo que pretendia desenvolver para construir a memória de sua vida articulada ao momento histórico que lhe tocou viver o que se comprova pelo fato de que em suas primeiras obras apresentou certa hesitação quanto à forma discursiva, não assumida como explicitamente memorialística, uma vez que misturou formas ficcionais, como o romance, o relato de viagem e a crônica jornalística. Nesse sentido é possível afirmar que sua escrita se constrói numa zona porosa frente aos gêneros discursivos tradicionais. Apenas décadas mais tarde, quando parece ter perdido a fantasia de se tornar um escritor, é que ele entregou-se à consolidação de um discurso memorialístico. A leitura de sua narrativa leva o leitor a percebê-lo no papel articulador cultural, decisão que aparentemente não foi consciente, mas que surge no transcorrer da leitura quando Paulo Duarte apresenta-se como elo entre homens públicos de reconhecido valor e de distintas áreas, como articulador entre pessoas de extratos sociais diferentes, aos quais devota a mesma atenção dispensada aos personagens consagrados pela historiografia. É essa rede de sociabilidade tecida em sua narrativa que torna os escritos de Paulo Duarte mais humanos, conforme suas próprias palavras atestam Natural que numa vida mais ou menos longa, tenha cometido injustiças, condição humana que não excetua ninguém. Mas todas as vezes em que me veio consciência disso procurei repará-las, pois a soberbia, ou o chamado respeito humano não me intimidam, nem está na ementa das numerosas fraquezas que o destino me preparou com o cuidado de grande cozinheiro. O falso orgulho da retratação jamais me deixou humilhado. Fui violento, muitas vezes implacável. Cheguei ao ponto de cometer a crueldade de, conscientemente, quase destruir dois sub-homens. Hoje não o faria depois de fanatizado pelo dogma da preservação da dignidade humana que, até num parricida, precisa de ser respeitado. Ninguém tem o direito de torturar ou executar o pior criminoso [...].49 Mas, se ele construiu relações tão impressionantes, pelo menos quantitativamente, por que seu nome não tem o mesmo status que o de outros intelectuais, cuja produção foi menos 49 DUARTE, P. Memórias... vol. I, p. 6. 24 significativa? Por que, conforme atestou Cláudio Abramo, quando Paulo faleceu, noventa por cento de seus colegas jornalistas não sabiam quem ele havia sido, sobretudo em seus últimos anos de vida, apesar da edição de Anhembi, por doze anos, e de ter criado o Instituto de Pré- História? 50 E seu nome só não foi completamente esquecido porque, ironicamente, em 1971, em meio às comemorações do cinqüentenário da Semana de Arte Moderna, Paulo Duarte decidiu publicar Mário de Andrade por ele mesmo, livro que obteve um razoável sucesso editorial, tanto que mereceu mais duas edições, em 1977, e 1985. Com esta publicação, ele conseguiu inserir seu nome no índex do processo de construção da História do Modernismo e em especial da memória de seu amigo Mário de Andrade (1893-1945), isso num momento em que reclamava amargar um relativo ostracismo, sobretudo após o fechamento de Anhembi, em 1962. Segundo o historiador Francisco Iglesias (1923-1999), haveria uma lei informal da sociologia literária, que sem dúvida poderia ser extensiva aos estudos históricos, segundo a qual os autores, e aqui, poder-se-ia acrescentar os intelectuais em geral, desaparecem da memória nos vinte anos imediatos à sua morte, pois a geração que testemunha seu fim logo o esquece para voltar à lembrança da geração seguinte.51 Ainda que se trate de uma ironia, o fato é que o caso de Paulo Duarte não foi exceção à regra. Morto em 23 de março de 1984, seu legado permaneceu esquecido por mais de quinze anos. Em 2001, passados dezesseis anos de sua morte, tornou-se objeto de estudos acadêmicos. O pioneirismo coube a Marli G. Hayashi com a tese Paulo Duarte, um Dom Quixote brasileiro. A autora centralizou seu estudo nas lutas políticas e culturais de Paulo Duarte nas décadas de 1950 e 1960, em especial na querela com o ex-governador Ademar de Barros (1901-1969), acusado por Paulo Duarte de malversação de dinheiro público. A série de artigos publicados contra Ademar de Barros pode ser considerada como ponto de inflexão em sua carreira jornalística, pela repercussão junto à opinião pública, que passou a identificá-lo como um jornalista engajado na luta contra a corrupção.52 Esse importante estudo também trata do delicado momento do fechamento da revista Anhembi, da criação do Instituto de Pré- História (IPH) e da luta de Paulo Duarte para que o IPH fosse encampado pela USP. O 50 ABRAMO, C. op. cit., 1988, p 73. 51 IGLESIAS, F. História & Literatura – Ensaios para uma história das idéias no Brasil. São Paulo: Perspectiva; Belo Horizonte: Cedeplar/ Face/UFMG, 2009, p. 303. 52 Série de 17 artigos publicados n’O Estado de S. Paulo entre 22 de junho e 17 de julho de 1954, nos quais Paulo Duarte questionava a origem da fortuna do ex-governador e o acusava de ter enriquecido à custa de caixinhas cobradas desde a época em que fora interventor. HAYASHI, M. G. op. cit., p. 34. 25 período escolhido por Hayashi não chegou a ser abordado pelo memorialista, que faleceu a meio caminho de completar seu projeto. Em 2007, Aureli Alves de Alcântara escreveu Paulo Duarte entre sítios e trincheiras em defesa da sua dama – a Pré-História, obra na qual investiga o desenvolvimento da Arqueologia, em São Paulo, a partir da trajetória de Paulo Duarte. Sua análise aponta a importância institucional para o adequado procedimento de pesquisa, salvaguarda e comunicação arqueológica, mediante o histórico das instituições com as quais Paulo Duarte esteve envolvido, como o Departamento de Cultura, a Comissão de Pré-História, o Instituto de Pré-História e Etnologia, o Instituto de Pré-História da USP, o Museu do Homem Americano e o Museu Paulista. 53 Um terceiro estudo foi concluído em 2009. Trata-se de Anhembi: adiante e ao revés. Paulo Duarte e a cristalização das forças do Modernismo, de George Luiz França. De acordo com o autor, seu estudo se preocupa menos com a recuperação monumental da revista como patrimônio histórico do modernismo do que com a problematização da formação de um cânone e da cristalização das forças do movimento modernista operada após a morte de Mário de Andrade por uma vertente que se reivindica sua herdeira.54 Ainda em 2009, Sherloma Starlet Fonseca escreveu Memórias de um constitucionalista – Paulo Duarte e a guerra civil de 1932 55, no qual estuda o registro da memória constitucionalista a partir do cotejo da crônica de guerra Palmares pelo avesso (1947), de Paulo Duarte, com as narrativas de Euclydes de Figueiredo (1883-1963) e do repórter Armando Brussolo (1908-1947). O estudo tem como propósito entender como se deu a configuração da memória da Revolução Constitucionalista, em São Paulo, e conclui que essa memória “conseguiu ocupar os locais de memória, sendo registrada após o fim do Estado Novo também na convenção de celebrações cívicas, de monumentos, do feriado estadual e dando nome a ruas. Um caso atípico na história em que as celebrações cívicas sacralizam discurso dos vencidos”.56 Os estudos citados refletem a versatilidade intelectual de Paulo Duarte. Cada um deles procurou desvendar uma de suas diferentes facetas. Em comum, revelam o caráter 53 ALCANTARA, A. A. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Arqueologia do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, 2007. 54 FRANÇA, G. L. Anhembi: adiante e ao revés: Paulo Duarte e a cristalização das forças do Modernismo. Florianópolis: Dissertação de Mestrado, Centro de Comunicação e Expressão/Universidade Federal de Santa Cataria, 2009. 55 FONSECA, S. S. Memórias de um constitucionalista . Goiânia: Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás, 2009. 56 Idem. 26 fragmentário de suas ações, fruto das paixões que o vitimaram no decorrer de uma vida repleta de significativos fatos sociais, culturais e políticos. Este trabalho, por sua vez, pretende colaborar no processo de desvendamento e discussão das atividades intelectuais de Paulo Duarte, desta vez enfocando-o como memorialista e utilizando como fonte principal suas Memórias, seu último e mais orgânico projeto de vida. Não resta dúvida de que os processos de construção de memórias de intelectuais também são frutos de uma instigante batalha travada no seio das instituições políticas e culturais e estão sujeitos, assim como quaisquer outras construções históricas, às vicissitudes do momento em que são elaboradas. Nesse sentido, falar de Paulo Duarte, sempre traz à tona uma comparação praticamente inevitável com Mário de Andrade, um dos intelectuais mais respeitados do país pela sólida amizade que os uniu a partir do final da década de 1920 até a morte de Mário em 1945. Juntos articularam e consolidaram o Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo, apesar das divergências literárias. Porém, não deixa de ser um paradoxo que este processo de construção da memória tenha ocorrido justamente com o nome de Mário de Andrade, um homem que expressava desconfiança quanto à eficácia dessa construção, ao menos quando se lê a crônica intitulada “Táxi: memória e assombração publicada no Diário Nacional, em 10 de maio de 1929. Segundo Mário: É um engano isso de afirmarem que a gente pode reviver, tornar a sentir as sensações e os sentimentos do passado. As memórias são fragílimas, degradantes e sintéticas para que possam nos dar a realidade que passou tão complexa e grandiosa. Na verdade o que a gente faz é povoar a inteligência de assombrações exageradas e secundariamente falsas.57 Mário de Andrade só se esqueceu de que, quer se queira ou não, assim que desaparecem, os mortos tornam-se imediatamente reféns dos vivos e a imagem que se lhes tentará restituir, dependerá tanto dos vestígios deixados pelo extinto ao longo de sua vida, as fontes históricas, quanto da versão que seus contemporâneos dispuserem a escrever sobre o homenageado. Nesse sentido, cabe lembrar a importância dos memorialistas que, ao elaborarem as suas memórias, tornam, de certa forma, aqueles que retrataram muitos dos quais já mortos, em reféns de sua narrativa. Trata-se do caso das Memórias de Paulo Duarte. 57 ANDRADE, M. Táxi e crônicas no Diário Nacional. ; estabelecimento de texto, introdução e notas de Telê Porto Ancona Lopez. São Paulo: Duas Cidades/SCCT/SP, p. 102. 27 Quanto ao nome de Mário de Andrade, a quantidade de trabalhos e homenagens que lhe vem sendo prestadas ao longo das últimas décadas transformou-o em um dos monumentos da cultura nacional. Um exemplo da magnitude desse processo encontra-se expresso no preâmbulo de Mário contra Macunaíma, de Carlos Sandroni, o qual revela ter sido surpreendido por um interlocutor que lhe interrogou com a seguinte questão: “Então, você vai encaixar mais uma pedrinha nesse grande monumento nacional à memória de Mário de Andrade?" 58 Segundo Sandroni “a pergunta o desconcertou, soou-lhe “como um questionamento à validade da empreitada à qual se propunha”, afinal, os autores que se debruçam sobre o estudo da obra de Mário de Andrade encontram uma vastíssima bibliografia.59 Cabe ressaltar que se trata de um trabalho infinito, porque embora muito tenha sido pesquisado e escrito, no caso de Mário de Andrade, ainda há material inédito a ser consultado, uma vez que parte da documentação que deixou em seu arquivo encontra-se indisponível para pesquisa e de acordo com a lei só poderá ser divulgada em 2015, setenta anos após sua morte. A outra face da moeda ocorreu com o nome de Paulo Duarte. O pesquisador que se dispuser a estudar sua obra não encontrará nenhum grande monumento à sua memória. Exceto seus próprios escritos, escassas são as fontes que os auxiliem na aventura de desvendar seu itinerário intelectual, embora ele tenha participado da constituição do Departamento de Cultura, dirigido uma importante revista cultural ao longo de doze anos e fundado o Instituto de Pré-História. Chega a ser intrigante o fato de seus contemporâneos quase nada terem escrito sobre Paulo, talvez porque, como lembra Cláudio Abramo, ele fosse um “homem de pavio curto e tiro rápido” senhor de “uma verve inigualável quando se tratava de destruir adversários – sobretudo adversários de baixa estatura moral, [...]”,60 características pessoais que o levaram a colecionar inúmeros desafetos, mesmo entre os amigos com os quais entrava em atrito pelos motivos mais inesperados como se pode comprovar pela leitura de suas Memórias. E se por um lado, as polêmicas jornalísticas nas quais se envolveu alavancaram sua popularidade e, em muitos momentos, mereceram o aplauso de quem o lia ou o escutava, por outro lado, parecem ter contribuído para que viesse a colecionar muitos desafetos, poucos amigos, e nenhum herdeiro intelectual que se dispusesse a trabalhar na construção da memória de sua obra. 58 SANDRONI, C. Mário contra Macunaíma. São Paulo: Vértice, 1988, p. 9. 59 Idem. 60 ABRAMO, C. op. cit., p. 73. 28 Uma segunda hipótese para o processo de esgarçamento de sua memória pode advir de um fato facilmente constatável. Embora, ao longo de sua atividade jornalística, Paulo Duarte tenha cultivado a escrita em suas diversas formas, nunca se destacou pela construção de um pensamento orgânico como o fizeram intelectuais como Mário de Andrade (1893-1945), Gilberto Freyre (1900-1987), Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) ou Caio Prado Jr (1907-1990), reverenciados pela contribuição à construção da nacionalidade brasileira. Uma terceira hipótese para esse silêncio talvez possa ser atribuída ao fato de Paulo Duarte não ter aderido à estética modernista. Quando o modernismo se transformou em paradigma da cultura nacional e os intelectuais que professavam a nova estética tornaram-se hegemônicos, aqueles que não comungavam os mesmos pressupostos permaneceram fora das instâncias de consagração que se constituiu no interior do grupo modernista. Como os modernistas foram responsáveis também, em grande parte, pela construção do campo historiográfico literário, aqueles intelectuais que realizaram percursos distintos foram excluídos da História do Modernismo, ainda que seja inegável terem realizado também um trabalho de leitura do Brasil e contribuído para o desenvolvimento do panorama cultural nacional. Conforme observação de Eduardo Jardim de Moraes, o problema residiria no fato dos historiadores da Literatura dotarem sua evolução: de uma autonomia própria [que] relata os acontecimentos marcantes do modernismo no seu desenrolar cronológico sem procurar problematizar o nexo existente entre a história literária e os fatos extraliterários. [Assim] o rumo da história literária parece definir-se por si mesmo, como se houvesse uma “vontade literária’, uma mola que movesse o desenrolar dos acontecimentos.61 Cabe destacar que, apesar de ter fundado a editora Anhambi, e editado e dirigido Anhembi por doze anos não conseguiu se tornar proprietário dos meios de produção no campo das comunicações como seus colegas Cásper Líbero (1889-1943), que deixou como legado a Fundação que leva seu nome; Assis Chateaubriand (1892-1968), pioneiro da televisão no Brasil, ambos adversários de Paulo, ou mesmo Roberto Marinho (1911-2003), que também criou uma fundação que reverencia seu nome, todos lembrados menos por suas produções escritas, do que pelos conglomerados empresariais que conseguiram edificar. Para alcançar seus objetivos, o presente trabalho divide-se em três capítulos. No primeiro deles, “A trincheira e a escrita”, faz-se uma apresentação do cidadão Paulo Duarte, que transforma sua profissão de jornalista numa espécie de trincheira. No item 1.1 (“A 61 MORAES, E. J. A brasilidade modernista: sua dimensão filosófica. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1978, p. 74. 29 palavra e a luta: forma-se o intelectual”) procurou-se mostrar a formação intelectual de Paulo Duarte, vivida no início da Primeira República e, em especial, sua inserção no meio intelectual paulista. O item 2.2 (“O jornalista e sua inserção no mundo intelectual paulista”) tem como objetivo situá-lo no momento histórico em que entrava para o jornalismo e como ocorreu sua inserção no mundo intelectual paulista. O item 1.3 (“A escrita como resistência”) mostra como o exílio levou Paulo Duarte a usar a escrita como forma de resistência, principalmente ao relatar, a posteriori, sua experiência nos três movimentos revolucionários dos quais, de alguma forma, participou. Ao registrar suas impressões dos movimentos armados de 1924, 1930 e 1932, produziu três textos bastante diferentes entre si, num movimento que se poderia afirmar que vai da crônica jornalística à quase ficção. No exílio, como forma de resistência ao regime que o oprimia, enquanto lutava pela subsistência, dedicou-se à escrita de dois projetos cujos resultados acabam penetrando no campo da ficção: Palmares pelo avesso e O espírito das catedrais, obras que posteriormente ele acabou considerando, de modo arbitrário como integrantes de seu projeto memorialístico. O segundo capítulo, titulado “Trincheiras e memórias”, também está dividido em três tópicos que tratam do período em que Paulo Duarte retira-se, aos poucos da luta política em si e se recolhe para iniciar nova batalha, desta vez pela memória. No item 2.1 (“Em busca da forma”) procurou-se demonstrar seu esforço para encontrar uma forma que conciliasse a experiência da luta política e da atividade jornalística com a ficção, vista neste trabalho, como seu grande desejo frustrado. O item 2.2 (“Após o exílio: da ação à memória”) trata de sua volta ao Brasil após o longo segundo exílio e as contradições criadas por seu afastamento do mundo intelectual paulista. Pode-se constatar, entretanto, que ele não está só nessa nova batalha, pois outros intelectuais, tanto amigos, com os quais tinha compartilhado suas lutas em defesa de algum ideal político ou cultural, quanto intelectuais inseridos nessas mesmas batalhas, também preparam suas narrativas. Disso trata o item 2.3 (“Tempos de memórias”), que procura mostrar que, não apenas Paulo Duarte procurou construir, relatando sua versão dos acontecimentos, um lugar próprio no discurso da História. Vários companheiros de geração, mais ou menos pela mesma época, trataram de deixar sua versão dos acontecimentos. Entre eles estão Menotti Del Picchia, Cassiano Ricardo, Sérgio Milliet, Paulo Nogueira Filho, Érico Veríssimo e Fernando Azevedo Assim, esse capítulo dedica-se a estudar tanto as condições nas quais Paulo Duarte produziu sua narrativa memorialística quanto como nesses escritos o tempo lembrado dialoga, ou não, com o tempo da lembrança. No último capítulo, titulado “Nas trincheiras da memória”, a partir do conceito de Ricoeur que pensa positivamente a memória individual e propõe indiretamente um novo olhar 30 para o papel do memorialista, o trabalho centra-se em três aspectos do conjunto memorialístico de Paulo Duarte. Partindo do princípio de que temos nessas memórias um elo necessário entre o presente do historiador e o passado que ele busca acessar através de suas pesquisas, abordaremos, dentre os muitos temas possíveis, três tópicos presentes no vasto relato memorialístico por ele legado. O primeiro deles (3.1- Os espaços de sociabilidade nas Memórias de Paulo Duarte) mostra como Paulo Duarte lê a cidade na qual está inserido. Como lembra Jean-Claude Perrot “a cidade inteira é uma produção social”; e Bernard Lepetit percebeu, em textos historiográficos, uma abordagem tradicional desse objeto como neutro, o que chama a atenção quando se percebe que esse objeto, a cidade.62 é atravessada por representações contrastadas e é fonte de práticas múltiplas. 63 Partindo-se dos pressupostos de Perrot e Bernard Lepetit para quem os espaços geográficos urbanos são quase sempre negligenciados pelos historiadores, que tendem a pensá-los como pano de fundo de uma trama, o contexto, evitando assim uma relação simbiótica entre atores sociais e os espaços nos quais atuam, pretende-se, neste tópico, identificar as imagens da cidade de São Paulo como contributo na configuração dos grupos intelectuais do qual Paulo Duarte fez parte. O segundo (3.2- Uma ação cultural rememorada: a criação do DC) explora suas relações com um grupo que acabou por fazer parte da cultura hegemônica do país, mesmo sem comungar com seus princípios: o grupo modernista. Esse tópico trata, enfim, da atuação cultural do grupo político a que pertenceu, na constituição do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo, talvez sua atuação de política cultural melhor sucedida, ou pelo menos, a mais lembrada. E no último (3.3- “E vai começar uma nova era...”), pretende-se evidenciar o seu ressentimento em relação àqueles que podem ser considerados os vencedores da História e como Paulo Duarte construiu estratégias de resistência, principalmente durante o exílio, contra o regime totalitário que o desterrou e, em suas Memórias, as relações que podem ser estabelecidas com a ditadura do militares, vigente no momento da escritura. 62 Beatriz Sarlo lembra que a cidade “é construção, decadência, renovação e, sobretudo, demolição”. SARLO, B. La ciudad vista. Mercancias y cultura urbana. Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 2009, p. 145 63 LEPETIT, B apud DOSSE, F. História e ciências sociais. Bauru: EDUSC, 2004, P. 142. 31 Capítulo 1 – A trincheira e a escrita 32 1.1- A palavra e a luta: forma-se o intelectual Em suas Memórias Paulo Duarte abordou temas dos mais diversos matizes. Nas mais de três mil páginas que escreveu tocou em fatos que permite as mais diversas abordagens, dependendo do propósito do leitor. Há um Paulo Duarte jornalista, há o Paulo Duarte exilado, o articulador cultural, o sonhador, o advogado entre inúmeros outros. Em meio às possibilidades uma requer especial atenção pela dedicação que ele dispensou ao tema: trata-se de sua formação intelectual, apresentada em meio à narrativa da história de sua família e dos anos de sua infância e juventude vividos nas duas primeiras décadas do século XX, período de consolidação da República, instaurada dez anos antes de seu nascimento. Como se sabe, um golpe de Estado pôs fim a sessenta e sete anos de monarquia. O episódio que marcou a mudança de regime no país ocorrido no Campo de Santana, centro do Rio de Janeiro, quase passou despercebido para a população local. Em 18 de novembro, referindo-se ao fato, Aristides Lobo (1838-1896), propagandista da República, publicou um artigo no qual dizia que o povo que deveria ter sido o protagonista dos acontecimentos assistira a tudo bestializado.64. Segundo José Murilo de Carvalho a percepção de Aristides indicava o pecado original do novo regime, ou seja, a república instaurada sem a participação das forças populares.65 O golpe só foi possível quando os republicanos paulistas, organizados em torno do Partido Republicano Paulista desde 1873, aliaram-se a intelectuais positivistas e juntos convenceram os militares de que a hora da República havia chegado. E, se por um breve período, houve comunhão de ações entre grupos tão heterogêneos, não se pode dizer o mesmo quanto à implantação do modelo de República que cada um sonhava. 64 LOBO apud Carvalho, Os bestializados – O Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras 1987, p. 09. 65 CARVALHO, J. M. Os bestializados – O Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 09. 33 Aos novos donos do poder cabia a árdua tarefa de manter a unidade nacional, um dos principais legados da monarquia. Temia-se que o novo regime não fosse capaz de evitar a fragmentação territorial do Brasil, a exemplo do que ocorrera com os vizinhos sul- americanos. Uma segunda, mas não menos importante tarefa era a de construir uma nação sob nova ordem civil. Para isso foi convocada uma assembléia Constituinte, promulgada em 1891. Em maioria, os proprietários rurais impuseram o regime de governo, presidencialista e o princípio federativo, este expresso desde o primeiro decreto do governo provisório.66 Começava a ficar bem claro aos intelectuais, quase todos, positivistas, que a República que se constituía estava longe daquela sonhada. Embora a eles se deva parte do arsenal teórico sobre o qual se assentou o novo regime e seu principal legado tenha se configurado na separação entre Estado e Igreja e na simbólica legenda Ordem e Progresso, inscrita na bandeira nacional, o modelo tinha como matriz o sistema norte-americano, baseado numa sociedade igualitária fruto de uma revolução anterior que em nada se parecia ao brasileiro, fruto de outra conjuntura polícia, social e cultural. Sob o ponto de vista social, apesar da abolição formal da escravidão, em 1888, o país caracterizava-se por extrema desigualdade social. A estrutura política também era diversa da matriz norte-americana e no caso brasileiro o federalismo instituído pela República serviu, sobretudo, para que as oligarquias estaduais pleiteassem maior autonomia frente a um governo nacional centralizador.67Quanto às regras eleitorais, instituiu-se o voto universal em oposição ao voto censitário que definia o eleitor pela renda, entretanto, o voto secreto não foi aprovado. O novo regime manteve a exclusão do direito de voto para as mulheres, as praças de pré, os religiosos e os analfabetos, fato que agravou a representatividade eleitoral. Atentos às dificuldades da instauração da República, os intelectuais da época apontavam duas questões básicas: as relações entre o público e o privado e entre o indivíduo e a comunidade. Alberto Sales (1857-1904), considerado um dos ideólogos da República, entendia que o problema estava na organização social dos brasileiros, muito sociáveis, mas pouco solidários, isto é, embora conseguissem conviver em grupos, eram incapazes de se organizar em sociedade. 68 Já para Sílvio Romero (1851-1914), leitor das teses darwinistas, o Brasil era uma sociedade atrasada cujo lento processo de formação seria o resultado de uma 66 CARDOSO, F. H et al. (Org.) O Brasil republicano, volume I: estrutura de poder e economia (1889-1930). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997, p. 37 67 CARVALHO, A formação das almas – O imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras 1990, p. 25 68 Idem, p. 30. 34 ação recíproca de forças físicas, étnicas e históricas. Impelido pela dinâmica dessa evolução o destino do Brasil seria uma variante americanizada da civilização ibérica que iria assimilando o índio, o negro assim como as etnias européias. O perigo desse processo, segundo Romero, residiria na maciça imigração européia que poderia criar um desequilíbrio social da nação, cujo resultado poderia levar à fragmentação política do país. Mas, acreditava que, ao fim desse processo, os brasileiros se tornariam autênticos cidadãos, com um sentimento de nacionalidade e a crença nos valores nacionais.69 José Murilo de Carvalho lembra que a República nasceu em meio à agitação dos especuladores, agravada pela política emissionista e que, apesar de uma breve reação durante o segundo governo militar, a chamada fase jacobina da República, a reação durou pouco.70 Quaisquer que fossem os problemas de base considerados pelos intelectuais, o fato é que o regime republicano não conseguiu resolver os graves problemas sociais herdados da monarquia e foi deixando de ser orgulho para os propagandistas e para os intelectuais ligados ao movimento republicano que logo perceberam que, tal como se configurava aquela não era a República de seus sonhos.71. Para José Murilo de Carvalho, [...] A formulação mais forte do desencanto, talvez tenha vindo de Alberto Torres, já na segunda década do século: “Este estado não é uma nacionalidade; este país não é uma sociedade; esta gente não é um povo. Nossos homens não são cidadãos.”72 Mas, é fato que foi mantida a unidade territorial da nação em meio à busca de uma identidade coletiva para o país. Às gerações seguintes caberia solucionar o complexo problema da cidadania e foi em torno dessas questões que se edificaria o debate político nas décadas seguintes quando o modelo implantado em 1891 mostrou sinais de esgotamento. Na prática, os eixos básicos estabelecidos pela Constituição de 1891 foram sendo moldados conforme as condições políticas reais. O sistema federativo, por exemplo, mostrou- se um problema extremamente delicado. Autônomos, os Estados mais ricos da federação, São Paulo e Minas Gerais, contraíram empréstimos para financiar a cafeicultura e as aristocracias regionais solidamente enraizadas transformaram os demais Estados em unidades fortes frente a um poder central fragilizado. A questão atenuou-se durante o governo Campos Sales (1898-1902), quando o presidente conseguiu viabilizar um pacto federativo conhecido como a política dos 69 ROMERO, S. apud LAUERHASS JUNIOR, L. Getúlio Vargas e o triunfo do nacionalismo brasileiro. Belo Horizonte: Itatiaia/ São Paulo: EDUSP, 1986, p. 39 70 CARVALHO, J. M. op. cit., 1987, p. 30 71 Idem, p. 37 72 Idem, p. 33 35 governadores. Pelo acordo, o governo central comprometia-se a respeitar o poder político dos governos estaduais em troca da eleição de bancadas comprometidas em apoiar as decisões do governo central nas duas casas do Congresso nacional. Se, por acaso, algum candidato oposicionista conseguisse vencer o pleito, teria sua eleição impugnada pela Câmara federal, responsável pelo reconhecimento e homologação dos eleitos. Este esquema permitiu a estabilidade política e assim, a cada quatro anos a máquina eleitoral entrava em ação para eleger as candidaturas apoiadas pelos governos. No mesmo acordo, os dois Estados mais ricos da federação, São Paulo e Minas Gerais, representados por seus respectivos partidos republicanos, comprometeram-se a indicar, alternadamente, o cabeça da chapa presidencial. Entretanto, a negociação era árdua e a cada pleito ocorriam embates cada vez mais intensos nas hostes republicanas. Um fato exemplar desses embates ocorreu nas eleições de 1910 quando o ex-ministro da Guerra do governo Afonso Pena, Marechal Hermes da Fonseca (1855-1923) decidiu candidatar-se, sem o apoio do presidente, contra Rui Barbosa (1849-1923), ex-ministro da Fazenda, um dos intelectuais mais respeitados do país. Uma vez mais militares e civis estavam em campos opostos e a candidatura civilista de Rui Barbosa conseguiu empolgar os intelectuais e alguns periódicos, mas saiu derrotada deixando marcas indeléveis entre os muitos que a apoiaram. Um dos civis que sofreram as conseqüências dessa derrota foi Hermínio Duarte (1873-1943), pai de Paulo Duarte, demitido da Coletoria Federal, em Franca, onde trabalhava desde 1903 por seu apoio a Rui Barbosa. Hermínio Monteiro Duarte mereceu destaque no primeiro volume das Memórias de Paulo Duarte. Embora Paulo fosse mais próximo da mãe, segundo ele, o único defeito de seu pai era não saber negociar. O Capitão, como Hermínio era carinhosamente era tratado em família, exerceu várias atividades profissionais ao longo da vida. Quando Paulo estava com quatro meses de idade, deixou o emprego na Companhia Industrial de São Paulo, dirigida pelo barão de Duprat (1863-1926), e mudou-se com a família para a região de Franca, no interior paulista, para trabalhar na propriedade de parentes de sua esposa. Sobre aquele momento da vida familiar Paulo Duarte conta que: A região era um feudo da família de minha Mãi, os Junqueira. E foi na fazenda de um desses parentes, Alexandre Vilela de Andrade, casado com uma prima irmã de minha Mãi, Elisa Junqueira que o jovem Hermínio Monteiro Duarte ia trabalhar.A fazenda era ao lado da estação de Cristais ao lado da qual só havia um grande armazém em construção no qual seria instalada a máquina de beneficiar café que Alexandre Vilela já havia adquirido e estava para chegar.73 73 DUARTE, P. Memórias... vol. I, p. 106. 36 Na virada do século XIX para o XX a cultura do café expandia-se pelo interior do paulista e o trabalho de abertura e manutenção das novas propriedades agrícolas demandava grande quantidade de mão de obra, em sua maioria suprida com os imigrantes, sobretudo italianos e espanhóis. Aos europeus, somavam-se os trabalhadores nacionais, a maioria proveniente do estado de Minas ou provenientes da região Nordeste do Brasil castigada por mais um dos muitos períodos de seca. Ao trabalhador nacional cabia, em geral, supervisionar os trabalhos dos colonos, assim como executar tarefas que demandavam a confiança dos patrões, caso de Hermínio Duarte. É preciso lembrar que as fazendas da passagem do século XIX para o XX em muito diferiam das fazendas coloniais. De acordo com Pierre Monbeig, a nova fazenda naquele período é: uma empresa ao mesmo tempo agrícola, industrial e comercial. A massa instável de colonos renova-se quase todos os anos. Como homem de negócios, o fazendeiro do século XX deve habitar tanto a cidade como a fazenda. Sem negligenciar o trato da terra, ele delega esse cuidado, cada vez mais, a um administrador, empregado de sua confiança. [...] O administrador reside em uma casa localizada perto das colônias, mas destacada. Esse importante personagem está instalado ao lado do escritório, pois um “negócio” do novo gênero possui seus serviços administrativos, sua contabilidade, suas estatísticas. É sinal dos tempos e agora a vigilância de caixa é mais importante do que a dos trabalhadores.74 Cabe ressaltar também, como lembra Joseph Love, que “na década de 1890, a zona da Mogiana experimentou uma verdadeira explosão populacional, a ponto de chegar a representar vinte por cento da população do estado em 1900.” 75 A importância da cafeicultura foi de tal ordem que Ribeirão Preto, a principal cidade da região, passou a ser conhecida como a capital mundial do café. Entende-se assim porque Hermínio Duarte tenha trocado seu emprego na cidade de São Paulo pelo trabalho na propriedade de Alexandre Martins, na região de Franca, sua terra natal. Além de auxiliar o patrão no beneficiamento de café, Hermínio, aproveitou os conhecimentos comerciais adquiridos como caixeiro viajante, funcionário da Casa Genin e da Companhia Industrial de São Paulo e abriu um negócio de secos e molhados, armarinhos, fazendas e ferragens, administrado pela esposa, cujos ganhos visavam complementar a renda da família, necessária, após o nascimento de Maria Aparecida, em 24 de março de 1901, 74 MONBEIG, P. Pioneiros e fazendeiros de São Paulo. São Paulo: Hucitec & Polis, 1984, p. 178-179. 75 LOVE, J. A Locomotiva: São Paulo na federação brasileira 1889-1937. São Paulo: Paz e Terra, 1982, p.47. 37 segundo filho do casal.76 Quando Paulo Duarte envolveu-se na estruturação do Departamento de Cultura, Paulo indicou a irmã, Nini como era mais conhecida para trabalhar na Divisão de Parques Infantis. O período de quase quatro anos que a família Duarte viveu em Cristais coincide com o governo de Campos Salles. Em 1898, recém eleito presidente da República, Campos Sales herdou um país economicamente exaurido devido à política do Encilhamento e aos gastos governamentais com as guerras internas, tanto no sul, quanto em Canudos. Decidiu então negociar com os credores do Brasil um Empréstimo Consolidado que ficou conhecido como o Funding Loan. 77 Por este acordo ficou estabelecido que, entre outras cláusulas, o governo brasileiro deveria hipotecar parte da arrecadação alfandegária do país, uma das principais fontes de divisas do tesouro, para honrar o compromisso do empréstimo e os serviços da dívida externa. As medidas tomadas provocaram a quebra de inúmeras casas bancárias em todo o país, mas se mostraram eficazes em longo prazo tanto que, em 1903, Rodrigues Alves, sucessor de Campos Sales, encontrou a economia saneada e pôde governar em condições favoráveis, o que lhe permitiu inclusive fazer um governo até hoje lembrado pelas grandes realizações materiais, entre as quais, a mais espetacular, foi, sem dúvida, a remodelação do centro do Rio de Janeiro, então Capital da República. Rodrigues Alves manteve a política de arrecadação de impostos do antecessor, e como encontrou as finanças saneadas, seu governo foi de expansão econômica. Foi nesse período Hermínio Duarte vendeu seu estabelecimento comercial em Cristais, após conseguir ser nomeado coletor federal, em Franca. Tratava-se de um cargo de confiança, cuja indicação cabia aos chefes políticos locais e a nomeação do indicado era da exclusiva competência do presidente da República que, em geral, ratificava os nomes sugeridos por seus correligionários municipais. Tratava-se, entretanto, de uma indicação em caráter interino, e o servidor só conseguia efetivar-se no cargo após servir durante dez anos, disposição esta que foi mantida no primeiro estatuto dos funcionários civis da União, baixado com o Decreto-Lei 1.713, de 28 de outubro de 1939. A situação de Coletor, até os anos de 1940, era bastante esdrúxula, pois tecnicamente ele não fazia parte do quadro permanente do serviço público. Até se discutia se ele era funcionário público enquanto durava sua interinidade. Quanto aos vencimentos, ele ganhava 76 DUARTE, P. Memórias... vol. I, p. 109. 77 PERISSINOTO, R. M. Classes dominantes e hegemonia na República Velha. Campinas: Editora da UNICAMP, 1994, p. 62 38 um percentual sobre a arrecadação de sua repartição (atendido um determinado limite) e era responsável pelas ações de seus subordinados, por ele escolhidos, e aos quais, aliás, pagava salários do próprio bolso.78 Praticamente em todos os municípios havia uma Coletoria Federal, pois sempre algum morador tinha interesse em exercer o cargo. Esse parece ter sido o caso de Hermínio Duarte. Segundo Paulo, seu pai teve o apoio dos parentes de Jovina, inclusive do ex-patrão Alexandre Vilela e do Dr. João de Faria, o maior agricultor local, e um dos políticos de maior prestígio no município para assumir o cargo. Entre 1903 e 1910, a família Duarte talvez tenha vivido um dos ciclos de maior estabilidade financeira graças ao emprego de Hermínio. Mudaram-se para Franca e inicialmente foram morar na Rua do Comércio, centro da cidade, no mesmo edifício onde funcionava a Coletoria Federal. Lá iniciaram uma ampla rede de relações sociais com a fina flor da sociedade francana composta por fazendeiros, comerciantes e profissionais liberais, sobretudo, médicos e advogados. A inserção social do casal ocorreu tanto pelo status que a coletoria proporcionava a Hermínio, quanto pela facilidade que ele demonstrava no trato dos mais diversos tipos de serviços manuais solicitados pela comunidade. Segundo atesta Paulo: [Seu] pai era o homem mais habilidoso que havia. Fazia de tudo: marcenaria, ferreiro, decorador, pintor, escultor, encadernador, costureiro, enfermeiro, funileiro, encanador, pedreiro, de tudo já tinha feito e muito bem. Uma de suas estatuetas, uma Nossa Senhora da Conceição, lá estava num altar da matriz de Franca. Só detestava os negócios...79 Em 1905, Hermínio Duarte comprou uma propriedade próxima ao núcleo urbano. Batizaram-na chácara da Rua da Outra Banda. A compra teria ocorrido por um desejo expresso de Jovina. Filha de fazendeiros, ela havia nascido e crescido na fazenda de seu pai, Gabriel Alfredo Dinis Junqueira e alimentava o sonho de um dia poder voltar a viver em um ambiente rural, idéia inúmeras vezes reiterada por Paulo Duarte em suas Memórias. Depois, mudaram-se em frente ao Colégio Nossa Senhora de Lurdes, das irmãs de São José, onde viveram até 1908. Foi lá que assistiram à chegada da luz elétrica.80 Quando viviam na chácara da Rua da Outra Banda nasceu, em 29 de maio de 1903, Lurdes, o terceiro filho do casal. Foi naquele mesmo período que Hermínio chegou a construir uma biblioteca de dimensões consideráveis para os padrões da época, composta por cerca de 78http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:X1sdA_KvChUJ:www.sindireceita.org.br/index.php% 3FID_MATERIA%3D5564+"coletoria+federal"&cd=4&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br&lr=lang_pt Acessado em 20-08-2010. 79 DUARTE, P. Memórias... vol. III,, p. 298. 80 DUARTE, P. Memórias... vol. I, p. 147. 39 trezentos volumes, quase todos franceses, mais uma evidência de que viviam tempos de estabilidade material Lá estavam, sem contar um dicionário francês-português e vice-versa e uma edição bem encadernada do Morais, todas as obras de Alexandre Dumas (1802-1870) e de Ponson du Terrail (1829-1871); Balzac (1799-1850) e Victor Hugo (1802-1885) quase inteirinhos;[...] Corneille (1606-1684), Molière (1622-1673), Racine (1639-1699) e outros; Flaubert (1821-1880) , Eugène Sue (1804-1857) e George Ohnet (1848-1918) completíssimos, até alguns poetas, vários volumes de ocultismo, como Papus (1865-1916), Agripa (1486-1535), Desbarolles (1804-1886) o livro de S. Cipriano, [...] e ainda os quatro volumes de Chernovitz e uma “Collection de l’Artesanat” composta por vinte e tantos volumes que se compunham desde o manual do perfeito “jardinier potager” até um que trazia receitas e métodos de se consertarem objetos quebrados, copos, vasos, etc. Tudo evidentemente em francês. Aliás, essa foi a base do prestígio logo adquirido pois um homem que falava francês e possuía tantos livros em língua ininteligível naquelas alturas e naquela época tinha evidentemente de destacar-se .81 Desde o governo Rodrigues Alves, o centro-sul do Brasil passava por um vigoroso processo de transformação econômica patrocinada pela expansão da cultura do café nos Estados de São Paulo e Minas Gerais. A chegada de expressivo contingente de imigrantes para trabalhar nessas lavouras alterou econômica e socialmente o país, pois muitos desses imigrantes, que em seus países de origem trabalhavam em ofícios urbanos, ao perceberem as insatisfatórias condições de trabalho, e a baixa remuneração nas fazendas, procuravam transferir-se para as cidades, dando início a uma insipiente classe média. A expansão da lavoura cafeeira na passagem do século XIX para o XX incrementou as atividades comerciais, tanto no campo, quanto nos núcleos urbanos em torno dos quais gravitavam as propriedades agrícolas. Os lucros auferidos pelos proprietários de terras com a exportação do café foram os principais indutores das reformas urbanas implementadas nas cidades do interior, espelhando a nova realidade econômica das regiões por onde os cafezais avançavam. Os exemplos de remodelação dos centros urbanos vinham tanto da Capital Federal, administrada pelo prefeito, Pereira Passos (1836-1913), que entre 1903 e 1906 foi o responsável pela reforma de parte do traçado urbano do Rio de Janeiro, quanto na administração do prefeito Antônio Prado (1840-1929) que orientou a sua gestão para reformas semelhantes na capital paulista entre 1899 e 1911. A melho